Jesus e Maria de Magdala

Jesus aparece a Maria Magdala

Abigail, irmã de Estevão, doente!

Ao seu lado Paulo de Tarso, Zacarias e Ruth.

Paulo de Tarso

Paulo de Tarso escrevendo suas Epístolas

A pregação de Estevão

A pregação de Estevão, na Igreja do Caminho.

Jesus Cristo

Nosso Senhor Jesus Cristo Meditando.

Paulo de Tarso

Paulo pregando nas catacumbas

Paulo de Tarso em Atenas

Paulo pregando no Aerópago, em Atenas

No Caminho de Damasco

A conversão de Paulo de Tarso

Paulo de Tarso

Paulo falando ao Rei Agrippa

Paulo picado pela cobra

Paulo picado pela cobra venenosa, mas nada lhe acontece!

Mártires do Cristianismo

Mártires do Cristianismo na prisão

A Santa Ceia

Jesus com os Apóstolos reunidos na Santa Ceia.

LÁGRIMAS E SACRIFÍCIOS

Chico Xavier / Emmanuel

A prisão que recebera as nossas personagens, em Corinto, era um velho casarão de corredores úmidos e escuros, mas a sala destinada aos três, conquanto desprovida de qualquer conforto, apresentava a vantagem de uma janela gradeada, que comunicava o ambiente desolado com a natureza exterior.
Jochedeb estava cansadíssimo e, servindo-se do manto que apanhara ao acaso, ao retirar-se, Jeziel improvisou-lhe um leito sobre as lajes frias. O velho, atormentado por um aluvião de pensamentos, descansava o corpo dolorido, entregue a penosas meditações sobre os problemas do destino humano. Sem saber externar suas dores pungentes, engolfara-se em angustioso mutismo, evitando o olhar dos filhos. Jeziel e Abigail aproximando-se da janela segurando-lhe as grades inflexíveis e abafando, com dificuldade, a justa inquietação. Ambos olharam, instintivamente, o firmamento, cuja imensidade sempre resumiu a fonte das mais ternas esperanças para os que choram e sofrem na Terra.
O jovem abraçou a irmã, com imensa ternura, e disse comovido:
— Abigail, lembras-te da nossa leitura de ontem?
— Sim — respondeu ela com a ingênua serenidade dos seus olhos negros e profundos –, tenho agora a impressão de que os Escritos nos davam uma grande mensagem, pois nosso ponto de estudo foi justamente aquele em que Moisés contemplava, de longe, a terra da Promissão sem poder alcançá-la.
O rapaz sorriu satisfeito por sentir-se identificado nos seus pensamentos e confirmou:
— Vejo que estamos de perfeito acordo, O céu, esta noite, oferece-nos a perspectiva de uma pátria luminosa e distante. Lá — continuava apontando o zimbório estrelado — organiza Deus os triunfos da verdadeira justiça: dá paz aos tristes; conforto aos desalentados da sorte.
Certamente, nossa mãe está com Deus, esperando por nós.
Abigail mostrou-se muito impressionada com as palavras do irmão e acentuou:
— Estás triste? Ficaste agastado com o proceder de nosso pai?
— De modo algum, – atalhou o moço afagando-lhe os cabelos, – estamos em experiências que devem ter a melhor finalidade para a nossa redenção, porque, de outro modo, Deus não no-las mandaria.
— Não nos aborreçamos com o pai, – tornou a jovem; – estive pensando que, se a mamãe estivesse conosco, ele não chegaria a reclamações de tão tristes consequências. Nós não temos aquele poder de persuasão com que ela, carinhosa sempre, iluminava a nossa casa.
Lembras-te? Sempre nos ensinou que os filhos de Deus devem estar prontos para a execução das divinas vontades. Os profetas, por sua vez, nos esclarecem que os homens são varas no campo da criação. O Todo Poderoso é o lavrador e nós devemos ser os galhos floridos ou frutíferos, na sua obra. A palavra de Deus nos ensina a ser bons e amáveis. O bem deve ser a flor e o fruto, que o Céu nos pede.
Nessa altura, a bela jovem fez uma pausa significativa. Seus grandes olhos estavam velados por um tênue véu de pranto, que não chegava a cair.
