Igreja e Estado: Conferência na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Janeiro de 1956

 

I - Com regozijo os cumprimento e saúdo, e com regozijo participo na jornada universitária de estudo que a inteligência e zelo do Reverendo Cónego Rodrigues ideou e a que deu realidade.
É-me forçoso, porém, avisar os meus ouvintes de que, como eles, fui chamado para aprender e não para ensinar. A função docente, de que me orgulho, não posso invocá-la; não me encontro habilitado para tratar matérias de direito público com o à-vontade ou proficiência que só a especialização permite. Não poderei, por isso, desenvolver o tema que me foi proposto, nos seus pressupostos ou mesmo defini-lo nos seus limites para oferecer como já prefabricadas quaisquer conclusões.
É, porém, mais modesto, ou talvez mais ambicioso, ao que suponho, a finalidade deste nosso encontro.
Pretende-se somente, e por isso é modesto o seu objectivo, levar-nos a pensar em problemas da nossa época que com a Fé se ligam directamente. É porventura mais ambicioso porque, longe de procurar incutir em cada um de nós conclusões dogmáticas mas abstractas, facilmente deduzíveis da doutrina, se deverá orientar no sentido de consciencializar a existência dos aludidos problemas, a necessidade intelectual de lhes encontrar solução e a importância prática dessa solução.
Antes, porém, de alcançar qualquer solução, antes mesmo de a definir, impõe-se a necessidade de reconhecer a existência, a gravidade, o alcance dos problemas que de solução carecem.
Dum ponto de vista jurídico costuma abordar-se o tema da Igreja e do Estado sob a perspectiva do seu recíproco reconhecimento como entidades ou pessoas jurídicas, e das suas recíprocas relações.
Contudo, o reconhecimento da Igreja, como sociedade perfeita, da sua organização interna, há de assentar num prévio reconhecimento duma esfera de actuação que lhe é própria e ultrapassa os limites da competência do Estado.
Esta delimitação de fins privativos da Igreja e de fins privativos do Estado é já uma conquista do Cristianismo. "Dai a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César"... . Nas antigas civilizações, ou nas civilizações não influenciadas por princípios cristãos não se observa a distinção apontada.
O poder temporal e o poder espiritual mantêm-se confundidos; a libertação do homem, pela sua elevação a filho de Deus, implica, porém, a subtracção do mesmo homem, enquanto filho de Deus, ao poder e coerção dos seus irmãos. Os fins terrenos de carácter geral e comum, legítimos e necessários em si mesmos, não poderão absorver nem sobrepor-se aos fins eternos do homem, como filho de Deus.
Ao Estado, instituição humana, caberá somente a realização do bem público, enquanto temporal; à Igreja, instituição divina, caberá a direcção e salvaguarda da ordem espiritual.
É que o destino do homem não se encerra no acanhado horizonte do tempo e na limitada valia de bens terrenos. O homem tem uma vocação de eternidade e uma ânsia natural de perfeição. Os bens em que esta se traduz, porque eternos, são de ordem religiosa e respeitam às relações directas de cada qual e de todos com Deus. Por outro lado os fins religiosos não são estritamente individuais. Há também um bem público religioso, ao contrário do que propugnou o individualismo religioso, o qual só admite uma relacionação privada e íntima de cada indivíduo com Deus, não pertencendo ao bem público qualquer problema de estruturação ou ordenação geral de fins de ordem religiosa na sociedade.
O homem está e permanece, mesmo na esfera religiosa, numa sociedade; só como ficção abstracta se pode considerar o homem destacado da sociedade em que se integra, vive e age. Os fins humanos mais altos, de valor religioso, realizam-se também em certa medida, socialmente, em comunidade, por intermédio assim dum bem colectivo, do bem público ou comum: o bem público religioso.
A realização do bem público, desta perspectiva mais alta, "sub specie æternitatis" é da competência exclusiva da Igreja. Foi ela quem recebeu o mandato de procurar à alma religiosa o conjunto de meios e condições também de ordem religiosa que consintam ou facilitem aos homens prosseguir e alcançar o seu último fim, o bem eterno. Ao Estado cabe a realização do bem público temporal. Como deve este ser entendido?
