Chico Xavier / Emmanuel
— Aonde iremos, senhor? – atreveu-se Jacob
a perguntar, timidamente, logo que entraram nas ruas
tortuosas.
O moço tarsense pareceu refletir um minuto e acentuou:
— É verdade que trago comigo algum dinheiro; entretanto, estou
em situação muito difícil: sinto precisar mais de assistência
moral que de repouso físico. Tenho necessidade de alguém que
me ajude a compreender o que se passou. Sabes onde reside
Sadoc?
— Sei – respondeu o servo compungido.
— Leva-me até lá. Depois de me avistar com algum amigo,
pensarei numa estalagem.
Não se passou muito tempo e ei-los à porta de um edifício de
singular e soberba aparência. Muralhas bem delineadas cercavam
extenso átrio adornado de flores e arbustos.
Descansando junto ao portão de entrada, Saulo recomendou ao
companheiro:
— Não convém que me aproxime assim, sem aviso. Jamais visitei
Sadoc nestas condições. Entra no átrio, chama-o e conta-lhe o
que se passou comigo.
Esperarei aqui, mesmo porque não posso dar um passo.
O servo obedeceu prontamente. O banco de repouso distava
alguns passos do largo portão de acesso, mas ficando só,
ansioso de ouvir um amigo que o compreendesse, Saulo
identificou o muro, tateando-o. Vacilante e trêmulo,
arrastou-se dificilmente e atingiu a entrada, ali
permanecendo.
Acudindo ao chamado, Sadoc procurou saber o motivo da visita
inesperada. Jacob explicou, com humildade, que vinha de
Jerusalém, acompanhando o doutor da Lei e desfiou os mínimos
incidentes da viagem e os fins colimados; mas, quando se
referiu ao episódio principal, Sadoc arregalou os olhos
estupidificado. Custava-lhe acreditar no que ouvia, mas não
podia duvidar da sinceridade do narrador, que, por sua vez,
mal encobria o próprio assombro. O homem falou, então, do
mísero estado do chefe: da sua cegueira, das lágrimas copiosas
que vertia. Saulo a chorar? O amigo de Damasco recebia as
estranhas notícias com imensa surpresa, sintetizando as
primeiras impressões numa resposta desconcertante para Jacob:
— O que me conta é quase inverossímil; entretanto, em tais
circunstâncias, torna-se impossível acolhê-los aqui. Desde
anteontem tenho a casa cheia de amigos importantes,
recém-chegados de Citium (Nota da Editora: Cicio, cidade da
ilha de Chipre.) para uma boa reunião na sinagoga, sábado
próximo. Cá por mim, suponho que Saulo se perturbou,
inesperadamente, e não quero expô-lo a juízos e comentários
menos dignos.
— Mas, senhor, que lhe direi? – interpôs Jacob hesitante.
— Diga que não estou em casa.
— Entretanto, encontro-me só com ele, assim perturbado e
enfermo e, como vedes, a noite é tempestuosa.
Sadoc refletiu um momento e acrescentou:
— Não será difícil remediar. Na próxima esquina vocês
encontrarão a chamada “Rua Direita” e, depois de caminhar
alguns passos, encontrarão a estalagem de Judas, que tem
sempre muitos cômodos disponíveis. Mais tarde, procurarei lá
chegar para saber do ocorrido.
Ouvindo palavras tais, que pareciam mais uma ordem que
resposta a um apelo amigo, Jacob despediu-se surpreso e
desanimado.
— Senhor, disse ao rabino, regressando ao portão de entrada,
infelizmente vosso amigo Sadoc não se encontra em casa.
— Não está, exclamou Saulo admirado, daqui lhe ouvi a voz,
embora não distinguisse o que dizia. Será possível que meus
ouvidos estejam igualmente perturbados?
Diante daquela observação tão expressiva e sincera, Jacob não
conseguiu dissimular a verdade e contou ao rabino o
acolhimento que tivera, a atitude reservada e fria de Sadoc.
Seguindo as pisadas do guia, Saulo tudo ouviu, mudo, enxugando
uma lágrima. Não contava com semelhante recepção da parte de
um colega que sempre considerara digno e leal, em todas as
circunstâncias da vida. A surpresa chocava-o. Era natural que
Sadoc temesse pela renovação de suas ideias, mas não era justo
abandonasse um amigo doente, às intempéries da noite. No
entanto, no rebojar de mágoas que começavam a intumescer-lhe o
coração, recordou repentinamente a visão de Jesus e refletiu
que, efetivamente, possuía agora experiências que o outro não
pudera conhecer, chegando à conclusão de que talvez fizesse o
mesmo se os papéis estivessem invertidos.
Concluído o relato do companheiro, comentou resignado:
— Sadoc tem razão. Não ficava bem perturbá-lo com a descrição
do fato, quando tem à mesa amigos de responsabilidade na vida
pública. Além disso, estou cego... Seria um estafermo e não um
hóspede.
Essas considerações comoveram o companheiro, que, aliás,
deixara perceber ao jovem rabino os próprios receios. Nas
palavras de Jacob, Saulo entrevira uma vaga expressão de
temores injustificáveis. O procedimento de Sadoc talvez lhe
houvesse aumentado as desconfianças. Suas advertências eram
reticenciosas, hesitantes. Parecia intimidado, como se
antevisse ameaças à sua tranquilidade pessoal. Nos conceitos
mais simples evidenciava o medo de ser acusado como portador
de alguma expressão do “Caminho”. Na sua amplitude de senso
psicológico, o moço tarsense tudo compreendia. Fora verdade
que ele, Saulo, representava o chefe supremo da campanha
demolidora, mas, de ora em diante, consagraria a vida a Jesus,
assim comprometendo a quantos dele se aproximassem direta e
ostensivamente.
Sua transformação provocaria muitos protestos no ambiente
farisaico.
Pressentiu nas indecisões do guia o receio de ser acusado de
algum sortilégio ou bruxedo.
Com efeito, depois de convenientemente instalados na modesta
estalagem de Judas, o companheiro falou-lhe preocupado:
— Senhor, pesa-me alegar minhas conveniências, mas, consoante
os projetos feitos, preciso regressar a Jerusalém, onde me
esperam dois filhos, a fim de nos fixarmos em Cesareia.
— Perfeitamente, respondeu Saulo, respeitando-lhe os
escrúpulos, poderás partir ao amanhecer.
Aquela voz, antes agressiva e autoritária, tornara-se agora
compassiva e meiga, tocando o coração do servo nas suas fibras
mais sensíveis.
— Entretanto, senhor, estou hesitando, disse o velho já picado
de remorso, estais cego, necessitais de auxílio para recobrar
a vista e sinto sinceramente deixar-vos ao abandono.
— Não te preocupes por minha causa, exclamou o doutor da Lei
resignado; quem te disse que ficarei abandonado? Estou
convicto de que meus olhos estarão curados muito em breve.
