Se você quiser escrever para o 1999 sobre QUALQUER coisa que tenha a ver com música (um show legal que você viu, um carinha que você conseguiu entrevistar, um disco que você queria mostrar pras outras pessoas, qualquer tipo de teoria, contar qualquer parte da história do rock), basta escrever para a gente. 18.SET.1999 DIÁRIO DE BORDO Depois de bater muita cabeça com problemas envolvendo empresários e produtores, a Relespública está em franco processo de profissionalização. O quinteto formado por Fábio Elias (guitarra e vocais), Kako Louis (voz), Ricardo Bastos (baixo e vocais), Roger Gor (teclados) e Emanuel Moon (bateria) iniciou este ano uma série ininterrupta de shows em Curitiba e no interior, fazendo da banda a principal atividade dos integrantes. "Eu e o Ricardo damos aula de música e o Roger ensina aikidô, mas na verdade a Reles é a nossa única ocupação fixa", diz Emanuel. O 1999 não poderia deixar passar em branco este novo período da carreira do grupo, resolvi aceitar o convite da banda e acompanhá-los em uma viagem para a cidade parananense de Castro, onde os cinco se apresentaram recentemente no festival Rock da Terra. Confesso ter ficado meio receoso, pois só conhecia pessoalmente o Emanuel e mesmo assim por conversas de poucos minutos - e Fábio Elias de uma pequena entrevista feita para o piloto de um programa de rádio. Felizmente, aceitei a proposta e caí na estrada com a Reles. Foi uma viagem cansativa no melhor estilo "bate e volta", mas como estou acostumado a este tipo de jornada acabei me divertindo bastante. Depois de ter voltado desta experiência, chego à conclusão de que o interior surpreende como um mercado para shows excelente e quase virgem. É incrível como ainda existe tanta gente que adora rock neste país! O público de Castro foi mal-educado com o grupo, mas por não estar acostumado a ver shows com bandas de verdade tocando suas próprias músicas. Se apresentações como a da Reles virarem rotina, as cidades menores podem vir a ser uma boa saída para quem não consegue espaço no circuito daqui. A vida na estrada tem seu glamour, mas também
é muito difícil. Quantas bandas de Curitiba teriam coragem de largar suas camas
quentinhas para viver plenamente o espírito do rock'n'roll? É preciso gostar muito do
que Acompanhe agora o diário de bordo da Relespública, que tem início na tarde do último 3 de setembro. 14:10 - Chego dez minutos atrasado à casa de Emanuel. Fábio Elias e Gor já estavam esperando, assim como o ônibus alugado pelos organizadores do show. Ricardo e Gílson, técnico de som contratado pela banda, chegam em seguida. Todos à bordo, é a vez de apanhar Kako em casa. Longe de ostentar os ternos que marcam o visual das fotografias e shows, os integrantes do grupo vestem bermuda e chinelos. Tudo por causa do forte calor que aplacava a cidade. 14:30 - Já na estrada, nos acomodamos no fundo do ônibus, onde havia uma mesa. Logo de cara, um assunto controverso vem à tona: uma crítica negativa do 1999 ao show em tributo prestado pelos grupos Mosha, Woyzeck e a Reles aos Beatles, Velvet Undreground e The Who, respectivamente. "O show foi no dia do aniversário do Ricardo, um verdadeiro presente. Quem me dera tocar as músicas de uma das minhas bandas preferidas no dia do meu aniversário", diz Fábio Elias. Emanuel é mais crítico: "Ela (a jornalista que escreveu a resenha) disse que a gente pode perder o pique por ter se profissionalizado. Mas querem que a gente fique tocando escondido em buracos para o resto da vida?" 15:00 - Entre outros papos, os cinco contam histórias sobre as viagens do grupo pelo interior. Em uma delas, a dona do bar em que a Reles tocou, que não liberou bebida alcoólica para os integrantes do grupo. "Ela disse que não permitia que os artistas bebessem antes e durante o show. O Fábio Elias quase chorou de raiva", conta Emanuel. A solução foi pedir para o técnico de som trocar, na surdina, os "vale-refrigerante" por cervejas. A mesma senhora não permitia que nenhum cliente saísse do bar antes que ela mandasse. "A velha era louca", revolta-se Kako. 15:30 - A relação da garotada com o rock, principalmente em Curitiba, é o tópico do momento. Fábio Elias lamenta que ninguém mais quer saber de música, não amam o verdadeiro espírito do rock e que por isso a banda resolveu chamar o disco de E o Rock'n'Roll Brasil!?. A Reles está certa: a maioria dos roqueiros pensam mais em roupa do que em música, ninguém mais compra discos. O guitarrista ainda diz estar por fora da cena curitibana, devido ao excessivo número de viagens pelo interior. "É melhor não saber de nada, pois o povo só fica criando picuinhas e se alfinetando. Enquanto isso, a gente fica viajando, tocando e se divertindo." 