Do ponto de vista que ora interessa, impõe-se indicar que é limitado na sua amplitude e também na sua direcção pela existência precisamente da ordem espiritual: Limitado na sua amplitude porque lhe é vedado absorver a ordem espiritual; limitado na sua direcção, porque comporta de bens os fins subordinados a fins hierarquicamente supremos deve preordenar-se à realização destes, ou não os contrariar embora não contenham matéria própria de ordem temporal.
Os princípios proclamados são, portanto, unívocos e de fácil entendimento; a sua aplicação porém, em função da estrutura do Estado em cada época, é diferente e pode ser diferente.
O Estado pode tomar como seus apenas fins ou tarefas exclusivamente instrumentais: alheio ou indiferente, porque neutral à realização de fins positivos, ou ao objectivo de verter na vida social valores superiores de validade reconhecida.
Ou pode considerar, mais conformemente à sua natureza fins próprios, cuja realização directamente lhe incumbe. Neste caso, o âmbito de actuação do Estado pode incluir de facto, fins exclusivos da Igreja, afectando a respectiva e necessária coordenação.
Importa ainda acentuar que, embora delimitado o campo de acção do Estado e da Igreja, a separação inicial e lógica, é mais uma distinção que uma separação.
Os fins espirituais e temporais unem-se no homem a que respeitam. A sua distinção em abstracto, implica a sua hierarquização concreta para que, na sua efectivação se não inverta essa hierarquização e se não prejudique a harmonia total da vida humana e cristã.
Conseguir este resultado é tarefa de cada época e dependente do condicionalismo concreto no qual se devem realizar esses fins. Os fins de ordem temporal e espiritual não se relacionam ou convivem anarquicamente; são um suporte ou instrumento dos outros. E necessariamente esta instrumentalidade indica a sua hierarquia.
Aos fins mais altos ou ao fim último se subordinam logicamente os fins intermediários ou os meios instrumentais. Acima da ordem temporal, plana a ordem espiritual. Daqui resulta a chamada subordinação indirecta, porque apenas deriva da natureza funcional duns bens em relação aos outros, da actividade dirigida à estruturação e ordenação dos bens que são instrumento ou meio para alcançar bens superiores, à actividade dirigida à imediata realização destes últimos.

II - Estado e Igreja desenvolvem uma actividade de organização e estruturação de fins ou valores que importa verter na vida social. A hierarquização desses valores dá lugar à hierarquização dessas actividades.
Esta hierarquização não implica, porém, uma subordinação de facto do Estado à Igreja. Efectivamente também às actividades de organização e estruturação se subordinam, desse ponto de vista lógico, as actividades instrumentais de ordem económica, - obtenção de meios - e tal não acarreta a inexacta conclusão de que as actividades económicas, porque instrumentais, devam ser dirigidas pelas mesmas entidades ou segundo os mesmos princípios que regem a estruturação de fins superiores a que ela se encontra subordinada, como sejam a salvaguarda da ordem, a realização da justiça ou a difusão da cultura. Implica somente que deve facilitar e não contrariar os fins superiores.
É até evidente que esta ordenação lógica dos fins da actividade estadual não corresponde à sua sucessão cronológica. No tempo, a obtenção dos meios precede a realização dos fins. O fim precede logicamente o meio.
É esta subordinação lógica, e só ela, que nos se depara entre a ordem temporal e espiritual.
Não é de confundir, por modo algum, com a subordinação funcional do Estado à Igreja (o tão criticado clericalismo).
Só os fins próprios da ordem temporal e espiritual que ao homem respeitam na sua vida individual e social, se ordenam uns em relação aos outros, até ao fim último que se confunde com o destino eterno do homem.
Nada mais direi sobre uma questão que tem feito correr rios de tinta e suscitado apaixonadas contradições.
