Manuuel Cavaleiro de Ferreira, Franco, Mafra, Portugal

Manuel Cavaleiro de Ferreira, Julho de 1991

"Recordar estas vidas de recorte acentuadamente cristão melhor seria segui-las no caminho que fizeram. Luzes cada vez mais raras no meio de sombras cada vez mais espessas. A própria morte dá-lhes mais relevo, vigor e eficiência como o vento faz às chamas na escuridão da noite."

(Cónego Dr. Francisco Correia Pinto, citado por Manuel Cavaleiro de Ferreira, Porto, 11 de Fevereiro de 1954)

 

Introdução

Natural de Bragança, Portugal, onde nasceu a 19 de Dezembro de 1911, Manuel Cavaleiro de Ferreira concluiu com distinção o curso de Direito em 16 de Julho de 1932, e as provas de doutoramento, em 28 de Julho de 1934 pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Atingiu o topo da carreira académica em 14 de Janeiro de 1944, com a obtenção do grau de Professor Catedrático de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, e depois de um período de especialização e investigação na Alemanha e uma passagem pela carreira da magistratura (exerceu funções de Procurador da República junto do Tribunal da Relação do Porto).
Em 3 de Setembro de 1944 aceita o convite formulado por Oliveira Salazar, ao tempo Presidente do Conselho de Ministros de Portugal, para fazer parte do Governo na gerência da pasta da Justiça.
Durante o período em que exerceu as funções de Ministro da Justiça (6 de Setembro de 1944 a 7 de Agosto de 1954), foram publicadas e realizadas reformas na Justiça que marcaram o seu consulado como uma das mais consistentes e inovadoras gerências da pasta.
Após quase 10 anos de governação abandona a pasta da Justiça e regressa à cátedra.
Em 1972, com o início das actividades da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa de que foi um dos fundadores, ensina nesta Faculdade até aos últimos dos seus dias.
Foi-se embora de junto dos seus amigos no dia 27 de Abril de 1992.

 

A Ideia que gerou a obra

Manuel Cavaleiro de Ferreira exerceu funções de magistrado, de ministro, foi professor e jurista. Mas, sempre como católico exerceu uma actividade determinante de outras actividades, todas ordenadas, umas mais de perto outras de mais longe, para o fim mais alto de verter os valores do Espírito na vida colectiva.
Dirigir a vontade, ordenar os factos, estruturá-los em instituições é organizar a vida social.
O fundamental do Espírito, no homem como na sociedade, é ubersinnlehre, ou seja a fé que não deve ser entendida como crença. O objectivo na fé é religião e filosofia metafísica. Religião e filosofia são aquelas parcelas da sociedade onde se revela a sua totalidade supra social e nas quais se estrutura a própria sociedade. A religião é o "plenário" de toda a vida cultural. Simples fé sem imagem e verbo, sem conceito e acção pode não se realizar no espírito social, porque enquanto simples "Ahnung" não é espírito mas "Vorsein" mudo. Por isso deve a fé verter-se nos escalões restantes do espírito para os preencher e conservar. Esta versão do superior no inferior é a estruturação do superior no inferior. O inferior à religião no espírito objectivo é a ciência. (Manuel Cavaleiro de Ferreira, Apontamentos a Der Wahre Staat, de Othmar Spann, 1938)
E como verter a fé no Mundo? Seguindo o exemplo de Jesus. Em forma de humildade. Di-lo uma passagem da carta aos filipenses. Toda a existência de Jesus foi transferência de poder em humildade. E foi com o cristianismo que Deus penetrou no Mundo. (Manuel Cavaleiro de Ferreira, adap. de Apontamentos a Die Macht, de Romano Guardini, 1951)
Foi esta a formulação mais alta da Ideia que a vontade de Manuel Cavaleiro de Ferreira se propôs realizar quando ele alçou à altura que a sua consciência moral lhe determinou.
Quanto maior o poder maior a tentação de seguir a violência. Há o perigo de trocar força com comando, energia com medida, que impede a tendência para usar violência onde se pede direcção, para impor servidão onde se carece de obediência, para permitir a arbitrária licença onde se pretende iniciativa, justiça com utilidade (que substitui a norma moral da justiça pela noção prática e absorvente de utilidade, com a consequência no Direito Penal e com ele, o respectivo processo, aproximar-se de uma ordem jurídica disciplinar a que se segue a substituição dos tribunais livres e independentes pela administração), eficácia com êxito, impulso com ordem é muito grande e cresce na medida em que desaparecem as ligações com a norma moral, a soberania religiosa.
Na Obra de Manuel Cavaleiro de Ferreira uma doutrina moral plana por cima do direito e está ligada à obediência às leis divinas que regem a harmonia da criação (porque presidiram à sua formação). Aquela obediência é serviço, é a tradução em acto de transferência de poder em humildade. (Manuel Cavaleiro de Ferreira, Uma Explicação Plena da Doutrina Moral da Igreja Católica, O Direito e as Instituições Penais e Apontamentos)