16:10 - Chegamos a Palmeira, para buscar o grupo local Gin Jones. Conversando com os integrantes do grupo, noto que a Relespública vem ficando conhecida também no interior. "Disseram que uma banda de Curitiba tocaria em Castro também. Quando soube que seria a Relespública, quase falei para o pessoal desisitir", brinca o baterista "palmeirense". O tempo continua muito quente e decidimos beber alguma coisa em um pequeno bar, enquanto o Gin Jones coloca seu equipamento no ônibus. De volta ao veículo, quase esquecemos Gor na cidade. O tecladista estava no banheiro e por pouco não dá uma de Macaulay Culkin. 16:30 - Começa a sessão cantoria, com Fábio Elias fazendo o acompanhamento na guitarra desligada. Vale tudo, de Beatles a Michael Jackson, passando por Kiss e The Who. Um integrante do Gin Jones saca uma gaita e toca "Love Me Do", do quarteto de Liverpool. Engato um papo sobre Stevie Wonder com Kako. Ambos ficam surpresos por gostarmos de Steely Dan, grupo clássico dos anos 70 pouco conhecido no Brasil 17:30 - Paramos em Ponta Grossa, a fim de pegar a banda Stereosclerose. Depois de uma interminável espera, que culminou com o consumo de bolinhos de carne em um boteco, o motorista resolve ligar para Castro. Surpresa: perdemos tempo à toa, pois o grupo já estava no local do show. Revoltados, os músicos começam a mexer com as garotas no trajeto em direção à saída da cidade. 18:30 - Chegada em Castro. Todos estão cansados. Somos recebidos por Carlinhos Gomes, locutor da rádio local Antena Sul 102,7 FM e organizador do Rock da Terra. O evento é mensal e normalmente apresenta três grupos por edição. Gomes teve seu nome em evidência recentemente por ficar 102 horas ininterruptas no ar. "Vocês mandam na cidade hoje", diz o radialista. 18:40 - Deixamos as mochilas na casa de Ismael De Freitas, repórter da rádio Antena Sul. Lá as bandas descansariam e se aprontariam para o show. O simpático Ismael passaria a ser o nosso guia na cidade, atendendo às necessidades das bandas e me informando sobre o festival. Fiquei sabendo que aquela era a semana de comemoração do Dia de Castro (a "cidade-mãe" do Paraná, de acordo com uma campanha da prefeitura local) e o evento fazia parte dos festejos. 19:30 - Hora do jantar. Todos recebem vales da rádio para a refeição e dirigem-se ao restaurante Pão Sírio, que de sírio não tinha quase nada. Felizmente, a comida caseira servida estava muito boa e saciou a fome avassaladora das duas bandas e deste repórter. 21:30 - Entre idas e vindas, finalmente chega a hora da passagem de som. Chegamos ao local do show, o grande salão de baile do Clube dos Alemães. A aparelhagem é razoável e a iluminação antiquíssima, verdadeira relíquia da tecnologia. Logo de cara, a Relespública arranca aplausos das outras bandas com uma música nova, um soul chamado "Magic Feeling". "Ainda bem que trouxemos o nosso técnico. Estaríamos ferrados com o som do jeito que estava", alivia-se Ricardo. 22:30 - Fábio Elias (como sempre, carregando sua guitarra), Emanuel e eu caminhamos a pé para a casa de Ismael quando, repentinamente, somos abordados por uma horda de garotos visivelmente afetados por substâncias ilícitas. Os meninos suspeitaram do visual diferente dos dois músicos e começaram a nos cercar gritando "Sonzeira! Rock'n'Roll! Janis Joplin! Iron Maiden! The Doors! Nirvana! Led Zeppelin! Legião Urbana!". Percebemos que o show seria, no mínimo, interessante. 22:45 - Os integrantes da Reles e Gin Jones se revezam no único banheiro da casa que nos abrigava. A luta desesperada por um banho é cansativa, mas os marmanjos vão se arrumando aos poucos. Pergunto aos rapazes de Palmeira sobre o repertório da apresentação deles. "Vamos tocar apenas uma música própria, pois nesta região o pessoal só aceita banda que toque covers", diz o vocalista. O baterista emenda: "Nosso som é pesado, tipo Deep Purple. Mas o Carlinhos pediu para a gente tocar algo mais leve". Enquanto isso, Gor, Fábio Elias e Kako cochilam no chão da sala. Os curitibanos vestem seus "trajes de gala". 