Uma explicação plena da doutrina moral da Igreja Católica

 

 

I - Introdução

1. Juventude

Juventude é a fase da vida em que se alcança autonomia do espírito, sem se estar ainda sujeito à servidão dos interesses criados. O passado quase não existe e todo o futuro constitui um mundo de sonho, um domínio aberto à realização. Na maturidade o homem agarra-se ao presente, vincula-se à situação criada; porque mais amarrado à terra é menos livre frente ao céu. Quando velho, percorrido o caminho da vida, aferrado aos destroços de si mesmo, confunde na mesma ânsia de saudade a penúria do presente e o longo passado, e mais recorda que vive. A contraposição destas fases da existência compreende-se de um ponto de vista meramente natural. A atitude espiritual que cada uma delas condiciona, é mero resultado da grandeza ou pequenez do futuro. Nas outras idades sobreleva-o o peso do presente ou do passado.
É por isso que a juventude é idade de esperança. Esta só floresce em almas que se abrem para recolher o futuro. Dela deriva a magnanimidade, a grandeza de alma, sem a qual também nada se produz.
Ora o cristianismo suprime no homem o peso do passado, porque alonga de maneira infinita o futuro. Ante a vida eterna, a limitada vida terrena não chega a ter passado. É constante estado de preparação, é idade de esperança sempre nova, e cada vez maior. Em nenhuma fase da vida, se alcança a hora do destino final, o objectivo a que se dirige a esperança; está sempre para além. O sentido de uma vida de esperança projecta-se num bem que se não possui, ou se não possui plenamente, senão no futuro, o qual, para o cristão, informa, impregna, molda o seu modo de ser presente.
Não há assim, na vida cristã, passado que acorrente, presente que domine; há futuro que orienta e guia. Quando no espírito, na vontade e na acção o passado ou o presente prevalece sobre o futuro, desvirtua-se, falseia-se a vida cristã. Dentro desta concepção só pode haver na terra mocidade. Aquele que ao «ainda não» da esperança substituir um fatídico «agora», do mesmo passo traiu a sua fé.
Viver catolicamente é viver integralmente, viver integrado na criação segundo a ideia divina, participando assim do próprio Deus. O homem não está isolado perante o seu Criador; mergulha na criação com a qual forma uma unidade, e se desobedece às leis divinas que regem a sua harmonia porque presidiram à sua formação, ataca a razão funcional da sua existência. A criatura é elemento da criação e o pecado consiste sempre no desvio, no afastamento da criatura do espírito do todo em que deve integrar-se. A doutrina moral da Igreja pode explicar-se plenamente a esta luz.

II - Explicação plena da doutrina moral da Igreja Católica

2. A Verdade

a) A Verdade: O que

Primeira condição de realização do destino racional do homem é o conhecimento ou adesão à verdade. Importa conhecer a verdade para viver na verdade.
A verdade, porém, é aquilo que corresponde à realidade: à realidade natural e sobrenatural.
A realização do bem pressupõe a verdade, como a verdade pressupõe o conhecimento da realidade.
Empregando terminologia moderna dir-se-ia que o ser está antes do dever, porque este é determinado por aquele. Quem não sabe como as coisas são, não pode fazer o bem, porque o bem é aquilo que corresponde à realidade.
O conhecimento da verdade, porém, supõe uma subjectivação de nós mesmos, diria mesmo uma despersonalização, se o termo não fosse equívoco e não pudesse conduzir à conclusão errada de que se é tanto mais cristão quanto menos homem, quando é precisamente a conclusão inversa que se impõe.
Como o homem não é a medida da verdade e esta se encontra numa realidade que o transcende, tem de sair para fora de si mesmo, a fim de penetrar no seu âmago. A opinião oposta foi vindicada pelo irracionalismo e voluntarismo, tanto em voga no século passado (XIX), e que desligavam o homem da criação e o elevavam a medida da própria realidade. A consciência não seria então o conhecimento perfeito da realidade e consequentemente ordenadora da vontade e da acção; ao invés, o dever surge vazio de conteúdo que só lhe é dado pelo impulso dos próprios instintos, ou por um racionalismo subjectivo, que faz tábua rasa da realidade concreta.
A essência da unidade está em que cada parte actua no todo e o todo em cada parte. Não é a parte que forja o todo a que se aglutina. Não é o homem que cria o universo em que vive. Negando toda a realidade objectiva o voluntarismo justifica que o homem veja fora de si apenas reflexos de si próprio. Não é a realidade, a verdade a conformar o homem, é o homem a conformar, ou, que é o mesmo, a desvirtuar a verdade. E este falseamento consiste precisamente na delimitação da verdade em função do próprio sujeito, consiste na falta da sua integração na realidade total que o circunda e a que pertence. Este modo de ver não é somente uma orientação filosófica; é uma justificação que espalhada no ambiente cultural, logrou penetrar na vida quotidiana.