Se à Igreja cabe por direito, a ordenação e direcção do bem público religioso, - a salvaguarda da ordem espiritual - e ao Estado o reconhecimento, defesa e prossecução do bem público na ordem temporal, as dificuldades de coordenação, e da sua unificação no homem que numa e noutra ordem se integra podem resultar fundamentalmente de dois desvios:
a) O Estado não reconhece como titular do poder espiritual, a Igreja e não mantém, por isso com ela, as relações que à efectiva coordenação da ordem espiritual e temporal são necessárias. É esta em regra a consequência da neutralidade do Estado perante a ordem espiritual, da degradação desta à categoria de assunto de natureza puramente privada.
b) O Estado absorve, na sua esfera de acção, fins próprios de ordem espiritual substituindo-se directamente à Igreja para realização dos seus fins ou de fins que se arroga como próprios, contrários à religião.

III - A separação da ordem temporal é uma conquista do cristianismo.
Mas nem por isso deixará de ser deturpada na teoria e na prática, mesmo nas sociedades cristãs. O erro é, na maioria das vezes, uma sombra da verdade.
O século XIX assistiu à vitória incontestada do individualismo como doutrina política. O Estado tomou por toda a parte as características do Estado liberal.
A liberdade do homem assenta nas verdades cristãs. O homem não se esgota na qualidade de quaisquer sociedades política ou não política, porque o seu destino ultrapassa o das sociedades terrenas que o envolvem. Filho de Deus para Deus caminha e a Ele regressa, pela sua vida e pela sua morte.
A pretensão de o sujeitar a uma disciplina humana omnicompreensiva de todo o seu destino equivale a destitui-lo da sua filiação divina encorporando na peregrinação terrena os fins de vida eterna.
E no entanto foi a liberdade individual o pendão da revolução na estrutura do Estado que o individualismo empunhou. Como pôde um princípio da liberdade atacar a fonte da verdadeira liberdade?
É que, no individualismo, a sociedade, e com ela o Estado deixará de ter uma fundamentação moral: a única realidade seria o próprio indivíduo, desligado da sociedade a que naturalmente pertence.
A Revolução Francesa, se por um lado proclamou o direito à luta contra a opressão e a plena exteriorização da liberdade individual, retirou, por outro lado, todo o fundamento moral à vida colectiva e ao Estado. O Estado seria apenas o guardião da liberdade individual, esta mesma, por sua vez, fim de si própria.
Em tais condições a vida social teria de ser orientada pelo princípio pragmático do interesse individual, cuja coexistência com os demais interesses individuais importava exclusivamente assegurar.
O homem concebia-se a si mesmo, como supremo dispensador de benesses, uma liberdade, como instrumento e como fim.
Afastada, porém, a base real e moral da própria liberdade, esta deveria destruir-se a si mesma. Os dois princípios da proclamação e da destruição da liberdade, pode por isso encontrar a sua origem na mesma Revolução.
Convém atentar um pouco mais de perto nas razões determinantes desta aparente contradição.
Remonta a Kant o erro, de larga projecção do desenraízamento da moral da sua base ontológica.
Afirmada a impossibilidade de conhecimento especulativo do "dever ser", da moral e do direito - Kant assentou em simples postulados indemonstráveis toda a moral. Não haveria verdadeiramente uma realidade moral: a realidade é por natureza empírica objecto directo de observação sensorial. Não pode por isso a moral ser conhecida, mas tão somente pensada.
A vontade, o campo de actividade humano, em que se verte o seu fim e se molda o seu destino, alheia-se da verdade absoluta, para procurar uma verdade em si mesma, preenchendo categorias formais de lógica, mas não obedecendo a imperativos reais de criação.
Abriram-se assim os diques ao subjectivismo nas ciências culturais, pela impossibilidade de lhe atribuir fundamento metafísico, válido para além da convicção do juízo, ou do sentimento individual.
O subjectivismo no direito é o voluntarismo da lei. Em vez duma ordem natural como fundamento do "dever ser", a finalidade única seria a própria liberdade; esta esgotar-se-ia assim em si mesma e seria por isso somente limitada por idêntica e vazia liberdade dos outros. A função do Estado reduzir-se-ia à garantia da coexistência mecânica dos interesses individuais.