01:00 - Fim da angustiante espera. Saímos para o show. 01:10 - Chegada ao Clube dos Alemães. O Stereosclerose já está no palco. O trio de Ponta Grossa toca covers de Raimundos, Charlie Brown Jr e Planet Hemp. A apresentação termina com uma música do Sepultura, contrariando a recomendação do organizador e extasiando a jovem platéia (a média de idade do público é baixíssima). 02:00 - Uma barulhenta caixa d'água toma conta de um terço do camarim da Relespública. A situação da fiação elétrica faz do local um ambiente nada seguro. Para piorar, o organizador não é muito mão-aberta com relação aos tickets de bebida. 02:15 - Começa o show do Gin Jones, calcado no pop radiofônico dos anos 80. Durante "Walk Of Life", do Dire Straits, vejo metaleiros pogando em uma rodinha. Do outro lado do salão, um grupinho ensaiava passinhos de baile funk para a mesma música. Emanuel reclama do repertório cover das bandas do evento. "Olha só. Estes garotos ficaram completamente apáticos durante toda a apresentação, mas estão agitando na música deles", diz o baterista curitibano, durante a execução da única canção de autoria do Gin Jones. O local me faz sentir em um daqueles bailes de formatura das comédias adolescentes do cinema americano. 03:20 - Início do show da Relespública. Apesar de todo o cansaço da viagem, é inacreditável a garra do grupo em sua performance. E pensar que tem gente investindo na ultrapassada postura shoegazer, ainda tocando voltado para o dedão do pé. Assim como Roger Daltrey no The Who, Kako é um frontman generoso e abre espaço para as diabruras de Fábio Elias. O guitarrista pula, faz eficientes vocais de apoio e se comunica com a platéia. A cozinha do grupo e o tecladista Gor não ficam atrás em termos de empolgação e técnica. Fazendo jus ao apelido (uma homenagem ao baterista Keith Moon, também do The Who), Emanuel toca apaixonadamente seu instrumento. O público, porém, repudia as músicas da banda. Chega a xingá-los na beira do palco. Nas versões para clássicos de Janis Joplin, Beatles e Rita Lee, a garotada muda repentinamente de comportamento e cai na dança. Muito estranho... 04:00 - A apresentação segue conturbada, mas o
quinteto não perde a calma e continua tocando como se nada estivesse acontecendo.
"Pelos menos estamos nos divertindo", diz Fábio Elias depois da ótima
"Capaz de Tudo". O clima fica pesado durante o ska razoável
"Mammaoola". Metaleiros fazem gestos obscenos para a banda e mostram camisas de
grupos como Iron Maiden e Ratos de Porão. Embasbacado com a situação, Kako canta um
trecho de "Reign In Blood", do Slayer, para um moleque. "Eu também gosto
disso", esbraveja. 04:20 - Do inferno ao céu em poucos minutos. Depois de provocar amor e ódio no público castrense, a Relespública encerra o show com um momento de glória. "Rock'n'Roll All Nite", clássico festeiro do Kiss, causa verdadeira comoção na platéia. Alguns garotos chegam a subir no palco para cantar junto com a banda. O clima é de bagunça total! 04:30 - Fim da apresentação. Todos questionam a ordem dos grupos na noite. "A Reles deveria ter sido a segunda banda a tocar", afirma o radialista Ismael. Ele tem razão. Como o púbico pagou para ouvir músicas conhecidas, o show dos curitibanos não poderia ter sido o clímax do festival. Para piorar, tocaram muito tarde. "Está vendo a luta que é levar nosso som para todos os lugares?", pergunta Emanuel. 05:25 - Saída de Castro. Extremamente cansados, todos caem no sono. Emanuel e Fábio Elias continuam fazendo bagunça. O guitarrista é um caso à parte. Durante a divertida viagem, ele foi o que mais zoneou e falou besteira. O sujeito não pára nunca! 08:30 - Ricardo me acorda na entrada de Curitiba. Minutos depois, estou são e salvo em casa. No mesmo dia, a banda voltaria a cair nas estrada. Mais uma viagem bate-e-volta, desta vez para Irati. Alex
Chilton 1999 é feito por Alexandre Matias e Abonico Smith e quem quer que queira estar do lado deles. Os textos só
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