b) A Verdade: O como

Para dirigir a vontade e a acção na prática do bem importa primeiramente, como dissemos, conhecer as coisas como elas são, e não como queremos que sejam; e tanto conhecer as verdades da fé, como a realidade exterior em que se situa e intervém o homem. Só desta maneira, e porque correspondente à realidade das coisas, pode ser justa a nossa actividade. O homem que consciente ou inconscientemente refere todo o mundo exterior ao seu interesse pessoal, que subjectiva a realidade, necessariamente actua contra o bem.
E é fácil e quase imperceptível o deslize. Para ouvir a voz exterior é preciso silêncio em nós. Tem de se calar o ruído do interesse próprio para entender o murmúrio da verdade. Debruçados sobre nós mesmos, não temos atenção, nem tempo, nem desejo de considerar o que se passa fora de nós.
E no entanto é esse silêncio interior o preço da virtude. Tudo o que referimos ao interesse pessoal ou que virmos através deste, é transposto da realidade para uma visão deformada. Até mesmo aquele bem que é praticado com o fim de ser bom e não por si mesmo falha o seu objectivo. Não se é generoso porque se quer ser generoso, mas porque se pratica a generosidade, e esta como todas as virtudes está ao serviço dos outros e não de nós próprios. Não se é justo porque se intenta exclusivamente possuir essa qualidade, mas porque se pratica a justiça nas relações com os demais.
Recorda-me um conto de COELHO NETO em que se relata a história dum varão esmoler que resolveu para sua santificação desfazer-se do poder e da fortuna. Por onde caminhou cumulou de riqueza, e de força e de autoridade todos aqueles que encontrou. Quando fraco e pobre regressava para contemplar os efeitos da sua acção só pôde ver ingratidão, orgulho e prepotência. Longe de produzir o bem, aumentara o mal no mundo, incutindo-lhe novas forças.
Só sabe como proceder rectamente aquele que vê e considera a realidade, como ela é efectivamente. E um tal conhecimento pressupõe o desinteresse na apreciação, pressupõe silêncio interior, desapego de interesse próprio, isto é, alma aberta e límpida depurada de considerações e sofismas egocêntricos, numa palavra, simplicidade de espírito.
A moderna caracterologia mostra-nos como esta atitude moral do conhecimento se conjuga absolutamente com o vigor e a saúde do espírito. O homem, que não vê a realidade como ela é, e tão somente se vê a si próprio em todas as coisas, porque ao fim e ao cabo, só para si mesmo olha, este homem, não só perde toda a possibilidade de ser justo, do ponto de vista moral, como também perdeu a saúde mental. Um síndroma do género que acabo de expor, corresponde a uma espécie de psicopatia, de doença mental, caracterizada por egocentrismo tal que, em última análise, transforma o mundo exterior, para uso próprio, numa fantasmagoria irreal.
É uma curiosa coincidência de direcção, a que se verifica entre saúde mental e moral.
Quanto mais o homem se dá, mais se afirma; quanto mais avaro for de si próprio tanto mais ensimesmado será, mais tacanho de inteligência e alma. Não pode ver longe, nem pode ser grande pela inteligência ou pelo coração, quem reduz o seu mundo ao círculo restrito do seu interesse. Do mesmo modo que deforma o que o cerca, destrói em si o equilíbrio vital, e a virtude.
As forças da personalidade, que directamente se dirigem à sua conservação, afirmação e desenvolvimento, só logram êxito, derramando-se em caridade, em amor, isto é servindo. Refluídas para o centro são tragadas na voragem em que sossobra o próprio eu.
Destacado da ordem racional e divina de que faz parte o homem estiola moralmente. É este o sentido da primeira condição da vida cristã: a prudência. Pode parecer estranho que a simplicidade de espírito, a franqueza de alma, a objectivação do eu, sejam qualidades incluídas na virtude da prudência que, mais do que virtude, é fonte de virtudes. E, no entanto, a significação vulgar de prudência não está muito longe da que agora lhe atribuímos. A diferença situa-se apenas na perspectiva, e acarreta, de facto, só por essa distinção um quase completo antagonismo.