— Entretanto, continuou ela, emocionando o irmão carinhoso: sempre desejei fazer algum bem, sem jamais o conseguir. Quando nossa vizinha enviuvou, quis auxiliá-la com dinheiro, mas não o possuía; sempre que me surge uma oportunidade de abrir as mãos, tenho-as pobres e vazias. Então, agora, penso que foi útil a nossa prisão. Não será uma felicidade, neste mundo, podermos sofrer alguma coisa por amor de Deus? Quem nada tem, inda possui o coração para dar. E estou convicta de que o Céu nos abençoará pela nossa resolução em servi-lo com alegria.
O rapaz aconchegou-a ao peito e exclamou:
— Deus te abençoe pelo entendimento das suas leis, irmãzinha!
Longa pausa estabelecera-se entre ambos, enquanto mergulhavam no infinito da noite clara os olhos ternos e ansiosos.
Em dado instante, voltou a jovem a considerar:
— Por que será que os filhos de nossa raça são perseguidos em toda parte, provando injustiça e sofrimentos?
— Suponho, respondeu o moço, que Deus o permite a exemplo do pai amoroso que, para educar os filhos mais jovens e ignorantes, toma por base os filhos mais experientes.
Enquanto os outros povos amortecem forças na dominação pela espada, ou nos prazeres condenáveis, nosso testemunho ao Altíssimo, pelas dores e amarguras, multiplica em nosso espírito a capacidade de resistência, ao mesmo tempo que os outros homens aprendem a considerar, com o nosso esforço, as verdades religiosas.
E, fixando o olhar sereno no firmamento, acrescentou:
— Mas eu creio no Messias Redentor, que virá esclarecer todas as coisas.
Os profetas nos afirmam que os homens não o compreenderão; entretanto, ele há de vir ensinando o amor, a caridade, a justiça e o perdão. Nascerá entre os humildes, exemplificará entre os pobres, iluminará o povo de Israel, levantará os tristes e oprimidos, tomará, com amor, todos os que padecem no abandono do coração. Quem sabe, Abigail, estará ele no mundo, sem o sabermos? Deus opera em silêncio e não concorre com as vaidades da criatura. Temos fé e a nossa confiança no Céu é uma fonte de força inesgotável. Os filhos da nossa raça muito têm padecido, mas Deus saberá por quê, e não nos enviaria problemas de que não necessitássemos.
A jovem pareceu meditar longamente e obtemperou, depois de alguns instantes:
— E já que falamos em sofrimentos, como deveremos esperar o dia de amanhã? Prevejo grandes contrariedades no interrogatório e, afinal, que farão os juízes de nosso pai e de nós próprios?
— Não deveremos aguardar senão desgostos e decepções, mas não esqueçamos a oportunidade de obedecer a Deus. - Quando experimentou a ironia de sua mulher, nas desditas extremas, Jó teve a boa lembrança de que, se o Criador nos dá os bens para nossa alegria, pode enviar-nos igualmente os dissabores para nosso proveito. Se o papai for acusado, direi que fui eu o autor do delito.
— E se te flagelarem por isso? Perguntou ela de olhos ansiosos.
— Entregar-me-ei ao flagício com a paz da consciência, se estiveres junto de mim, nesse instante, cantarás comigo a prece dos que se encontram em aflição. E se te matarem, Jeziel? Pediremos a Deus que nos proteja.
Abigail abraçou mais ternamente o irmão, que, por sua vez, dissimulava a custo a emoção que lhe ia na alma. A irmã querida constituíra sempre o tesouro afetivo de toda a sua vida. Desde que a morte lhes arrebatara a genitora, dedicara-se à irmã, com todas as veras do coração. Sua vida pura dividia-se entre o trabalho e a obediência ao pai; entre o estudo da lei e a afeição da meiga companheira da infância. Abigail contemplava-o, ternamente, enquanto ele a abraçava com o enlevo da amizade pura, que reúne duas almas afins.