Aliás, continuou Saulo como a confortar-se a si mesmo, Jesus
mandou-me entrar na cidade, a fim de saber o que me convinha.
Certo, não me deixará ignorando o que devo fazer.
Assim falando, não pôde ver a expressão de piedade com que
Jacob o contemplava, desconcertado e oprimido.
Entretanto, mau grado à mágoa que lhe causava o chefe em
semelhante estado, e recordando os castigos infligidos aos
seguidores do Cristo, em Jerusalém, não conseguiu subtrair-se
aos íntimos temores e partiu aos primeiros albores da manhã.
Saulo, agora, estava só. No véu espesso das sombras, podia
entregar-se às suas meditações profundas e tristes.
A bolsa farta e franca assegurou-lhe a solicitude do
estalajadeiro, que, de quando em quando, vinha saber suas
necessidades, mas, em vão, o hóspede foi convidado a repastos
e diversões, porque nada o demovia do seu taciturno
insulamento.
Aqueles três dias de Damasco foram de rigorosa disciplina
espiritual. Sua personalidade dinâmica havia estabelecido uma
trégua às atividades mundanas, para examinar os erros do
passado, as dificuldades do presente e as realizações do
futuro. Precisava ajustar-se à inelutável reforma do seu eu.
Na angústia do espírito, sentia-se, de fato, desamparado de
todos os amigos. A atitude de Sadoc era típica e valeria pela
de todos os correligionários, que jamais se conformariam com a
sua adesão aos novos ideais. Ninguém acreditaria no ascendente
da conversão inesperada; entretanto, havia que lutar contra
todos os sépticos, de vez que Jesus, para falar-lhe ao
coração, escolhera a hora mais clara e rutilante do dia, em
local amplo e descampado e na só companhia de três homens
muito menos cultos que ele, e, por isso mesmo, incapazes de
algo compreenderem na sua pobreza mental. No apreciar os
valores humanos, experimentava a insuportável angústia dos que
se encontram em completo abandono, mas, no torvelinho das
lembranças, destacava os vultos de Estevão e Abigail, que lhe
proporcionavam consoladoras emoções. Agora compreendia aquele
Cristo que viera ao mundo principalmente para os desventurados
e tristes de cor ação. Antes, revoltava-se contra o Messias
Nazareno, em cuja ação presumia tal ou qual incompreensível
volúpia de sofrimento; todavia, chegava a examinar-se melhor,
agora, haurindo na própria experiência as mais proveitosas
ilações.
Não obstante os títulos do Sinédrio, as responsabilidades
públicas, o renome que o faziam admirado em toda parte, que
era ele senão um necessitado da proteção divina? As convenções
mundanas e os preconceitos religiosos proporcionavam-lhe uma
tranquilidade aparente; mas, bastou a intervenção da dor
imprevista para que ajuizasse de suas necessidades imensas.
Abismalmente concentrado na cegueira que o envolvia, orou com
fervor, recorreu a Deus para que o não deixasse sem socorro,
pediu a Jesus lhe clareasse a mente atormentada pelas ideias
de angústia e desamparo.
No terceiro dia de preces fervorosas, eis que o hoteleiro
anuncia alguém que o procura. Seria Sadoc? Saulo tem sede de
uma voz carinhosa e amiga.
Manda entrar. Um velhinho de semblante calmo e afetuoso ali
está, sem que o convertido possa ver-lhe as cãs respeitáveis e
o sorriso generoso.
O mutismo do visitante indiciava o desconhecido. — Quem sois?
Pergunta o cego admirado.
— Irmão Saulo, replica o interpelado com doçura o Senhor, que
te apareceu no caminho, enviou-me a esta casa para que tornes
a ver e recebas a iluminação do Espírito Santo.
Ouvindo-o, o moço de Tarso tateou ansiosamente nas sombras.
Quem seria aquele homem que sabia os feitos lá da estrada!
Algum conhecido de Jacob? Mas, aquela inflexão de voz
enternecida e carinhosa?
— Vosso nome? Perguntou quase aterrado.
— Ananias.
A resposta era uma revelação. A ovelha perseguida vinha buscar
o lobo voraz. Saulo compreendeu a lição que o Cristo lhe
ministrava. A presença de Ananias revoca-lhe à memória os
apelos mais sagrados. Fora ele o iniciador de Abigail na
doutrina e o motivo da viagem a Damasco, onde encontrara Jesus
e a verdade renovadora. Tomado de profunda veneração, quis
avançar, ajoelhar-se ante o discípulo do Senhor, que lhe
chamava ternamente “irmão”, oscular-lhe enternecido as mãos
benfazejas, mas apenas tateou o vácuo, sem conseguir a
execução do gratíssimo desejo.
— Quisera beijar vossa túnica, falou com humildade e
reconhecimento, mas, como vedes, estou cego!
— Jesus mandou-me, justamente para que tivesses, de novo, o
dom da vista.
Comovidíssimo, o velho discípulo do Senhor notou que o
perseguidor cruel dos apóstolos do “Caminho” estava
transformado. Ouvindo-lhe a palavra plena de fé, Saulo de
Tarso deixava transparecer, no semblante, sinais de profunda
alegria interior. Dos olhos ensombrados, manaram lágrimas
cristalinas. O moço apaixonado e caprichoso aprendera a ser
humano e humilde.
— Jesus é o Messias eterno! Depus minha alma em suas mãos,
disse ele entre compungido e esperançoso. Penitencio-me do meu
caminho!…
Banhado no pranto do arrependimento sincero, sem saber
manifestar o reconhecimento daquela hora, em virtude das
trevas que lhe dificultavam os passos, ajoelhou-se com
humildade.
O velhinho generoso quis adiantar-se, impedir aquele gesto de
renúncia suprema, considerando a sua própria condição de homem
falível e imperfeito; mas, desejando estimular todos os
recursos daquela alma ardente, em favor da sua completa
conversão ao Cristo, aproximou-se comovido e, colocando a mão
calosa naquela fronte atormentada, exclamou:
— Irmão Saulo, em nome de Deus Todo Poderoso eu te batizo para
a nova fé em Cristo Jesus!…
Entre as lágrimas ardentes que corriam dos olhos, o moço
tarsense acentuou, contrito:
— Digne-se o Senhor perdoar meus pecados e iluminar meus
propósitos para uma vida nova.
Fig. ANANIAS BATIZANDO PAULO DE TARSO
— Agora, disse Ananias, impondo-lhe as
mãos nos olhos apagados e num gesto amoroso, em nome do
Salvador, peço a Deus para que vejas novamente.
— Se é do agrado de Jesus que isso aconteça, advertiu Saulo
compungido, ofereço meus olhos aos seus santos serviços, para
todo o sempre.
