Reforma ministerial do Código Penal: Relatório do Decreto-Lei n.º 39688, de 5 de Junho de 1954

 

I – Remonta a 1852 a publicação do Código Penal ainda em vigor. A Lei de 14 de Junho de 1884 deu nova redacção a muitos preceitos da parte especial, e outras leis ainda, alteraram algumas incriminações; na parte geral, que sobremaneira revela as directrizes da legislação penal, as modificações sobrevindas relativamente à espécie e escala das penas, foram tão profundas, na dilatada duração do Código Penal que sucessivamente substituíram integralmente as características fundamentais do sistema penal.
No estado actual da legislação, a sobreposição ao Código Penal da Reforma Prisional, e a extinção do degredo, se deixaram imodificada a forma das penas, esvaziaram-nas do conteúdo que lhe era próprio, e atribuíram-lhe outro mais conforme com a evolução do direito penal e penitenciário.
A contradição entre o sistema das penas, no Código Penal, e a realidade da sua execução, de harmonia com a reforma prisional, é já de si mesma motivo de compreensível embaraço na interpretação e aplicação da lei penal; e constitui também causa de extrema confusão, porquanto torna precária a aplicação dos preceitos relativos à graduação das penas.
E, por isso, parece de grande utilidade o esclarecimento da natureza das penas, e definição do seu regime e duração, clarificando o sistema penal, agora custosamente extraído duma multiplicidade de diplomas legais, oriundos de princípios e atinentes a objectivos diferentes.
É este o fim primacial que se pretende alcançar com o presente Decreto-Lei. Não se ignora, contudo, que só a publicação dum novo Código Penal, cujos estudos preparatórios não findaram ainda, poderá permitir uma maior perfeição e adequada sistematização da legislação penal.
A alteração da escala das penas e a introdução das medidas de segurança, bem como a indicação dos princípios fundamentais quanto à sua aplicação, modificação e execução na parte geral do Código Penal, efectivam-se por maneira idêntica à das reformas penais de 1867 e 1884. Remodela-se o Título III do Livro I do Código Penal, permanecendo inalterada, e como que imutável na sua antiquada estrutura, a parte especial. A coordenação da parte geral e da parte especial, como aliás sucede presentemente, não é assim melhorada, como seria mister. Não se procede à reforma do Código Penal, de maneira a incutir-lhe a vitalidade exigida por uma maior adaptação às necessidades sociais, rejuvenescendo a parte especial do Código e legislação extravagante, e sistematizando-a em conjunção com novos princípios da parte geral num todo unitário. Estes seriam objectivos que só a integral publicação de novo Código Penal permitiria atingir.
Há ainda que aceitar as limitações, quanto ao alcance da matéria sobre que se legisla, resultantes da necessidade de assegurar a coordenação com a parte especial do Código. Importa sobretudo esclarecer e completar o sistema actualmente em vigor; não seria admissível, cuidar de maior perfeição das instituições previstas em um dos títulos do Código Penal, com prejuízo da sua coordenação com todo o Código Penal em vigor.

