Pio XII, Manuel Cavaleiro de Ferreira

Manuel Cavaleiro de Ferreira na audiência com Pio XII, na cidade do Vaticano, em 16 de Dezembro de 1952

 

Discurso: A Paz

Dentro de breves dias, por entre os esplendores da liturgia e em grandiosa manifestação de fé, encerrar-se-á em Fátima o Ano Santo. A Fé não é uma simples expressão emocional do Espírito; porque constitui o seu fundamento, abarca-o na sua totalidade e domina o entendimento e a vontade. A secularização do saber, a separação da cultura da Fé, originou uma generalizada incompreensão da verdade; importa que o conhecimento esclarecido ilumine toda a exteriorização da fé. Por isso, o Papa Pio XII, em vigilante luta com os males do século, quis que o encerramento do Ano Santo em Fátima, fosse precedido duma meditação sobre a Mensagem de Fátima e a Paz, para que aquela, sendo mais claramente ouvida, possa ser ainda mais profundamente sentida. O tema central do Congresso Internacional teria de ser, assim, o próprio conteúdo da Mensagem de Fátima, a Paz: paz na família, paz no trabalho, paz no mundo.
A paz é um conceito de relação; é a ligação com os outros, na família, na organização profissional, na comunidade nacional que não somente revela, mas condiciona e delimita a posição moral do homem, o qual só se encontra a si mesmo e aperfeiçoa e completa o seu destino no amor do próximo, no amor do amigo e no amor do inimigo. Afigura-se a característica mais profunda e aparentemente paradoxal do humano, que pelas ligações sociais, pela vida fora de nós se afira o valor da personalidade moral. Na natureza social do homem assenta a sua responsabilidade, ou por outras palavras, as sociedades são uma realidade moral, que se impõe aos seus membros. Ignorada ou repelida, por deformação da cultura, por desvio das paixões, ou por fraqueza da vontade, a realidade ontológica das estruturas sociais que enquadram o homem, o formam e lhe delimitam o destino e o dever, esfuma-se, e desaparece a própria ordem moral.
A enunciação do tema do Congresso Internacional da Mensagem de Fátima desde logo faz realçar este aspecto fundamental. É na organização familiar, económica e política, na responsabilidade que delas deriva para os homens, que importa estabelecer a paz.
Irá o Congresso, pela lição de eminentes congressistas, e nas suas diferentes secções apontar males e erros, ponderar e esclarecer os deveres de todos e de cada um, e fazer ressurgir mais nitidamente a virtude cristã da esperança. Nesta sessão inaugural e por honroso convite de S. Excelência Revm.ª o Senhor Arcebispo de Metilene, Presidente da Comissão Executiva cumprir-me-ia acentuar o seu significado e oportunidade; pesa-me não o conseguir, mas tranquiliza-me a certeza de que decorrendo naturalmente essa demonstração da sequência do Congresso, a minha insuficiência a não afectará.