E como se entrassem em jogo forças poderosas e invisíveis,
sentiu que das pálpebras doloridas caíam substâncias pesadas
como escamas, à proporção que a vista lhe voltava,
embebendo-se de luz. Através da janela aberta, viu o céu claro
de Damasco, experimentando indefinível ventura naquele oceano
de claridades deslumbrantes. A aragem da manhã, com o perfume
do Sol, vinha banhar-lhe a fronte, traduzindo para o seu
coração uma bênção de Deus.
— Vejo! Agora vejo! Glória ao redentor de minha alma!…
Exclamava estendendo os braços num transporte de gratidão e de
amor.
Ananias também não se conteve mais; em face daquela prova
inaudita da misericórdia de Jesus, o velho discípulo do
Evangelho abraçou-se ao jovem de Tarso, a chorar de
reconhecimento a Deus pelos favores recebidos. Trêmulo de
alegria, levantou-o em seus braços generosos, amparando-lhe a
alma surpreendida e perturbada de júbilo.
— Irmão Saulo, disse pressuroso, este é o nosso grande dia;
abracemo-nos na memória sacrossanta do Mestre que nos irmanou
em seu grande amor!…
O convertido de Damasco não disse palavra. As lágrimas de
gratidão sufocavam-no.
Abraçando-se ao antigo pregador, num gesto expressivo e mudo,
fê-lo como se houvesse encontrado o pai dedicado e amoroso da
sua nova existência. Por momentos, ficaram mudos, maravilhados
com a intervenção divina, como dois irmãos muito queridos que
se houvessem reconciliado sob as vistas de Deus.
Saulo sentia-se agora fortalecido e ágil. Num minuto, pareceu
reaver todas as energias de sua vida. Voltando a si do
contentamento divino que o felicitava, tomou a mão do velho
discípulo e beijou-a com veneração. Ananias tinha os olhos
rasos de pranto. Ele próprio não podia prever as alegrias
infinitas que o esperavam na pensão singela da Rua Direita.
— Ressuscitaste-me para Jesus, exclamou jubiloso; serei dele
eternamente. Sua misericórdia suprirá minhas fraquezas,
compadecer-se-á de minhas feridas, enviará auxílios à miséria
de minha alma pecadora, para que a lama do meu espírito se
converta em ouro do seu amor.
— Sim, somos do Cristo, ajuntou o generoso velhinho com a
alegria a transbordar dos olhos.
E, como se fosse de súbito transformado num menino ávido de
ensinamentos, Saulo de Tarso, sentando-se junto do benfeitor
amigo, rogou-lhe todos os informes a respeito do Cristo, dos
seus postulados e atos imorredouros. Ananias contou-lhe tudo
quanto sabia de Jesus, por intermédio dos Apóstolos, depois da
crucificação a que ele também assistira, em Jerusalém, na
tarde trágica do Calvário. Esclareceu que era sapateiro em
Emaús e tinha ido à cidade santa para as comemorações do
Templo, tendo acompanhado o drama pungente nas ruas
regurgitantes de povo. Falou da compaixão que lhe causara o
Messias coroado de espinhos e apupado pela turba furiosa e
inconsciente. Profunda a emoção, ao descrever a marcha penosa
com a cruz, protegido por soldados impiedosos, da fúria
popular, que vociferava o crime hediondo. Curioso pelo
desenrolar dos acontecimentos, seguira o condenado até ao
monte. Da cruz do martírio, Jesus lançara-lhe um olhar
inesquecível.
Para o seu espírito, aquele olhar traduzia um chamamento
sagrado, que era indispensável compreender. Profundamente
impressionado, a tudo assistiu até ao fim. Daí a três dias,
ainda sob o peso daquelas angustiosas impressões, eis que lhe
chega a nova alvissareira de que o Cristo havia ressuscitado
dos mortos para a glória eterna do Todo Poderoso. Seus
discípulos estavam ébrios de ventura. Então, procurou Simão
Pedro para conhecer melhor a personalidade do Salvador. Tão
sublime a narrativa, tão elevados os ensinamentos, tão
profunda a revelação que lhe aclarava o espírito, que aceitou
o Evangelho sem mais hesitação. Desejoso de compartilhar o
trabalho que Jesus legara aos que lhe pertenciam, regressou a
Emaús, dispôs dos bens materiais que possuía e esperou os
Apóstolos galileus em Jerusalém, onde se associou a Pedro nas
primeiras atividades da igreja do “Caminho”. A essência dos
ensinamentos do Cristo vitalizara-lhe o espírito, Os achaques
da velhice haviam desaparecido. Logo que João e Filipe
chegaram a Jerusalém para cooperar com o antigo pescador de
Cafarnaum na edificação evangélica, combinaram sua
transferência para Jope, a fim de atender a inúmeros pedidos
de irmãos desejosos de conhecer a doutrina. Ali estivera até
que as perseguições intensificadas com a morte de Estevão
obrigaram-no a retirar-se.
Saulo bebia-lhe as palavras com singular enlevo como quem
franqueava um mundo novo. A referência às perseguições avivava
os remorsos acerbos. Em compensação, a alma estava repleta de
votos sinceros, promissores de uma vida nova.
— É verdade dizia, enquanto o narrador fazia longa pausa, vim
a Damasco com outorga do Templo para vos levar preso a
Jerusalém, mas fostes vós que chegastes com outorga de Jesus e
a Ele me jungistes para sempre. Se vos algemasse, na minha
ignorância, levar-vos-ia ao tormento e à morte; vós,
salvando-me do pecado, me transformastes em escravo voluntário
e feliz!
Ananias sorriu, sumamente satisfeito.
Saulo pediu-lhe, então, falasse de Estevão, no que foi
atendido, com solicitude. Em seguida, pediu informes da sua
viagem de Jope a Jerusalém.
Com muita prudência, desejava do benfeitor qualquer alusão a
Abigail.
Formulando o pedido, fê-lo com tal inflexão carinhosa, que o
velho discípulo, adivinhando-lhe o intuito, falou com
brandura:
— Não precisarás confessar teus anseios de moço. Leio em teus
olhos o que principalmente desejas. Entre Jope e Jerusalém,
descansei muito tempo na vizinhança de um compatrício que,
apesar de fariseu, nunca privou os empregados de receberem as
sagradas alegrias da Boa Nova. Esse homem, Zacarias, tinha sob
seu teto um verdadeiro anjo do céu.
Era a jovem Abigail, que, depois de receber o batismo de
minhas mãos, confessou que te amava muito. Falava do teu amor
com ternura ardente e muitas vezes me convidou a orar pela tua
conversão a Jesus Cristo!
Saulo ouvia emocionado e, após ligeiro intervalo em que o
amoroso velhinho parecia meditar, voltou a dizer como se
falasse consigo: Sim, se ela ainda vivesse!…
Ananias recebeu a observação sem surpresa e acentuou:
— Desde que se aproximou de mim, notei que Abigail não ficaria
muito tempo na Terra.
