Bens do Domínio Público e Privado do Estado (Parecer)

 

 

I – Introdução: A «consistência» do domínio público na doutrina e na legislação portuguesa

Procura-se no projecto destrinçar o domínio público do domínio privado do Estado para incluir neste certos interesses que se encontram conexos com aquele. A finalidade última do decreto, nesta parte (art. 1º), está no alargamento, em extensão, do objecto da administração por parte do Ministério das Finanças de bens do Estado.
Os artigos 2º e 3º dizem respeito ao processo a seguir para a afectação, mudança de afectação, ou desafectação de bens de património do Estado. O primeiro problema, porque complexo, carece de ser esclarecido em rápido esquema, a fim de facilitar a sua análise.
Importa considerar primeiramente a "consistência" do domínio público, na doutrina e na legislação portuguesa, extremando-o do domínio privado, para em seguida verificar se as várias formas de uso dos bens dominiais podem, de alguma sorte, ser incluídas no regime de administração do domínio privado.
Quanto a este último, deve fazer-se a distinção fundamental entre bens afectos e não afectos a serviços públicos porque diferente é, e deve ser, num e noutro caso o seu regime jurídico e de administração.
Ao lado dos bens pertencentes ao Estado, quer do domínio público quer privado, tem o Estado bens apenas sujeitos à sua administração, como sucede com bens de inimigos ou bens cultuais que devam ser restituídos ou ainda bens de heranças jacentes. O projecto não se ocupa deste último caso, pelo que omitirei todas as referências à sua situação jurídica e modo de administração na lei vigente.

II – Domínio Público do Estado

Pode dizer-se de uma maneira geral que a doutrina delimita a noção de domínio público subordinando-a a uma de duas orientações opostas.
Uma primeira orientação, sejam quais forem as suas modalidades, caracteriza-se pela restrição do domínio a certas categorias de bens, que pela sua natureza apresentam tais características que o seu destino público resulta da própria conformação natural, ou ainda, ao lado destas, das que a lei expressamente enumera como pertencentes ao domínio público.
Uma segunda corrente alarga o domínio público de maneira a abranger todos os bens, imobiliários ou mobiliários, que se encontram afectos a um serviço público. A afectação corresponderá então, ao carácter público do domínio.
A nossa legislação decidiu-se preferentemente pela primeira orientação. Pela Constituição pertencem ao domínio público os bens enumerados no art. 49º. O Decreto n.º 23565, de 15 de Fevereiro de 1934, acrescenta no seu artigo 1º alguns outros à lista, como monumentos e palácios nacionais mas só define duma maneira geral como do domínio público os "bens que estejam no uso directo e imediato do público".
Pertencem assim ao domínio público os bens que constituem o chamado domínio necessário (bens que pela sua natureza se destinam ao uso público, como o domínio hídrico, marítimo e aéreo) e os bens que formam parte do domínio acidental (estradas, caminhos de ferro, fortalezas, palácios nacionais, etc.).

III – Bens do Domínio Público do Estado

Os bens do domínio público são objecto de um direito de propriedade, embora de natureza especial, do Estado.
Mas a sua utilização pelos particulares, é em grande número de casos (mormente no domínio necessário) derivada da sua razão de ser.
Os bens serão públicos porque administrados com o fim único de servirem o uso comum.
Há, no entanto, formas diferentes de utilização do domínio público; a primeira distinção a fazer é entre uso directo ou indirecto do público. Esta última modalidade não interessa aos problemas versados no projecto.
Tem, pelo contrário, importância a primeira modalidade, que se traduz na serventia directamente aproveitada pelos particulares.
São ainda várias as formas de uso directo:

1) Uso comum

Uso comum é aquele que é garantido, por igual, à generalidade dos cidadãos. Os rios como as estradas destinam-se à circulação. Todos poderão utilizá-los. É duvidoso se esta faculdade tem a natureza de um direito real ou se é simplesmente uma faculdade que se integra no direito de liberdade individual quanto ao uso dos bens de modo conforme com o seu destino.
Parece que os bens destinados ao uso público são possuídos pelo Estado para realização da função que se traduz precisamente em garantir o seu uso a todos por igual.
O uso comum não será, por isso, mais do que a faculdade de utilização dos bens, em regime de igualdade, por modo conforme com o seu destino.

2) Uso especial

O uso especial aproxima-se do uso comum, enquanto consiste ainda na utilização dos bens por maneira conforme com o seu fim. Mas dele se distingue, enquanto constitui um uso comum "acentuado". Consiste na utilização individual do domínio público, por forma correspondente ao seu destino, mas com uma intensidade superior à permitida à generalidade das pessoas. Se todos podem circular nas estradas, nem todos podem fazer carreiras de camionetas; se todos podem estacionar os seus automóveis, nem todos podem construir parques de automóveis nas vias públicas; se todos podem navegar nos rios, nem todos podem fazer transportar por estes madeira à deriva.
Nestes casos a utilização é conforme com o destino dos bens: a circulação. Mas há no uso um carácter singular, pela sua maior amplitude em relação ao uso comum.