II – Mais do que a conveniência, a necessidade urgente de integração no Código Penal dum novo sistema penal, revela-se na enumeração das escalas das penas que se sucederam em vigor após a publicação do Código Penal de 1852, e na exposição sucinta do sistema actual.
Encontra-se já no Código de 1852 a distinção entre penas maiores, correccionais e especiais para funcionários públicos. As duas últimas espécies de penas permaneceram praticamente inalteradas desde então.
As penas maiores foram quase todas substituídas ou sofreram radical transformação da sua natureza.
Segundo o art. 29º do Código de 1852 são penas maiores a pena de morte, a de trabalhos públicos, a de prisão maior com trabalho simples, a de degredo, a de expulsão do reino e a perda dos direitos políticos. A indicação destas penas não esclarece, porém, suficientemente o seu conteúdo. O art. 33º do referido Código dispunha que o condenado na pena de trabalhos públicos seria empregado nos trabalhos mais pesados, com corrente de ferro no pé ou com cadeia presa a outro companheiro, se a natureza do trabalho o permitisse; a pena podia ser perpétua ou temporária (de 3 a 15 anos) obrigava a trabalho e seria cumprida com isolamento contínuo, contrariamente à prisão simples que permitia ao condenado privar com outras pessoas.
Publicado o Código de 1852, foi logo nomeada uma comissão para proceder à sua reforma. Sob a presidência do notável jurisconsulto Levi Maria Jordão, apresentou essa comissão o resultado dos seus estudos em 1861, melhorando ainda o seu projecto em 1864.
O referido projecto, conhecido por projecto de Código Penal de D. Pedro V, pelo interesse que o monarca manifestara pela sua elaboração, admitia como espécies de penas mais graves a prisão e o degredo. A reclusão e a multa seriam aplicáveis às infracções menos graves (delitos).
Teoricamente a comissão foi de parecer "que a prisão individual deverá ser a única pena, completada talvez pela transportação; mas num país, como Portugal, aonde se não tem realizado a desejada reforma penal, é mister experimentar antes de assentar um sistema definitivo; e por isso entende que ela deve formar, por enquanto, duas penas distintas, para na experiência resultante de cada uma delas se adquirirem bases certas para a inauguração de uma repressão definitiva".
Na prisão maior celular, se viu, contudo, o fulcro do futuro sistema penitenciário.
Esta directriz não vingou inteiramente, embora proclamada em tese pelo legislador. Discutia-se então, se o degredo deveria ser cumprido como pena distinta ou combinado com a prisão de maneira a servir-lhe de complemento. O legislador optou, em princípio, pela função complementar do degredo.
A Lei de 1 de Julho de 1867, em que se estruturaram alguns dos princípios defendidos no projecto de Levi Maria Jordão, introduziu na legislação penal a pena de prisão maior celular, que define e regulamenta. A prisão maior celular seria cumprida (Art. 20º) com absoluta e completa separação de dia e de noite entre os condenados, sem comunicação de espécie alguma entre eles, e com trabalho obrigatório na cela para todos os que não fossem competentemente declarados incapazes de trabalhar em atenção à sua idade ou estado de doença. Os presos só poderiam comunicar com empregados da cadeia, parentes ou visitas, dedicadas à sua instrução ou moralização, sempre porém, de modo e com tais cautelas e restrições que as visitas concorressem para apressar e consolidar a reforma moral dos condenados. Os próprios exercícios quotidianos ao ar livre, nos pátios ou dependências das cadeias, teriam lugar de modo que não pudesse haver entre os presos comunicação alguma, nem eles pudessem reciprocamente conhecer-se.
O isolamento contínuo constituía, assim, elemento essencial e característico da prisão maior celular, pena esta que vinha substituir, duma maneira geral, a variedade das penas maiores do Código de 1852.
A pena de morte foi substituída pela prisão celular perpétua. A pena de trabalhos públicos perpétuos pela de prisão maior celular por 6 anos seguida de degredo por 10. A pena de degredo perpétuo, pela de prisão maior celular por 4 anos seguida de degredo por 8; e a de trabalhos públicos temporários pela de prisão maior celular por 3 anos seguida de degredo por tempo de 3 até 10 anos.
Não obstante a combinação em penas mistas, da prisão maior celular e degredo, a falta de estabelecimentos prisionais forçou o legislador a admitir soluções de alternativa. E assim pelo art. 24º da Lei de 1 de Julho de 1867 seriam aplicadas aos diferentes crimes, em alternativa com as novas penas, as penas previstas no Código de 1852, com a excepção da pena de morte que seria sempre substituída pela prisão celular perpétua e, na alternativa, a de trabalhos públicos perpétuos.
A Lei de 14 de Junho de 1884 completou a evolução do sistema penal que veio a estratificar-se na publicação do Código de 1886.
Suprimiu a pena de prisão celular perpétua que sucedera à pena de morte, substituindo-a pela de prisão maior celular por 8 anos seguida de degredo por 20 anos com prisão no lugar do degredo por 2 anos ou sem ela conforme parecer ao juiz; aboliu, definitivamente, pela supressão da sua aplicação em alternativa as penas perpétuas de trabalhos públicos, prisão e degredo. E aboliu ainda a pena de trabalhos públicos temporários e a pena correlativa de prisão maior celular por 3 anos seguida de degredo por 3 até 10 anos.
A escala das penas em alternativa, enquanto não fosse possível, pelas circunstâncias de facto das instalações prisionais, a aplicação integral das penas mistas de prisão maior celular e degredo, que constituíam as penas mais graves, foi organizada substituindo as penas previstas no Código de 1852, por penas de degredo temporário, com ou sem prisão por certo tempo no lugar do degredo.