Suas cores esmaecidas, o brilho intenso dos olhos, falavam-me
da sua condição de anjo exilado. Mas, devemos crer que ela
viva no plano imortal. E quem sabe? Talvez suas rogativas aos
pés de Jesus hajam contribuído para que o Mestre te convocasse
à luz do Evangelho, às portas de Damasco!
O velho discípulo do “Caminho” estava comovido. Recebendo
aquelas carinhosas evocações, Saulo chorava. Compreendia, sim,
que Abigail não poderia estar morta. A visão de Jesus redivivo
bastava para dissipar-lhe todas as dúvidas. Certamente, a
escolhida de sua alma apiedara-se de suas misérias, rogara ao
Salvador, com insistência, lhe socorresse o espírito mesquinho
e, por venturosa coincidência, o mesmo Ananias que lhe havia
preparado o coração para as bênçãos do Céu, estendera-lhe
igualmente as mãos amigas, cheias de caridade e perdão. Agora,
pertenceria para sempre àquele Cristo amoroso e justo, que era
o Messias prometido. Nas emoções extremas que lhe
caracterizavam os sentimentos, passou a considerar o poder do
Evangelho, examinando seus ilimitados recursos
transformadores.
Queria mergulhar o espírito nas suas lições iluminadas e
sublimes, banhar-se naquele rio de vida, cujas águas do amor
de Jesus fecundavam os corações mais áridos e desertos. Aquela
meditação profunda empolgava-lhe, agora, a alma toda.
— Ananias, meu mestre, disse o ex-rabino, com entusiasmo, onde
poderei obter o Evangelho sagrado?
O antigo discípulo sorriu com bondade, e observou:
— Antes de tudo, não me chames mestre. Este é e será sempre o
Cristo.
Nós outros, por acréscimo da misericórdia divina, somos
discípulos, irmãos na necessidade e no trabalho redentor.
Quanto à aquisição do Evangelho, somente na igreja do
“Caminho”, em Jerusalém, poderíamos obter uma cópia integral
das anotações de Levi.
E revolvendo o interior de surrada patrona, retirava alguns
pergaminhos amarelentos, nos quais conseguira reunir alguns
elementos da tradição apostólica. Apresentando essas notas
dispersas, Ananias acrescentava:
— Verbalmente, tenho de cor quase todos os ensinamentos, mas,
no que se refere à parte escrita, aqui tens tudo que possuo.
O moço convertido recebeu as anotações, assaz admirado.
Debruçou-se imediatamente sobre os velhos rabiscos e
devorava-os com indisfarçável interesse. Depois de refletir
alguns minutos, acentuava:
— Se possível, pedir-vos-ia deixar-me estes preciosos
ensinamentos, até amanhã. Empregarei o dia em copiá-los para
meu uso particular. O estalajadeiro me comprará os pergaminhos
necessários.
E como que já iluminado daquele espírito missionário que lhe
assinalou as menores ações, para o resto da vida, ponderava
atento:
— Precisamos estudar um meio de difundir a nova revelação com
a maior amplitude possível. Jesus é um socorro do Céu. Tardar
na sua mensagem é delongar o desespero dos homens. Aliás, a
palavra “evangelho” significa “boas notícias”. É indispensável
espalhar essas notícias do plano mais elevado da vida.
Enquanto o velho pregador do “Caminho” observava-o
interessado, o convertido de Damasco chamou o hoteleiro para
comprar os pergaminhos.
Judas surpreendeu-se ao verificar a cura insólita.
Satisfazendo-lhe a curiosidade, o jovem de Tarso falou sem
rebuços:
— Jesus enviou-me um médico. Ananias veio curar-me em seu
nome.
E antes que o homem se recobrasse do espanto, cumulava-o de
recomendações a respeito dos pergaminhos que desejava,
entregando-lhe a quantia necessária.
Dando largas ao entusiasmo que lhe ia na alma, dirigiu-se
novamente a Ananias, expondo-lhe seus planos:
— Até aqui, ocupava o meu tempo no estudo e na exegese da Lei
de Moisés; agora, porém, encherei as horas com o espírito do
Cristo. Trabalharei nesse mister até ao fim dos meus dias.
Buscarei iniciar meu trabalho aqui mesmo em Damasco.
E, fazendo uma pausa, perguntava ao benfeitor que o ouvia em
silêncio: Conheceis na cidade um rapaz fariseu de nome Sadoc?
— Sim, é quem tem chefiado as perseguições nesta cidade.
— Pois bem, continuava o jovem tarsense atencioso, amanhã é
sábado e haverá preleção na sinagoga. Pretendo procurar os
amigos e falar-lhes publicamente do apelo que o Cristo me
endereçou. Quero estudar vossas anotações ainda hoje, porque
me darão assunto para a primeira prédica do Evangelho.
— Para ser sincero, disse Ananias com a sua experiência dos
homens, acho que deves ser muito prudente nesta nova fase
religiosa. É possível que teus amigos da sinagoga não estejam
preparados para receber a luz da verdade toda. A má-fé tem
sempre caminhos para tentar a confusão do que é puro.
— Mas se eu vi Jesus, não tenho o direito de ocultar uma
revelação incontestável, exclamou o neófito, como a salientar,
antes de tudo, a boa intenção que o animava.
— Sim, não digo que fujas do testemunho, explicou, calmo, o
velho discípulo, mas devo encarecer a maior prudência nas
atitudes, não pela doutrina do Cristo, superior e invulnerável
a quaisquer ataques dos homens, mas, por ti mesmo.
— Por mim nada posso temer. Se Jesus me restituiu a luz dos
olhos, não deixará de iluminar meus caminhos. Quero comunicar
a Sadoc a ocorrência que deu novos rumos ao meu destino. E o
ensejo não poderia ser mais oportuno, porque sei que hospeda
em sua casa, ainda agora, alguns levitas de renome,
recém-chegados de Chipre.
— Que o Mestre te abençoe os bons propósitos, disse o velho
sorridente.
Saulo sentia-se feliz. A presença de Ananias confortava-o
sobremodo.
Como velhos e fiéis amigos, almoçaram juntos. Em seguida e
sempre satisfeito, o generoso enviado do Cristo retirou-se,
deixando o ex-rabino todo entregue à meticulosa cópia dos
textos.
No dia seguinte, Saulo de Tarso levantou-se lépido e
bem-disposto. Sentia-se revigorado para uma vida nova. As
recordações amargas lhe desertaram da memória. A influência de
Jesus enchia-o de alegrias substanciosas e duradouras. Tinha a
impressão de haver aberto uma porta nova em sua alma, por onde
sopravam céleres as inspirações de um mundo maior.