Para realizar o bem, dissemos antes, é preciso conhecer a verdade. Não se trata apenas dum conhecimento especulativo mas dum conhecimento perceptivo, destinado a informar imediatamente a vontade e a acção. É esse conhecimento recto e ordenador da vontade, que constitui a prudência ou utilizando noção menos desviada da sua significação natural, a consciência. Compreende o conhecimento das verdades eternas e da situação concreta em que deve agir-se. Quando esta última é falseada na sua representação subjectiva pela intervenção dum factor pessoal, deve falar-se de astúcia e não de prudência. Desde que o homem não soube calar-se para aprender a verdade auscultando a realidade integral, e a limita ou deforma através do seu interesse utiliza formalmente "uma verdade" - não a verdade - criada pelo interesse e posta ao serviço dum interesse, ou ambição ou preocupação pessoal. Todos os dias, desta maneira, no âmago das consciências, se repete a traição de Judas: Cristo é de novo vendido por dinheiro.
E assim logo para realizar a primeira condição de vida cristã, para ser prudente, importa ser jovem. Só sabe calar o interesse pessoal e mesquinho quem se sabe dar aos outros. Só tem olhos para a grandeza da criação quem a não esquarteja, a fim de a limitar ao quadro das suas preocupações egoístas.
E só quem com grandeza de alma, observa todo o horizonte, pode ver alto; as almas rasteiras, angustiadas pela ânsia de fictícia segurança, nada de grande podem fazer, pois que nem sequer o imaginam, e por vezes quedam estarrecidas na esterelidade e empedernimento de espírito que é consequência do doentio ensimesmamento.
O espírito é centro de vida enquanto gerador de forças centrífugas; se redemoinha em redor de si mesmo, cria apenas um turbilhão improfícuo. Fechar o espírito à realidade para o esgotar na contemplação do seu estreito mundo, dos seus interesses, é envelhecê-lo, é ligá-lo ao rochedo do passado.
Mas ao lado desta velhice espiritual do latejar ansioso de quem, como certos moluscos, se agarrra, incapaz de navegar, aos rochedos, fazendo tudo, para salvar, sem o conseguir, as utilidades imediatas da sua posição ou dos seus bens, do seu poder, ou soberba, também em larga medida se revela um outro modo de deturpação da verdade, não originada como a anterior na egoísta contemplação do eu, mas na carência de maioridade espiritual.
Se o primeiro defeito se reconduz à senectude, o segundo semelha à infância.
Efectivamente, por convicção ou defeito de educação, também há quem cerre o entendimento ao mundo exterior, considerando o mundo moral só possível numa paisagem ideal, que à falta de existência concreta, se preenche de imaginativas ficções. Quem assim procede tem de permanecer em perene tutela espiritual, e cai não raras vezes na obsessão e no escrúpulo doentio. A consciência por ignorância não o sabe conduzir em cada situação concreta. Ambos os extremos, que denominamos infância e velhice espiritual, têm de comum o rebaixamento da moral à apreciação de actos ou omissões isoladamente considerados. Ora a moral se tem por objecto os actos humanos, o que deve fazer-se o que não deve fazer-se, tem sobretudo por objecto o próprio homem. Os actos do homem são principalmente escalões na realização da sua personalidade moral.
Não se trata apenas de proibir certas acções ou impor certos deveres, mas de formar o homem à imagem do próprio Deus. A vida moral não se reduz a uma conta corrente com o Além, em que os actos autonomizados do espírito de que emanam constituem créditos ou débitos. A direcção da moral está na formação do próprio espírito.