Depois de meditar longos minutos, Jeziel falou comovido: Se eu morrer, Abigail, hás de prometer-me seguir à risca aqueles conselhos da mamãe, para que tivéssemos a vida sem mácula, neste mundo. Lembrar-te-ás de Deus e da nossa vida de trabalho santificador, e nunca ouvirás a voz das tentações que arrastam as criaturas à queda nos abismos do caminho.
Recordas-te das últimas observações da mamãe no leito da morte?
— Se recordo, respondeu Abigail com uma lágrima. Tenho a impressão de ouvir ainda as suas últimas palavras: “e vocês, meus filhos, amarão a Deus acima de tudo, de todo o coração e de todo o entendimento”.
Jeziel sentiu os olhos úmidos, com aquelas recordações, e murmurou:
— Feliz de ti que não esqueceste.
E como quem desejava mudar o rumo da conversa, acrescentou sensibilizado:
— Agora precisas descansar.
Embora ela se recusasse ao repouso, tomou-lhe o manto pobre, improvisou um leito à luz baça do luar que penetrava pelas grades e, osculando-lhe a fronte com indizível ternura, advertiu afetuosamente:
— Descansa, não te impressiones com a situação, nosso destino pertence a Deus.
Abigail, para lhe ser agradável, aquietou-se como pôde, enquanto ele se aproximava da janela para contemplar a beleza da noite polvilhada de luz. Seu coração moço, atufava-se de angustiosas cogitações. Agora que o pai e a irmãzinha repousavam na sombra, dava curso às ideias profundas que lhe empolgavam o espírito generoso. Buscava, ansiosamente, um a resposta às interrogações que mandava às estrelas distantes. Esperava, com sinceridade e confiança, no seu Deus de sabedoria e misericórdia, que os pais lhe haviam dado a conhecer.
Aos seus olhos, o Todo Poderoso sempre fora infinitamente justo e bom. Ele, que esclarecera o genitor e consolara a irmãzinha, perguntava também, por sua vez, dentro de si, o porquê das suas provas dolorosas. Como se justificava, por causa tão comezinha, a prisão inesperada de um ancião honesto, de um homem trabalhador e de uma criança inocente? Que delito irreparável haviam praticado para merecer expiação tão penosa? O pranto correu-lhe copioso ao relembrar a humilhação da irmã, mas também não procurou enxugar as lágrimas que lhe inundavam o rosto, de maneira a escondê-las de Abigail, que talvez o observasse na sombra. Rememorava, um a um, todos os ensinamentos dos Escritos Sagrados. As lições dos profetas consolavam-lhe a alma ansiosa. Entretanto, vagava-lhe no coração uma saudade infinita.
Lembrava-se do carinho materno que a morte lhe arrebatara. Se presente àquele transe, a mãe saberia como confortá-los. Quando criança, nas suas pequenas contrariedades, ela ensinava que, em tudo, Deus era bom e misericordioso; que, nas enfermidades, corrigia o corpo, e nas angústias da alma esclarecia, iluminava o coração; no desfile das reminiscências, considerava igualmente que ela sempre o incitara à coragem e à alegria, fazendo-lhe sentir que a criatura convicta da paternidade divina anda, no mundo, fortalecida e feliz.
Edificado na fé, cobrou ânimo e, depois de longas reflexões, aquietou-se na laje fria, procurando o repouso possível no silêncio augusto da noite.
O dia raiou prenhe de lúgubres expectativas.
Dentro de poucas horas, Licínio Minucio, rodeado de numerosos guardas e satélites, recebeu os prisioneiros na sala destinada aos criminosos comuns, onde se ostentavam alguns instrumentos de punição e suplício.
Jochedeb e os filhos traíam na palidez do semblante a emoção profunda que os dominava.
Os costumes da época eram excessivamente desumanos para que o juiz implacável e a maioria dos circunstantes se inclinassem à comiseração pelo aspecto desditoso deles.