Depois da primeira refeição, não obstante o dissabor que a
atitude de Sadoc lhe causara, procurou avistar-se com o amigo,
levado pela sinceridade que lhe pautava os mínimos atos da
vida. Não o encontrou, contudo, na residência particular. Um
servo informou que o amo saíra com alguns hóspedes em direção
à sinagoga.
Saulo foi até lá. Os trabalhos do dia estavam iniciados. Fora
feita a leitura dos textos de Moisés. Um dos levitas de Citium
havia tomado a palavra para os respectivos comentários.
A entrada do ex-rabino provocou curiosidade geral. A maioria
dos presentes tinha conhecimento da sua importância pessoal,
bem como do seu verbo ardoroso e seguro. Sadoc, porém, ao
vê-lo, fez-se pálido, e mais ainda quando e jovem de Tarso lhe
pediu uma palavra em particular. Embora contrafeito, foi-lhe
ao encontro. Cumprimentaram-se sem dissimular a nova impressão
que, já agora, mantinham entre si.
Em face das primeiras observações do novel evangelista,
formuladas em tom amável, o amigo de Damasco explicou,
evidenciando o seu orgulho ofendido:
— De fato, sabia que estavas na cidade e cheguei mesmo a
procurar-te na pensão de Judas; tais foram, porém, as
informações do hoteleiro, que me abstive de ir ao teu
aposento. E cheguei até a pedir-lhe segredo da minha visita.
Com efeito, parece incrível que te rendesses, também tu,
passivamente, aos sortilégios do “Caminho”! Não posso
compreender semelhante transmutação em tua robusta
mentalidade.
— Mas, Sadoc, replicou o jovem tarsense muito calmo, eu vi
Jesus ressuscitado.
O outro fez grande esforço para conter uma ruidosa gargalhada.
— Será possível, objetou com zombaria, que tua índole
sentimental, tão contrária a manifestações de misticismo,
tenha capitulado nesse terreno?
Acreditarias mesmo em tais visões? Não poderias imaginar-te
vítima de algum desfaçado adepto do carpinteiro? Tuas atitudes
de agora nos causarão profunda vergonha. Que dirão os homens
irresponsáveis, que nada conhecem da Lei de Moisés? E a nossa
posição no partido dominante, da raça? Os colegas do
farisaísmo hão de arregalar os olhos, quando souberem da tua
clamorosa defecção.
Quando aceitei o encargo de perseguir os companheiros do
operário de Nazaré, reprimindo-lhes as atividades perigosas,
fi-lo pela amizade que te consagrava; e não te doerá a traição
dos votos anteriores? Considera como se dificultará nosso
escopo, quando se espalhar a notícia de que capitulaste
perante esses homens sem cultura e sem consciência.
Saulo fitou o amigo, revelando imensa preocupação no olhar
ansioso.
Aquelas acusações eram as premissas do acolhimento que o
aguardava no cenáculo dos velhos companheiros de lutas e
edificações religiosas.
— Não, disse ele sentindo fundamente cada palavra, não posso
aceitar as tuas arguições. Repito que vi Jesus de Nazaré e
devo proclamar que nele reconheço o Messias prometido pelos
nossos profetas mais eminentes.
Enquanto o outro fazia largo gesto admirativo, ao observar
aquela inflexão de certeza e sinceridade, Saulo continuava
convicto:
— Quanto ao mais, considero que, a todo tempo, devemos e
podemos reparar os erros do passado. E é com esse ardor de fé
que me proponho regenerar minhas próprias estradas.
Trabalharei, doravante, pela minha certeza em Cristo Jesus.
Não é justo que me perca em ponderações sentimentalistas,
olvidando a verdade; e assim procederei em benefício dos meus
próprios amigos. Os amantes das realidades da vida sempre
foram os mais detestados, ao tempo em que viveram. Que fazer?
Até aqui, minhas pregações nasciam dos textos recebidos dos
antepassados veneráveis, mas, hoje, minhas asserções se
baseiam não somente nos repositórios da tradição, senão também
na prova testemunhal.
Sadoc não conseguiu ocultar a surpresa.
— Mas, e a tua posição? E os teus parentes? E o teu nome? E
tudo que recebeste dos que rodeiam tua personalidade com
fervorosos compromissos? – perguntou Sadoc revocando-o ao
passado.
Agora, estou com o Cristo e todos nós lhe pertencemos. Sua
palavra divina convocou-me a esforços mais ardentes e ativos.
Aos que me compreenderem devo, naturalmente, a gratidão mais
sagrada; entretanto, para os que não possam entender guardarei
a melhor atitude de serenidade, considerando que o próprio
Messias foi levado à cruz.
— Também tu com a mania do martírio?
O interpelado guardou uma bela expressão de dignidade pessoal
e concluiu:
— Não posso perder-me em opiniões levianas. Esperarei que o
teu amigo de Chipre termine a preleção, para relatar minha
experiência diante de todos.
— Falar nisso aqui?
— Por que não?
— Seria mais razoável descansares da viagem e da enfermidade,
meditando melhor no assunto, mesmo por que tenho esperança nas
tuas reconsiderações, relativa mente ao acontecido.
— Sabes, porém, que não sou nenhuma criança e cumpre-me
esclarecer a verdade, em qualquer circunstância.
— E se te apuparem? E se fores considerado traidor?
— A fidelidade a Deus deve ser maior que tudo isso, aos nossos
olhos.
— É possível, no entanto, que não te concedam a palavra,
ponderou Sadoc após esbarrar com a força daquelas profundas
convicções.
— Minha condição é bastante para que ninguém se atreva a
negar-me o que é de justiça.
— Então, seja. Responderás pelas consequências, concluiu Sadoc
constrangido.
Naquele momento, ambos compreenderam a imensidão da linha
divisória que os extremava. Saulo percebeu que a amizade que
Sadoc sempre lhe testemunhara baseava-se nos interesses
puramente humanos. Abandonando a falsa carreira que lhe dava
prestígio e brilho, via esfumar-se a cordialidade do outro.
Mas, de tal cogitação, logo lhe veio à mente que, também ele,
assim procederia, provavelmente, se não tivesse Jesus no
coração.
Sereno e desassombrado, evitou aproximar-se do local onde se
acomodavam os visitantes ilustres, buscando aproximar-se do
largo estrado em que se improvisara uma nova tribuna.
Terminada a dissertação do levita de Citium, Saulo surgiu à
vista de todos os presentes, que o saudaram com olhares
ansiosos. Cumprimentou, afável, os diretores da reunião e
pediu vênia para expor suas ideias. Sadoc não tivera coragem
de criar um ambiente antipático, para deixar que tudo corresse
à feição das circunstâncias, e foi por isso que os sacerdotes
apertaram a mão de Saulo com a simpatia de sempre, acolhendo
com imensa alegria o seu alvitre.
Com a palavra, o ex-rabino ergueu a fronte, nobremente, como
costumava fazer nos seus dias triunfais.