3. A Justiça

a) A Justiça: O que

Se o espírito jovem é o único apto para conhecer a verdade também a realização da verdade supõe juventude.
Viver na verdade com o próximo é o sentido profundo da justiça. E na justiça se resume a forma mais elevada da moral. É dos justos, no seu significado próprio, que fala o Envangelho quando se refere aos eleitos.
Na justiça, se revela a interdependência e integralidade da organização cristã. Ainda, que naturalmente, a virtude seja própria da pessoa em sentido estrito, pode dizer-se que o portador da justiça não é tanto o indivíduo, como a sociedade. Por outras palavras o "eu" com referência à justiça é de considerar como elemento do "nós". Este aspecto social da justiça explica-se pela solidariedade no bem e na responsabilidade, que é fruto da organização unitária da Igreja, como corpo místico de Jesus. O bem e o mal ultrapassam o próprio "eu" e as suas últimas repercussões vão sentir-se nos membros da mesma comunidade que por isso beneficiam do bem, e são chamados a redimir o mal.
O justo pode saldar a culpa de muitos pecadores, na medida em que espalhando o bem, minora, ou destrói os efeitos múltiplos da injustiça alheia. Não pode suprimir a causa do mal, mas pode limitar ou apagar as marcas por ele produzidas no corpo social. E dessa maneira faz obra de redenção.
A justiça não é portanto acto puramente individual, e de efeitos individuais. Refere-se aos indivíduos nas suas relações com a comunidade a que pertencem; refere-se ao "eu" através do "nós".
Ora a construção deste nós colectivo assenta em três estruturas fundamentais que, conjuntamente são de considerar na noção de justiça: relações entre os indivíduos, como componente ou partes do todo social; relações do todo ou seja da sociedade com as partes ou indivíduos, e relações das partes com o todo.
A estas diferentes espécies de relações corresponde a chamada justiça comutativa, justiça distributiva e justiça legal.
Não é assim, porém, que de facto se entende sempre a justiça.
Teorias individualistas dominantes no século findo (XIX) repeliram a justiça para o âmbito das relações privadas. O individualismo não reconhece mais do que indivíduos isolados ou relações directas entre eles, suprimindo desta sorte as relações de justiça entre a sociedade e os seus membros. Só o bem individual conta: o bem comum não é mais do que o resultado mecânico dos bens individuais regido pelo princípio do interesse. Um contrato utilitário, ou seja o interesse individual teria dado origem à sociedade e não é pois de estranhar que o mesmo interesse seja elevado a critério dominante senão exclusivo das relações individuais com a sociedade, e da sociedade com os indivíduos. Todo o vasto campo da justiça distributiva e legal, da ética social, se esbate e dissipa nesta concepção.
Deixou fundas raízes na vida cristã a mentalidade individualista. O princípio do interesse individual, como orientador supremo da vida colectiva, é inconciliável com a justiça, mas oferece fácil justificação doutrinária ou desculpa, à consciência individual, para a inclinar a reduzir a justiça ao campo das relações entre indivíduos.