3) Uso excepcional

Finalmente o uso excepcional consiste numa utilização que faz sair os bens do seu destino geral, para garantir o interesse individual de determinada pessoa ou entidade.
Por isso que o uso excepcional é disforme do uso comum que a cada indivíduo pertence como componente da colectividade e representa uma faculdade individual, tem também natureza jurídica muito diferente. Trata-se de um direito subjectivo privado e de natureza real. E por isso que surge em relação a bens dominiais, só por acto da Administração, por concessão ou permissão, ele pode ser criado. Desta maneira se garante ao particular uma servidão pessoal de uso sobre o bem que é objecto de concessão, direito que reveste, porventura consistência diversa consoante se revela nas relações com terceiros ou com a Administração concedente.
Estas diferentes formas de uso dos bens do domínio público não são em si bens do domínio público nem privado do Estado. Porque, quando constituam direitos de natureza real, pertencem ao património dos particulares.
O interesse patrimonial do Estado, neste campo, diz respeito somente à atribuição da concessão, à sua modificação e rescisão ou ao recebimento de quaisquer taxas ou indemnizações pelo uso excepcional. Mas, dadas as características dos bens do domínio público as concessões ou permissões estão geralmente de tal forma ligadas à natureza pública dos bens e seu destino, que a diversa competência para superintender num e noutro aspecto, talvez complique mais do que permite simplificar as soluções.
Inúmeras concessões, pelo seu alcance, não atribuem apenas aos concessionários um direito privado de natureza real, porque também lhes atribuem uma parcela de função pública conexa aos bens do domínio público sobre que recaem as concessões. Os dois aspectos serão, em tais casos, teórica e praticamente incindíveis. A concessão de águas públicas para energia eléctrica atribui aos concessionários um direito privado, mas também eventualmente lhes transmite uma função. E nos casos de menor relevo, como a permissão de quiosques na via pública, uso de águas para irrigação, plantação de árvores ou construções junto das estradas parece que a fácil coesão do uso comum, que importa garantir, com o uso excepcional exige que seja o departamento encarregado de tutelar o primeiro que tenha competência para permitir o segundo.
De resto parece que o projecto, como resulta do teor do art. 2º, se quer referir aos bens afectos a serviços públicos, e não aos bens do domínio público, no sentido que lhe tem sido dado pela legislação portuguesa.

IV – Bens do Domínio Privado do Estado

Ora, ao domínio privado pertencem todos os restantes bens do Estado, que se dividem em duas grandes categorias: bens afectos ou não afectos a serviços públicos. O Estado, como todo o proprietário, pode utilizar nos seus próprios fins, os seus bens, ou dispor deles.
O uso dos bens pelo Estado, e dados os fins deste, é naturalmente a sua afectação a um serviço público. Os bens nestas condições devem ser administrados pelo departamento a que pertence o respectivo serviço.
A atribuição e administração dos bens deriva directamente da sua afectação. Esta tem de ser expressa, por exigência da Constituição. Mas nada obsta no texto constitucional a que se proceda à afectação por despacho, em vez de o fazer por decreto se isso for julgado conveniente. Dentro do mesmo Ministério, podem os bens passar de um serviço para outro, onde se deixarem de ser afectos a qualquer serviço público, deverão regressar à administração do Ministério das Finanças, à espera de novo destino. O processo simplificado de desafectação que propõe o projecto, não levanta objecções.
Coloca-se, porém de igual modo quanto aos bens do domínio privado afectos a serviços públicos o problema de saber quem superintende nas concessões e permissões de direitos sobre esses bens.
Parece que se a concessão ou permissão não tem que ver com a realização dos fins do próprio serviço, deve competir ao Ministério das Finanças porque se trata então simplesmente duma utilização patrimonial de bens, que praticamente equivale à sua desafectação real.
Na maioria dos casos não será, porém assim. Há talvez que analisar, com maior precisão, o problema porquanto, serviços há que no exercício das próprias funções têm que se utilizar do processo da concessão.
Assim, para escolher um exemplo dentro do Ministério da Justiça, o emprego da mão de obra prisional por empresas particulares supõe frequentemente o arrendamento de edifícios do Estado, dentro das cadeias, para instalação de oficinas. O arrendamento é, então, celebrado como meio de realizar uma função do próprio serviço; é apenas um elemento material do funcionamento do serviço do trabalho prisional. Da mesma maneira quanto à permissão da utilização de móveis, o Ministério das Obras Públicas vê-se obrigado a ceder, nas presentes circunstâncias, camionetas ou veículos seus a empreiteiros para conseguir a persecução de certas obras. O aluguer não representa um direito autónomo adquirido pelo empreiteiro, mas um elemento necessário à realização dos fins que o próprio Ministério se propõe e aos quais se encontram afectos esses mesmos veículos. Nestes casos, não obstante a criação de um direito dos particulares, está ele de tal forma conexo ao serviço público ao qual serve que extremar a superintendência sobre um da fiscalização do outro, seria complicar sem vantagem o funcionamento dos serviços.

V – Conclusões

Assim em conclusão:
Parece pouco preciso na finalidade que pretende o art. 1º. Facilmente poderá conduzir a complicações de administração de mais de um Ministério, desde que se entenda que a superintendência na concessão de usos excepcionais ou na utilização por concessionários de bens afectos a serviços públicos, dentro dos objectivos dos mesmos serviços, pertencerá a departamento diferente daquele que dirige os serviços públicos.
Os artigos 2º e 3º regulamentam o processo de afectação e desafectação de bens do domínio privado para o público, como a desafectação não constitui a passagem inversa. Afora esta observação a facilitação do processo de afectação e desafectação pode melhorar a administração do Estado, garantindo mais eficazmente ao Ministério das Finanças a efectivação dos poderes que lhe confere o art. 50º da Constituição [Constituição da República Portuguesa, de 1933].

 


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