Chico Xavier / Emmanuel
Às vésperas da partida em busca da
gentilidade espanhola, eis que o Apóstolo recebe uma carta
comovente de Simão Pedro. O ex-pescador de Cafarnaum
escrevia-lhe de Corinto, avisando sua próxima chegada à cidade
imperial. A missiva era afetuosa e enternecedora, cheia de
confidências amargas e tristes. Pedro confiava ao amigo suas
derradeiras desilusões na Ásia e mostrava-se-lhe vivamente
interessado pelo que lhe sucedera em Roma. Ignorando que o
ex-rabino fora restituído à liberdade, procurava confortá-lo
fraternalmente. Também ele, Simão, deliberara exilar-se junto
dos irmãos da metrópole imperial, esperando ser útil ao amigo,
em quaisquer circunstâncias. Ainda no mesmo documento íntimo,
rogava aproveitasse o portador para comunicar aos confrades
romanos o propósito de se demorar algum tempo entre eles.
O convertido de Damasco leu e releu a mensagem amiga,
altamente sensibilizado.
Pelo emissário, irmão da igreja de Corinto, foi avisado de que
o venerando Apóstolo de Jerusalém chegaria ao porto de Óstia
dentro de dez dias, mais ou menos.
Não hesitou um momento. Lançou mão de todos os meios ao seu
alcance, preveniu os íntimos e preparou uma casa modesta, onde
Pedro pudesse alojar-se com a família. Criou o melhor ambiente
para a recepção do respeitável companheiro. Valendo-se do
argumento de sua próxima excursão à Espanha, dispensava as
dádivas dos amigos, indicando-lhes as necessidades de Simão,
para que nada lhe faltasse. Transportou quanto possuía, em
objetos de uso doméstico, do singelo aposento que alugara
junto à Porta Lavernal para a casinha destinada a Simão,
próximo dos cemitérios israelitas da Via Ápia.
Esse exemplo de cooperação foi altamente apreciado por todos.
Os irmãos mais humildes fizeram questão de oferecer pequeninas
utilidades ao Apóstolo venerando que chegaria desprovido.
Informado de que a embarcação entrava no porto, o ex-rabino
largou-se pressurosamente para Óstia. Lucas e Timóteo, sempre
em sua companhia, junto de outros cooperadores devotados, o
amparavam nos pequenos acidentes do caminho, dando-lhe o
braço, aqui e ali.
Não fora possível organizar uma recepção mais ostensiva. A
perseguição surda aos adeptos do Nazareno apertava o cerco por
todos os lados. Os últimos conselheiros honestos do Imperador
estavam desaparecendo. Roma assombrava-se com a enormidade e
quantidade de crimes que se repetiam diariamente. Nobres
figuras do patriciado e do povo eram vítimas de atentados
cruéis. Atmosfera de terror dominava todas as atividades
políticas e, no cômputo dessas calamidades, os cristãos eram
os mais rudemente castigados, em vista da atitude hostil de
quantos se acomodavam com os velhos deuses e se regalavam com
os prazeres de uma existência dissoluta e fácil. Os seguidores
de Jesus eram acusados e responsabilizados por quaisquer
dificuldades que sobrevinham. Se caía uma tempestade mais
forte, devia-se o fenômeno aos adeptos da nova doutrina. Se o
inverno era mais rigoroso, a acusação pesava sobre eles,
porquanto ninguém como os discípulos do Crucificado haviam
desprezado tanto os santuários da crença antiga, abominando os
favores e os sacrifícios aos numes tutelares. A partir do
reinado de Cláudio, espalhavam-se lendas torpes a respeito das
práticas cristãs. A fantasia do povo, ávido das distribuições
de trigo nas grandes festas do circo, imaginava situações
inexistentes, gerando conceitos extravagantes e absurdos, com
relação aos crentes do Evangelho. Por isso mesmo, desde o ano
de 58, os cristãos pacíficos eram levados ao Circo como
escravos revolucionários ou rebeldes, que deveriam
desaparecer. A opressão agravara-se dia a dia. Os romanos mais
ou menos ilustres, pelo nome ou pela situação financeira, que
simpatizavam com a doutrina do Cristo, continuavam indenes de
públicos vexames; mas os pobres, os operários, os filhos da
plebe, eram levados ao martírio, às centenas. Assim, os amigos
do Evangelho não prepararam nenhuma homenagem pública à
chegada de Simão Pedro. Ao invés, procuraram dar ao fato um
cunho todo íntimo, de maneira a não despertar represálias dos
esbirros da situação.
