A função do direito na dilatação da fé e do império: Conferência em Braga, em 1984

 

«Dilatação da Fé e do Império…» Luís de Camões exprimiu nesta fórmula o sentido da gesta grandiosa dos portugueses, sintetizando a sua causa e a sua finalidade.
A similitude de um motor religioso favoreceu a relacionação dos descobrimentos e de expansão em novas terras com as Cruzadas que movimentaram a Europa cristã em uma política guerreira, – ofensiva contra o Islão ou defensiva da Terra Santa.
A epopeia universal que Portugal concebeu e realizou isoladamente, seguido mas não acompanhado pela Espanha, teria sido uma nova Cruzada, continuação das Cruzadas dirigidas contra os maometanos para libertação dos Lugares Santos.
Não me seduz, como que intuitivamente, esta qualificação por analogia.
Os descobrimentos não foram, por sua natureza, uma expedição guerreira; mas, antes, fundamentalmente pacífica. Foram uma acção, uma revolução da experiência; foram, nos seus efeitos, o mais poderoso contributo para a universalização da cultura, para a abertura do homem para o homem, de todas as terras e de todas as raças.
As Cruzadas, como feito histórico, saldaram-se em um relativo malogro, enquanto os efeitos da epopeia portuguesa perduraram e perduram, porque são actuais.
Para o compreender, parece-me que bastará traduzir em linguagem mais moderna o conteúdo essencial da frase do nosso Épico: «dilatação da Fé e do Império», pedindo vénia, previamente, para insistir, olvidando a minha insuficiência, na diferenciação entre Cruzadas e os descobrimentos e expansão portuguesa no Mundo.
As Cruzadas iniciam-se no final do séc. XI; na Península Ibérica o mesmo movimento defensivo da Cristandade contra os muçulmanos invasores começa com a Reconquista a partir do séc. VIII. A Reconquista em Portugal e as Cruzadas da Europa à Terra Santa findam quasi contemporaneamente.
As Cruzadas da Europa cristã só tiveram lugar, por iniciativa do Papado, quando um perigo mais forte abalou a segurança da Europa, quando os turcos lograram subjugar grande parte da Ásia Menor, agravando as condições de subsistência das populações cristãs, Jerusalém e Antioquia, tinham caído em poder dos turcos. Por outro lado, no ocidente, Almançor capitaneando poderoso exército tentava conquistar de novo para o Islão toda a Hispânia. No ocidente da Europa e do Mediterrâneo a defesa da Cristandade continuou a ser a Reconquista na Península Ibérica, conduzida pelos reinos peninsulares; as Cruzadas, como expedições guerreiras ofensivas dirigiam-se para o Oriente.
Em Portugal a Reconquista terminou no reinado de D. Afonso III, e em Espanha acabará mais tarde com a conquista de Granada quando já se delineara, preparara e iniciara a era dos descobrimentos portugueses.

2. No seu planejamento, os descobrimentos não eram uma guerra, nem visavam uma conquista. Procuravam a aproximação com os cristãos e não cristãos dos mundos desconhecidos, ou mal conhecidos.
É neste sentido que constituiria uma dilatação da Fé e do Império.
E o que em especial eu desejava realçar era que, no modo de ser e conviver na comunidade nacional e internacional se manteve esse espírito na epopeia portuguesa, mesmo quando foi fortemente abalado em outras nações por uma feição pagã do Renascimento e pelo dissídio da Reforma protestante.

