«Dilatação da Fé e do Império…» Luís de Camões exprimiu nesta fórmula o
sentido da gesta grandiosa dos portugueses, sintetizando a sua causa e a sua
finalidade.
A similitude de um motor religioso favoreceu a relacionação dos
descobrimentos e de expansão em novas terras com as Cruzadas que
movimentaram a Europa cristã em uma política guerreira, – ofensiva contra o
Islão ou defensiva da Terra Santa.
A epopeia universal que Portugal concebeu e realizou isoladamente, seguido
mas não acompanhado pela Espanha, teria sido uma nova Cruzada, continuação
das Cruzadas dirigidas contra os maometanos para libertação dos Lugares
Santos.
Não me seduz, como que intuitivamente, esta qualificação por analogia.
Os descobrimentos não foram, por sua natureza, uma expedição guerreira; mas,
antes, fundamentalmente pacífica. Foram uma acção, uma revolução da
experiência; foram, nos seus efeitos, o mais poderoso contributo para a
universalização da cultura, para a abertura do homem para o homem, de todas
as terras e de todas as raças.
As Cruzadas, como feito histórico, saldaram-se em um relativo malogro,
enquanto os efeitos da epopeia portuguesa perduraram e perduram, porque são
actuais.
Para o compreender, parece-me que bastará traduzir em linguagem mais moderna
o conteúdo essencial da frase do nosso Épico: «dilatação da Fé e do
Império», pedindo vénia, previamente, para insistir, olvidando a minha
insuficiência, na diferenciação entre Cruzadas e os descobrimentos e
expansão portuguesa no Mundo.
As Cruzadas iniciam-se no final do séc. XI; na Península Ibérica o mesmo
movimento defensivo da Cristandade contra os muçulmanos invasores começa com
a Reconquista a partir do séc. VIII. A Reconquista em Portugal e as Cruzadas
da Europa à Terra Santa findam quasi contemporaneamente.
As Cruzadas da Europa cristã só tiveram lugar, por iniciativa do Papado,
quando um perigo mais forte abalou a segurança da Europa, quando os turcos
lograram subjugar grande parte da Ásia Menor, agravando as condições de
subsistência das populações cristãs, Jerusalém e Antioquia, tinham caído em
poder dos turcos. Por outro lado, no ocidente, Almançor capitaneando
poderoso exército tentava conquistar de novo para o Islão toda a Hispânia.
No ocidente da Europa e do Mediterrâneo a defesa da Cristandade continuou a
ser a Reconquista na Península Ibérica, conduzida pelos reinos peninsulares;
as Cruzadas, como expedições guerreiras ofensivas dirigiam-se para o
Oriente.
Em Portugal a Reconquista terminou no reinado de D. Afonso III, e em Espanha
acabará mais tarde com a conquista de Granada quando já se delineara,
preparara e iniciara a era dos descobrimentos portugueses.
2. No seu planejamento, os descobrimentos não eram uma guerra, nem visavam
uma conquista. Procuravam a aproximação com os cristãos e não cristãos dos
mundos desconhecidos, ou mal conhecidos.
É neste sentido que constituiria uma dilatação da Fé e do Império.
E o que em especial eu desejava realçar era que, no modo de ser e conviver
na comunidade nacional e internacional se manteve esse espírito na epopeia
portuguesa, mesmo quando foi fortemente abalado em outras nações por uma
feição pagã do Renascimento e pelo dissídio da Reforma protestante.
3. A Renascença é um período de renovação em todos os países da Europa
apresentando, porventura, algumas marcantes diferenças em Portugal, em
especial – porque ao tema me quero referir – no que toca ao direito. E o
Direito não é aspecto de somenos importância na condução da política da
expansão portuguesa.
Nos primeiros tempos do Reino de Portugal, o poder central esgotava-se no
esforço da guerra, e as pequenas comunidades ou concelhos viviam sobre si
isoladas. O Direito era, em grande parte, costumeiro, oriundo do direito
romano vulgar, na feição que lhe dera o Código visigótico, alterado ou
acrescido consoante as mutáveis circunstâncias e necessidades da vida
colectiva. As leis gerais eram escassas e só se multiplicaram a partir do
séc. XIII.
Este século – o século XIII – foi um século de pujança intelectual; a
instrução e a cultura vicejavam à sombra da Igreja, nos mosteiros, nas
escolas das Catedrais e nas Universidades.
A Universidade de Paris fazia renascer, cristianizando-a, a filosofia de
Aristóteles; em Bolonha floresciam os estudos de direito.
No campo do direito estudava-se o Direito Canónico e o Direito romano. O
direito romano, sobretudo através das glosas de Acúrsio e de Bártolo e dos
seus seguidores; e fundamentalmente no que respeitava ao direito privado; no
direito canónico se incluía, para além do direito próprio da Igreja, a
fundamentação do direito público.