Paulo de Tarso estendeu os braços ao velho amigo de Jerusalém,
tomado de alegria. Simão trouxera a esposa e os filhos, além
de João. Sua palavra generosa estava cheia de novidades para o
Apóstolo do gentilismo. Em poucos minutos, ficou sabendo da
morte de Tiago e das novas torturas infligidas pelo Sinédrio à
igreja de Jerusalém. O velho pescador contava as últimas
peripécias da sua sorte, bem-humorado. Comentava os
testemunhos mais pesados com um sorriso nos lábios e
intercalava toda a narrativa de louvores a Deus. Depois de
reportar-se às lutas que empenhara em muitas e repetidas
peregrinações, contava ao ex-rabino que se refugiara alguns
dias em Éfeso, junto de João, sendo acompanhado pelo filho de
Zebedeu até Corinto, onde resolveram demandar a capital do
Império. Paulo, por sua vez, relatou as tarefas recebidas de
Jesus, nos últimos anos, e era de ver-se o otimismo e a
coragem desses homens que, inflamados do espírito messiânico e
amoroso do Mestre, comentavam as desilusões e as dores do
mundo como láureas da vida.
Depois das suaves alegrias do reencontro, o grupo se
encaminhou discretamente para a casinha reservada a Simão
Pedro e sua família.
O ex-pescador, sentindo a excelência da acolhida carinhosa,
não encontrava palavras para traduzir os júbilos d’alma. Como
Paulo quando chegou a Pouzzoles, tinha a impressão de estar
num mundo diferente daquele em que vivera até então.
Com a sua chegada, recrudesceram os serviços apostólicos, mas
o pregador do gentilismo não abandonou a ideia de ir à
Espanha. Alegando que Pedro o substituiria com vantagem,
deliberou embarcar no dia prefixado, num pequeno navio que se
destinava à costa gaulesa. Não valeram amistosos protestos,
nem mesmo a Insistência de Simão para que adiasse a viagem.
Acompanhado de Lucas, Timóteo e Demas, o velho advogado dos
gentios partiu ao amanhecer de um dia lindo, cheio de projetos
generosos.
A missão visitou parte das Gálias, dirigindo-se ao território
espanhol, demorando-se mais na região de Tortosa. Em toda
parte, a palavra e feitos do Apóstolo ganhavam novos corações
para o Cristo, multiplicando os serviços do Evangelho e
renovando as esperanças populares, à luz do Reino de Deus.
Em Roma, todavia, a situação prosseguia cada vez mais grave.
Com a perversidade de Tigelino à frente da Prefeitura dos
Pretorianos, acentuara-se o terror entre os discípulos de
Jesus. Faltava somente um édito em que os cidadãos romanos,
simpatizantes do Evangelho, fossem condenados publicamente,
porque os libertos, os descendentes de outros povos e os
filhos da plebe já enchiam as prisões.
Simão Pedro, como figura de relevo do movimento, não tinha
descanso.
Não obstante a fadiga natural da senectude, procurava atender
a todas as necessidades emergentes. Seu espírito poderoso
sobrepunha-se a todas as vicissitudes e desempenhava os
mínimos deveres com devotamento máximo à causa da Verdade.
Assistia os doentes, pregava nas catacumbas, percorria longas
distâncias, sempre animoso e satisfeito. Os cristãos do mundo
inteiro jamais poderão esquecer aquela falange de abnegados
que os precedeu nos primeiros testemunhos da fé, afrontando
situações dolorosas e injustas, regando com sangue e lágrimas
a sementeira do Cristo, abraçando-se mutuamente confortados
nas horas mais negras da história do Evangelho, nos
espetáculos hediondos do circo, nas preces de aflição que se
elevavam dos cemitérios abandonados.
Tigelino, grande inimigo dos prosélitos do Nazareno, buscava
agravar a situação por todos os meios ao alcance da sua
autoridade odiosa e perversa.
O filho de Zebedeu preparava-se para regressar à Ásia, quando
um grupo de esbirros dos perseguidores o colheu em pregação
carinhosa e inspirada, na qual se despedia dos confrades de
Roma, com exortações de tocante reconhecimento a Jesus. Apesar
das atenciosas explicações, João foi preso e esbordoado
impiedosamente. E, com ele, dezenas de irmãos foram
trancafiados nos cárceres imundos do Esquilino.
