Homenagem ao Cónego Dr. Francisco Correia Pinto, em 11 de Fevereiro de 1954

 

Eminentíssimo Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa,
Exm.º e Revm.º Senhor Bispo do Porto,
Meus Senhores:

Quis Sua Excelência Reverendíssima o Senhor Bispo do Porto, sob o alto patrocínio de Sua Eminência o Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa, honrar a memória do Cónego Correia Pinto, exaltando-o na sua obra, e na sua vida, engrandecida pela morte, apontando-o como clarão e exemplo que as trevas da morte não extinguiram. À recordação do Cónego Correia Pinto se ajustam melhor que quaisquer outras, as suas próprias palavras: "Recordar estas vidas de recorte acentuadamente cristão, o mesmo devia ser que segui-las no caminho que fizeram. Luzes cada vez mais raras no meio de sombras cada vez mais espessas. A própria morte dá-lhes mais relevo, vigor e eficiência, como o vento faz às chamas na escuridão da noite."
Concedeu-me, generosamente, Sua Excelência Reverendíssima o privilégio de usar da palavra nesta sessão de saudade. Aceitei-o, como se viesse ainda, ao falar do Cónego Correia Pinto, acolher-me ao calor da sua amizade, sem me dar conta de como é difícil, se não compreender, explicar na sua simplicidade, a sua obra e o seu espírito.
A simplicidade é como a luz; só ela pode iluminar-se a si mesma. Decompô-la é traí-la.
O Cónego Correia Pinto morreu; a morte é companheira da vida. Mas não é separada dele, que a sua obra perdura. Há obras humanas que se fazem e modelam na ânsia de criar imortalidade fora de nós; mas há também uma ânsia de imortalidade que vive em nós, e que, dos espíritos eleitos, se comunica directamente às próprias obras. Tem este carácter a obra do Cónego Correia Pinto; mais do que os parcos escritos que deixou publicar, a sua obra era ele mesmo.
Perdoar-se-me-á assim, ao evocar a personalidade do Dr. Correia Pinto, a pretensão ambiciosa de falar da sua obra? Será apenas um testemunho medíocre da sua irradiação, pois que não saberia fazer a análise do seu valor. Sirva-me de desculpa, a convicção de que para a compreender não bastará a inteligência fria. Há verdades que só o sentimento alcança.

II - O Cónego Correia Pinto foi um semeador de beleza. A oratória serviu-lhe como uma das formas - a maior - de a exteriorizar.
Semeador de beleza, disse eu. A beleza é como a verdade e o bem um conceito transcendental. A razão não cria a verdade, descobre-a; a vontade não é o bem, procura-o e quere-o; o sentimento não produz a beleza, sente-a e transmite-a.
Só o desmedido orgulho humano se compraz em alterar, não poucas vezes, a realidade das coisas, e enganando-se a si próprio, destrói a objectividade do bem, da beleza e da verdade para, sobre o nada, se forjar na mísera plenitude da sua impotência criadora, uma verdade, se oferecer pelo arbítrio da sua vontade, uma moral, se aureolar duma beleza toda feita de irrealidade.
O nada não é susceptível de ser objecto de pensamento, de vontade ou de sentido estético. A beleza não pertence ao artista; este apenas lhe dá forma, porque previamente a sente e compreende. Esta compreensão, esta correspondência subjectiva à beleza das coisas, constitui, se é lícito exprimir-me assim, um modo especial de conhecimento que nos ajuda a vislumbrar a riqueza de alma que possui.
A verdade e o bem são uma tarefa. A verdade escava-se angustiosamente nas profundidades da incompreensão, com esforço tortuante da inteligência, sem que delas arranque mais que magro quinhão do seu conhecimento; o bem procura-se afanosamente na aspereza do caminho, por entre as fraquezas da vontade e as perplexidades do espírito. Só a beleza se revela e se recebe como que numa comunhão do espírito com a eternidade. Aparece como uma visão e como uma visão se contempla. Semelha assim aquela apreensão directa das coisas que na inteligência humana só surge como um fogo fátuo a bruxulear intermitente e inseguro, - e no entanto é fugaz e fugidia participação no entendimento angélico.
Estranha e misteriosa semelhança esta da inteligência sobrehumana e do modo de apreensão da beleza ... Talvez neste mistério esteja a explicação da raridade daqueles a quem se revela no seu esplendor. O Cónego Correia Pinto embebera nela o seu espírito como se o penetrasse uma radiosa projecção da graça de Deus: recebera-a como dom gratuito e como dom a espalhava ao derredor ...
Ouvi-o pregar apenas uma vez. Foi nas exéquias solenes celebradas na Sé do Porto quando do falecimento de Sua Santidade o Papa Pio XI. A sua voz, profunda e doce, acordava no auditório plangências de dor, ao evocar a morte, espargindo, por entre dobres a finados, nas naves do templo, a tristeza do fim das coisas para, em seguida, o guiar mansamente, com a alma de joelhos, ao triunfo glorioso sobre a vida e sobre a morte - sobre a vida que é caminho e sobre a morte que é portal de eternidade. E não me surpreendeu. Engrandecia-o apenas, sem o alterar, a magestade do lugar e a elevação do tema. O convívio diário ensinara-me já a atracção da sua inteligência, a penetração da sua comunicabilidade, o encantamento que transmitia, como que transfigurando-as, as coisas que perpassavam pelo seu espírito.
A mesma augusta simplicidade, o mesmo fulgor sereno e forte da verdade, quer no púlpito em cânticos de glória, quer em conversa amena, na narração de elegância discreta, na confidência sobriamente amorável, ou nas palavras ainda palpitantes do sentimento que traduziam ou a cintilar na ironia que criavam.
No Dr. Correia Pinto a arte era, singelamente, o testemunho do seu espírito.