Alguns esbirros perfilavam-se junto dos potros de castigo, de onde pendiam açoites e algemas impiedosos.
Não houve interrogatório, nem depoimento de testemunhas, como seria de esperar antes de providências tão odiosas, e, chamado rudemente pela voz metálica do legado, o velho judeu aproximou-se vacilante e trêmulo:
— Jochedeb, exclamou o algoz impassível e sanhudo, os que desacatam as leis do Império devem ser punidos de morte, mas eu procurei ser magnânimo, em consideração à tua velhice desamparada.
Um olhar de angustiada expectação transfigurou o rosto do acusado, enquanto o patrício esboçava um sor riso irônico.
— Alguns operários lá da herdade, – continuou Licínio, – viram-te as mãos perversas, na tarde de ontem, quando incendiaste as pastagens. Esse ato redundou em sérios prejuízos para os meus interesses, além de ocasionar males talvez irreparáveis à saúde de dois servos mui prestimosos. Como nada tens de teu para compensar o dano causado, receberás o justo corretivo em flagelações, para que nunca mais venhas a erguer tuas garras de abutre contra os interesses romanos.
Sob o olhar angustiado e lacrimoso dos filhos, o velho israelita ajoelhou-se e murmurou: Senhor, por piedade!
— Piedade? – berrou Minucio com rispidez. – Cometes um crime e imploras favores? Bem se diz que tua raça se compõe de vermes asquerosos e desprezíveis. E, designando o tronco, disse friamente a um dos sequazes: Pescênio, avia-te! Vergasta-o vinte vezes.
Ante a muda aflição dos jovens, o respeitável ancião foi solidamente algemado.
O castigo ia começar quando Jeziel, rompendo a expectativa geral, aproximou-se da mesa e falou com humildade:
— Questor ilustríssimo, perdoai minha covardia de haver calado até agora; asseguro-vos, porém, que meu pai está sendo acusado injustamente. Fui eu quem incendiou os terrenos de vossa propriedade, perturbado pela sentença de confisco exarada contra nós. Dignai-vos, pois, libertá-lo e dar-me a mim a merecida punição. Aceitá-la-ei de bom grado.
O patrício teve um lampejo de surpresa nos olhos frios, que se caracterizavam por mobilidade extrema, e acentuou:
— Mas, não auxiliaste os meus homens a salvar um a parte das termas?
Não foste o primeiro a medicar Rufílio?
—Assim fiz levado pelo remorso, ilustríssimo – retrucou o rapaz, ansioso por isentar o pai do suplício iminente; – quando vi a extensão do fogo comunicando-se às árvores, temi as consequências do ato praticado, mas, agora, confesso ter sido o seu autor.
Nesse ínterim, receoso pela sorte do filho, Jochedeb exclamou, intimamente atormentado:
—Jeziel, não te inculpes por uma falta que não cometeste.
Mas, pontilhando as palavras com extrema ironia, o legado replicou, dirigindo-se ao moço hebreu:
—Está bem: poupei-te até agora, baseado nas falsas informações que me deram a teu respeito; contudo, terás também o teu quinhão de disciplina indispensável. Teu pai pagará pelo crime em que foi visto, de maneira inegável; e tu pagarás pelo que confessaste espontaneamente.
Colhido de surpresa pela decisão que não esperava, Jeziel foi conduzido ao poste de tortura, em frente da angústia paterna. A seu lado, postou-se o companheiro de Pescênio, que o atou sem piedade aos elos de bronze, e as primeiras vergastadas começaram a lamber-lhe o dorso, impiedosas, isócronas.
Uma, duas, três…
Jochedeb revelava profunda debilidade, vendo-se-lhe o peito a arfar penosamente, ao passo que o filho demonstrava tolerar o suplício com heroísmo e nobre serenidade; ambos de olhos fixos em Abigail, que os contemplava excessivamente pálida, entremostrando nas lágrimas ardentes que derramava o cruciante martírio do seu espírito afetuoso.