3. A Renascença é um período de renovação em todos os países da Europa apresentando, porventura, algumas marcantes diferenças em Portugal, em especial – porque ao tema me quero referir – no que toca ao direito. E o Direito não é aspecto de somenos importância na condução da política da expansão portuguesa.
Nos primeiros tempos do Reino de Portugal, o poder central esgotava-se no esforço da guerra, e as pequenas comunidades ou concelhos viviam sobre si isoladas. O Direito era, em grande parte, costumeiro, oriundo do direito romano vulgar, na feição que lhe dera o Código visigótico, alterado ou acrescido consoante as mutáveis circunstâncias e necessidades da vida colectiva. As leis gerais eram escassas e só se multiplicaram a partir do séc. XIII.
Este século – o século XIII – foi um século de pujança intelectual; a instrução e a cultura vicejavam à sombra da Igreja, nos mosteiros, nas escolas das Catedrais e nas Universidades.
A Universidade de Paris fazia renascer, cristianizando-a, a filosofia de Aristóteles; em Bolonha floresciam os estudos de direito.
No campo do direito estudava-se o Direito Canónico e o Direito romano. O direito romano, sobretudo através das glosas de Acúrsio e de Bártolo e dos seus seguidores; e fundamentalmente no que respeitava ao direito privado; no direito canónico se incluía, para além do direito próprio da Igreja, a fundamentação do direito público.
Ora, no direito público da Roma imperial o relacionamento entre o Império e os bárbaros era ou de guerra ou de exclusão, e no interior do Império o poder do imperador era autocrático e ilimitado.
Os limites do poder político foram, ao invés, delineados pelo pensamento cristão e a Igreja assumiu a função de os definir.
Entretanto, se os reinos peninsulares se entregavam ao esforço militar da reconquista, no centro da Europa surgiam as tentativas para renovar as estruturas do Império; ao Império de Carlos Magno sucede o Império romano-germânico. E o problema dos limites do poder político veio a colocar-se na confrontação entre os imperadores e o Papado. Posta a questão dos limites do poder político como uma questão de partilha de poderes, o confronto era inevitável.
Os abusos seriam recíprocos e as soluções sempre difíceis.
Esses confrontos verificaram-se em toda a Europa cristã mas no âmbito do Império a recepção do direito romano iria agora favorecer a reformulação do poder absoluto do Estado.
Em Portugal houve frequentes disputas dos Reis com a Igreja, mas, na sua virulência, não se pôs em causa a limitação do poder real.
E, contudo, tinha também em Portugal que verificar-se o fortalecimento do poder central, para servir de apoio à progressiva estruturação da unidade da nação; as leis gerais multiplicaram-se, os juizes letrados (legistas formados na escola de Bolonha) substiuiam ou sobrepunham-se aos juizes electivos e o direito romano (no campo do direito privado) preenchia as extensas lacunas das leis e costumes.
Esta evolução culminou rapidamente na publicação da primeira codificação do direito português.
As Ordenações Afonsinas foram a primeira codificação de leis nacionais na Europa e as próprias Ordenações Manuelinas, reforma das anteriores, precedem de meio século a publicação da Constituição Carolina, de tão relevante importância na história do direito germânico.
Os limites do poder político são regulamentados no Livro I das Ordenações, ainda sob a forma de divisão de poderes entre o Estado e a Igreja.
A fundamentação da limitação do poder político foi versada predominantemente em livros didáticos, destinados à educação de príncipes.
Quando se inicia a longa disputa entre o Império e o Papado, essa literatura veio a tomar maior significado.
Dentre os livros dessa espécie tiveram grande relevo o «Secretus secretorum», de autor desconhecido, mas que foi atribuido a Aristóteles, o «De regimine Principium ad regem Cypri» de S. Tomás de Aquino e o «De regimine Principium» de Frei Gil de Roma, todos eles conhecidos em Portugal onde influenciaram a literatura nacional congénere para a qual contribuiram príncipes portugueses da dinastia de Avis.
Surgiram assim em Portugal o «Speculum Regis» de Frei Álvaro Pais (ou Pelágio) que foi Bispo de Silves, o «Leal Conselheiro» do Rei D. Duarte, o «Livro da Virtuosa Bemfeitoria» do Infante D. Pedro e o «Tratado das Virtudes que ao Rei pertencem» de Vasco Fernandes de Lucena; e a mesma orientação se mantém ainda no livro «De Republica gubernanda per regem», de Lopes Rebelo.
E, contudo, já nesta época, a pretensão à ilimitção do poder político, à desvinculação do Estado da ética ribombava na Europa do Renascimento. É significativo que a obra de Marsílio de Pádua «Defensor Pacis» que longamente ecoou no século XIV (foi publicado no primeiro quartel deste século) foi, por encargo do Papa contestado e refutado pelo Bispo Álvaro Pais, logo de seguida.
E a figuração do poder político que Maquiavel concebe no seu famoso livro «O Príncipe», exasperação do pensamento renascentista de feição pagã, foi criticado, quatro anos depois de publicado, pelo Bispo de Silves, D. Jerónimo Osório, conselheiro influente na corte portuguesa nos reinados de D. Manuel e de D. João III, no seu livro «De Nobilitate Cristiana».
A Renascença, que a cultura portuguesa seguiu e fomentou, não tomou orientação oposta ao pensamento cristão no campo do direito português, público ou privado.

