Oração proferida na Sessão de Encerramento do Congresso Internacional de Direito Penal e Penitenciário Hispano-Luso Americano-Filipino, em Salamanca, Espanha, dia 12 de Julho de 1952

 

O Direito e as instituições penais

 

Magnífico Reitor da Universidade de Salamanca
Senhores Ministros
Senhores Embaixadores
Excelentíssimas Autoridades
Senhores Congressistas

Devo ao generoso convite de D. Antonio Iturmendi, ilustre Ministro da Justiça do Governo espanhol, a honra de poder saudá-los.
Escusara-me já de comparecer. Entendi que, quem, como eu, dedicou a sua actividade profissional ao estudo e ensino do Direito Penal, estaria deslocado, tomando uma posição que não é a sua, e sendo incapaz, pela longa ausência das lides do ensino e pela absorvente ocupação das actividades da governação, de ocupar proveitosamente o seu lugar entre os congressistas.
Não podia ser no congresso o que devia; antolhava-se-me então que não devia ser o que apenas podia, isto é, assistente interessado.
Não augurava, porém, que a cortesia de S. Excelência o Sr. D. Antonio Iturmendi me viesse colocar na delicada situação de me desculpar, perante ele, do meu orgulho profissional, que me impelia a não comparecer para não sentir o amargo alheamento dos trabalhos do Congresso, e perante V.ªs Excelências, porque a precipitação da minha vinda, decidida apenas há dois dias, nem sequer me consentiu tomar conhecimento exacto das teses e do trabalho efectuado.
Escudado, porém, na benevolência de Vossa Excelência, justificar-me-ei se souber agradecer-vos. A isso vim. Afastado há anos daquela intimidade que se alicerça no estudo da mesma ciência, posso ver de fora. E talvez por isso avalie com justeza a importância do vosso trabalho. Tentá-lo-ei, ao menos, esforçando-me por compreender o seu significado, para melhor vo lo agradecer.