— Varões de Israel! Começou em tom solene, em nome do Todo
Poderoso, venho anunciar-vos hoje, pela primeira vez, as
verdades da nova revelação. Temos ignorado, até agora, o fato
culminante da vida da Humanidade, O Messias prometido já veio,
consoante o afirmaram os profetas que se glorificaram na
virtude e no sofrimento. Jesus de Nazaré é o Salvador dos
pecadores.
Uma bomba que estourasse no recinto, não causaria maior
espanto. Todos fixavam o orador, atônitos. A assembleia estava
obstúpida. Saulo, contudo, prosseguia intrépido, depois de uma
pausa:
— Não vos assombreis com o que vos digo. Conheceis minha
consciência pela retidão de minha vida, pela minha fidelidade
às leis divinas. Pois bem: é com este patrimônio do passado
que vos falo hoje, reparando as faltas involuntárias que
cometi nos impulsos sinceros de uma perseguição cruel e
injusta. Em Jerusalém fui o primeiro a condenar os apóstolos
do “Caminho”; provoquei a união de romanos e israelitas para a
repressão, sem tréguas, a todas as atividades que se
prendessem ao Nazareno; varejei lares sagrados, encarcerei
mulheres e crianças, submeti alguns à pena de morte, ocasionei
um vasto êxodo das massas operárias que trabalhavam
pacificamente na cidade para seu progresso; criei para todos
os espíritos mais sinceros um regime de sombras e terrores.
Fiz tudo isso, na falsa suposição de defender a Deus, como se
o Pai Supremo necessitasse de míseros defensores! Mas, de
viagem para esta cidade, autorizado pelo Sinédrio e pela Corte
Provincial, para invadir os lares alheios e perseguir
criaturas inofensivas e inocentes, eis que Jesus me aparece às
vossas portas e me pergunta, em pleno meio-dia, na paisagem
desolada e deserta: Saulo, Saulo, por que me persegues?
A essa evocação, a voz eloquente se enternecia e as lágrimas
lhe corriam copiosas.
Interrompera-se ao recordar a ocorrência decisiva do seu
destino. Os ouvintes contemplavam-no assombrados.
— Que é isso? – diziam alguns.
— O doutor de Tarso graceja, afirmavam outros sorrindo,
convictos de que o jovem tribuno estivesse buscando maior
efeito oratório.
— Não, amigos, exclamou com veemência, jamais gracejei
convosco nas tribunas sagradas. O Deus justo não permitiu que
minha violência criminosa fosse até ao fim, em detrimento da
verdade, e consentiu, por misericórdia de acréscimo, que o
mísero servo não encontrasse a morte sem vos trazer a luz da
crença nova!
Não obstante o ardor da pregação, que deixava em todos os
ouvidos ressonâncias emocionais, rompeu no recinto estranho
vozerio. Alguns fariseus mais exaltados interpelaram Sadoc, em
voz baixa, quanto ao inesperado daquela surpresa, obtendo a
confirmação de que Saulo, de fato, parecia extremamente
perturbado, alegando ter visto o carpinteiro de Nazaré nas
vizinhanças de Damasco. Imediatamente estabeleceu-se enorme
confusão em toda a sala, porque havia quem visse no caso
perigosa defecção do rabino, e quem opinasse por enfermidade
súbita, que o houvesse dementado.
— Varões de minha antiga fé, trovejou a voz do moço tarsense,
mais incisiva, é inútil tentardes empanar a verdade. Não sou
traidor nem estou doente. Estamos defrontando uma era nova, em
face da qual todos os nossos caprichos religiosos são
insignificantes.
Uma chuva de impropérios cortou-lhe repentinamente a palavra.
— Covarde! Blasfemo! Cão do “Caminho”! Fora o traidor de
Moisés!…
Os apodos partiam de todos os lados. Os mais afeiçoados ao
ex-rabino, que se inclinavam a supô-lo vítima de graves
perturbações mentais, entraram em conflito com os fariseus
mais rudes e rigorosos. Algumas bengalas foram atiradas à
tribuna com extrema violência. Os grupos, que se haviam
atracado em luta, espalhavam forte celeuma na sinagoga,
percebendo o orador que se encontravam na iminência de
irreparáveis desastres.
Foi quando um dos levitas mais idosos assomou ao grande
estrado, levantando a voz com toda a energia de que era capaz
e rogando aos presentes acompanhá-lo na recitação de um dos
Salmos de David. O convite foi aceito por todos. Os mais
exaltados repetiram a prece, tomados de vergonha.
Saulo acompanhava a cena com profundo interesse.
Terminada a oração, disse o sacerdote, com ênfase irritante:
— Lamentemos este episódio, mas evitemos a confusão que em
nada aproveita. Até ontem, Saulo de Tarso honrava as nossas
fileiras como paradigma de triunfo; hoje, sua palavra é para
nós um galho de espinhos. Com um passado respeitável, esta
atitude de agora só nos merece condenação.
Perjúrio? Demência? Não o sabemos com certeza. Outro fora o
tribuno e o apedrejaríamos sem pestanejar; mas, com um antigo
colega os processos devem ser outros. Se está doente, só
merece compaixão; se traidor, só poderá merecer absoluto
desprezo. Que Jerusalém o julgue como seu embaixador.
Quanto a nós, encerremos as pregações da sinagoga e
recolhamo-nos à paz dos fiéis cumpridores da Lei.
O ex-rabino suportou a increpação com grande serenidade a lhe
transparecer dos olhos.
Intimamente, sentia-se ferido no seu amor-próprio. Os
remanescentes do “homem velho” exigiam revide e reparação
imediata, ali mesmo, à vista de todos. Quis falar novamente,
exigir a palavra, obrigar os companheiros a ouvi-lo, mas
sentia-se presa de emoções incoercíveis, que lhe infirmavam os
ímpetos explosivos. Imóvel, notou que velhos afeiçoados de
Damasco abandonavam o recinto calmamente, sem lhe fazer sequer
uma ligeira saudação.
Observou, também, que os levitas de Citium pareciam
entendê-lo, através de um olhar de simpatia, ao mesmo tempo
que Sadoc fixava-o com ironia e risinhos de triunfo. Era o
repúdio que chegava. Acostumado aos aplausos onde quer que
aparecesse, fora vítima da própria ilusão, acreditando que,
para falar com êxito, sobre Jesus, bastavam os louros efêmeros
já conquistados ao mundo. Enganara-se. Seus cômpares punham-no
à margem, como inútil.
Nada lhe doía mais que ser assim desaproveitado, quando lhe
ardia n'alma a devoção sacerdotal. Preferia que o
esbofeteassem, que o prendessem, que o flagelassem, mas não
lhe tirassem o ensejo de discutir sem peias, a todos vencendo
e convencendo com a lógica de suas definições. Aquele abandono
feria-o fundo, porque, antes de qualquer consideração,
reconhecia não laborar em benefício pessoal, por vaidade ou
egoísmo, mas pelos próprios correligionários atidos às
concepções rígidas e inflexíveis da Lei. Aos poucos a sinagoga
ficara deserta, sob o calor ardente das primeiras horas da
tarde.