III – Durante o longo período da vigência do Código Penal de 1886, não se alcançou situação de facto que permitisse a execução generalizada da prisão maior celular, mesmo minorada, pela adopção da pena mista de prisão maior celular e degredo. E antes que a construção de edifícios prisionais tornasse desnecessário o recurso às penas de degredo em alternativa, foi abalado nos seus fundamentos o sistema do Código Penal.
O isolamento contínuo como característica da prisão celular, foi sucessivamente restringido, até que a Reforma Prisional de 28 de Maio de 1936 regulamentou em bases estruturalmente diversas a forma do cumprimento da pena de prisão e prisão maior já sem a denominação de celular; e esta evolução não terminou mesmo com a publicação daquela Reforma, pois que posteriormente a legislação atentou mais cuidadosamente na função do trabalho como elemento natural da própria pena, e tirou dessa consideração as ilações que modificando embora a rigidez da execução das penas, salvaguardam o trabalho prisional como elemento moralizador da própria pena.
Não existe hoje prisão maior celular, segundo a definição da lei de 1867, e a manutenção da mesma nomenclatura no Código Penal não corresponde à natureza da pena que como tal é cominada. Mais nítido é ainda o contraste entre as disposições do Código Penal quanto às penas de degredo, quer complementar, quer em alternativa, e a realidade das coisas.
Suprimida a execução da pena de degredo, primeiramente substituída pelo cumprimento de prisão em colónia agrícola, a Reforma Prisional de 1936 estabeleceu uma equiparação abstracta entre a duração da pena de degredo e a duração da prisão maior celular, com base na equivalência que do confronto das duas penas em alternativa parecia resultar. Tal equivalência não dando conta, aliás, da transformação sobrevinda na prisão maior celular, considerava o degredo, quanto à duração, equivalente a 2/3 da prisão maior celular. Em razão desta regra, a pena de degredo passou a ser cumprida como prisão maior, reduzida de 1/3 na sua duração; exceptuava-se somente a execução da prisão maior em substituição da pena de degredo, quanto aos delinquentes de difícil correcção, a qual manteve duração igual à do degredo.
A substituição assim determinada, suprimiu de facto a pena de degredo. Criou, porém, na aplicação das penas vários problemas, confusos uns, insolúveis outros. A doutrina dificilmente consegue extrair da sobreposição de todas as substituições ordenadas, umas na cominação, outras na execução das penas, um sistema coerente. A jurisprudência perturba-se com o emaranhado de preceitos de origem diversa, cuja conciliação se impõe, e desgasta energias e prodigaliza esforços nessas tentativas estéreis.

