Discurso proferido na Inauguração do edifício do Tribunal de Santarém, em 28 de Março de 1954

 

Senhor Conselheiro Presidente da Relação de Lisboa
Senhor Governador Civil
Senhor Presidente da Câmara Municipal
Senhores Magistrados e Exm.ªs Autoridades
Minhas Senhoras e meus Senhores

I - É hoje inaugurado o novo edifício do Tribunal de Santarém, com a sua entrega aos serviços de justiça. Quis V.Ex.ª Senhor Presidente da Câmara, referir, como um dos elementos determinantes da sua execução, o auxilio material do Ministério da Justiça que tornou possível a realização da obra. E no entanto, os subsídios concedidos não dispensaram, nem ofuscam o mérito da iniciativa, o amparo à sua execução e a dedicação pela obra da própria Câmara Municipal.
Neste sentido, e não apenas pelo facto de o edifício constituir património municipal, o novo tribunal pertence a Santarém.
A Câmara Municipal fez, porém, algo mais para a construção do edifício. Deliberou executar o projecto por administração directa, encarregando de todos os trabalhos de construção a direcção da Colónia Penitenciária de Alcoentre, em delegação da Repartição dos Serviços Económicos e do Trabalho Prisional.
Não seria de estranhar, em obra de tanto vulto, certo retraimento na confiança. A boa vontade não substitui a perícia, e para quem tivesse apenas em mira o resultado material do empreendimento, o caminho seguido valia mais por ousado que por seguro. E todavia, se o reparo surgiu alguma vez à Câmara Municipal, foi logo submerso pela ideia mais alta, que nunca será demais enaltecer, de concorrer, da sua parte, pela facilitação do trabalho prisional, para uma obra mais profunda, de profissionalização dos presos, de alívio dos condenados e de humanização das penas.
É esta uma finalidade que não tem fim; um esforço que não tem termo; uma actividade complexa, para a qual o auxílio e a compreensão alheia, tal como o demonstrou a Câmara Municipal de Santarém, constitui incentivo eficaz e alto mérito.
Não houve que arrepender-se a Câmara Municipal; o trabalho prisional, com os condicionamentos difíceis da sua execução e a tarefa primacial, mas paralela, da reabilitação humana, não alteraram ou diminuíram a perfeição ou beleza da obra. E por isso, também, o mérito da colaboração da Câmara Municipal, nestes especiais objectivos, não foi empanado pelo menor valor do resultado material. Posso assim verificar, por acréscimo, que a função essencial dos Serviços do Trabalho Prisional não prejudica, e antes favorece, a boa execução das obras que lhes são cometidas. Tenho a certeza que a experiência adquirida só confirmará no futuro a minha previsão.
Sem deslustrar a parte de cada um na obra de todos, antes agradecendo às autoridades locais e especialmente ao município e ao seu presidente, a colaboração de que fizeram um estímulo para os serviços do Trabalho Prisional, evoco sentidamente a memória do mais persistente e devotado, o malogrado Presidente da Câmara Dr. Galhordas que a morte prematura arrebatou, sem que pudesse assistir ao êxito final da sua acção e à manifestação do nosso agradecimento. A gratidão substituirá, no espírito dos seus conterrâneos o agradecimento que bem merecera.

II - Dois factos assinalam especialmente a inauguração do novo tribunal de Santarém.
Em primeiro lugar o preito de reconhecimento que todos pretendemos prestar ao egrégio professor e ilustre Ministro da Justiça Doutor Manuel Rodrigues, que, natural do distrito de Santarém nesta cidade viveu os primeiros anos da sua juventude.
Em segundo lugar, a lembrança dos factos históricos indicativos, segundo parece, de ter sido Santarém a primeira sede fixa do Tribunal Superior de Justiça - a Casa do Cível - no século XIV e ainda no século XV, antes da sua definitiva deslocação para Lisboa.
A antiguidade desta memorável ligação dos serviços de Justiça a Santarém pode ser pretexto para acentuar a característica de permanência que esses serviços denotam.
Efectivamente a evolução do conceito e da realidade do Estado, analisado nos seus pormenores, revela extraordinárias transformações. Algo, porém, queda de essencial e permanente na natureza e nos fins do Estado. A vida colectiva, seja qual for a sua peculiar organização, não é possível, e a acção de comando, seja qual for a extensão dos propósitos que encorpora no seu domínio, não deve expandir-se, sem a submissão à virtude, por excelência coordenadora de todos os deveres sociais, a justiça. Definiu Platão o Estado como a realização da justiça e ainda se me afigura que nenhuma outra definição mais correctamente apreendeu a razão de ser e o fim do próprio Estado.
Esta característica fundamental é conatural da sua existência.
Podem as concepções doutrinárias sobre a amplitude dos deveres da comunidade ou dos indivíduos alterar-se na evolução histórica, atribuindo ao Estado ora uma função passiva de coordenação dos interesses económico, o incitamento à melhoria do bem estar social e a realização de tarefas, só colectivamente possíveis, com vista a uma maior perfeição ou mais completa segurança da vida colectiva. Esta multiplicação dos fins do Estado, acrescendo-lhes novas funções, não determina a sua soma ou sobreposição, antes implica a sua hierarquização numa actividade ordenada sobre a égide da justiça. Os objectivos materiais, hoje tão complexos no Estado moderno, são limitados no seu âmbito e contingentes no tempo. Só o seu enquadramento numa ideia que os supera e dirige, define a natureza do próprio Estado, como realidade permanente.
O desvario dos homens, a mutabilidade das circunstâncias e a impropriedade da organização e actuação do Estado foram causa, há cerca de três décadas, da revolução do 28 de Maio. Com ela entrou no Governo e durante dez anos sobraçou a pasta da Justiça o Doutor Manuel Rodrigues.
Uma revolução só é eficaz quando supera a instabilidade das instituições, renovando a sua estrutura, criando uma nova Ordem. Não raro o desejo de agir se perde na dispersão dos esforços e nos expedientes de Governo. O sentido e a profundidade da Revolução Nacional exigiam que, concomitantemente com as tarefas urgentes de salvação nacional, e ponderada a maturidade alcançada nos diferentes aspectos da organização do país, fossem reestruturadas as instituições jurídicas, base da estabilidade e da ordem.
Coube esta difícil missão ao Doutor Manuel Rodrigues. Não me seria possível analisar as repercussões da sua obra ingente nem a grandeza do seu talento, nas breves palavras que me é lícito proferir perante V. Ex.ªs.
A morte entregou-o ao juízo da história e à admiração do país.
A colocação do seu busto no átrio do Tribunal de Santarém entrega a sua memória, como professor e como ministro, à guarda e carinho dos seus conterrâneos. Ninguém saberia velar mais devotadamente por ela.