Justiça já não será em toda a sua plenitude a virtude que se dirije e serve o próximo, considerado individual ou colectivamente, mas tão somente o conjunto de deveres que ligam entre si os homens isolados. Concomitantemente se destrói aquela noção de fraternidade no mérito e na responsabilidade que deriva da "extensão social" dos actos individuais. E o desfiguramento da justiça não terminou ainda.
Não bastou, ao que parece, negar a existência da justiça distributiva e legal; transformar toda a moral em ética exclusivamente privada. Confinou-se esta a certo número apoucado de deveres bem definidos e limitados, para além dos quais, se não apontam deveres de justiça, mas manifestações de caridade. A caridade seria assim um complemento duma justiça hierática e parcimoniosa, como se a justiça já não representasse por si, a realização plena de verdade cristã nas relações com o próximo. Estes desvios no entendimento da justiça e o que é pior, na sua realização, não podem acobertar-se com a chancela de cristãos.
A caridade não é complemento de justiça, é seu pressuposto. Só quem ama o próximo, pode praticar justiça. Não é justo o homem que não é caritativo, porque no amor do próximo (que é o significado verdadeiro da virtude da caridade) se alimenta a justiça.
Quer dizer nem a caridade na doutrina cristã significa o mesmo que na linguagem vulgar, isto é, não significa facultativa generosidade, nem a justiça carece de ser completada, porque abarca na sua amplitude todos os deveres morais para com outrem.
Tem de denunciar-se o sofisma de que o conteúdo da virtude da justiça equivale aos deveres coactivamente impostos por lei; enquanto os mais deveres para com o próximo seriam trasmudados em meras faculdades ornamentais da vida social.
Em sentido inverso, o anti-individualismo criou uma doutrina social que nega em absoluto quaisquer relações entre indivíduos, declarando inconcebível a forma de justiça denominada comutativa.
É certo que a vida individual é ordenada em função da vida colectiva e por isso os deveres individuais para com o próximo, se consideram em primeiro lugar em função da própria comunidade de que todos são componentes. Não deve contudo esquecer-se que a virtude individual é essencial ao bem comum, o qual se não defende e valoriza se cada um dos membros da sociedade não for justo, intrínseca e reconditamente justo. A vida individual de cada componente social actua sobre a vida da própria sociedade.
Não é difícil descortinar neste minguar da noção de justiça, a mesma origem egoísta, a mesma tendência egocêntrica com que deparámos ao falar da subjectivação da verdade. Identicamente, quanto à justiça o homem pretende viver apenas aquela verdade que lhe convém, forceja por desprender-se da comunidade, por desintegrar-se no todo, cujo espírito se não coaduna com a frutificação do seu interesse privado.