Este subjectivismo da moral e do direito traz consigo o germe destruidor da verdadeira liberdade.
Como nenhum fim superior se impõe à vontade, quer individual, quer colectiva, a luta política ou a força do número poderão, em vez de servir a moral e o direito, criá-los sem entraves, e servir-se deles como instrumento arbitrário.
A ligação do homem à Criação, a subordinação da sua actividade aos fins racionais da sua existência, teriam de ser relegados ao plano de ideologias com valor puramente individual, perante as quais o Estado tomaria uma posição de indiferença ou neutralidade. Ao relativismo dos valores teria de corresponder a indiferença quanto à sua vigência - a neutralidade no debate pela sua eficácia, no esforço individual pela sua vitória.
Tal posição teórica também era, porém, ao fim e ao cabo insustentável. A indiferença perante a verdade acaba por ser negação da verdade. Esta equivalência é de tal modo patente que o Estado teria de ser levado a desconhecer a existência duma ordem espiritual.
Assunto privado, ou foro íntimo de cada qual, sem outro fundamento que a convicção subjectiva, nenhuma estruturação objectiva dum "bem público" espiritual ou religioso, poderia partilhar com o Estado a ordenação da vida colectiva.
O direito, por sua vez, desligado de quaisquer valores absolutos e reduzido a instrumento servil do poder político, permitiria definir ao talante do arbítrio do Estado, como conceito puramente formal, a justiça, e fixar ao sabor dos caprichos de opinião, as finalidades da vida social.
Seguiu-se, assim, naturalmente, a negação da ordem espiritual; a Igreja, titular do poder directivo nessa matéria, viu contestada a sua legitimidade.
Inexistente uma ordem espiritual, desnecessário seria um poder que lhe respeite. A actividade religiosa caberá apenas no campo talhado à liberdade individual, como matéria privada.
Longamente teve a Igreja de pugnar pelo seu reconhecimento jurídico como Igreja, pela sua personalidade jurídica, pela sua organização e instituições.
É que as verdades que se negam, acabam por combater-se.
E no entanto, a negação da ordem espiritual que está na origem da perseguição à Igreja é a verdadeira base da autêntica libertação do homem. Efectivamente, retirado o suporte metafísico e religioso à moral, como ao direito, e tal como a vontade individual, o Estado - a vontade colectiva - sentiu-se livre duma falsa liberdade.
À vontade colectiva seria sempre fácil vencer a vontade individual; à liberdade do Estado vencer a liberdade do indivíduo.
Esta doutrina do Estado liberal, longamente dominante se afectou a coordenação necessária do poder espiritual e temporal, acabou por permitir um modus vivendi.
O Estado, por toda a parte, reconheceu juridicamente (entre nós Sidónio Pais e depois o Governo do 28 de Maio) a Igreja e a sua organização. Para o Estado liberal, como para a Igreja, este reconhecimento foi um compromisso aceitável: nem o Estado prescindiu da sua neutralidade, nem a Igreja da definição do campo próprio da ordem espiritual.
Neste ponto não haveria verdadeiramente acordo; mas transferido o problema para a questão puramente jurídica do reconhecimento da Igreja e consentido o exercício da sua missão em função do direito positivo, ainda que sem o reconhecimento prévio da validade da ordem espiritual, a acomodação dos princípios aos factos antolhou-se viável. Não se discutiam os pressupostos lógicos da solução; mas podia adoptar-se a solução sem proclamar a verdade dos seus pressupostos.

IV - O problema da Igreja e do Estado, que foi assim predominantemente um problema de relações entre a Igreja e o Estado, do reconhecimento da Igreja e da sua actividade, apresenta modernamente diferentes modalidades.
Não é a doutrina que se modifica, mas as circunstâncias em que deve ser aplicada, que variam. Mais que ao reconhecimento da Igreja há que atender ao respeito da ordem espiritual, na sua existência ou na sua amplitude.
