A Cultura portuguesa

 

Discurso proferido por ocasião das Comemorações do IV Centenário da Morte de S. Francisco Xavier, em Goa, Índia portuguesa, em 9 de Dezembro de 1952

 

Eminentíssimo Cardeal Legado,
Senhor Presidente do Instituto Vasco da Gama,
Ilustres Consócios,
Minhas Senhoras,
Meus Senhores

Vivi em Goa, assistindo às comemorações da morte de S. Francisco Xavier, horas que valem séculos.
Visitei os seus monumentos, e auscultei o seu passado, embebendo-me na atmosfera da sua glória.
E também vi e admirei o trabalho metódico e persistente, a confiança serena, a unidade moral do seu Presente.
Penetrou-me a magia de Goa; e para a guardar ciosamente em mim, havia que terminar a minha visita oficial pelo centro cultural mais importante de Goa, pelo Instituto Vasco da Gama, notável pelas suas origens, grande pelo mérito dos seus sócios, prestimoso pelo seu trabalho, e egrégio pelo seu significado.
Centro de cultura portuguesa, é o símbolo material do elo invisível que une, em seu sentido unívoco, o Passado, o Presente e o Futuro.
Quiseram os seus ilustres sócios honrar-me, reconhecendo-me como um dos seus. A benevolência da distinção está na atribuição do mérito; e não, permita-se-me o arrojo, no reconhecimento da minha integração, pelo espírito, na cultura que representam.
E, no entanto, esta ambiciosa pretensão, que aliás só engrandece a minha gratidão, não será talvez mais do que manifestação dum desejo, ou direcção duma vontade.
É que decorrem ainda as cerimónias comemorativas do Centenário de S. Francisco Xavier; e este facto, fazendo recordar uma das mais ingentes manifestações da cultura portuguesa, dá ainda maior realce à vossa eleição, e agrava sobremaneira as responsabilidades da minha pretensão.

A cultura situa-se entre o homem e a natureza, como um modo da sua recíproca relacionação.
O seu conceito tem assim e primeiramente de depender da noção que aceitarmos dos dois termos em relação: o sujeito e a natureza.
A natureza é o preexistente, o elemento dado em que se enquadra o homem; este mesmo, dela faz parte, num sentido lato do termo, se nos recusarmos a atribuir-lhe outra posição que não a de simples espectador. A natureza, então, envolve-o, esmaga-o em si mesma, como sua simples parcela.
Quando assim se entenda, a cultura nada mais pode representar que uma expressão decalcada sobre a própria natureza. A esta, como à alma mater, se refere o homem, e dela como que passivamente deriva a cultura.
A natureza será o verdadeiro poder criador, impondo um quietismo desolador ao espírito. A inteligência esforçar-se-á tão somente por compreender, evitando agir, temendo-se de criar.
Inversamente podemos desviar o acento tónico para o homem, como sujeito dominador, vendo na natureza apenas uma massa desordenada e caótica de potencialidades, à mercê da iniciativa humana, que dela extrai, a seu bel prazer, pela sua ordenação conceptual, e pela sua arbitrária utilização, o mundo da cultura. Mas esta não será então mais do que uma civilização formal. O domínio da inteligência, por si só, conduz à tecnicização e à mecanização da vida. E por estranho que pareça, a ilimitação conceptual do homem conduz directamente à sua subjugação pela própria obra.
Um último ponto de vista é ainda possível. Subordinar os dois termos em equação, o homem e a natureza, a uma cultura que, assente neles, os sobreleva e subjuga; que neles se apoia, sem ter neles a sua origem, que os conforma e estrutura, sem lhes pedir um acto de criação ou participação. A obra como espírito objectivo, vive por si; é objectivamente existente para além da natureza e do homem.
Em cada uma destas atitudes de pensamento a existência é definida fundamentalmente em função dum dos seus termos: da natureza, do sujeito, ou da acção ou obra, em si mesma, que a ambos liga.
Parecem desta forma esgotar-se as definições de cultura. E contudo não é assim. Não é, porque em todos os pontos de vista expressos se verifica o mesmo defeito fundamental: a pretensão de absoluta autonomia.
A natureza, como realidade do existente, não pode pretender incluir na órbita do seu determinismo, ou na força das suas leis, a direcção moral da vida, reger a actividade ou fixar o destino do homem.
O homem não pode subjugar ao seu arbítrio o mundo a criar, como acto absoluto da sua vontade, a medida dos valores da vida.
A cultura não pode considerar-se desgarrada da actividade do homem, planando sobre o mundo, como espírito objectivo, válido por si mesmo.
E ainda mais e sobretudo: todas estas significações diferentes de cultura revelam-nos algo de abstracto, e por isso também frio, de lógico, mas indubitavelmente também de formal, que a neutraliza no seu vigor, e a incapacita na sua projecção humana. Acarretam o perigo, bem real, de prescindir do Espírito que, afinal, deve coordenar os elementos de que dispersamente dei conta e atribuir-lhes um sentido, uma posição, uma serventia. Não pode ver-se apenas na cultura a obra, mas sobretudo a acção; não apenas o resultado, mas a realização da tarefa, a execução do dever ser, para não abstrair do espírito criador ao contemplar a substância que o recebe e encorpora.
As realidades culturais de conteúdo espiritual, a ordem, a liberdade, a consciência, a responsabilidade... não se deixam analisar através dum conhecimento natural; não se apreendem em posição estática, para lhe desenhar os contornos. Algo as transcende, que as sobreleva, ou diminui.
De que espírito sois? A pergunta é válida para os homens e para as suas obras; só o Espírito pode definir a cultura.
Onde se nega o Espírito, empobrece-se a cultura, na sua substância e na sua função. O Espírito é em relação a esta o motor de ascensão, a força actuante, a interioridade da obra, o sentido da acção. Cria e não se esgota; realiza-se na cultura e transcende-a, unindo-a ao fim último. Perturba e abala o mundo em que actua, embora como que estranho a ele, na ânsia de perfeição, e é contudo no mundo a sua tarefa. É que, na verdade, nada de humano é absoluto e só pelo Espírito a acção e a obra do homem - na organização moral da sociedade, na religião e no dever, no Estado e no Direito, na ciência e na arte - fogem à relatividade que as diminui, e alcançam o seu sentido definitivo e o seu valor próprio.
De que espírito é, então, a cultura portuguesa, a cuja sombra se fundou o Instituto Vasco da Gama?
Para que buscar em conceitos, naturalmente imperfeitos, a definição desse espírito, se a nossa inteligência e o nosso sentimento estão ainda cheios do exemplo de S. Francisco Xavier?
A cultura portuguesa tem um sentido e indica uma direcção: o sentido e a direcção que a lição viva de S. Francisco Xavier nos revela. Assim a saibamos receber e transmitir.