 

Aspectos relevantes da Obra

Limites do poder do homem sobre o seu irmão

Formulou em 1945, no tempo em que exercia funções de Ministro da Justiça, os princípios em que deveria orientar-se mais vasta remodelação das instituições processuais penais na fase de instrução, com a acentuação do seu carácter acusatório, e procurou evitar abusos à detenção e prisão preventiva antes e depois da culpa formada, limitando legalmente a sua duração e não apenas a fiscalização judicial dessa duração. A legislação onde os princípios referidos foram formulados foi percursora do regime que veio a ser recomendado internacionalmente. (Decreto-Lei n.º 34564, de 4 de Maio de 1945: regulamenta o regime de detenção e prisão antes da culpa formada e instituições conexas)
Quanto ao processo:
Decreto-Lei n.º 35007, de 13 de Outubro de 1945 (reforma princípios básicos de processo penal quanto à adopção do princípio acusatório) e decretos complementares: Decreto-Lei n.º 35389, de 22 de Dezembro de 1945 (reorganiza os serviços do Ministério Público), Decreto-Lei n.º 35042, de 20 de Outubro de 1945 (reorganiza os serviços de Polícia Judiciária), Decreto-Lei n.º 36288, de 19 de Maio de 1947 (dá nova redacção a alguns preceitos do Decreto que reorganiza os serviços da Polícia Judiciária), Decreto-Lei n.º 39351, de 9 de Setembro de 1953 (submete a Polícia Judiciária ao espírito e disciplina do Ministério Público) e Decreto-Lei n.º 35043, de 20 de Outubro de 1945 (regulamenta a providência do Habeas Corpus).
Quanto aos tribunais:
Várias alterações ao Decreto-Lei n.º 33547, de 23 de Fevereiro de 1944, aprova o Estatuto Judiciário, e completado quanto à matéria de organização e competência dos tribunais criminais pelo Decreto-Lei n.º 35044, de 20 de Outubro de 1945; Decreto-Lei n.º 37047, de 7 de Setembro de 1948; Decreto-Lei n.º 37768, de 28 de Fevereiro de 1950; Decreto-Lei n.º 38387, de 8 de Agosto de 1951.
Posteriormente, aquando da reforma de 1972, de que foi igualmente o autor, fez restaurar o princípio tradicional do Direito Português da excepcionalidade da prisão preventiva (interrompida com a Revolução Liberal pela imitação inconsciente da legislação francesa) e que já se vislumbrava no Decreto-Lei n.º 35007, de 13 de Outubro de 1945.
Limitou o alcance das medidas de segurança (medidas de polícia) e para evitar abusos jurisdicionalizou-as e determinou legalmente a improrrogabilidade das que não tivessem carácter curativo (Decreto-Lei n.º 34553, de 30 de Abril de 1945).
Regulamentou a reabilitação judicial dos condenados (Decreto-Lei n.º 34540, de 27 de Abril de 1945) (reabilitação judicial ou graciosa diferente da reabilitação de direito: a primeira opera nos efeitos da reincidência e habitualidade enquanto a segunda opera por força do simples decurso dos prazos marcados na lei).