Saulo sentou-se num banco tosco e chorou. Era a luta entre a
vaidade de outros tempos e a renúncia de si mesmo, que
começava. Para conforto da alma opressa, recordou a narrativa
de Ananias, no capítulo em que Jesus dissera ao velho
discípulo que lhe mostraria quanto importava sofrer por amor
ao seu nome.
Acabrunhado, retirou-se do Templo, em busca do benfeitor, a
fim de reconfortar-se com a sua palavra.
Ananias não se mostrou surpreendido com a exposição das
ocorrências.
— Vejo-me cercado de enormes dificuldades, dizia Saulo um
tanto perturbado.
Sinto-me no dever de espalhar a nova doutrina, felicitando os
nossos semelhantes; Jesus encheu-me o coração de energias
inesperadas, mas a secura dos homens é de amedrontar os mais
fortes.
— Sim, explicava o ancião paciente, o Senhor conferiu-te a
tarefa do semeador; tens muito boa vontade, mas, que faz um
homem recebendo encargos dessa natureza? Antes de tudo,
procura ajuntar as sementes no seu mealheiro particular, para
que o esforço seja profícuo.
O neófito percebeu o alcance da comparação e perguntou:
— Mas, que desejais dizer com isso?
— Quero dizer que um homem de vida pura e reta, sem os erros
da própria boa intenção, está sempre pronto a plantar o bem e
a justiça no roteiro que perlustra; mas aquele que já se
enganou, ou que guarda alguma culpa, tem necessidade de
testemunhar no sofrimento próprio, antes de ensinar. Os que
não forem integralmente puros, ou nada sofreram no caminho,
jamais são bem compreendidos por quem lhes ouve simplesmente a
palavra. Contra os seus ensinos estão suas próprias vidas.
Além do mais, tudo que é de Deus reclama grande paz e profunda
compreensão. No teu caso, deves pensar na lição de Jesus
permanecendo trinta anos entre nós, preparando-se para
suportar nossa presença durante apenas três. Para receber uma
tarefa do Céu, David conviveu com a Natureza apascentando
rebanhos; para desbravar as estradas do Salvador, João Batista
meditou muito tempo nos ásperos desertos da Judeia.
As ponderações carinhosas de Ananias caíam-lhe na alma opressa
como bálsamo vitalizante.
— Quando hajas sofrido mais, – continuava o benfeitor e amigo
sincero, – terás apurado a compreensão dos homens e das
coisas, Só a dor nos ensina a ser humanos. Quando a criatura
entra no período mais perigoso da existência, depois da
matinal infância e antes da noite da velhice; quando a vida
exubera energias, Deus lhe envia os filhos, para que, com os
trabalhos, se lhe enterneça o coração. Pelo que me hás
confessado, é possível não venhas a ser pai, mas terás os
filhos do Calvário em toda parte. Não viste Simão Pedro, em
Jerusalém, rodeado de infelizes? Naturalmente, encontrarás um
lar maior na Terra, onde serás chamado a exercer a
fraternidade, o amor, o perdão. É preciso morrer para o mundo,
para que o Cristo viva em nós…
Aquelas observações tão sadias e tão mansas penetraram o
espírito do ex-rabino como bálsamo de consolação de horizontes
mais vastos. Suas palavras carinhosas fizeram-no recordar
alguém que o amava muito. De cérebro cansado pelos embates do
dia, Saulo esforçava-se por fixar melhor as ideias.
Ah!… agora se lembrava perfeitamente. Esse alguém era
Gamaliel. Veio-lhe de súbito o desejo de se avistar com o
velho mestre; compreendia a razão daquela lembrança. É que,
também ele, pela última vez, lhe falara da necessidade que
sentia dos lugares ermos, para meditar as sublimes verdades
novas. Sabia-o em Palmira, na companhia de um irmão. Como não
se recordara ainda do antigo mestre, que lhe fora quase um
pai? Certamente, Gamaliel recebê-lo-ia de braços abertos,
regozijar-se-ia com as suas conquistas recentes, dar-lhe-ia
conselhos generosos quanto aos rumos a seguir.
Engolfado em recordações cariciosas, agradeceu a Ananias com
um olhar significativo, acrescentando sensibilizado:
— Tendes razão… Buscarei o deserto em vez de voltar a
Jerusalém precipitadamente, sem forças, talvez, para enfrentar
a incompreensão dos meus confrades. Tenho um velho amigo em
Palmira, que me acolherá de bom grado. Ali repousarei algum
tempo, até que possa internar-me pelas regiões ermas, a fim de
meditar as lições recebidas.
Ananias aprovou a ideia com um sorriso. Ainda ficaram
conversando longo tempo, até que a noite mergulhou a alma das
coisas no seu velário de sombras espessas.
O velho pregador conduziu, então, o novo adepto para a humilde
reunião que se realizava, nesse sábado, de grandes desilusões
para o ex-rabino.
Damasco não tinha propriamente uma igreja; entretanto, contava
numerosos crentes irmanados pelo ideal religioso do “Caminho”.
O núcleo de orações era em casa de uma lavadeira humilde,
companheira de fé, que alugava a sala para poder acudir a um
filho paralítico.
Profundamente admirado, o moço tarsense enxergou ali a
miniatura do quadro observado, pela primeira vez, quando
tivera a curiosidade invencível de assistir às célebres
pregações de Estevão em Jerusalém.
Em torno da mesa rústica, juntavam-se míseras criaturas da
plebe, que ele sempre mantivera separada da sua esfera social.
Mulheres analfabetas com crianças ao colo, velhos pedreiros
rudes, lavadeiras que não conseguiam conjugar duas palavras
certas. Anciães de mãos trêmulas, amparando-se a cajados
fortes, doentes misérrimos que exibiam a marca de enfermidades
dolorosas. A cerimônia parecia ainda mais simples que as de
Simão Pedro e seus companheiros galileus. Ananias chefiava e
presidia o ato. Sentando-se à mesa, qual patriarca no seio da
família, rogou as bênçãos de Jesus para a boa vontade de
todos. Em seguida, fez a leitura dos ensinos de Jesus,
respigando algumas sentenças do Mestre Divino nos pergaminhos
esparsos. Depois de comentar a página lida, ilustrando-a com a
exposição de fatos significativos, do seu conhecimento, ou da
sua experiência pessoal, o velho discípulo do Evangelho
deixava o lugar, percorria as filas de bancos e impunha as
mãos sobre os doentes e necessitados. Comumente, segundo o
hábito das primeiras células cristãs do primeiro século, ao
memorar as alegrias de Jesus quando servia o repasto aos
discípulos, fazia-se modesta distribuição de pão e água pura,
em nome do Senhor.