I - Tranquilidade na ordem, se costuma dizer da paz. Que é, porém, a ordem e qual o nosso dever perante ela?
Ordem opõe-se ao caos. Nada de natural ou humano existe por si; porque de sua natureza é referir-se a algo que com ele coexiste. A multiplicidade de coisas, de seres, de actividades conjuga-se em recíproca relacionação, que as informe e lhes dê um sentido. Esta directriz substancial dos seres constitui a sua razão, porque só em relação ao todo em que se integram se pode aperceber o seu verdadeiro significado.
No mundo moderno olvidou-se ou deformou-se o sentido intrínseco da realidade. Uma concepção mecanicista da natureza, atomizou-a, e isolou os ramos do saber e da actividade; a cultura desprendeu-se da fé, a política da filosofia, a arte da ética. A economia só reconhece como medida de si própria, a maior utilidade; a política só se subordina à finalidade do engrandecimento do poder; a moral parece reduzir-se à prática do bem, considerado em abstracto, como que desenraizado da vida real, e até a religião, em opinião generalizada, seria um modo particular e parcelar de compreender e exteriorizar as relações do homem com Deus sem interferir nos domínios da vida. Todas as divisões artificiais do saber procuram em si mesmas o seu fundamento; a inteligência esforçou-se por distinguir, destruindo a unidade do universo, julgou-se senhora das forças dispersas e sem sentido próprio para as amoldar aos desejos e ambições ou ao desregramento do homem. A desordem, o caos, está no espírito, antes de se verter na acção. À concepção mecanicista da natureza corresponde um conceito atomístico de sociedade.
Uma vez perdido todo o significado transcendente de sociedade, e reduzida esta a tumultuária e anárquica coexistência, mal se poderá buscar um motivo de coesão, a não ser no interesse, materialmente considerado, dos indivíduos. Não se vislumbra com tal suporte, a possibilidade de lhe atribuir caracter real, ontológico, nem se lhe descobre significado ou objectivo ou valor próprio de que derive qualquer pretensão moral em relação aos seus membros. A consequência lógica é a negação duma ordem induzida da realidade das estruturas sociais.
Certo é que, do entrechoque das forças individuais, uma optimística crença infere a criação expontânea duma harmonia geral, alcançada sem esforço porque resultante de leis naturais, não menos inelutáveis que benéficas.
A sociedade, assim, em vez de funcionar como elemento aglutinador, desintegra-se em multidões, em massas; todas as formas de comunidade se transformam em arenas para mútua peleja dos interesses particulares, sem espírito que os oriente ou ordem que os domine. Da família, como unidade moral, queda um tipo pragmático de coexistência para satisfação egoísta dos seus componentes. A profissão transmuda-se em classe, em conjunto de indivíduos interessados economicamente na mesma espécie de trabalho, e perde a sua significação humana pela destruição da sua referência à comunidade na qual e pela qual actua.
O Estado burocratiza-se ao serviço da igualdade jurídica, e na vida e na história estabelece-se firmemente o primado da economia. O nexo social não é então fonte de responsabilidades ou deveres e a moral refugia-se, diminuída, na consciência individual. A organização da vida colectiva, prescindindo duma base moral, assentará, em definitivo, no arbítrio dos homens.
Restava, deslizando no pendor desta corrente, tomar consciência da ilusão do optimismo naturalístico de harmonia preestabelecido e do seu corolário, o progresso. Foi esse o mérito do pensamento existencialista ao acentuar o aspecto trágico do destino isolado do homem, enquanto situado, substancialmente, fora do espaço, desgarrado do mundo, determinado exclusivamente em função de si mesmo.
Em tais bases não é possível assentar a moral social.
Em orientação oposta, pretendeu-se buscar fora do homem, mas no próprio mundo, uma norma de direcção.
Não é, de certo, fácil ordenar a vida social em comunidades cuja existência real se não reconhece, e que, funcionando como instrumentos servis do homem, não são fonte de unidade espiritual, nem fundamento de deveres.
Mas tão pouco pode ser esteio duma ordem moral a concepção que negando o homem como realidade essencial, para valorizar apenas as estruturas sociais de que ele faz parte, o confina a simples momento duma história em que não participa, ou mero elemento duma evolução que o arrasta, por tal sorte sujeito ao império de leis que o seguram e amarram a inflexível destino que a noção de personalidade criadora, inteiramente se esvai.