III - Um testemunho supõe uma realidade e é o reconhecimento da sua verdade. A falta de adequação do testemunho à realidade, da beleza à verdade da criação, é uma mentira e uma falsidade. Desgarrar a beleza de toda a substância, autonomizando-a, utilizá-la como raio de luz, sem sol de que provenha, é criar uma fantástica realidade irreal, em que tão frequentemente se deleita certo modernismo na arte. Ortega y Gasset classificou esta tendência de desumanização da arte e explicou-a pela simples mudança de perspectiva. As coisas estão, em si mesmas, sujeitas a uma ordem natural, hierarquizadas no todo a que pertencem. Uma arte que destrói essa ordenação e altera essa hierarquia pode criar-se a ilusão de forjar lampejos de beleza porque, tanto a vontade, como a ciência, como a beleza por um acto de rebeldia do orgulho maléfico podem ser instrumentos de tirania, de erro ou de corrupção.
Mas só o respeito pela ordem criada, donde emana a beleza, dá dignidade à arte. A inferiorização do que é mais alto ou a exaltação do que é inferior na estrutura universal redunda numa deformação ou numa rebeldia. A arte é, então, forma a contradizer a deformação, e embelezar o mal.
De todas as artes, a oratória é a mais próxima da vida e talvez por isso a mais perigosa nos seus desvios. O expressionismo da pintura e da escultura afaga sobretudo os sentidos; a música delicia o espírito; a arquitectura faz vibrar a inteligência, mas a palavra a tudo se acomoda tudo cria, actuando sobre o homem em corpo e alma, na sensiblidade e na razão.
A beleza contém graus, pela sua correspondência ao objecto ou tema, e neles se reflecte assim a hierarquia duma ordem. Sem cair na retórica vazia, feita do torpel de palavras sonoras e deslocadas, ou impertinentes e sem sentido, a arte preocupa-se com o adorno da frase, realçando pormenores, prolongando o virtuosismo da cadência do discurso, e amplificando, ao espelhá-lo em imagens, o próprio tema.
Há, porém, um estilo que renuncia a todo o adorno para deixar refulgir na sua limpidez e na sua austera magestade - ia mesmo a dizer, na sua voluntária pobreza -, a grandeza e a magnificência das coisas. É o estilo mais difícil e mais raro. Mas, então, a oratória não rebrilha ou empalidece ao favor das opiniões correntes e não depende da moda nem do tempo, porque consegue captar num momento, o fulgor intemporal da beleza e comunicá-lo tão naturalmente como a superfície dos mares reflecte a luz das estrelas.
O Dr. Correia Pinto, no exórdio da oração fúnebre de Dom Manuel II escreveu avisadamente, quase a apreciar-se a si mesmo, o que eu tenho tentado dizer: "As coisas verdadeiramente grandes não pedem acrescentamentos".
Era assim o seu estilo. Arte, sem artifício, claridade sem matizados tons, beleza sem atavios. Na oratória sacra, perante a beleza incriada, são os céus a falar: "Coeli enarrant gloriam Dei".