A punição terrível ia quase a meio, quando um mensageiro entrou no recinto e, em voz alta, anunciou ao legado, em tom solene:
—Ilustríssimo, portadores de vossa casa participam que o servo Rufílio acaba de falecer.
O cruel patrício franziu o sobrolho como costumava fazer nos momentos de explosão colérica. Sentimentos rancorosos lhe afloraram à face, que a perversidade de egoísmo exacerbado vincara de traços indeléveis.
— Era o melhor dos meus homens, bradou. Estes judeus malditos pagarão muito caro esta afronta.
— Filócrio, aplica-lhe mais vinte vergastadas e, em seguida, leva-o à prisão, de onde deverá seguir para o cativeiro nas galeras.
Entre as pobres vítimas e a jovem aflita trocou-se um olhar de significação intraduzível.
Aquele cativeiro era a ruína e a morte. E ainda não se haviam recobrado da cruel surpresa, quando o juiz inexorável prosseguiu:
— Quanto a ti, Pescênio, renova a tarefa. Esse velho, criminoso e sem escrúpulos, pagará a morte do meu fiel servidor. Golpeia-lhe as mãos e os pés até que fique impossibilitado de caminhar e praticar o mal.
Ante a sentença iníqua, Abigail caiu de joelhos, em preces ardentes. Do peito do irmão escapavam fundos suspiros, nevoando-se-lhe os olhos de lágrimas dolorosas, ao conjeturar a inexorável desdita da irmãzinha, enquanto o pai lhes buscava ansiosamente o olhar, receoso da hora extrema.
As vergastadas continuavam sem trégua, mas, de uma feita, Pescênio não conseguira equilibrar-se e a aguçada ponta de bronze do açoite lanhou fundo a garganta do pobre israelita, jorrando o sangue em borbotões. Os filhos compreenderam a gravidade da situação e entreolharam-se ansiosos. Em preces de sublimado fervor, Abigail dirigia-se a Deus, àquele Deus terno e amoroso que sua mãe lhe ensinara a adorar. Filócrio concluiu a sua empreitada.
A fronte de Jeziel erguia-se a custo, exibindo pastoso suor tisnado de sangue. Os olhos fixavam-se na irmã muito amada, mas, em todo o seu aspecto, deixava transparecer profunda fraqueza, que lhe anulava as últimas resistências. Incapaz de definir os próprios pensamentos, Abigail repartia sua atenção angustiada com o pai e o irmão, todavia, em breves instantes, ao fluxo incessante do sangue que corria abundante, Jochedeb deixou pender, para sempre, a cabeça alvejada de cabelos brancos. O sangue alagara as vestes e empastava-se-lhe nos pés.
Sob o olhar cruel do legado, ninguém ousou articular palavra. Apenas o açoite, cortando o ambiente morno da sala, quebrava o silêncio num silvo singular. Mas, notaram que do peito da vítima ainda se escapavam palavras confusas, das quais sobressaiam as carinhosas expressões: Meus filhos, meus queridos filhos!…
A jovem talvez não pudesse compreender que chegara o momento decisivo, mas Jeziel, não obstante o terrível sofrimento daquela hora, tudo compreendeu e, num esforço profundo, gritou para a irmã:
— Abigail, papai está expirando, tem coragem, confia… Não posso acompanhar-te na oração, mas fazes por todos nós… a prece dos aflitos…
Dando mostras de fé invejável em tão amarguradas circunstâncias, a jovem, de joelhos, fixou longamente o velho pai cujo peito já não arfava; depois, erguendo os olhos ao Alto, começou a cantar com voz trêmula, porém harmoniosa e cristalina:
Senhor Deus, pai dos que choram,
Dos tristes, dos oprimidos,
Fortaleza dos vencidos,
Consolo de toda a dor,
Embora a miséria amarga
Dos prantos de nosso erro,
Deste mundo de desterro
Clamamos por vosso amor!
Nas aflições do caminho,
Na noite mais tormentosa,
Vossa fonte generosa
É o bem que não secará.
Sois, em tudo, a luz eterna
Da alegria e da bonança,
Nossa porta de esperança
Que nunca se fechará.