b) A Justiça: O como

A juventude é o estado de espírito necessário para conhecer a verdade, para saber agir. Na noção de justiça se conglomera o que deve fazer-se. Importa agora indicar como deve proceder-se. Não basta querer ser justo; é preciso saber como consegui-lo.
As gerações novas não compreendem o conformismo. Não sabem acomnodar-se à injustiça criada. E é no inconformismo de poucos que se nutre o sentido imortal do homem, atraído pela ordenação racional da criação.
Pelo contrário, a maioria, amolecida na sua coragem pelas vantagens da própria injustiça, facilmente se resigna a suportá-la ou encontra razões morais para se lhe não opor.
São talvez diversos os modos por que se esconde sob a capa da moral a renúncia à justiça. Todos no entanto se reconduzem à acomodação à realidade presente. A acomodação interior é resignação, e a resignação cristã é das virtudes mais exaltadas e menos compreendidas.
No sentido de passividade perante a injustiça, a resignação seria legítima se o bem e a justiça se realizassem por si, se fosse certo que o homem conduzido pelos seus instintos, se encaminhasse sem esforço para o seu verdadeiro destino moral, e que a ordem racional se implanta por força do simples jogo de forças naturais. Um tal optimismo contraria a realidade. O mal tem grande poder no mundo. A passividade, a rendição perante ele, é quase colaboração com ele.
Mas não é certo que a paciência, a aceitação de qualquer sofrimento ou mal é virtude característica do cristianismo? Que a moderação nos sentimentos e nas acções, o sofrimento das paixões, da cólera como do sensualismo, quiçá constitui o sentido verdadeiro da "temperança"? Há nestas objecções o defeito de abstrair dahierarquização das virtudes na vida moral. O homem deve ser de boa têmpera, temperado, para, em si próprio, realizar a unidade da vida cristã. É nisso que consiste a temperança. Esta indica o modo de ser do homem para que seja instrumento eficaz da realização do bem, e não pode por isso mesmo opor-se à virtude da justiça. Há paixões justas e injustas, e devem ser combatidas com tanto afinco as últimas como favorecidas as primeiras. A ira, a exaltação combativa não são contrárias à necessária temperança se constituem o modo natural de reagir ardentemente ao mal. Cristo azorregou, colérico, os vendilhões do templo; e do mundo actual não desapareceram os vendilhões.
Recorda-me de ter lido, não sei bem onde, um conto ou lenda sobre a criação do primreiro homem. Deus teria equilibrado perfeitamente as suas qualidades, "temperara-o" para melhor o adestrar na prática das virtudes.
Afinara em cada nervo uma virtude como se de cordas de violino se tratasse. Mas Satanás, desejoso de fazer triunfar o mal, alongou as virtudes transformando-as dessa maneira em vícios. E assim a magnanimidade redundou em soberba como o amor de Deus em idolatria.
É exacto que a fortaleza de ânimo consiste primordialmente na paciência, mas é preciso não confundir paciência com aceitação indiscriminada do mal. É antes o último grau de bravura, de valentia na luta pela justiça.
Não basta possuir a verdade, importa realizá-la com afã, com denodo, devotandoa essa tarefa toda a força natural e sobrenatural que a natureza e a graça dão ao homem. O dever de lutar é tão intenso que não se concilia com a escusa da ineficácia do combate. A moral não é utilitária. Embora seja humanamente inútil a luta, é imoral a rendição. É vedado ao cristão desistir de lutar pela justiça quando se afigura perdida toda a esperança de êxito. Tem de entregar-se plenamente à verdade, ainda que a morte o espreite, os concidadãos o repilam, o ambiente social o engeite.
A virtude da justiça não se possui como dom. Só se realiza e se conserva com esforço aturado e vigilante: sustiniendo et aggrediendo, na expressão consagrada de teólogos.
Quando se indica como essência de fortaleza a paciência, não se pretende reduzir a atitude cristã a uma atitude defensiva. Impõe-se uma bravura superior à que é humanamente exigível. Perdidas todas as possibilidades de vitória, o cristão não tem ainda o direito de curvar-se perante o mal. Esgotados todos os recursos, falhada toda a ofensiva para implantar o reino de Deus nas almas, não deve render-se. Só, isolado, humanamente vencido tem de resistir suportando pela verdade, todas as prepotências do mal inclusivé o martírio. Este estádio mais alto da fortaleza constitui a paciência, que tão desfigurada nos aparece numa concepção conformista e cómoda da vida cristã.

Quem conhece a verdade não tem, por essa circunstância, o privilégio de ser justo. Os vermes vivem em belos frutos e não participam da sua beleza. Há quem conheça uma arte, um ofício, uma profissão sem a exercer; a virtude, porém, consiste inteiramente no seu uso.
O cristianismo é fonte de vida. E uma fonte é sempre uma fonte. Mas para que a fonte faça vicejar os campos em redor tem de ser captada e, então, a água que se canaliza racionalmente faz multiplicar as colheitas. Abandonada a si mesma perde-se no pó dos caminhos ou nas anfractuosidades do terreno criando simplesmente lamaçais ou pântanos.

 


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