IV - Na simplicidade da sua vida, na clareza dos seus desígnios, no equilíbrio das sua ideias e na rectidão e serenidade de todos os seus actos, o Cónego Correia Pinto produzia em todos que dele se acercavam profunda impressão. Debalde se procuraria analisar cada um dos motivos, porventura em si mesmos inperceptíveis, que a determinavam. Eram necessariamente diversos, mas creio filiarem-se todos numa forte característica que repassava toda a sua personalidade: a quietação do espírito, consequência do seu descanso em Deus.
Viveu duas épocas psicologicamente diferenciadas. Na sua mocidade contemplou, ainda no seu apogeu, a crença no progresso indefinido, testemunhou à sua volta a confiança infantil dos homens na sua capacidade de demiurgos da história e da técnica. Assistiu às convulsões de duas guerras mindiais. E pôde verificar como à presunção falaz da redenção do homem, como novo Prometeu, por suas mãos, sucedeu a desesperança, de envolta com a "tristeza do século" de que fala S. Paulo. Sentiu alastrar como que um negrume sobre as ilusões dos homens, incapazes de conduzir a história, de garantir a felicidade, de antever o futuro, e como fim, mais do que catástrofes.
E as doutrinas, como os acontecimentos, ao sucederem-se insuspeitadas e vertiginosas, não o perturbaram. A instabilidade na dúvida permanente, a variedade bizarra de opiniões, o desassossego interior instalam-se nos espíritos pusilânimes a vaguear, errantes, pela tentação de se fugirem, na esteira dos acontecimentos, das imagens movediças, dos entusiasmos, das ninharias exaltadas, que se atropelam no mundo em desordem.
O espírito do Cónego Correia Pinto, porém, morava em si mesmo. Assente na firmeza inabalável da esperança, derramava sobre a inquietação do ambiente a tranquilidade dos corações fortes.
Nada de grande lhe era estranho; só nas almas grandes cabe a grandeza das coisas. Mas esse contacto espiritual com a grandeza não se estiolava degenerando, como é tão vulgar, em preciosismo de atitudes ou altanaria.
Era antes motivo e razão de humildade, acolhedora e simples. Humilde, porque consciente da posição do homem como criatura, olhava de frente, sem temor, as coisas grandes, como pertencentes à própria grandeza.
Creio, de resto, haver uma ligação subtil entre a sua humildade e a ironia que, frequentemente polvilhava os seus comentários ou sublinhava as suas apreciações. Alguém classificou já a ironia de humildade natural e, na verdade, a ironia, como leve sorriso, incrédulo mas benevolente, desfaz a presunção e, como graciosa sabedoria, estimula a fraqueza. Reconduz, sem dureza nem afectação, de maneira humilde, e até com a brandura da compreensão, à ordem natural, à harmonia da criação, os desvios dos homens e das coisas.
E a harmonia da criação casava-se no Dr. Correia Pinto com a sua harmonia interior. A harmonia é a ordem sentida sob o signo da beleza. O mesmo espírito dominou, por isso, a obra e a vida do Dr. Correia Pinto.
A beleza e a virtude não perecem com o tempo. A beleza é intemporal, porque refulge, como a verdade absoluta e como o bem supremo, na glória de Deus.
D’além do tempo, o espírito do Cónego Correia Pinto continua a falar-nos.

É ele que nos fala, no fulgor da sua obra e no exemplo da sua vida. É - na expressão dele e tão ao seu estilo - é a morte ... "a morte a falar à vida".


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