Inauguração do edifício do Tribunal de Bragança, em 11 de Julho de 1952

 

Meus Senhores

A Câmara Municipal de Bragança entrega hoje aos serviços de Justiça um novo edifício para sua instalação. Sói denominar-se inauguração a cerimónia dessa entrega e dá ela azo a manifestações de regozijo, em que se misturam a satisfação pelo melhoramento material e um imponderável sentimento de respeito pelo ideal de Justiça que nunca corre no coração dos homens.
A sofreguidão da vida moderna não raramente faz desviar da superfície das coisas, e não da sua essência, a razão e o fim do nosso pensar, julgar e agir; não é assim de estranhar que na contemplação do novo Tribunal se veja um reflexo do facho que deve iluminá-lo. Mas seria mal que o aspecto material influísse de tal sorte na nossa sensibilidade que a imagem viesse sobrepor-se ao próprio raciocínio.
Desconfio também algum tanto das palavras. Quase sem querer, as palavras tornam-se causa única doutras palavras, autonomizam-se da verdade e como que deslizam agradavelmente, de motu próprio; vagueiam então algures, através do acidente e transitório, perdido o contacto com o essencial e permanente. A indulgência do auditório torna ainda maior o risco; para fugir a ele é-me necessário esforçar-me, olvidando a exterioridade das coisas, por meditar nestas, só frente a elas, para as não trair.

II - A vida colectiva é uma unidade moral assente no bem, na verdade e na justiça; verdade e justiça que são de alguma sorte criação nossa. As ideias, embora válidas por si mesmas, não são dotadas de força; permanecem como que em quietude, iluminando o caminho, mas incapazes de actuar por virtude própria. Vivem, desde que trasladadas para a vida real dos homens, desde que unidas às finalidades da sua acção, às tarefas da sua actividade criadora. O espírito só se realiza pela acção.
Dirigir a vontade, ordenar os factos, estruturá-los em instituições é organizar a vida social. É esta a primacial função do Estado. Organizar - não no sentido mecânico ou formal, que suscita a desconfiança e o receio, e que tantos supõem ser o significado único de burocracia -, mas exercer uma actividade determinante doutras actividades, todas ordenadas, umas mais de perto, outras mais de longe, para o fim mais alto de verter os valores do Espírito na vida colectiva. Organizar nesta acepção, é prever e pré estruturar os objectivos que se contêm nas actividades que importa orientar ou dirigir; e por isso tal previsão constitui elemento criador, quase diria educativo, de toda a acção organizadora.
Para alcançar o cume é necessária uma penosa ascenção. A organização intensiva da sociedade, a direcção da vida social, a missão espiritual do Estado implicam a existência prévia de meios económicos e materiais - outros tantos escalões daquela ascenção - que, embora subordinados, são indispensáveis à prossecução das tarefas superiores. A actividade desenvolvida para conseguir esses meios - actividade económica em sentido lato - é um fim imprescindível do Estado, mas não o fim último; é antes uma actividade medianeira, na qual assenta todo o desenvolvimento ulterior do Estado. Beneficia de prioridade na sua execução no tempo. A precedência no tempo, porém, deve considerar-se apenas como método de agir: de meio e fim. A precedência lógica, a única que determina uma hierarquia valorativa, é inversa: o fim está antes do meio. Olvidá-lo, seria condenar definitivamente a uma inevitável materialização toda a vida pública. E, no entanto, a aplicação necessária do único método eficaz de acção conduz à confusão da sucessão cronológica e mesmo causal, com a subordinação lógica dos fins do Estado. É que, não raro, os métodos penetram mais facilmente na compreensão dos homens e se revelam por isso mais fortes do que as próprias ideias.

III - Para além do trabalho da construção do novo edifício do Tribunal de Bragança, que a Câmara Municipal dá hoje, festivamente, por concluído, podemos vislumbrar a grande missão dos serviços a que se destina. Explicá-la por palavras é mais difícil que senti-la; parece que só o silêncio saberia falar. Um compasso e uma régua definem desde logo uma construção; e os mais rebuscados conceitos não logram traduzir senão muito imperfeitamente, um esforço moral de criação.
Estabelecer a justiça nas relações de indivíduo a indivíduo, proteger a paz pública e a sociedade, garantir a liberdade, defender o fraco, limitar o prepotente, criar o sereno condicionalismo da moralidade - fins que, para além do formalismo processual, se propõem os tribunais -, enraizar a fé pública, promovera seriedade dos contratos, o valor dos compromissos, a aplicação voluntária das normas reguladoras da vida social, garantir a estabilidade das situações jurídicas e a segurança dos patrimónios - outros tantos objectivos dos serviços de registo e notariado, não constituem uma simples delimitação de competência funcional: são a enumeração de autênticos valores da vida colectiva, elementos integrantes da civilização, de bens imponderáveis de cultura com que se forja a alma da Nação.
Servir é, neste caso, organizar, isto é, transformar em instituições as directrizes normativas. É o oposto de planificar, destruindo as velhas raízes, para apertar num mecanismo regulamentar e cego a natureza vital dominando-a como se fôra simples matéria. Só a natureza sem vida é objecto de domínio e pode ser violentada pela técnica distante e abstracta. Os elementos vitais - esses só se conduzem e afeiçoam pela aglutinação num espírito comum. É preciso aproximarmo-nos deles, persuadindo, incitando, acordando nas energias sociais que convém dirigir novas centros criadores. Importa, numa palavra, impulsionar a vida e estar também atento aos seus desvios. O serviço público, assim considerado, é uma compenetração do Estado e da sociedade, a qual evita a fácil e perigosa confusão de força com comando, de energia com medida, impede a tendência para usar da violência onde se pede direcção, para impor servidão onde se carece de obediência, para permitir arbitrária licença onde se pretende iniciativa. Só se caminha com segurança no solo que é firme; a firmeza das instituições jurídicas não se confia a artigos de lei ou a uma abstracta planificação: grava-se na vontade de servir dos funcionários, impregna-se na consciência dos homens e solidifica-se na realidade dos factos. É esta a atitude de espírito necessária para bem servir as funções que têm a sua sede neste edifício.
Como resultado da sua luta quotidiana e tenaz, não há que esperar êxito. O êxito é a terminação duma tarefa e a deleitada contemplação duma obra. Nestes serviços a tarefa tem de ser permanente e a obra é inseparável dela. Há apenas - ou mais ainda? - que conseguir a "eficácia" pela transfusão inteligente e cautelosa do pensamento e acção próprios - como instrumentos da moral e do direito - na orgânica social. O labor de magistrados e funcionários - com esta orientação - confundir-se-á então com o sentido humano da própria vida.
Não ignoro o encargo que representam as exigências que enumerei; mas elas não estão acima da boa vontade dos que me escutam. Creio que é essa a grande razão de esperança; e também o que verdadeiramente importa ao interesse nacional.

Construindo este novo Tribunal, a Câmara Municipal de Bragança e o Ministério da Justiça cumpriram um singelo dever. Que motivo invocar ainda, para além deste dever? Talvez a convicção geral da necessidade de substituir instalações desprimorosas, a vontade forte e comum de prestigiar a Justiça e embelezar a cidade, o anseio de progresso que a todos dinamizou. O Tribunal de Bragança foi, assim, um desejo colectivo: um desejo que se tornou realidade.

 


 

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