Ultraje a Rigor
Por Abonico Smith
Como diria Vicente Matheus, o
folclórico e já falecido eterno presidente do Corinthians, o humor é uma "faca de
dois legumes" para a música. Depois que os Mamonas Assassinas dispararam em
ascensão meteórica até a morte trágica, parece que todos os brasileiros, especialmente
os executivos das grandes gravadoras, esqueceram que a piada já perde a graça quando
contada pela segunda vez. Só que para toda regra existe uma exceção, vem com força
quando se ouve o novo disco do Ultraje A Rigor, o primeiro depois de seis anos de
afastamento de estúdios e gravadoras.
Tudo isto se deve a Roger Rocha
Moreira, figura folclórica no roquenrol tupiniquim e força-motriz nestas quase duas
décadas de vida do grupo. Aos 42 anos, o vocalista continua com a língua e o humor
afiados. E, o melhor, mantém a cabeça no frescor da adolescência e fala escancarada e
diretamente de sexo, atitude e comportamento com a propriedade de um teenager.
O melhor do Ultraje A Rigor com
certeza está nas letras. Musicalmente, o grupo é apenas correto. Sua mistura de punk
rock, hardcore, pop, ska, reggae e seqüências básicas de acordes mais-do-que-comuns
convence e empolga, embora as métricas sejam sofríveis e Roger cante tão bem quanto o
flamenguista Iranildo chuta a gol. O grande trunfo, daí, acaba sendo empurrado para os
versos, a verdadeira habilidade deste fervoroso líder
são-paulino.
Roger é um primor de compositor.
Sempre escrevendo na primeira pessoa, sabe contar histórias do dia-a-dia como ninguém.
Fala de sentimentos primários como rebeldia ("Rebelde Sem Causa"), orgulho,
("Eu Me Amo"), tesão ("Eu Gosto De Mulher"), dúvida ("O Monstro
de Duas Cabeças"), ciúme ("Ciúme"), preguiça ("Preguiça"),
humildade ("Terceiro") e vontade de fazer zoeira ("Nós Vamos Invadir sua
Praia). As mazelas da sociedade também não lhe escapam. Versos fazem referências a fome
("Marylou", "Pelado"), politicagem ("Filha da Puta"),
capitalismo ("Mim Quer Tocar"), sexo seguro ("Volta Comigo"). Mas o
que mais rende assunto a Roger são a imensa diversidade de etapas e configurações dos
relacionamentos amorosos ("Zoraide", "Independente Futebol Clube",
"Ciúme", "Volta Comigo") e o sexismo latente na adolescência
("Pelado", "Eu Gosto de Mulher", "Sexo",
"Giselda").
Suas letras são inteligentes, bem
dispostas e feitas tanto para incomodar quanto para estimular outras reflexões. Nada, dos
palavrões ao sarcasmo, aparece de maneira gratuita. Nem mesmo o menor palavrão do mundo,
que recheia o refrão do novo hit "Nada a Declarar", justamente uma ode à falta
de assunto generalizada que abate o nosso país.
Este disco depois de um hiato de seis anos pode ser considerado o renascimento do Ultraje?
Roger - Só se for para a mídia. Para mim, o Ultraje nunca chegou a acabar. O que
acontecia é que fazíamos shows e muita gente vinha elogiar a banda e dizia que gostava
da gente ou que éramos tão bons. "Pô, quer dizer então que você não gosta mais
ou que deixamos de ser bons"?... (risos) O que mais incomodava, na verdade, era que
as pessoas sempre se referiam ao Ultraje a Rigor com o verbo no passado.
O Ultraje a Rigor entrou para a história do rock nacional com seu primeiro álbum, um
disco que teve todas as músicas tocando na rádio. Agora vocês voltam a gravar depois de
seis anos sem lançar disco. Vocês se acham
prejudicados pela memória curta do brasileiro?
Certamente não são os fãs. Eu me sinto bastante orgulhoso de ter feito um disco como o
Nós Vamos Invadir Sua Praia. Agora acabamos de vivenciar um período no extremo oposto.
Foi bom para o caráter, para aprendermos a não esmorecer e não ficarmos
mal-acostumados. Curiosamente, nossa história lembra a letra de "Jesse Go", a
única faixa do Nós Vamos Invadir... que não foi para o rádio. Eu cantava a história
de um cara que não se deixa levar pelo sucesso para ficar mais livre das cobranças.
Por que a decisão de lançar um disco ao vivo?
Já queríamos ter lançado em 1992. Achávamos que estava na hora, mas a nossa antiga
gravadora preferiu fazer uma coletânea com as mesmas músicas. Diga-se de passagem que
estávamos passando por um processo de fritura e demoramos para perceber isso... (risos)
De lá para cá só tivemos propostas irredutíveis: as gravadoras queriam um disco
inteiro só com músicas novas e elas não aprovavam nossas músicas novas. Nós fazíamos
questão que ele saísse parte com faixas inéditas e parte ao vivo. Queríamos que os
fãs mais jovens conhecessem a coerência do nosso trabalho antigo.
Como você conseguiu chegar aos 40
anos mantendo intocável a verve e o humor tipicamente adolescente?
Na verdade estas letras me dão muito trabalho. Elas vão amadurecendo ao longo dos dias,
até dos meses. Quero que tudo pareça natural e que dê margem a mais de uma
interpretação. Escrevo tudo na primeira pessoa para as pessoas acharem que sou eu quem
está cantando, ou descobrirem um personagem ou mesmo se identificarem com este
personagem. O humor não pode ficar só no lado panfletário.
Doze anos atrás, na letra de "Pelado", você já cantava que indecente era
"ter que ficar despido de cultura". Como você conseguiu adivinhar o futuro?
Com bola de cristal... (risos) Acho que a característica maior do artista é ter uma
anteninha para captar o que está no ar...
Daí você escreveu outra letra, desta vez sobre a falta de assunto generalizada?
Estava tendo dificuldade de escrever só por ter que escrever. Não gosto de fazer nada à
tôa. E a falta de assunto geral levou ao tema da falta de assunto... (risos)
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