Subtracção do homem ao poder e coerção do seu irmão

Tomou a iniciativa de organizar o trabalho dos presos fora dos estabelecimentos prisionais e acudiu pessoal e directamente aos obstáculos de todos os dias nessa organização: a angústia do insucesso, o tédio do recomeço, as dificuldades do ensino, a apatia que foi preciso destruir, a inabilidade que foi necessário superar, concorrendo deste modo para a profissionalização dos reclusos, o alívio dos condenados e a humanização das penas. Fazer emergir da rebeldia dos instintos a personalidade moral; é esta uma finalidade que não tem fim, um esforço que não tem termo, uma obra que escondeu aquela outra obra menos aparente mas mais profunda, de reeducação humana, de valorização, que apenas cada recluso foi portador e testemunha, e que se grava na eternidade porque é pura obra do Espírito. E assim, foi possível atingir, com sucesso e eficácia, o fim da verdadeira reparação jurídica e moral dos crimes: É que o mal só se suprime ou diminui no Mundo com o acréscimo do bem. Só este repara aquele (Decreto n.º 34135, de 24 de Novembro de 1944: Reorganiza o trabalho dos presos dentro dos estabelecimentos prisionais; Decreto n.º 34674, de 18 de Junho de 1945: Promulga o regulamento do trabalho dos presos fora dos estabelecimentos prisionais; Decreto-Lei n.º 35659, de 25 de Maio de 1946: Alarga o regime de trabalho dos presos fora dos estabelecimentos prisionais ao trabalho dos presos dentro dos estabelecimentos prisionais; Decreto-Lei n.º 37386, de 26 de Abril de 1949: Alarga o regime de resgate das penas de prisão e multa nos trabalhos prisionais às penas correcionais; Decreto-Lei n.º 38386, de 8 de Agosto de 1951: Organiza a direcção central do trabalho prisional). As penas privativas de liberdade deixaram de poder ser classificadas como penas corporais, aflitivas na sua essência, e o sistema penitenciário português se modificou radicalmente no seu espírito; e por isso se pôde abrir caminho a novas espécies de pena, como o trabalho penal sem prisão, e ainda a novos meios de resgate de culpa, evoluindo assim no sentido de um Direito Penal mais espiritualizado. (Manuel Cavaleiro de Ferreira, Evolução do Sistema Penal Português)
E, de uma forma geral, também outros abusos de poder herdados de épocas que precederam a sua foram tratados e combatidos na Obra de Manuel Cavaleiro de Ferreira (ver o texto da conferência proferida em Fevereiro de 1979 na Faculdade de Filosofia de Braga, "Direitos Humanos e Estado de Direito" e publicada na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, RFDUL, Vol. XXXVIII, n.º 1, Ano 1997; Direito Penal Português, ed. Verbo, 1981; "Fim Último do Direito", em Sumários de Filosofia do Direito, do Curso de Mestrado de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil, publicada na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, RFDUL, Vol. XLII, n.º 1, Ano 2001).

Os meios económicos

Decreto-Lei n.º 35659, de 25 de Maio de 1946; Determinou que a partir do ano económico de 1947 fosse inscrita, em dotação global, na divisão do orçamento do Ministério da Justiça referente ao Conselho Superior de Serviços Criminais a importância dos subsídios a distribuir por todos os estabelecimentos prisionais em contrapartida das respectivas receitas próprias. Foi este decreto que consignou as verbas necessárias ao fim mais alto do trabalho prisional (a redenção do homem), garantindo o primado de actividades de conteúdo espiritual sobre actividades económicas.
A actividade económica é uma acção medianeira, meio para um fim, por isso que os fins são já dados e se trata de auxiliar a alcançá-los. Não entfaltet nenhum espírito. E enquanto realiza um meio exterior e não algo de espiritual, de intrínseco, a economia apenas serve, não realiza, como a actividade de estruturação. (Só na medida em que a actividade económica se torna em expressão de amor ao trabalho, de meio moral de educação, isto é se torna em fim próprio, tem as características de não ser meio para fim mas de entfalten algo de espiritual, acção "darstellender" - economia "entwirtschaftelle". Já não é então economia, mas actividade de expressão (darstellender)) (Manuel Cavaleiro de Ferreira, ap. a Der Wahre Staat, de Othmar Spann)