Pedro recebeu a notícia dolorosamente surpreendido. Conhecia a
extensão dos trabalhos que aguardavam na Ásia o companheiro
generoso e rogou ao Senhor não o abandonasse, a fim de obter
absolvição justa. Como proceder em tão difíceis
circunstâncias? Recorreu às relações prestigiosas que a cidade
lhe oferecia. Entretanto, seus afeiçoados eram igualmente
pobres de influência política nos gabinetes administrativos da
época. Os cristãos de posição financeira mais destacada não
ousavam enfrentar a onda avassaladora, de perseguição e
tirania. O antigo chefe da igreja de Jerusalém não desanimou.
Precisava libertar o amigo, concorrendo, para isso, com todo o
potencial de energia, na esfera de suas possibilidades.
Compreendendo a timidez natural dos romanos simpatizantes do
Cristo, buscou reunir apressadamente uma assembleia de amigos
íntimos, para examinar o caso.
No meio dos debates alguém se lembrou de Paulo.
O Apóstolo dos gentios dispunha na capital do Império de
grande número de afeiçoados eminentes. No caso da sua
absolvição, a providência partira do círculo dileto de Popéia
Sabina. Muitos militares colaboradores de Afrânius Búrrus eram
seus admiradores. Acácio Domício, que dispunha de valiosos
empenhos junto dos pretorianos, era seu amigo dedicado e
incondicional.
Ninguém melhor que o ex-tecelão de Tarso poderia incumbir-se
da delicada missão de salvar o prisioneiro. Não se ria
razoável pedir sua ajuda?
Comentava-se o caráter urgente da medida, mesmo porque,
numerosos cristãos morriam todos os dias na prisão do
Esquilino, vítimas das queimaduras de azeite fervente.
Tigelino e alguns comparsas da administração criminosa
distraíam-se com os suplícios das vítimas. O azeite era
lançado aos infelizes no poste do martírio. Outras vezes, os
prisioneiros manietados eram mergulhados em grandes barris de
água em ebulição. O Prefeito dos Pretorianos exigia que os
correligionários assistissem ao suplício, para escarmento
geral. Os encarcerados acompanhavam as tristes operações,
banhados em pranto silencioso. Verificada a morte da vítima,
um soldado se encarregava de lançar as vísceras aos peixes
famintos, nos tanques vastos das prisões odiosas. Dada a
situação geral, apavorante, poder-se-ia contar com a
intervenção de Paulo?
A Espanha ficava muito distante. Era possível que a sua vinda
não aproveitasse ao caso pessoal de João. Pedro, porém,
considerou a oportunidade do recurso e advertiu que seguiriam
trabalhando a favor do filho de Zebedeu. Nada impedia, porém,
de recorrer desde logo para o prestígio de Paulo, ainda porque
a situação piorava de instante a instante. Aquele ano de 64
começara com terríveis perspectivas. Não se podia dispensar um
homem enérgico e resoluto à frente dos interesses da causa.
Dado este parecer do venerando Apóstolo de Jerusalém, a
assembleia concordou com a medida aventada. Um irmão que se
tornara devotado cooperador de Paulo, em Roma, foi mandado à
Espanha, com urgência. Esse emissário era Crescêncio, que saiu
de Óstia, com enorme ansiedade, levando a missiva de Simão.
O Apóstolo dos gentios, depois de muito peregrinar,
demorava-se em Tortosa, onde conseguira reunir grande número
de colaboradores devotados a Jesus. Suas atividades
apostólicas continuavam ativas, conquanto atenuadas, em
virtude do cansaço físico. O movimento das epístolas
diminuíra, mas não se interrompera de todo. Atendendo à
necessidade das igrejas do Oriente, Timóteo partira da Espanha
para a Ásia, carregado de cartas e recomendações amigas.
Em torno do Apóstolo agrupara-se novo contingente de
cooperadores diligentes e sinceros. Em todos os recantos,
Paulo de Tarso ensinava o trabalho e a renúncia, a paz da
consciência e o culto do bem.
Quando planejava novas viagens na companhia de Lucas, eis que
surge em Tortosa o mensageiro de Simão.
O ex-rabino lê a carta e resolve regressar à cidade imperial,
imediatamente.