4. A presença de Portugal nos novos mundos toma feição diferente consoante as terras descobertas se tornavam colónias de povoamento, ou aquela presença se destinava especialmente a assegurar a manutenção da paz, da navegação e do comércio.
No Oriente, nas Índias, esperavam os portugueses encontrar povos cristãos, os quais seriam seus aliados naturais; mas não buscavam a guerra com povos não cristãos. As instruções régias eram no sentido de lograr um entendimento e modo de convivência para implantação do comércio frutuoso para ambas as partes. Desconfiavam dos muçulmanos mas não tomavam a iniciativa da guerra senão perante seguras mostras de hostilidade.
Não pretendiam substituir-se aos soberanos locais, mas tratar com eles. Concomitantemente envangelizavam por toda a parte onde chegaram e tomaram mesmo o encargo dessa longínqua envangelização.
A envangelização foi mais intensa nos territórios que ocupou e neles se verificou uma constante da colonização portuguesa: o respeito pela liberdade de todos, a conversão à mesma fé, a subordinação ao mesmo direito. A igualdade como homens (como cidadãos, se diria hoje) constituiu um exemplo que tardou – e talvez ainda tarde – em ser compreendido e seguido.
Nas terras ou ilhas desertas e nos territórios povoados de gentio, isto é, de populações primitivas, a colonização foi necessariamente de povoamento. Foi assim nos Arquipélagos da Madeira, dos Açores, e depois de Cabo Verde, para os quais seguiram de imediato os primeiros colonos. E foi assim no Brasil.
Essas colónias de povoamento foram desde o princípio parte integrante de Portugal; os seus habitantes oriundos da Metrópole ou de alhures, bem como os indígenas no Brasil eram todos homens livres.
A exploração dos novos territórios não foi entregue a mercadores ou companhias de comércio, como depois sucedeu em outras formas de colonização que combateram e concorreram com a colonização portuguesa. Os novos territórios integraram-se na orgânica do Estado e na sua ordenação jurídica. A obra de aculturação e envangelização, como a instrução e assistência, era assegurada no Brasil pela Igreja, mormente através da Companhia de Jesus. A ela coube, por isso também, a defesa dos índios contra os abusos da violência ou da cobiça dos colonos. A sujeição dos índios era a sua tutela, o modo de prosseguir na sua elevação como homens, na sua conversão como cristãos, na sua assimilação política.
No sentido pejorativo que depois tomou, o Brasil como as demais possessões ultramarinas não foi colónia. Desde o princípio se transplantaram para o Brasil as leis e instituições portuguesas, só completadas por providências complementares exigidas pelas circunstâncias.
As Ordenações do Reino – primeiramente as Ordenações Manuelinas e depois as Filipinas – vigoraram desde logo no Brasil. E acontece até que, por condizerem com idêntica orgânica institucional se mantiveram no Brasil em vigor muito depois de abrogadas em Portugal; em matéria de direito civil vigoraram no Brasil até ao primeiro quartel deste século (XX), pois só foram substituidas com a publicação do Código Civil Brasileiro, em 1916. E é de notar que o Código Civil Brasileiro se manteve mais fiel à tradição jurídica portuguesa que o próprio Código civil Português.
A organização política e administrativa molda-se sobre as instituições portuguesas: os colonos eregem e organizam os primeiros concelhos. O governo central – governo geral do Brasil – cabe ao governador como representante do Rei.
Mas ao lado do Governador Geral foi colocado como regedor das justiças um Ouvidor geral, que lhe não estava subordinado, garantindo assim a independência dos tribunais.
Aos juizes dos concelhos, sobrepunham-se os juizes de direito e a estes os Tribunais da Relação que existiram, primeiro na Baía, depois também no Rio de Janeiro, e mais tarde no Maranhão e Pernambuco.
Do mesmo modo procedeu Portugal no Oriente onde foi criada a Relação de Goa com jurisdição em toda a África Oriental e mais tarde as Relações de Luanda e Lourenço Marques que, a par das Relações de Lisboa, Porto e Ponta Delgada, formavam o elenco dos tribunais superiores.
Com D. João VI, já elevado o Brasil a Reino, existiu ainda, como Supremo Tribunal de Justiça diferente do Supremo Tribunal em Portugal, a Casa de Suplicação do Rio de Janeiro (denominação anterior à Reforma Liberal). Impossível, em breve e desajeitado apontamento iluminar, como seria mister, a acção através da obra, os descobrimentos e a expansão portuguesa através dos seus efeitos.

A acção individual dos homens, como a acção colectiva dos povos têm um mesmo padrão de valor e de perdurabilidade. O homem, como um povo, tanto mais se eleva e se realiza, quanto mais se dá.

Portugal forjou a sua alma e o seu destino na obra dos descobrimentos. Agiu com conhecimento e com prudência, com pertinácia e com sacrifício, para alcançar efeitos ou fins que o transcendiam porque serviam e serviram toda a humanidade. A Obra dos homens é toda a sua vida; a obra dos povos é toda a sua história.

a- Que o exemplo do que fomos e do que fizemos permaneça como farol que nos esclareça e eduque, para que Portugal possa ser o que deve ser.(1)

b- Que o exemplo do que foi permaneça para que possamos ser colectivamente o que fomos.(2)

 

(1)-Frase final no texto publicado no vol. XXXVIII, fasc 85-86, Revista Bracara Augusta, Braga, 1984
(2)-Frase final nas três cópias dos textos manuscritos do Autor.

 


 

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