III - O novo edifício do Tribunal de Santarém alberga a partir de hoje, os chamados serviços de Justiça. E ao lado destes se encontram também as instalações dos advogados.
Pode parecer que a justiça é uma função que a certos órgãos pertence e que a eles cabe defini-la ou defendê-la. E não é assim. Os órgãos da justiça, por excelência, são os Tribunais porque lhes compete, em última instância, castigar os erros, remediar os males, assegurar os direitos, numa palavra definir a ordem legítima, quando a composição dos interesses ou o desencontro das pretensões torna duvidosa ou controvertida a sua recíproca posição. Mas os tribunais não criam, por acto da sua vontade a justiça; apenas a definem. Esta é-lhes anterior, como é anterior ao Estado, na sua função de legislador, ou na sua administração. No Estado, a justiça é um dever; na sociedade, no homem, uma aspiração. A aspiração de justiça, reflexo da própria justiça, é motor do funcionamento dos tribunais. Daí poder dizer-se que os advogados participam numa função ou até exercem uma função. São como que intermediários entre a aspiração de justiça da população e a realização da justiça pelos tribunais. Intermediários obrigatórios, note-se, e por força de lei. Esta característica separa a sua profissão do simples mister lucrativo. É de interesse público que a aspiração de justiça seja convenientemente apresentada, que a defesa penal seja proficiente, que a oposição de interesses seja tecnicamente esclarecida pelos seus titulares. Vão já longe e quase se perderam na poeira do tempo as tentativas de supressão dos intermediários qualificados entre o poder público em geral e os tribunais. Mais próxima, e também com exemplos no passado, se nos mostra a tentativa de rígida funcionarização da advocacia. É esse o figurino de extrema socialização que o oriente europeu apresenta.
Aos advogados cabe a dignidade duma função na administração da justiça; mas convém ao interesse público a liberdade e independência no seu exercício. A liberdade e independência da advocacia têm por isso, a característica de serem asseguradas mais no interesse da própria justiça, do que por defesa de regalias particulares. É esta a directiz que ressalta da organização da advocacia portuguesa, devida à concepção do Doutor Manuel Rodrigues.
Importa, no exercício da sua missão, que os advogados acatem uma tríplice fidelidade: fidelidade ao direito, em primeiro lugar, fidelidade aos clientes, seguidamente; fidelidade em relação aos próprios colegas. Neste esquema se condensa a deontologia da profissão.
A organização legal da advocacia tem em vista facilitar, pelo amparo e pela disciplina, o cumprimento da sua nobre missão, tanto mais nobre, quanto mais difícil - pelas tentações que se lhe opõem - o esforço para alcançar a verdadeira liberdade e independência no seu exercício.
A independência perante o poder e a autoridade é, antes de mais, uma consequência da independência do próprio poder judicial. A subordinação dos tribunais é tão maléfica como a advocacia política quando não suceda ser uma a causa da outra.
A independência perante os clientes é a elevação do simples mister técnico e lucrativo à dignidade de função auxiliar da justiça.
A independência perante os julgadores é a garantia da livre manifestação das aspirações de justiça que ao tribunal cumpre apreciar. Esta independência assegura-a a lei, mas não a pode criar. Tem de ser o fruto da consciência individual e colectiva dos próprios advogados. À Ordem dos Advogados cabe favorecer e fortalecer a formação dessa consciência colectiva.

Meus Senhores;
A inauguração de um tribunal respeita sobretudo ao Poder Judicial e à Câmara Municipal da sua sede. Mais ainda do que a cortesia do convite que me foi dirigido pela Câmara e secundado pelos Senhores Magistrados, impunha-me a comparência a esta sessão o dever de participar na singela homenagem ao Doutor Manuel Rodrigues, que com esta inauguração coincide, quer como seu antigo aluno, quer como seu confrade na Faculdade de Direito de Lisboa, quer ainda como seu sucessor no Ministério da Justiça.
Não poderia, porém, terminar, sem agradecer todas as manifestações de apreço em que V. Ex.ªs me envolveram na demasia que a gentileza lhes sugeriu.


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