I - O direito e as instituições penais revelam de maneira clara o grau de civilização dos povos. É através do direito penal que se exerce o poder mais severo: punir; e que se garantem os direitos mais sagrados. Por ele se manda ou, em alternativa, se tiraniza; e também por ele se defende a manutenção duma civilização, a segurança da sociedade e a liberdade legitima dos indivíduos ou se subordina a ética à utilidade, se desqualifica a autoridade e se impõe a servidão.
Atendendo em que "o que" constitui a essência das instituições penais e o "como" da sua organização e funcionamento, teremos quase sempre uma visão nítida da concepção da vida social e do Estado em que eles se enquadram. Não é de admirar que seja assim. As noções de Direito e de Estado reflectem forçosamente uma concepção de homem. E em nenhum ramo do direito o homem como tal constitui o centro dominante da teorização e da prática. Nos outros ramos da ciência jurídica focam-se, regulam-se parcelas exteriores da vida humana ou aspectos do próprio homem. Só no direito penal, porém, se nos depara este na sua integralidade. No seu estudo se sente, melhor que em qualquer outro, o postulado prévio duma concepção do homem, que é também em geral a que domina a vida social e a estrutura do Estado.
Ainda há pouco se apagaram os últimos vestígios do chamado classicismo como escola penal. Os nomes sobrevivem muitas vezes à mudança radical das coisas que dominam. O direito penal da época do classicismo só podia manter-se nominalmente para além do ambiente em que surgiu. O homem era então confiante em si mesmo e sentia-se confortavelmente só perante a natureza. Acreditava num progresso constante que consistia no sempre mais amplo conhecimento do mundo que o cercava, da natureza em que vivia e no resultado benéfico para o seu bem estar, para seu interesse, desse conhecimento. O progresso consistia nas maiores utilidades que ia alcançando, sem lhe pagar o preço, como que em doação gratuita.
Esta posição do homem perante a natureza traduzia-se num anseio de se libertar de todos os deveres que pareciam supérfluos. A moral deveria reduzir-se à moral privada. Os deveres sociais à garantia estrita da coexistência dos outros egoísmos individuais. Das formas que reveste a justiça - justiça distributiva, legal e comutativa - só esta última mantinha a sua validade. As demais só por ela se justificavam, como um mal necessário, rigorosamente delimitado. Para o direito, então, como para a moral, o homem esfuma-se, é apenas o suporte abstracto de interesses ou de actos que entram, eles somente, na apreciação valorativa do direito.
Não são os homens que se entrelaçam na ordenação jurídica; são apenas os interesses individuais. A própria técnica jurídica fabrica os conceitos maravilhosamente adequados a esta situação. O conceito de relação jurídica parece adrede imaginado para servir o direito das obrigações, para definir as relações da justiça comutativa. Limitado nos seus deveres, o homem surge-nos, para o direito, como uma deformação moral do homem; e a justiça, reduzida a relações entre indivíduos, como uma multidão da justiça.
No direito penal tudo se reduz ao crime e à pena; ao crime como acto ofensivo de interesses jurídicos; à pena como retribuição equitativa do mal em que consiste o crime. O homem, cujos actos são projecção de si mesmo, permanece distante e intocado. Não é efectivamente para o direito ou para o Estado mais que uma imagem indiferenciada e igual; só os actos contam, desgarrados da sua origem, quase autonomizados, como infracções de interesses tutelados que por si se sustentam na ordenação jurídica. A pena também verdadeiramente se lhe não dirige. É quase uma contraprestação, como que o pagamento a frio e solvente da dívida contraída; apaga-a fora do próprio delinquente. A lógica formal e o racionalismo abstracto desta orientação tiveram de ceder primeiro no direito penitenciário e depois no direito penal e processual. Os factos sobrepuseram-se às leis, mesmo antes da teoria se dar plena conta da evolução verificada.
O progresso das ciências e da técnica de maior bem estar económico, não foi acompanhado de maior facilidade de vida. O domínio permitido ao homem sobre a natureza foi tão grande que excedeu as possibilidades da iniciativa individual. As grandes tarefas utilitárias passaram a ser tarefas colectivas, e cada qual se sentiu poderosamente dependente, em todos os aspectos da sua vida, da organização colectiva em que há mister integrar-se. A grandeza dos instrumentos de domínio do homem como que subjugou o próprio homem. À industrialização intensiva sucedeu a proletarização das massas; ao maior bem estar, a convicção de insegurança própria e da necessidade de confiar à organização social o dever de tutelar em cada vez maior extensão os interesses, as aspirações, a vida dos indivíduos.
O Estado cresceu em poder e em funções; aumentaram as pretensões da colectividade em relação aos seus membros; multiplicaram-se os deveres dos indivíduos para com o Estado.
Como que se assiste a uma outra mutilação, inversa da já referida do conteúdo dos deveres de justiça. Tomam o primeiro plano as formas de justiça distributiva e legal; mingua, mirrada na sua importância e significado a justiça comutativa.
Inicia-se assim um outro processo de deformação moral do homem. Aqui e além socializam-se os deveres individuais de sorte que toda a gama das relações sociais passe pelo Estado; e a técnica jurídica dedica-se afanosamente à busca de conceitos que traduzam a transformação profunda das relações privadas. Os homens parece só poderem definir-se como partes integrantes do todo em que se aglutinam; dele recebem a posição em que se situam, a tarefa que lhes cabe, os direitos que lhes pertencem; por ele se talha o seu destino.
É certo não ser discutível a supremacia da justiça distributiva e legal sobre a justiça comutativa, do interesse colectivo sobre os interesses particulares. O perigo não está em reconhecê-lo, mas em substituir à regra moral da justiça a noção prática e absorvente de utilidade. Em função desta e para o fim da prossecução das tarefas ingentes que o progresso material impõe, insensivelmente se desvirtua a posição do homem. Deixa de ser "sujeito", frente à natureza, para constituir componente desta, instrumento necessário para a consecução dos fins colectivos. É factor de produção, elemento de trabalho, órgão, a par dos meios naturais e a eles assimilado, para a realização de todas as grandes tarefas comuns que parece buscarem em si mesmas a sua razão de ser.
E é no direito penal que poderemos medir a gravidade do risco a que pretendo aludir. Ainda que ao lado da institucionalização do direito em geral se verifique uma personalização do direito penal, o significado desta evolução há-de depender da imagem do homem de que o direito se apropriar. Enquanto for impelido por tendências naturalistas e dominado por simples finalidades utilitárias, só verá no homem o instrumento duma política, o meio técnico dum engrandecimento material. Neste pendor, cujo precipício se escancarou já para os Estados do leste europeu, o direito penal servirá, com dócil e fácil manejo, para impor a servidão na vida social, para acobertar a força, ou para esconder a vingança. A utilidade afeiçoa então todos os conceitos, justifica todas as medidas. O crime é o acto prejudicial; a pena é a medida conveniente para eliminar ou segregar da vida social o elemento nocivo ou inútil. O direito penal e, com ele, o respectivo processo aproximam-se duma ordem jurídica disciplinar. Para ser lógico, e essa lógica tem causado inúmeras vítimas, à substituição da justiça pela utilidade segue-se a substituição dos tribunais livres e independentes, pela administração. O delinquente será então considerado, quer na razão da sua classificação como tal, quer enquanto julgado, quer na execução da pena, o homem instrumento, o meio ou o objecto que se tornou inútil, que importa apenas recompor ou destruir consoante o juízo sobre a eventual utilidade que possa ser proferido.
Este angustioso panorama, que por vezes parece já não afectar a sensibilidade do mundo, é para a firmeza do nosso espírito e para a certeza das nossas convicções apenas um motivo estimulante do cumprimento dos deveres que na hora actual mais do que nunca cabem aos representantes qualificados da Cultura. Por toda a parte a complexidade das funções do Estado, a urgência das intervenções com as suas soluções de expediente, deram lugar a uma legisferação abundante, cada vez mais minuciosa. Com amarga ironia se fala, por isso, de decadência da lei. Os departamentos aos quais cabe dirigir e orientar as grandes tarefas, ou organizar e executar os novos ou mais amplos objectivos que recaíram sobre o Estado, sofrem a natural inclinação para se forjarem uma legislação própria e quase autónoma, diminuindo a validade ou o valor das linhas mestras duma ordem jurídica, superior aos indivíduos como à administração, e garante, por isso mesmo, duma estrutura sadia da organização social. Como consequência, avoluma-se assustadoramente o direito penal administrativo, com o seu cortejo de penas pecuniárias ou breves penas de prisão. E estes factos que a extensão das atribuições do Estado e a complexidade da vida colectiva produzem ou condicionam, exigem um esforço renovado de doutrina para os enquadrar num sistema respeitador dos grandes princípios da nossa civilização. A missão que assim cabe aos cultores das ciências penais será difícil mas não os excede. Haverá que restituir ao direito a concepção ocidental e cristã do homem na sua integralidade; nem o homem como abstracto suporte de interesses, nem o homem como simples instrumento objectivo; mas sim o homem concreto na plena pujança da sua personalidade moral, dos seus deveres para consigo mesmo, para com os outros e para com Deus. O direito penal e penitenciário não pode, sob pena de se negar, extrair da delinquência a desumanização do delinquente.
Acentuar a directriz fundamental das instituições penais, estudar o seu aperfeiçoamento e inovação, corresponde aos apelos instantes da realidade, afervorar os espíritos para prosseguir nos trabalhos propostos, são outras tantas conclusões que nos é lícito tirar para além das conclusões oficiais do Congresso Penal e Penitenciário que ora se encerra. O erro obnubila por toda a parte as consciências; e ele é mais perigoso que o próprio perigo, porque é a origem dele.
A defesa da civilização de que somos depositários é, nos dias de hoje, uma missão árdua; só se defende, porém, o que existe. E o Congresso foi mais do que uma defesa da Cultura, porque foi elaboração e criação do seu conteúdo. Julgo ter mostrado razões que sobejam para agradecer aos ilustres congressistas, por mandato de Sua Excelência o Ministro da Justiça, D. Antonio Iturmendi, agradecimento que jubilosamente compartilho, os trabalhos do Congresso Penal e Penitenciário.