Ora, no direito público da Roma imperial o relacionamento entre o Império e
os bárbaros era ou de guerra ou de exclusão, e no interior do Império o
poder do imperador era autocrático e ilimitado.
Os limites do poder político foram, ao invés, delineados pelo pensamento
cristão e a Igreja assumiu a função de os definir.
Entretanto, se os reinos peninsulares se entregavam ao esforço militar da
reconquista, no centro da Europa surgiam as tentativas para renovar as
estruturas do Império; ao Império de Carlos Magno sucede o Império
romano-germânico. E o problema dos limites do poder político veio a
colocar-se na confrontação entre os imperadores e o Papado. Posta a questão
dos limites do poder político como uma questão de partilha de poderes, o
confronto era inevitável.
Os abusos seriam recíprocos e as soluções sempre difíceis.
Esses confrontos verificaram-se em toda a Europa cristã mas no âmbito do
Império a recepção do direito romano iria agora favorecer a reformulação do
poder absoluto do Estado.
Em Portugal houve frequentes disputas dos Reis com a Igreja, mas, na sua
virulência, não se pôs em causa a limitação do poder real.
E, contudo, tinha também em Portugal que verificar-se o fortalecimento do
poder central, para servir de apoio à progressiva estruturação da unidade da
nação; as leis gerais multiplicaram-se, os juizes letrados (legistas
formados na escola de Bolonha) substiuiam ou sobrepunham-se aos juizes
electivos e o direito romano (no campo do direito privado) preenchia as
extensas lacunas das leis e costumes.
Esta evolução culminou rapidamente na publicação da primeira codificação do
direito português.
As Ordenações Afonsinas foram a primeira codificação de leis nacionais na
Europa e as próprias Ordenações Manuelinas, reforma das anteriores, precedem
de meio século a publicação da Constituição Carolina, de tão relevante
importância na história do direito germânico.
Os limites do poder político são regulamentados no Livro I das Ordenações,
ainda sob a forma de divisão de poderes entre o Estado e a Igreja.
A fundamentação da limitação do poder político foi versada predominantemente
em livros didáticos, destinados à educação de príncipes.
Quando se inicia a longa disputa entre o Império e o Papado, essa literatura
veio a tomar maior significado.
Dentre os livros dessa espécie tiveram grande relevo o «Secretus
secretorum», de autor desconhecido, mas que foi atribuido a Aristóteles, o
«De regimine Principium ad regem Cypri» de S. Tomás de Aquino e o «De
regimine Principium» de Frei Gil de Roma, todos eles conhecidos em Portugal
onde influenciaram a literatura nacional congénere para a qual contribuiram
príncipes portugueses da dinastia de Avis.
Surgiram assim em Portugal o «Speculum Regis» de Frei Álvaro Pais (ou
Pelágio) que foi Bispo de Silves, o «Leal Conselheiro» do Rei D. Duarte, o
«Livro da Virtuosa Bemfeitoria» do Infante D. Pedro e o «Tratado das
Virtudes que ao Rei pertencem» de Vasco Fernandes de Lucena; e a mesma
orientação se mantém ainda no livro «De Republica gubernanda per regem», de
Lopes Rebelo.
E, contudo, já nesta época, a pretensão à ilimitção do poder político, à
desvinculação do Estado da ética ribombava na Europa do Renascimento.
É significativo que a obra de Marsílio de Pádua «Defensor Pacis» que
longamente ecoou no século XIV (foi publicado no primeiro quartel deste
século) foi, por encargo do Papa contestado e refutado pelo Bispo Álvaro
Pais, logo de seguida.
E a figuração do poder político que Maquiavel concebe no seu famoso livro «O
Príncipe», exasperação do pensamento renascentista de feição pagã, foi
criticado, quatro anos depois de publicado, pelo Bispo de Silves, D.
Jerónimo Osório, conselheiro influente na corte portuguesa nos reinados de
D. Manuel e de D. João III, no seu livro «De Nobilitate Cristiana».
A Renascença, que a cultura portuguesa seguiu e fomentou, não tomou
orientação oposta ao pensamento cristão no campo do direito português,
público ou privado.
4. A presença de Portugal nos novos mundos toma feição diferente consoante
as terras descobertas se tornavam colónias de povoamento, ou aquela presença
se destinava especialmente a assegurar a manutenção da paz, da navegação e
do comércio.
No Oriente, nas Índias, esperavam os portugueses encontrar povos cristãos,
os quais seriam seus aliados naturais; mas não buscavam a guerra com povos
não cristãos. As instruções régias eram no sentido de lograr um entendimento
e modo de convivência para implantação do comércio frutuoso para ambas as
partes. Desconfiavam dos muçulmanos mas não tomavam a iniciativa da guerra
senão perante seguras mostras de hostilidade.
Não pretendiam substituir-se aos soberanos locais, mas tratar com eles.