Suas expressões vocais enchiam o ambiente de sonoridade indefinível. O canto semelhava-se mais a um gorjeio de dor de um rouxinol que cantasse, ferido, numa alvorada de primavera. Tão grande, tão sincera revelava-se-lhe a fé no Todo Poderoso, que sua atitude geral era a de uma filha carinhosa e obediente, comunicando-se com o pai silencioso e invisível. O pranto perturbava-lhe a voz trêmula, mas repetia com desassombro a prece aprendida no lar, com a mais formosa expressão de confiança no Altíssimo.
Penosa emoção apossara-se de todos. Que fazer com uma criança cantando o suplício dos seus entes amados e a crueldade dos seus verdugos?
Soldados e guardas presentes mal dissimulavam a emoção. O próprio questor parecia imobilizado, como que submetido a enfadonho mal-estar. Abigail, estranha à perversidade das criaturas, suplicando o amparo do Onipotente, não sabia que o cântico era inútil à salvação dos seus, mas que despertaria a comiseração pela sua inocência, ganhando-lhe, assim, a liberdade.
Recobrando alento e percebendo que a cena ferira a sensibilidade geral, Licínio esforçou-se por não perder a dureza de espírito e recomendou a um dos velhos servidores, em tom imperioso:
— Justino, leva esta mulher para a rua e solta-a, mas que não cante mais, nem mesmo uma nota!
Diante da ordem retumbante, Abigail não terminou a oração, emudecendo instantaneamente, como se obedecesse a estranho estacato.
Lançou ao cadáver ensanguentado do pai um olhar inesquecível e, logo contemplando o irmão ferido e algemado, com quem trocava as mais íntimas impressões na linguagem dos olhos doridos e ansiosos, sentiu-se tocada pela mão calosa de um velho soldado que lhe dizia em voz quase áspera: Acompanha-me!
Ela estremeceu, todavia, endereçando a Jeziel o derradeiro e significativo olhar, seguiu o preposto de Minucio, sem resistência. Após atravessar inúmeros corredores úmidos e sombrios, Justino, modificando sensivelmente a voz, deu-lhe a perceber extrema simpatia por sua figura quase infantil, murmurando-lhe ao ouvido, comovidamente: Minha filha, também sou pai e compreendo o teu martírio. Se queres atender a um amigo, escuta o meu conselho. Foge de Corinto a toda pressa.
Vale-te deste instante de sensibilidade dos teus verdugos e não voltes aqui.
Abigail cobrou algum ânimo e, sentindo-se encorajada por aquela simpatia imprevista, perguntou extremamente perturbada: E meu pai? Teu pai descansou para sempre, murmurou o generoso soldado.
O pranto da jovem se fez mais copioso, borbulhando-lhe dos olhos tristes.
Todavia, ansiosa por defender-se contra a perspectiva de solidão, perguntou ainda: Mas, e meu irmão?
— Ninguém volta do cativeiro das galeras, respondeu Justino com olhar significativo.
Abigail levou as mãos pequeninas ao peito, desejando afogar a própria dor.
Os gonzos de velha porta rangeram vagarosamente e o seu inesperado protetor exclamou, apontando a rua movimentada: Vai em paz e que os deuses te protejam.
A pobre criatura não tardou a sentir o insulamento entre as fileiras de transeuntes que cruzavam, apressados, a via pública. Habituada aos carinhos domésticos, no lar onde o idioma paterno substituía a linguagem das ruas, sentiu-se estranha no meio de tantas criaturas inquietas, assoberbadas de interesses e preocupações materiais. Ninguém lhe notava as lágrimas, nenhuma voz amiga procurava inteirar se das suas íntimas angústias.