Através das linhas afetuosas do velho antigo, entreviu a
gravidade dos acontecimentos. Além disso, João necessitava
voltar à Ásia. Não ignorava a influência benéfica que ele
exercia em Jerusalém.
Em Éfeso, onde a igreja se compunha de elementos judaicos e
gentios, o filho de Zebedeu fora sempre um vulto nobre e
exemplar, indene de espírito sectarista. Paulo de Tarso passou
em revista as necessidades do serviço evangélico entre as
comunidades orientais, e concluiu pela urgência do regresso de
João, deliberando intervir no assunto sem perda de tempo.
Como de outras vezes, nada valeram as considerações dos
amigos, no tocante ao problema de sua saúde. O homem enérgico
e decidido, apesar dos cabelos brancos, mantinha o mesmo ânimo
resoluto, elevado e firme, que o caracterizara na mocidade
distante.
Favorecido pela grande movimentação de barcos, nos princípios
de maio de 64, não lhe foi difícil retornar ao porto de Óstia,
junto dos companheiros.
Simão Pedro recebeu-o enternecido. Em poucas horas o
convertido de Damasco conhecia a situação intolerável criada
em Roma pela ação delituosa de Tigelino. João continuava
encarcerado, apesar dos recursos leva dos aos tribunais, O
antigo pescador de Cafarnaum, em significativas confidências,
revelava ao companheiro que o coração lhe pressagiava novas
dores e testemunhos cruciantes. Um sonho profético
anunciava-lhe perseguições e provas ásperas. Numa das últimas
noites, contemplara um quadro singular, em que uma cruz de
proporções gigantescas parecia envolver com sua sombra toda a
família dos discípulos do Senhor. Paulo de Tarso ouviu-o, com
interesse, manifestando-se de inteiro acordo com os seus
pressentimentos.
Apesar dos horizontes carregados, deliberaram uma ação
conjunta para libertar o filho de Zebedeu.
Corria o mês de junho.
O ex-rabino desdobrou-se em atividades intensas, procurou
Acácio Domício, solicitando a sua intervenção e valimento.
Mais ainda: considerando que as providências morosas poderiam
redundar num fracasso, auxiliado por amigos eminentes procurou
avistar-se com numerosos áulicos da Corte Imperial, chegando à
presença de Popéia Sabina, a fim de rogar seus bons ofícios,
no caso do filho de Zebedeu. A célebre favorita ouviu-lhe a
confidência com enorme surpresa. Aquelas revelações de uma
vida eterna, aquela concepção da Divindade assustavam-na.
Embora inimiga declarada dos cristãos, dada a simpatia que
mantinha pelo judaísmo, Popéia impressionou-se com a figura
ascética do Apóstolo e com os argumentos de reforço ao seu
pedido. Sem ocultar sua admiração, prometeu atendê-lo,
apontando desde logo as providências imediatas.
Paulo retirou-se esperançoso da absolvição do companheiro,
porque Sabina prometera libertá-lo dentro de três dias.
Voltando à comunidade, deu ciência aos irmãos da entrevista
que tivera com a favorita de Nero; mas, terminada a exposição,
notou, algo surpreso, que alguns companheiros reprovavam a sua
iniciativa. Pediu, então, que o esclarecessem e justificassem
quaisquer dúvidas. Surgiram fracas considerações que ele
acolheu com a sua inesgotável serenidade.
Alegava-se que não era louvável dirigir-se a uma cortesã
dissoluta, para impetrar um favor. Semelhante proceder
afigurava-se defeso a seguidores do Cristo. Popeia era mulher
de vida notadamente dissoluta, banqueteava-se nas orgias do
Palatino, caracterizava-se por sua luxúria escandalosa. Seria
razoável pedir-lhe proteção para os discípulos de Jesus?
Paulo de Tarso aceitou as mofinas arguições com beatífica
paciência e objetou, sensatamente:
— Respeito e acato a vossa opinião, mas, antes de tudo,
considero necessário libertar João. Fosse eu o prisioneiro e
não haveria de julgar o caso tão urgente e tão grave. Estou
velho, alquebrado, e, portanto, melhor me fora, e mais útil
quiçá, meditar na misericórdia de Jesus, através das grades do
cárcere. Mas João está relativamente moço, é forte e dedicado;
o Cristianismo da Ásia não pode dispensar-lhe a atividade
construtiva, até que outros trabalhadores sejam chamados à
semeadura divina. Com referência às vossas dúvidas, porém,
cumpre-me aduzir um argumento que requer ponderação. Por que
considerais imprópria uma solicitação a Popeia Sabina? Teríeis
a mesma ideia, se me dirigisse a Tigelino ou ao próprio
imperador? Não serão eles vítimas da mesma prostituição que
estigmatiza as favoritas de sua Corte? Se combinasse com um
militar embriagado, do Palatino, as providências
imprescindíveis à libertação do companheiro, talvez
aplaudísseis meu gesto, sem restrições.