II - Não se encerra hoje, porém, somente um congresso penal e penitenciário. Trata-se de um congresso hispano-luso-americano. E esta circunstância incita-me a acrescentar algumas palavras. Portugal e a Espanha não têm apenas uma história gloriosa. A glória é muitas vezes estéril. A história dos dois povos peninsulares é também singularmente fecunda. Tomaram por missão própria projectar-se para além do espaço e do tempo, multiplicando-se em outras nações, herdeiras da mesma tradição, possuidoras da mesma língua, compartícipes da mesma cultura. E a sua missão ultrapassou-os, porque cabe hoje, com igual direito e com rejuvenescido entusiasmo, ao Brasil - cujo nome, português algum pronuncia sem embevecido orgulho - e aos Estados Unidos da América do Sul e Central. São eles que formam a vanguarda na defesa do património de cultura comum e na conquista do futuro. Um congresso hispano-luso-americano não é, por isso, um simples encontro de estudiosos preparados para esforçadamente descobrir as sínteses conciliadoras. Não é necessário alimentar a intimidade de opiniões ou coordenar cautelosamente aspirações divergentes. E não é apenas a tradição jurídica comum que condiciona o êxito do congresso; é para além do passado, o próprio futuro. São as mesmas ideias e os mesmos ideais que impelem a actividade e delineiam a directriz geral do congresso; é a mesma civilização, que brotou de idênticas raízes, e se expande nas diferentes nações, com igual grandeza.
É tempo de terminar. E bem desejaria que as minhas últimas palavras não fossem apenas minhas. Se me fosse lícito por um momento enfileirar entre os senhores congressistas e arrogar-me ousadamente o privilégio de falar em seu nome, talvez pudesse imprimir um mais alto significado ao reconhecimento que, todos, pela realização do Congresso, devemos à Espanha e ao seu Governo, e dar maior relevo à saudação que dirigimos por intermédio de Vossa Excelência, Senhor Ministro, à Espanha, àquela Espanha que soube resgatar heroicamente com o seu sangue os erros da época em que vivemos e manter-se em denodado esforço igual a si mesma como estrénuo baluarte da civilização cristã, a cuja sombra se construiu o que há de eterno, na Europa, na América e no Mundo.

 


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