Estava só! Sua mãe fora chamada por Deus, anos antes, seu pai acabava de sucumbir covardemente assassinado, o irmão, prisioneiro e cativo, sem esperança de remissão. Apesar do sol do meio-dia, tinha a sensação de intenso frio. Deveria regressar ao ninho doméstico?
Mas, com que fim, se haviam sido expulsos? A quem confiar sua enorme desdita?
Lembrou-se de uma velha amiga da família e procurou-a. A viúva Sostênia, muito afeiçoada à sua mãe, recebeu-a com o sorriso generoso da sua velhice bondosa.
Desfeita em pranto, a infortunada contou-lhe todo o sucedido.
A veneranda velhinha, acariciando-lhe a cabeleira anelada, falou comovida: Nas perseguições passadas, nossos sofrimentos foram os mesmos.
E dando a entender que não desejava reviver antigas e dolorosas reminiscências, Sostênia acentuou:
— É indispensável o máximo de coragem nas situações penosas como esta. Não é fácil elevar o coração em meio de tão terríveis escombros, mas é preciso confiar em Deus nas horas mais amargas. Que contas fazer, agora que todos os recursos desapareceram? Por minha vez, nada te posso oferecer, senão o coração amigo, pois também aqui estou por esmola da pobre família que me agasalhou caridosamente, na última tempestade da minha vida.
— Sostênia, disse Abigail suspirando, meus pais me prepararam para uma existência de corajoso esforço próprio. Estou pensando em recorrer ao legado e suplicar-lhe um cantinho da nossa chácara para ali viver uma vida honesta, na esperança de reaver Jeziel e sua fraterna companhia. Que pensas a respeito?
Notando a indecisão da veneranda amiga, continuou: Quem sabe o questor Licínio se condoerá da minha sorte? Minha resolução talvez o enterneça; voltarei para casa e levar-te-ei comigo. Ser-me-ias uma segunda mãe para o resto da vida.
Sostênia conchegou-a de encontro ao coração e acentuou de olhos úmidos: Minha querida, tu és um anjo, mas o mundo ainda é propriedade dos maus. Viveria contigo eternamente, minha boa Abigail, entretanto, não conheces o legado nem a sua camarilha. Ouve, filha! É preciso que fujas de Corinto, de modo a não incidires em mais duras humilhações.
A moça teve uma exclamação de abatimento e, de pois de longa pausa, acrescentou: Aceitarei teus conselhos, mas, antes de qualquer providência, necessito voltar a casa.
— Para quê? Interrogou a amiga admirada. É imprescindível que partas quanto antes. Não voltes ao lar. A esta hora, é possível já esteja ocupado por homens sem escrúpulos, que te não respeitariam. Convém-te uma atitude de sincera fortaleza moral, pois vivemos uma época em que necessitamos fugir da perdição, como Lot e seus familiares, correndo o risco de sermos transformados em estátua inútil, se olharmos para trás.
A irmã de Jeziel bebia-lhe as palavras com dolorosa estranheza, em face do imprevisto da situação.
Passado um momento, Sostênia levou a mão à fronte, como a recordar uma providência oportuna e falou com animação: Lembras-te de Zacarias, filho de Hanan?
— Aquele amigo da estrada de Cencreia?
— Ele mesmo. Fui informada de que, em companhia da esposa, prepara-se para deixar definitivamente a Acaia, por haver sido assassinado pelos romanos irresponsáveis, nestes últimos dias, o seu único filho.