II - Que as ligações sociais têm um sentido, não pode duvidar-se mas esse sentido, esse espírito, não rola, fixado sobre si mesmo, através do tempo, obediente a misteriosa e incondicionada força. Tem antes o valor de um imperativo ou exigência moral, delimitando os contornos dos deveres humanos, dando forma ao conteúdo da responsabilidade, esclarecendo os objectivos concretos da acção.
Toda a sociedade é uma unidade viva no espírito e na actuação, no destino e na responsabilidade. Não se funda ou caminha por si; não surge acabada dos confins do tempo; constrói-se pela projecção recíproca de todos os que amam o mesmo objecto, se dedicam a similar tarefa, dão e recebem, participando dos mesmos valores e obras e objectivos. A realidade que ela representa, traduz uma verdade; o esforço do homem para realizar essa verdade, ou seja conquista da verdade pela acção, denomina-se moralidade.
A moralidade é a submissão da actividade ao espírito; só desta dependência recebe toda a espécie de actividade o seu mérito e a sua dignidade.
Na família nasce e forma-se o homem, que do seio dela surge para a vida nacional. Comungando na vida da família, recebe a herança das gerações anteriores, dá-lhe o cunho da sua personalidade, e entrega-a a outra geração. O espírito é comum, ainda que variável a forma da sua estruturação nas sucessivas gerações. A defesa dos valores espirituais da família cabe porém necessariamente aos seus membros, porque o homem não recebe como dádiva a sua herança espiritual, antes lhe é indispensável adquiri-la, impregnando-se do espírito da família, como fonte de energias morais, para cumprir a sua tarefa de verter o passado no presente, e preparar neste o caminho do futuro.
Da mesma sorte, na acção. Os homens definem-se pela sua tarefa, e as nações pela sua missão. Um povo só surge verdadeiramente Nação quando se torna consciente do seu destino histórico e constrói a sua unidade espiritual na fidelidade a uma missão que o transcende.
Estas estruturas sociais em que o homem se situa, a tradição de que provém ou o momento em que vive são um elemento dado, uma realidade criada a qual afeiçoa o modo de ser especial do seu destino e do seu dever. É esse o mundo que encontra e em que se encontra. Mas, no mundo, como criação, nada há que odiar ou destruir. O sentido humano da existência consiste em atentar na obra da criação no momento em que é dado vivê-la e em aceitar, cumprindo-a, a tarefa de procurar naquele mundo em que a vontade de Deus lhe talhou a hora do seu esforço, a sua justiça. Não há que esconder na sombra do ódio ou apontar à sanha do aniquilamento os homens, as classes ou as Nações que, na nossa apoucada e egoísta paixão, apontamos de inimigos, e antes que refazer, iluminando-os, dando-lhes novo sentido, as coisas e os homens, o pensamento e o trabalho, a vida e a morte.
É no mundo que se situa a nossa responsabilidade, a grandiosa e terrificante responsabilidade de o refazer, ajudando a obra permanente da Criação. Todos os dias, a todos os instantes, nas mais diversas circunstâncias, sobressai iniludível o dever mais alto: participar na redenção. E redimir o mundo é transfigurá-lo. Nada no mundo é desprezível; tudo exige de nós o reconhecimento do seu valor, do valor que lhe é dado pela referência a uma ordem comum e una. Esse dever supõe o conhecimento exacto da realidade em que importa tornar eficaz a nossa acção, e a ânsia de nela e com relação a ela criar um mundo novo. O ambiente que criando o homem em que este vive, sofre e reza será tanto mais permeável quanto mais claro for o seu objectivo, mais serena e forte a sua vontade, mais vigorosa a sua personalidade.
O homem tanto mais se afirma quanto mais se dá. O dever humano perante a ordem natural só difere pelas circunstâncias em que é obrigado a agir. A realidade em que se enquadra e à qual pertence para a reconstruir amando-a, apresenta-se multiforme no tempo e no espaço, mas o seu sentido moral é o mesmo. As coisas falam por si; importa servir a realidade social para a servir e nela apreender o seu sentido de ordenação, para encontrar a paz.