À redução das funções do Estado no Estado liberal, o qual considerava alheia à sua competência, porque pertencente à intimidade da vida individual, à liberdade de cada um, a realização dos valores supremos, quer religiosos quer morais ou intelectuais, sucedeu-se um inevitável engrandecimento do poder político.
Verificou-se, neste aspecto, uma extraordinária transformação do Estado. Esta transformação não é apenas condicionada por movimentos ideológicos de natureza política; é determinada por circunstâncias concretas da vida social. Por isso a classificamos de inevitável. Verdadeiramente tocou o seu termo uma concepção tipicamente liberal do Estado.
É certo que no mundo actual se assiste a um renovado ideal de individualismo, por um lado, e de nacionalismo, por outro lado. Mas trata-se duma reacção angustiosa ante a realidade insofismável: as condições concretas da vida moderna, impostas pela sua tecnicização impelem irresistivelmente para uma progressiva interdependência dos Estados - e daí a ânsia de defesa da ideia de nacionalidade - e implicam uma subordinação, nunca antes atingida, do homem à organização colectiva - e daí a preocupação geral com a salvaguarda do que de humano possa ser defendido ainda na humanidade.
Não se trata, portanto, de estruturar o Estado com base no individualismo, mas de salvar da colectivização da vida individual, o que possa ser salvo.
Este novo condicionamento da vida social tem as suas origens no progresso científico e técnico que se iniciou no século XVIII. O entusiasmo que os novos conhecimentos e a descoberta da sua utilização prática provocou, alicerçou também o mito do progresso indefinido, a convicção do poder criador do homem e a possibilidade de domínio completo da natureza, subjugando-a aos seus fins.
Pela técnica o homem ter-se-ia libertado das forças naturais, por isso que lhe era possível dominá-las e pô-las ao seu serviço. Esta possibilidade de facto, foi facilmente confundida com uma libertação do homem pelo seu próprio esforço e deu-lhe a euforia de Criador.
Contudo os efeitos da tecnicização da civilização não corresponderam às ilusões que ela suscitara.
E antes ela abriu caminho a uma onda de pessimismo e de angústia ou inquietação, pela progressiva desumanização do homem e da vida que vem acompanhando o progresso técnico.
A tarefa do homem, mormente do ponto de vista económico passou a ser uma tarefa colectiva. A técnica, a industrialização, a especialização e racionalização do trabalho, funcionalizaram o trabalhador, repelindo-o para o anonimato e enquadrando-o na "massa" humana.
O homem, de certo modo à semelhança das máquinas que serve, mecanizou-se e automatizou-se. É que a grandeza dos fins económicos a atingir e a mecanização dos meios ou instrumentos tornaram indispensável uma organização disciplinada, potente e cada vez mais minuciosa na qual se afunda a vida individual.
A sociedade, à medida que progride dum ponto de vista técnico, e consente maiores facilidades de vida e comodidade, mais domínio sobre as forças naturais, acarreta também para os indivíduos a renúncia a uma posição autónoma e a sujeição às exigências de coordenação do trabalho comum e parcelar, exclusivamente orientado pela utilidade colectiva. Com a mecanização surgiu assim a formação das "massas" de que fala Ortega y Gasset.
A realização de fins económicos, que largamente ultrapassam as potencialidades individuais, a produção dos meios de os efectivar implicam necessariamente uma coordenação do trabalho em vista de fins comuns.
Esta coordenação pressupõe uma orgânica, disciplina e poder directivo, que deverá ao mesmo tempo garantir a utilidade comum e a repartição equitativa dos resultados da tarefa colectiva.
Uma tarefa colectiva, porém supõe um plano e a execução do plano supõe autoridade.
E assim a economia, assente na técnica moderna é cada vez mais uma economia planificada.
Recaem assim sobre o Estado novas funções que determinaram um acréscimo notável da sua autoridade, e a sua enorme burocratização.
Este pendor de regulamentação e organização da vida colectiva, tornado necessário do ponto de vista técnico é, porém, de quando em vez, seguido fora do seu campo próprio.
É que a técnica, - meio para realização de fins - se confunde frequentemente com o próprio fim.