Confortada por ardente esperança, concluía com ansiedade: Corre à casa de Zacarias! Se ainda o encontrares, fala-lhe em meu nome. Pede-lhe acolhimento. Ruth é um coração generoso e não deixará de estender-te as mãos generosas e fraternais; sei que ela te receberá com afagos maternos!
Abigail tudo ouvia, parecendo indiferente à própria sorte. Mas Sostênia fê-la considerar a necessidade do recurso e, decorridos minutos de consolações recíprocas, a jovem, sob o calor causticante das primeiras horas da tarde, pôs-se a caminho para Cencreia, dando a impressão de um autômato que vagasse na estrada, a que vários veículos e inúmeros pedestres imprimiam considerável movimento. O porto de Cencreia ficava a certa distância do centro de Corinto.
Situado de maneira a servir às comunicações com o Oriente, seus bairros populosos estavam cheios de famílias israelitas, fixadas de longa data nas regiões da Acaia, ou em trânsito para a capital do Império e adjacências. A irmã de Jeziel chegou à casa de Zacarias dominada por terrível abatimento.
Aliado à vigília da última noite e às angústias do dia, penoso cansaço físico lhe agravava os desalentos. Pernas trôpegas, a relembrar o pai morto e o irmão prisioneiro, não reparava em si própria, no mísero estado do seu organismo enfermo e desnutrido. Somente ao defrontar a modesta morada do amigo, verificou que a febre começava a devorar-lhe as entranhas, obrigando-a a refletir nas suas dolorosas necessidades.
Zacarias e Ruth, sua mulher, atendendo ao chamado, receberam-na espantados e aflitos: Abigail!
O grito de ambos revelava grande surpresa, com o aspecto da jovem despenteada, face esfogueada, olhos fundos e vestes em desalinho.
A filha de Jochedeb, perturbada pela fraqueza e pela febre, rojou-se aos pés do casal, exclamando em tom lancinante: Meus amigos, tende piedade do meu infortúnio. Nossa boa Sostênia lembrou-me vosso afeto, no transe doloroso por que passo. Eu, que já não tinha mãe, tive hoje meu pai assassinado e Jeziel escravizado sem remissão.
Se é verdade que partireis de Corinto, levai-me, por compaixão, em vossa companhia!
Abigail abraçava-se agora a Ruth, ansiosamente, enquanto a amiga a acarinhava entre lágrimas.
Soluçante, a jovem relatou os fatos da véspera e os tristes episódios daquele dia.
Zacarias, cujo coração paterno acabava de sofrer tremendo golpe, abraçou-a com afeto e amparou-a sensibilizado, exclamando solícito: Dentro de uma semana voltaremos à Palestina. Ainda não sei bem onde nos vamos fixar, mas nós, que perdemos o filho querido, teremos em ti uma filha estremecida. Acalma-te! Irás conosco, serás nossa filha para sempre.
Incapaz de traduzir seu jubiloso agradecimento, atormentada pela febre alta, a jovem ajoelhou-se, em pranto, procurando externar sua gratidão carinhosa e sincera. Ruth tomou-a ternamente nos braços e, qual desvelado anjo maternal, conduziu-a a um leito macio, onde Abigail, assistida pelos dois amigos generosos, delirou três dias, entre a vida e a morte.

Kardec e amigos

Kardec e amigos

Jesus Cristo

Jesus Cristo

Chico Xavier

Chico Xavier

Personagens do Cristianismo

..."Recordemos que o Espiritismo nos solicita uma espécie permanente de caridade:
 a caridade de sua própria divulgação" Emmanuel


Abigail

Abigail, doente

Emmanuel e Chico
                Xavier

Emmanuel e Chico Xavier

Aparição de
                Jesus

Aparição de Jesus