III - A ideia de natureza, desintegrada da sua origem como criação, invadiu a cultura e estendeu-se às instituições humanas. A fé tornou-se quase inconscientemente, mesmo para os crentes, um aspecto individual da vida a que é alheio o "nós" colectivo. Secularizou-se a sociedade e o Estado e foi-se-lhes buscar aos mitos sedutores da evolução, do progresso, do espírito objectivo, o apoio quase religioso e indispensável, ou despojando-os do conteúdo próprio quis-se entregar a sua direcção ao arbítrio individual dando-lhes como supremo lema da sua constituição e actividade, a utilidade imediata. A fé recolheu-se assim ao foro íntimo, como se fora lícito mutilar a ordem da criação.
Na confusão originada pela pretensão ambiciosa da ciência de tudo explicar, da técnica de tudo realizar, mal se atenta em que o dever do homem, na responsabilidade política da condução dos Estados, como fautores da civilização, na responsabilidade institucional na família, no trabalho quotidiano, é um dever de colaboração, que importa seja consciente e livre, na obra de Deus. O homem poderá rejeitar a sua integração na criação. Em vez de servir a ordem, considera a natureza e as instituições sociais como seus instrumentos. Longe de servir pretende dominar, e quebrando a ordem destruir a unidade espiritual do mundo. É esta a consequência e o castigo do erro colectivo.
Não deve o homem satanizando-se substituir-se a Deus, definindo no seu orgulho a medida dos seus poderes, alterando na sua ambição as leis morais da natureza destruindo na sua impaciência a ordem da criação, odiando, na sua revolta, o que se opõe à sua vontade infrene. Há que confiar na Providência. A vida não é revolta contra Deus.
Vã seria também a atitude de desprezo pelas coisas do mundo, fechando os olhos à realidade, o isolamento altivo perante a vida profana, como se dela não derivasse, em cada momento, um apelo à acção do homem. É morta a fé que redunda em crítica e que conduz ao cepticismo, à renuncia e à resignação. A fé impõe a todos uma tarefa marcada pela hora da sua vida. A contemplação estática da Providência é uma fuga ao dever, pois que a lei moral é uma lei de acção. Importa aceitar de boa mente a dura realidade, assumir perante ela responsabilidades e enfrentar o destino, para não entregar o mundo entre gritos de alarme, às forças do mal. A vida também não é revolta contra o mundo.
Na criação, no mundo passa o caminho para Deus. Serve-se a Deus servindo e venerando a sua obra, desterrando da fé os assomos de egoísmo, para no respeito pelas realidades sociais, como condição e conteúdo do dever, colaborar na obra da redenção divina, dando forma a um novo homem a um mundo novo a uma nova vida.

Um sacerdote bracarense discípulo de Santo Agostinho, Paulo Orósio, coevo das convulsões que acompanharam a destruição do mundo político do império romano do ocidente, exaltou os ânimos deprimidos dos seus contemporâneos numa obra que lançou os fundamentos a uma diferente visão da História, para combatendo o desânimo e fazendo calar o derrotismo, proclamar a eterna presença do cristianismo que, em todas as circunstâncias, por mais trágicas que se figurem, revolucionará a face da terra. Parecia então ruir toda a organização humana estável dificilmente concebível fora da potente tradição do império; de envolta com a segurança das instituições o mesmo torvelinho submergia os frutos da cultura antiga e semeava por toda a cristandade as vagas da heresia. Para as previsões da cautelosa prudência humana parecia comprometido o futuro, porque ao seu redor, os cristãos viam desmoronar-se as amarras visíveis do cristianismo. E no entanto o cristianismo fez levedar em novas nações uma civilização rejuvenescida. A confiança de Orósio obteve a confirmação da história.
Portugal talhou as suas fronteiras e forjou a sua alma na reconquista cristã, quando a primeira arrancada do islamismo ameaçava submergir o ocidente europeu. E do êxito da sua luta, nasceu para a nova nação, quando já decadente por toda a Europa o espírito das Cruzadas, o desejo de a repetir, por novos caminhos e por diferentes meios. O espírito de cruzada, assimilado como missão nacional, iria em breve desentranhar-se em novas nações e em novas cristandades de além mar, precisamente numa época em que o cisma da Reforma abalava a unidade do velho continente e o avanço do oriente turco fazia tremer a segurança dos Estados cristãos. A história repousa na Providência. Como que parece que foi este extremo ocidental da Europa escolhido para suscitar nas épocas de desânimo um renovo de energia, fazendo reluzir nas trevas o clarão dos desígnios providenciais.
De novo o mundo é assolado pela heresia e pela guerra pela desordem nos espíritos e nas instituições. E em plena primeira guerra mundial de Fátima ecoa sobre o mundo uma mensagem de paz renovando a promessa eterna dum mundo novo se os homens souberem confiar - pedindo em fraterna interdependência o favor divino, penitenciando-se em fraterno sacrifício, amando-se na intimidade do mesmo destino e na esperança da mesma redenção.
E da terra de Santa Maria, onde Santa Maria se debruçou, misericordiosa sobre a aflição do mundo, elevar-se-á no encerramento do Ano Santo, por sobre o perigo que intimida e o erro que confrange, por sobre a desconsoladora angústia da fraqueza humana, com ânimo firme e em clamor de fé, com serena confiança e em jeito de prece - a saudação à Virgem, Mãe de Deus:
AVÉ MARIA.


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