Habeas Corpus

Relatório ao projecto de Decreto que regulamenta a providência do Habeas Corpus (Decreto-Lei n.º 35043, de 20 de Outubro de 1945)

Nenhum aspecto da organização jurídica revela tão claramente o grau de perfeição e estabilidade da estrutura e civilização de um país como as suas instituições penais. Da sua modelar relacionação e do seu equilibrado funcionamento dependem simultaneamente os dois pilares em que assenta a vida social: a autoridade e a liberdade. Nelas se reflecte a intrínseca unidade destes dois princípios, cujo antagonismo tão frequente como erroneamente se assevera.
Autoridade e liberdade só se contrapõem, se ilimitadas ou mal limitadas. Verdadeiramente, porém, são elementos imprescindíveis da Ordem, na acepção elevada do termo, e a Ordem constitui o objecto último da Justiça.
Sem Ordem não há autoridade, mas tirania; sem Ordem não há liberdade, mas licença anárquica.
Por isso que emanam de um mesmo princípio e conduzem a idêntico fim, a autoridade e a liberdade não se digladiam, nem carecem de conciliar-se em transigências recíprocas. São necessariamente coexistentes.
Ora, afirma-se comummente que o poder judicial constitui a mais sólida salvaguarda dos direitos individuais. A afirmação é exacta, mas a sua explicação encontra-se, precisamente, no facto de ser o poder judicial a garantia da segurança da própria ordem jurídica.
O órgão do Estado a quem couber primacialmente, defender a segurança jurídica garantirá, melhor ou pior, a própria liberdade. E, efectivamente, se a repressão e prevenção das ofensas graves à disciplina social é entregue, como em estádios mais atrasados da evolução histórica, ou por deficiência lamentável das instituições judiciárias, a autoridades de natureza administrativa ou policial, não há possibilidade de subtrair à mesma tutela a liberdade individual.
Este modo de ver traduz apenas uma realidade; não esconde qualquer paradoxo. Os cidadãos fruirão tanto mais segurança nos seus direitos quanto mais improvável for a perturbação da ordem jurídica. Pressuposto da maior extensão da liberdade é a enérgica repressão das violações da lei.
A Ordem tem a primazia, porque é condição indispensável da existência social; nenhuma sociedade, por mais primitiva, pode dispensar-se de a instaurar e garantir. O progresso manifesta-se no como dessa garantia, isto é, pela sua atribuição ao poder judicial. Esta função é tanto mais exclusiva do poder judicial quanto este maior consciência tiver do alto fim político que realiza.
Mas só um estádio, já não apenas de maturidade política, mas de excepcional perfeição da própria organização judiciária, se consegue ir mais longe, até à garantia, não apenas indirecta, mas directa, da liberdade individual, pelo desbaste dos vícios de actuação do sistema repressivo, ou de segurança.
A liberdade que se desgarra da Ordem é crime; a autoridade que se desprende da Ordem é arbítrio. O primeiro desvio, porque individual, pode ser combatido com eficácia pela força do Estado. O segundo, porque praticado por quem detém a autoridade, só pela força do mesmo Estado, entregue a um órgão de jurisdição imparcial e independente, pode ser corrigido.
É na solução deste problema que se insere a providência de habeas corpus, a qual, precisamente, consiste na intervenção do poder judicial para fazer cessar as ofensas de direito de liberdade pelos abusos de autoridade.
Providência de carácter extraordinário, só encontra oportunidade de aplicação quando, por virtude do afastamento da autoridade da ordem jurídica, o jogo normal dos meios legais ordinários deixa de poder garantir eficazmente a liberdade dos cidadãos.
O habeas corpus não é um processo de reparação dos direitos individuais ofendidos, nem de repressão das infracções cometidas por quem exerce o poder público, pois que uma e outra são realizadas pelos meios civis e penais ordinários. É antes um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade. Com a cessação da ilegalidade da ofensa, e independentemente da restauração da liberdade, fica realizado o fim próprio do habeas corpus. Doutro modo, tratar-se-ia de simples duplicação dos meios legais de recurso.
Do que fica dito se depreende qual o grau de perfeição e de fortaleza que as instituições judiciais devem possuir para exercerem uma função de tanto melindre e responsabilidade. E que assim é revela-o a circunstância de o habeas corpus, originário de Inglaterra, onde evolucionou com a própria organização jurídica, não ter conseguido implantar-se em nenhum outro país europeu, não obstante o reconhecimento dos seus benéficos efeitos e as reivindicações da doutrina.
A nossa Constituição de 1911, num acto de esperança, que a Constituição de 1933 reafirmou, prometia a sua regulamentação em lei. Porém as estéreis convulsões políticas que, durante tantos anos, caracterizaram a nossa vida pública não tornavam fácil a efectivação da promessa. Na própria Inglaterra, quando das revoluções frequentes da Irlanda, era uso suspender a sua aplicação. Trata-se, realmente, dum processo de defesa dos direitos da pessoa que só pode funcionar com segurança em situações de estabilidade política e de justo equilíbrio dos poderes do Estado.
A providência de habeas corpus não tem paralelo nas legislações de tipo continental. Alicerçada numa experiência secular da Inglaterra, importa tentar implantá-la em Portugal mantendo-lhe todas as características essenciais da origem. Reformá-la seria deformá-la. Há apenas que acomodar os pormenores da regulamentação à nossa organização judiciária.
O que pode suceder é revelar-se a necessidade de fortalecer essa organização de maneira que não ameace ruir sob o peso e importância dos fins que lhe cumpre salvaguardar e prosseguir.

 


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Last modified: December 18, 2004

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