Irmãos, é indispensável compreender que a derrocada moral da
mulher, quase sempre, vem da prostituição do homem. Concordo
em que Popeia não é a figura mais conveniente ao feito, em
virtude das inquietações da sua vida; entretanto, é a
providência que as circunstâncias indicaram e nós precisamos
libertar o devotado discípulo do Senhor. Aliás, procurei
valer-me de semelhantes recursos, recordando a exortação do
Mestre, na qual recomenda ao homem granjear amigos com as
riquezas da iniquidade. (Lucas. Capítulo 16, versículo 9. Nota
de Emmanuel.)
Considero que quaisquer relações com o Palatino constituem
expressões da fortuna iníqua, mas suponho útil mobilizar os
que se conservam “mortos” no pecado para algum ato de caridade
e de fé, pelo qual se desliguem dos laços com o passado
delituoso, auxiliados pela intercessão de amigos fiéis.
A elucidação do Apóstolo espalhou grande calma em todo o
recinto. Em poucas palavras, Paulo de Tarso fizera ver, aos
companheiros, transcendentes conclusões de ordem espiritual.
A promessa não falhara. Em três dias o filho de Zebedeu era
restituído à liberdade. João estava abatidíssimo. Os maus
tratos, a contemplação dos quadros terríveis do cárcere, a
expectação angustiosa, haviam-lhe mergulhado o espírito em
perplexidades dolorosas.
Pedro regozijava-se, mas o ex-rabino, atento à tensão
ambiente, sugeriu o regresso do Apóstolo Galileu à Ásia, sem
perda de tempo. A igreja de Éfeso esperava-o. Jerusalém devia
contar com a sua colaboração desinteressada e amiga. João não
teve tempo para muitas considerações, porque Paulo, como que
possuído de amargos pressentimentos, foi ao porto de Óstia
para predispor o seu embarque, aproveitando um navio
napolitano prestes a largar para Mileto. Colhido pelas
providências e impossibilitado de resistir ao resoluto
ex-rabino, o filho de Zebedeu embarcou em fins de junho de 64,
enquanto os demais amigos permaneceriam em Roma para a boa
batalha em prol do Evangelho.
Quanto mais sombrios os horizontes, mais coeso se tornava o
grupo dos irmãos na fé, em Cristo Jesus. Multiplicavam-se as
reuniões nos cemitérios distantes e abandonados. Naqueles dias
de sofrimentos, as pregações pareciam mais belas.
Paulo de Tarso e os cooperadores desdobravam-se em edificações
espirituais, quando a cidade foi sacudida, de súbito, por
espantoso acontecimento. Na manhã de 16 de julho de 64
irrompeu violento incêndio nas proximidades do Grande Circo,
abrangendo toda a região do bairro localizado entre o Célio e
o Palatino. O fogo começara em vastos armazéns repletos de
material inflamável e propagara-se com rapidez assombrosa.
Debalde foram convocados os operários e homens do povo para
atenuar-lhe a violência; em vão a turba numerosa e compacta
movimentou recursos para aliviar a situação.
As labaredas subiam sempre, alastrando-se com furor, deixando
montões de escombros e ruínas. Roma inteira acudia a ver o
sinistro espetáculo, já empolgada pelas suas paixões
ameaçadoras e terríveis. O fogo, com prodigiosa rapidez, deu
volta ao Palatino e invadiu o Velabro. O primeiro dia
findava-se com angustiosas perspectivas. O firmamento
cobria-se de fumo espesso, iluminando-se grande parte das
colinas com o clarão odioso do incêndio terrível. As elegantes
construções do Aventino e do Célio pareciam árvores secas de
floresta em chamas. Acentuara-se a desolação das vítimas da
enorme catástrofe. Tudo ardia nas adjacências do Fórum.