A precedência lógica ou conceitual

A actividade económica é um fim do Estado, mas não o fim último; é antes uma actividade medianeira, na qual assenta todo o desenvolvimento ulterior do Estado. Beneficia de prioridade na sua execução no tempo. A precedência no tempo, porém, deve considerar-se apenas como método de agir; de meio e fim. A precedência lógica, a única que determina uma hierarquia valorativa, é inversa; o fim está antes do meio. Olvidá-lo, seria condenar definitivamente a uma inevitável materialização toda a vida pública. E, no entanto, a aplicação necessária do único método eficaz de acção conduz à confusão da sucessão cronológica e mesmo causal, com a subordinação lógica dos fins do Estado. É que, não raro, os métodos penetram mais facilmente na compreensão dos homens e se revelam por isso mais fortes do que as próprias ideias. (Manuel Cavaleiro de Ferreira, Discurso proferido na Inauguração do Edifício do Tribunal de Bragança)

 

O êxito

O êxito é a terminação duma tarefa e a deleitada contemplação duma obra. As forças da personalidade, que directamente se dirigem à sua conservação, afirmação e desenvolvimento, só logram êxito, derramando-se em caridade, em amor, isto é, servindo.

 

O seu Discurso

Discurso proferido na sessão solene de abertura do Congresso Internacional da Mensagem de Fátima, em 7 de Outubro de 1951. Quando terminada a sessão solene de abertura, amigos e jornalistas pediram a Manuel Cavaleiro de Ferreira uma cópia do texto do Discurso que acabava de proferir (A Paz, Tranquilidade na Ordem), não satisfez o pedido dizendo-lhes que aquele discurso era muito seu; e por isso, na imprensa só foram publicados excertos. Mas, parece, não pôde recusar o mesmo pedido formulado pelo seu Amigo D. Manuel Trindade Salgueiro, que sobre o mesmo Discurso se pronunciou nos seguintes termos: A sua oração serena foi ouvida com religiosa atenção. Mas estudos desta altura só na reflexão concentrada podem ser totalmente apreendidos e saboreados, a ainda por quem esteja habituado a debruçar-se sobre as raízes dos problemas. Porque, nas dissertações do sábio professor há sempre aspectos filosóficos de rara densidade, que obrigam a intenso labor do espírito.

 

Obra escrita

"A personalidade do delinquente na prevenção e na repressão", "O cristão na ordem social e política" (também publicado por iniciativa da Igreja Católica portuguesa sob o título "O Apostolado e a Vida Cívica", in. Cadernos de Serviço Social, Ano III, n.º 10, págs. 6 a 22), "Direito Penal Português" (2 volumes), "10 Anos na Pasta da Justiça", "A Função do Direito Português na Dilatação da Fé e do Império" (Revista Bracara Augusta, Vol. XXXVIII, fasc. 85-86, 1984), são cinco títulos de trabalhos, entre muitos outros, que poderão ser encontrados na Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (www.fd.ul.pt), na Biblioteca da Universidade Católica Portuguesa (Palma de Cima, Lisboa) (www.ucp.pt), na Biblioteca Nacional de Lisboa (www.bn.pt), na Biblioteca da Procuradoria Geral da República (www.pgr.pt), (Portugal), e outras.

Textos escolhidos:

 

A Obra realizada como meio seguro para tentar novas realizações e alcançar novos fins

"A obra realizada não é porém fim em si mesma. Vista em relação ao futuro, é meio seguro para tentar novas realizações, para alcançar novos fins. A insatisfação constante que nos domina é o motor mais enérgico do progresso. As novas gerações, sucessivamente chamadas a tomar a sua parte na responsabilidade de condução do país, devem ter sempre a natural ambição de fazer mais, de realizar ainda melhor. Mas irão tanto mais longe quanto mais longe nos encontrarmos já. É este de resto o verdadeiro sentido da continuidade histórica em que assenta a grandeza da pátria". (Disc. Guarda, 4-XI-1945. Ver a explicação da ideia em : Noções Gerais de Direito (Lições): A multiplicidade dos fins na actividade humana)

 


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