Saulo serviu-se do bolo simples, enternecidamente. Para sua
alma, o cibo mesquinho tinha o sabor divino da fraternidade
universal. A água clara e fresca da bilha grosseira
pareceu-lhe fluído de amor que partia de Jesus, comunicando-se
a todos os seres.
Ao fim da reunião, Ananias orava fervorosamente. Depois de
contar a visão de Saulo e a sua própria, nos comentários
singelos daquela noite, pedia ao Salvador protegesse o novo
servo em demanda a Palmira, a fim de meditar mais
demoradamente na imensidão de suas misericórdias. Ouvindo-lhe
a rogativa que o calor da amizade revestia de amavio singular,
Saulo chorou de reconhecimento e gratidão, comparando as
emoções do rabino que fora, com as do servo de Jesus que agora
queria ser.
Nas reuniões suntuosas do Sinédrio, jamais ouvira um
companheiro exorar ao Céu com aquela sinceridade superior.
Entre os mais afeiçoados só encontrara elogios vãos, prontos a
se transformarem em calúnias torpes, quando lhes não podia
conceder favores materiais. Em toda parte, admiração
superficial, filha do jogo dos interesses inferiores.
Ali, a situação era outra. Nenhuma daquelas criaturas
desfavorecidas da sorte viera pedir-lhe facilidades; todos
pareciam satisfeitos ao serviço de Deus, que assim os
congregava a termo de trabalhos exaustivos e penosos. E, por
fim, ainda rogavam a Jesus lhe concedesse paz de espírito para
o seu empreendimento.
Terminada a reunião, Saulo de Tarso tinha lágrimas nos olhos.
Na igreja do “Caminho”, em Jerusalém, os Apóstolos galileus o
trataram com especial deferência, atentos à sua posição social
e política, senhor das regalias que as convenções do mundo lhe
conferiam; mas os cristãos de Damasco impressionaram-no mais
vivamente, arrebataram-lhe a alma, conquistando-a para uma
afeição imorredoura, com aquele gesto de confiança e carinho,
tratando-o como irmão.
Um a um, apertaram-lhe a mão com votos de feliz viagem. Alguns
velhos mais humildes beijaram-lhe as mãos. Tais provas de
afeto davam-lhe novas forças.
Se os amigos do judaísmo lhe desprezavam a palavra, acintosos
e hostis, começava agora a encontrar no seu caminho os filhos
do Calvário.
Trabalharia por eles, consagraria ao seu consolo as energias
da mocidade.
Pela primeira vez na vida, revelou interesse pelo sorriso das
criancinhas. Como se desejasse retribuir as demonstrações de
carinho recebidas, tomou nos braços um menino doente. Diante
da pobre mãe sorridente e agradecida, fez-lhe festas,
acariciou-lhe os cabelos desajeitadamente.
Entre os acúleos agressivos de sua alma apaixonada, começavam
a desabrochar as flores de ternura e gratidão.
Ananias estava satisfeito. Junto dos irmãos de mais confiança,
acompanhou o neófito até a pensão de Judas. Aquele modesto
grupo desconhecido percorreu as ruas banhadas de luar,
estreitamente unido e reconfortando-se em comentários
cristãos. Saulo admirava-se de haver encontrado tão depressa
aquela chave de harmonia que lhe proporcionava segura
confiança em todos. Teve a impressão de que, nas genuínas
comunidades do Cristo, a amizade era diferente de tudo que lhe
dava expressão nos agrupamentos mundanos. Na diversidade das
lutas sociais o traço dominante das relações cifrava-se agora,
a seus olhos, nas vantagens do interesse individual; ao passo
que, na unidade de esforços da tarefa do Mestre, havia um
cunho divino de confiança, como se os compromissos tivessem o
ascendente divino, original.
Todos falavam, como nascidos no mesmo lar. Se expunham uma
ideia digna de maior ponderação, faziam-no com serenidade e
geral compreensão do dever; se versavam assuntos leves e
simples, os comentários timbravam franca e confortadora
alegria. Em nenhum deles notava a preocupação de parecer menos
sincero na defesa dos seus pontos de vista; mas, ao invés,
lhaneza de trato sem laivos de hipocrisia, porque, em regra,
sentiam-se sob a tutela do Cristo, que, para a consciência de
cada um, era o amigo invisível e presente, a quem ninguém
deveria enganar.
Consolado e satisfeito de haver encontrado amigos na
verdadeira acepção da palavra, Saulo chegou à estalagem de
Judas, despedindo-se de todos profundamente comovido. Ele
próprio surpreendia-se com o sabor de intimidade com que as
expressões lhe afloravam aos lábios. Agora compreendia que a
palavra “irmão”, largamente usada entre os adeptos do
“Caminho”, não era fútil e vã. Os companheiros de Ananias
conquistaram-lhe o coração.
Nunca mais esqueceria os ir mãos de Damasco.
No dia imediato, contratando um serviçal indicado pelo
estalajadeiro, Saulo de Tarso, ao amanhecer, embora
surpreendesse o dono da casa com o seu ânimo resoluto, pôs-se
a caminho da cidade famosa, situada num oásis em pleno
deserto.
Nas primeiras horas da manhã, saíam das portas de Damasco dois
homens modestamente trajados, à frente de pequeno camelo
carregado das necessárias provisões.
Saulo fizera questão de partir assim, a pé, de modo a iniciar
a vida com rigores que lhe seriam sumamente benéficos mais
tarde. Não viajaria mais na qualidade de doutor da Lei,
rodeado de servos, sim como discípulo de Jesus, adstrito aos
seus programas. Por esse motivo, considerou preferível viajar
como beduíno, para aprender a contar, sempre, com as próprias
forças.
Sob o calor calcinante do dia, sob as bênçãos refrigeradoras
do crepúsculo, seu pensamento estava fixo naquele que o
chamara do mundo para uma vida nova.
As noites do deserto, quando o luar enche de sonho a desolação
da paisagem morta, são tocadas de misteriosa beleza. Sob as
frondes de alguma tamareira solitária, o convertido de Damasco
aproveitava o silêncio para profundas meditações. O firmamento
estrelado tinha, agora, para seu espírito, confortadoras e
permanentes mensagens. Estava convicto de que sua alma havia
sido arrebatada a novos horizontes, porque, através de todas
as coisas da Natureza, parecia receber o pensamento do Cristo
que lhe falava carinhosamente ao coração.
Kardec e amigos
Jesus Cristo
Chico Xavier
..."Recordemos que o
Espiritismo nos solicita uma espécie permanente de caridade:
a caridade de sua própria divulgação" Emmanuel
Abigail, doente
Emmanuel e Chico Xavier
Aparição de Jesus