IV – Justifica-se assim a urgência da remodelação do sistema das penas, e sua aplicação, independentemente da desejável publicação dum novo Código Penal. A nova escala das penas adapta-se à natureza das penas que a Reforma Prisional estruturou. A prisão maior absorve inteiramente a prisão maior celular e o degredo, as duas principais penas maiores do Código de 1886. A prisão correccional, cujo qualificativo indica uma natureza contraposta ao carácter em si mesmo de rigor aflitivo, ainda que com finalidade de emenda, da prisão maior celular, denomina-se simplesmente prisão.
Para manter a correlação com as penas da parte especial do Código tem, no entanto, de indicar-se graus na quantidade da prisão maior, que possam corresponder às diferentes penas – constituídas, as mais graves, pela combinação em medida diversa das penas de prisão maior celular e degredo – da escala penal do Código de 1886.
Esta correspondência terá ainda de ter em atenção que as penas fixas, foram ultrapassadas. Haverá que permitir uma continuidade na duração possível da pena de prisão maior, seccionando-a consoante a gravidade da punição. O Código Penal admitia em relação às penas fixas a possibilidade normal da sua atenuação ou agravação com mais ou menos dois anos de prisão maior celular, ou mais ou menos três anos de degredo. Parece assim, que, o seccionamento em escalões das penas de prisão maior – que àquelas se substitui – poderá ter lugar em períodos de quatro anos, sem afectar o equilíbrio, duvidosamente existente, das penalidades na antiquada parte especial do Código Penal.
A renúncia à fixidez das penas, atribuindo ao juiz uma função de individualização mais lata, implica a indicação do critério geral de graduação da pena, independentemente do concurso de circunstâncias atenuantes ou agravantes. Quando se verifique este concurso, os limites mínimos da pena são ainda reduzidos para facilitar aquela individualização. Aliás, as penas fixas obrigam a relegar para segundo plano, o problema da individualização da pena, e não é esse um dos menores escolhos ou dificuldades que o Código Penal apresenta.
Completou-se, por isso, a regulamentação da agravação e atenuação das penas, no caso de concurso de circunstâncias, dando-lhe maior flexibilidade, e resolvendo dúvidas quase tão antigas como o próprio Código.

V – Não somente o sistema das penas evoluiu à margem do Código Penal.
A consideração do delinquente ou do provável delinquente penetrou na estrutura das penas e moldou as medidas de segurança; legislação complementar do Código, procede à classificação dos delinquentes imputáveis, sob o aspecto da sua perigosidade; enumera as medidas jurídicas suscitadas pelo estado pré-delitual dos indivíduos perigosos criminalmente, e dos delinquentes inimputáveis; e estatui sobre a condenação condicional, a liberdade condicional, o resgate das penas de multa, e o desconto da prisão preventiva nas penas privativas de liberdade. Estes institutos, que verdadeiramente se integram nas bases fundamentais do sistema penal, não foram introduzidos no texto do Código Penal.
Ora, esta falta de integração não obscurece apenas a clareza das instituições penais; pode mesmo facilitar o seu desvirtuamento.
Os Códigos fundamentais, são ainda, para poder manter-se a unidade e coesão da legislação, o centro aglutinador dos princípios gerais que regem todo um complexo de relações sociais. A legislação complementar, recolhe deles o seu espírito, e o entendimento de toda a ordenação jurídica terá de referir-se aos princípios que os dominam. Quando entre os princípios básicos do Código Penal, e aqueles em que assenta a legislação complementar, se verifica, sem possibilidade de coordenação, notável divergência ou contradição, não poderão evitar-se anomalias e confusões na interpretação das normas jurídicas. E este defeito, mais do que em qualquer outro sector da ordem jurídica, é de evitar na legislação penal, pela importância da sua função de defesa extreme das condições fundamentais da vida social, e pela gravidade das consequências que dela derivam para a esfera jurídica dos indivíduos.
Procurou-se, por isso, incluir no Código Penal o conjunto de instituições que, através de legislação complementar, vieram modificar ou completar as bases gerais da repressão e prevenção criminais. E dada a necessidade de alteração formal, ou de numeração, de alguns preceitos do Código Penal, aproveitou-se a oportunidade para resolver ou esclarecer dúvidas de interpretação, quanto à punição em casos de reincidência, sucessão e acumulação, e dos crimes culposos.
Por fim, o enquadramento no Código Penal da disciplina da habitualidade criminal, impunha a revogação de disposições especiais sobre reincidência quanto ao crime de furto, promulgadas como que numa antecipação sobre aquela disciplina e que constituem hoje, pela identidade do motivo que determinou ambas as providências legais, uma duplicação.

 


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