"Que adianta ao homem ganhar todo o mundo, se perder a sua alma?"
S. Francisco Xavier nasceu num castelo fronteiro da antiga Navarra. Assistiu, na infância, às lutas civis, que dividiam a sua pátria, ao exílio dos irmãos, e ao empobrecimento da família. Estudante na Universidade de Paris, viu abrir-se-lhe a porta dum futuro brilhante. Os seus familiares tinham regressado ao favor régio; a sua nobreza e erudição facilitavam-lhe uma carreira eclesiástica ascensional. Estavam ao alcance da sua mão os bens que pretendia e as ambições que o impeliam.
A voz de Inácio de Loiola, seu companheiro e amigo, admoestava-o, porém, como o fustigar da consciência. Que adianta ao homem conquistar para si o mundo que deseja, se por causa dele se perder?
E S. Francisco aniquilou o seu mundo para servir no mundo. Para a maior tarefa era preciso ver de mais longe e agir mais largamente. Só destruídas as amarras dos interesses rasteiros, poderia engrandecer a sua acção até tomar proporções de eternidade; só desprendido do restrito círculo da sua ambição - do seu mundo - podia abarcar a imensidade do mundo em que devia servir.
Libertar-se das paixões, abandonar os compromissos, desdenhar os objectivos imediatos são pressupostos para a conquista do que é permanente. A morte é necessária à redenção.
E servir como?
Desde que iniciou o seu apostolado no Oriente, durante dez anos, S. Francisco Xavier não conheceu limites à sua tarefa. De Goa, à Costa da Pescaria, a Ceilão, a Malaca, às Molucas, ao Japão, cada jornada lhe criava um incentivo para nova missão, como se a terra fosse pequena para a sua actividade, e a sua actividade fosse pouca para o seu Ideal.
Dava-se inteiramente aos seus catecúmenos, e não se satisfazia com a doação de si próprio; precisava de senti-los dentro de si.
É que não lhe bastava amar; queria fazer-se amar.
Multiplicava os seus esforços para conhecer e deixar-se conhecer, criando a intimidade de vida, para que os demais sentissem como ele o amor do próximo e alcançassem a sua plenitude numa dádiva recíproca.
"Muito vos torno a recomendar que vos façais amar ..."
Com estas palavras de S. Francisco Xavier, termino. Não há que glosá-las.
A luz não se esclarece.
Está diante de nós o espírito da civilização portuguesa e cristã. É fácil reconhecê-la.
Por todas as partes do mundo, sobre a terra e sobre o mar, onde o ideal for mais alto, o sacrifício mais nobre, a tarefa mais árdua e a devoção por ela mais intensa, aí se ergue, em forma de Cruz e resplandece em clarão de esperança, a Cultura portuguesa.

 


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