Renasce dessa forma o mito prometaico da salvação do homem pelo homem, do domínio das forças naturais como última finalidade da vida colectiva e condição da felicidade ou redenção terrena.
Para tanto a vida individual reduz-se cada vez mais a uma função da vida colectiva, sem respeitar os aspectos humanos que não podem integrar-se na universalização da técnica.
O Estado, pode mesmo, então vir a propor-se a planificação total como ideal de organização social. Nada do que é íntimo ou pessoal escapará ao domínio da colectivização.
Uma planificação total supõe porém, um poder absoluto e é incompatível com qualquer esfera da liberdade individual. Em tal situação o homem deixará de viver como homem e o Estado não conhecerá limites à sua acção. Toda a vida individual, em todos os seus aspectos, será absorvida e regulamentada pelo Estado.
Foi esta a consequência que da previsão da evolução económica tirou o comunismo para estabelecer a sua doutrina.
É tão feroz a consequência duma planificação total dominada por um poder absoluto que o próprio comunismo a considera o meio único de alcançar a redenção futura. O que tem de mais grave efectivamente o comunismo é o seu carácter de sucedâneo da religião. O comunismo é uma fé, em que o homem, também como no individualismo, presumido duma ordem sobrenatural, não porque lhe seja indiferente, mas porque tomou o seu lugar elevando a própria humanidade trabalhadora e redentora.
A divinização da criatura é rebeldia contra o Criador - o pecado de Satã -. O seu resultado teria de ser sempre, como é, a escravização do próprio homem. A escatologia comunista é uma caricatura da escatologia cristã. A humanidade alcançará pela execução duma planificação total da vida presente, a redenção futura. A esperança - mas a esperança do homem - é o alimento da fé comunista.
Para este fim o Estado, longe de ser o dispensador da justiça, o ordenador da vida social, o garante dos bens comuns é o instrumento da força e da violência, exercidas revolucionariamente para destruir o mal - o capitalismo - mediante a ditadura do proletariado (a força do bem) de modo a preparar a nova era, a era da redenção prometaica da humanidade.
A gravidade do comunismo, como fenómeno ideológico, está sobretudo nesta característica herética, como que religiosa da sua formulação. De toda a maneira o Estado absorve então a personalidade individual em todos os seus aspectos: Ao homem não cabem direitos, mas posições, funções na vida colectiva, na tarefa comum para realização do fim último que é um fim do próprio Estado.
O primado da economia, faz inverter a hierarquização dos fins do homem e todos os valores superiores são subordinados à realização do fim económico colectivo.
Ainda que tais perspectivas sejam peculiares ao comunismo, o valor da economia na civilização técnica não deixou de influir mesmo em ideologias diversas ou opostas ao comunismo de maneira a acarretar praticamente uma certa subordinação ou um perigo de inversão dos valores humanos.
O primado da técnica é o primado da economia; a ciência frequentemente se considera despida dos seus valores absolutos e conhecimento da verdade para se apreciar em função da sua utilidade na realização de tarefas colectivas. A moral pode, perante o entusiasmo do progresso, ser sacrificada à imediata utilidade da planificação económica.
Por esta forma se transferirá, ainda que parcialmente, a técnica que é por natureza um instrumento limitado às coisas, e não extensivo aos homens, ao que é universal e não ao que é humano, um fim, ao qual se subordina o homem e a sua actividade, o direito e a moral, o espírito como a matéria.
De novo o Estado pode então desconhecer a superioridade da ordem espiritual ou suprimi-la pela absorção do homem, numa sujeição total, de alma e corpo, à ordem temporal.
No Estado comunista é essa a consequência lógica.
No Estado social moderno, seja qual for o regime político adoptado, é esse o perigo que se afronta.
Não se trata já apenas do reconhecimento jurídico da Igreja mas da aceitação, para além do Estado, duma ordem espiritual que a justifica. Mais comedidamente, por certo, o aumento das funções do Estado, exigido pelo condicionamento da civilização moderna traz apenas novos problemas concretos à coordenação do Estado e da Igreja, da ordem temporal e da ordem espiritual.

 


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