Concomitantemente envangelizavam por toda a parte onde chegaram e tomaram
mesmo o encargo dessa longínqua envangelização.
A envangelização foi mais intensa nos territórios que ocupou e neles se
verificou uma constante da colonização portuguesa: o respeito pela liberdade
de todos, a conversão à mesma fé, a subordinação ao mesmo direito. A
igualdade como homens (como cidadãos, se diria hoje) constituiu um exemplo
que tardou – e talvez ainda tarde – em ser compreendido e seguido.
Nas terras ou ilhas desertas e nos territórios povoados de gentio, isto é,
de populações primitivas, a colonização foi necessariamente de povoamento.
Foi assim nos Arquipélagos da Madeira, dos Açores, e depois de Cabo Verde,
para os quais seguiram de imediato os primeiros colonos. E foi assim no
Brasil.
Essas colónias de povoamento foram desde o princípio parte integrante de
Portugal; os seus habitantes oriundos da Metrópole ou de alhures, bem como
os indígenas no Brasil eram todos homens livres.
A exploração dos novos territórios não foi entregue a mercadores ou
companhias de comércio, como depois sucedeu em outras formas de colonização
que combateram e concorreram com a colonização portuguesa. Os novos
territórios integraram-se na orgânica do Estado e na sua ordenação jurídica.
A obra de aculturação e envangelização, como a instrução e assistência, era
assegurada no Brasil pela Igreja, mormente através da Companhia de Jesus. A
ela coube, por isso também, a defesa dos índios contra os abusos da
violência ou da cobiça dos colonos. A sujeição dos índios era a sua tutela,
o modo de prosseguir na sua elevação como homens, na sua conversão como
cristãos, na sua assimilação política.
No sentido pejorativo que depois tomou, o Brasil como as demais possessões
ultramarinas não foi colónia. Desde o princípio se transplantaram para o
Brasil as leis e instituições portuguesas, só completadas por providências
complementares exigidas pelas circunstâncias.
As Ordenações do Reino – primeiramente as Ordenações Manuelinas e depois as
Filipinas – vigoraram desde logo no Brasil. E acontece até que, por
condizerem com idêntica orgânica institucional se mantiveram no Brasil em
vigor muito depois de abrogadas em Portugal; em matéria de direito civil
vigoraram no Brasil até ao primeiro quartel deste século (XX), pois só foram
substituidas com a publicação do Código Civil Brasileiro, em 1916. E é de
notar que o Código Civil Brasileiro se manteve mais fiel à tradição jurídica
portuguesa que o próprio Código civil Português.
A organização política e administrativa molda-se sobre as instituições
portuguesas: os colonos eregem e organizam os primeiros concelhos. O governo
central – governo geral do Brasil – cabe ao governador como representante do
Rei.
Mas ao lado do Governador Geral foi colocado como regedor das justiças um
Ouvidor geral, que lhe não estava subordinado, garantindo assim a
independência dos tribunais.
Aos juizes dos concelhos, sobrepunham-se os juizes de direito e a estes os
Tribunais da Relação que existiram, primeiro na Baía, depois também no Rio
de Janeiro, e mais tarde no Maranhão e Pernambuco.
Do mesmo modo procedeu Portugal no Oriente onde foi criada a Relação de Goa
com jurisdição em toda a África Oriental e mais tarde as Relações de Luanda
e Lourenço Marques que, a par das Relações de Lisboa, Porto e Ponta Delgada,
formavam o elenco dos tribunais superiores.
Com D. João VI, já elevado o Brasil a Reino, existiu ainda, como Supremo
Tribunal de Justiça diferente do Supremo Tribunal em Portugal, a Casa de
Suplicação do Rio de Janeiro (denominação anterior à Reforma Liberal).
Impossível, em breve e desajeitado apontamento iluminar, como seria mister,
a acção através da obra, os descobrimentos e a expansão portuguesa através
dos seus efeitos.
A acção individual dos homens, como a acção colectiva dos povos têm um mesmo padrão de valor e de perdurabilidade. O homem, como um povo, tanto mais se eleva e se realiza, quanto mais se dá.
Portugal forjou a sua alma e o seu destino na obra dos descobrimentos. Agiu com conhecimento e com prudência, com pertinácia e com sacrifício, para alcançar efeitos ou fins que o transcendiam porque serviam e serviram toda a humanidade. A Obra dos homens é toda a sua vida; a obra dos povos é toda a sua história.
a- Que o exemplo do que fomos e do que fizemos permaneça como farol que nos esclareça e eduque, para que Portugal possa ser o que deve ser.(1)
b- Que o exemplo do que foi permaneça para que possamos ser colectivamente o que fomos.(2)
(1)-Frase final no texto publicado no vol. XXXVIII, fasc 85-86, Revista Bracara Augusta, Braga, 1984
(2)-Frase final nas três cópias dos textos manuscritos do Autor.