logo06.JPG (17693 bytes). INFORMAÇÃO COLUNISTAS BR-116 HISTÓRIA
DO ROCK
FICÇÃO RESENHAS

 

ÍNDICE

 

DR. JOHN
Anutha Zone
(Parlophone)
Por Alexandre Matias

Existe um lugar onde só existe a noite, a umidade e o calor. As luzes são fracas e nenhuma delas sequer ousa de ser maior que a da lua, imensa todo o tempo. O mormaço que tempera essa biosfera vem de um pântano completamente negro de tão verde, onde bichos sussurram o prazer de estar acordado à noite ao lado de cânticos tribais em iorubá e crioulo, que celebram a alegria de estar vivo e se esforça para esquecer que existe o Mal como forma de combatê-lo. O pântano deságua no Mississipi, perto de Nova Orleans, por isso o ritmo das músicas flutua entre algum lugar entre o jazz, o soul, o blues, ritmos latinos, o funk e o rhythm’n’blues, além de tomar doses exageradas de cajun e de vodu.

No centro deste ambiente está um cara branco, gordo, de barba e grisalho, sentado num piano de cauda vestido como uma roupa que, pra nós brasileiros, parece um cruzamento de baiana com índio apache, um vestido gigantesco coberto de penas, completo com um chapéu-cocar de penas igualmente coloridas. Esta é a roupa do Mardi Gras, o carnaval vodu de New Orleans, são fantasias que representam divindades encarnadas em míseros mortais. Malcolm "Mac" Rebennack é um desses caras. Nele, está encarnado Dr. John.

E basta Dr. John sentar-se ao piano para que corujas, grilos, guitarras, teclados hammond, corais gospel, bongôs, a lua, a noite e o pântano tomem conta do ambiente. Sua voz é um misto de Screamin’ Jay Hawkins com B. B. King com o Demônio da Tasmânia e conta histórias onde deuses e demônios se embatem durante o cotidiano, saudações à vida e cantos feitos para tirar mal olhado. Mais do que isso, as músicas de John são banhos de sal grosso musicais, uma desintoxicada espiritual em forma de terapia sonora. Basta colocar o disco pra tocar e entrar num universo de relaxamento e desapego cuja única linha mestra é o caminho traçado pelo vocal e piano de Dr. John.

E, mais uma vez, ele nos convida para este universo, uma outra zona, Anutha Zone (Parlophone, importado) como balbucia o título de seu álbum mais recente. Para os iniciados, é outra festa no céu, uma oferta irrecusável, uma oportunidade em mil. Para os iniciantes, é uma rave rural durante os anos 60, fazendo gêneros diferentes conviver pacificamente, numa democracia semelhante à do carnaval. E pra mostrar que não se pode ter medo de entrar, ele conduz um pequeno hall of fame para suas sessões no estúdio de Abbey Road - todos novatos em sua religião, mas devotos fiéis o suficiente para aceitar tudo que ele quiser.

Entre os nomes que visitam pela primeira vez o templo sonoro Gris Gris estão Paul Weller, Jools Holland (tecladista e anfitrião de um dos programas de música mais populares da TV inglesa), gente do Supergrass, do Spiritualized, da Beta Band, do Portishead e do Ocean Colour Scene, todos conduzidos pelo lendário John Leckie (não lembra? Lá vai: All Things Must Pass do George Harrison, Plastic Ono Band do Lennon, Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, Crossing the Red Sea dos Adverts, White Music do XTC, Real Life do Magazine, Public Image do PiL, The Wonderful and Frightening World of the Fall, do Fall, o primeiro dos Stone Roses e o The Bends, do Radiohead).

Todos eles sucumbem ao delírio roots conduzido pelo farmacêutico dos deuses. E todos se saem bem. No soul blues de Voices in My Head, Gaz Coombes e Mick Quinn, do Supergrass, mostram que não é só impressão que eles estão amadurecendo musicalmente. Em Hello God e John Gris, ambas co-produzidas por Jason Pierce (ou J. Spaceman, se preferirem), Dr. John ajuda o Spiritualized a afundar-se em sua atual obsessão, o gospel, e mostra como pode se obter o mesmo efeito de mantra que o grupo tanto cultua com o blues - afinal, são apenas duas mudanças de acorde. Party Hellfire junta Paul Weller, meio Ocean Colour Scene, meia Beta Band pra um ritual funk latino vodu entrecortado pela guitarra cada vez mais Clapton-anos-70 de Paul Weller, que repete a dose e os vocais de soulman branco em I Don’t Wanna Know.

Mas quem se destaca mesmo é o dono da festa. Quando ele canta que "eles me chamam de John Gris, Gris John" podemos imaginá-lo sacudindo-se lentamente naquela roupa esquisita, como um Orson Welles fantasiado de arara, sem rirmos da cena. Afinal, ele está falando sério e, mais importante, do assunto mais sério que existe pra ele mesmo - a rotina de deuses que decidem o que acontece na terra. Quando ele fala que "eles me chamam de John Gris", ele está mostrando o quanto ele é íntimo deles - e fala "John Gris/ Gris John" quase como se estivesse falando uma língua alienígena. Estamos falando de um cara que olha pra cima, encara Deus no olho e reclama do que está acontecendo no mundo, como um corregedor sagrado.

Mas ele não conversa apenas com deuses - ele fala com o povo e conta o que ele vê. Ele quer que o povo celebre, cante a felicidade de viver e exorcize tudo que for mal em sua vida através da música. "Eu não quero saber do mal", ele canta, "só quero saber do amor", sabiamente. E manda o "diabo direto pro inferno" e deseja esquecer-se do "inferno e do fogo". Sua saudação ao amor é também uma saudação à música e o resultado é uma festa onde os sentimentos e os sons estão em perfeita harmonia. Pra quem não conhece Dr. John, Anutha Zone é um elevador direto pro paraíso. Pra quem conhece, a provocação já foi feita.

    Os textos só poderão ser reproduzidos com a autorização dos autores
© 1999

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