Começou o êxodo com infinitas dificuldades. As portas da
cidade congestionavam-se de pessoas tomadas de profundo
terror. Animais espavoridos corriam ao longo das vias
públicas, como acossados por perseguidores invisíveis. Prédios
antigos, de sólida construção, ruíam com sinistro estrondo.
Todos os habitantes de Roma desejavam distanciar-se da zona
comburente.
Ninguém mais se atrevia a atacar a fogueira indômita. O
segundo dia apresentou-se com o mesmo espetáculo inesquecível.
Os populares desistiram de salvar alguma coisa; contentavam-se
em poder enterrar os mortos sem conta, encontrados nos locais
de possível acesso. Dezenas de pessoas percorriam as ruas em
gargalhadas de horrível acento; a loucura generalizava-se
entre as criaturas mais impressionáveis. Macas improvisadas
conduziam feridos sem destino certo. Longas procissões
invadiam os santuários para salvar as suntuosas imagens dos
deuses. Milhares de mulheres acompanhavam a figura impassível
dos numes tutelares, em dolorosas súplicas, fazendo votos de
penosos sacrifícios, em vozes estentóricas. Homens piedosos
apanhavam, no remoinho das multidões estonteadas, as crianças
massacradas ou apenas feridas. Toda a zona de acesso a Via
Ápia, em direção de Alba Longa, estava entupida de retirantes
apressados e desiludidos.
Centenas de mães gritavam pelos filhinhos desaparecidos e, não
raro, tomavam-se providências, à pressa, para socorrer as que
enlouqueciam. A população em peso desejava abandonar a cidade,
ao mesmo tempo. A situação tornara-se perigosa. A turba
amotinada atacava as liteiras dos patrícios. Somente os
cavaleiros desassombrados conseguiam romper a mole humana,
provocando novas blasfêmias e lamentações.
O fogo já havia devorado, quase totalmente, os palacetes
nobres e preciosos das Carinas e continuava destroçando os
bairros romanos, entre os vales e as colinas, onde a população
era muito densa. Durante uma semana, dia e noite, lavrou o
fogo destruidor, espalhando desolações e ruínas. Das catorze
circunscrições em que se dividia a metrópole imperial, apenas
quatro ficaram incólumes. Três eram um aluvião de escombros
fumegantes e as outras sete conservavam tão só alguns
vestígios dos edifícios mais preciosos.
O imperador estava em Áncio (Antium), quando irrompeu a
fogueira por ele mesmo idealizada, pois a verdade é que,
desejoso de edificar uma cidade nova com os imensos recursos
financeiros que chegavam das províncias tributárias, projetara
o incêndio famoso, assim vencendo a oposição do povo, que não
desejava a transferência dos santuários.
Além dessa medida de ordem urbanística, o filho de Agripina
caracterizava-se, em tudo, pela sua originalidade satânica.
Presumindo-se genial artista, não passava de monstruoso
histrião, assinalando a sua passagem pela vida pública com
crimes indeléveis e odiosos. Não seria interessante apresentar
ao mundo uma Roma em chamas? Nenhum espetáculo, a seus olhos,
seria inesquecível como esse. Depois das cinzas mortas,
reedificaria os bairros destruídos. Seria generoso para com as
vítimas da imensa catástrofe. Passaria à história do Império
como administrador magnânimo e amigo dos súditos sofredores.
Alimentando tais propósitos, combinou o atentado com os
áulicos de sua maior confiança e intimidade, ausentando-se da
cidade para não despertar suspeitas no espírito dos políticos
mais honestos.
Entretanto, não pudera prever, ele próprio, a extensão da
espantosa calamidade. O incêndio tomara proporções
indesejáveis. Seus conselheiros menos dignos não puderam
pressentir a amplitude do desastre. Arrancado, à pressa, dos
seus prazeres criminosos, o imperador chegou a tempo de
observar o último dia de fogo, verificando o caráter da medida
odiosa.
Dirigindo-se a um dos pontos mais elevados, contemplou o
montão de ruínas e sentiu a gravidade da situação. O
extermínio da propriedade particular atingira proporções quase
infinitas. Não se puderam prever tão dolorosas consequências.
Reconhecendo a irritação justa do povo, Nero procurou falar,
em público, esboçando algumas lágrimas na sua profunda
capacidade de dissimulação.
Prometeu auxiliar a restauração das casas particulares,
declarou que compartilhava do sofrimento geral e que Roma se
levantaria novamente sobre os escombros fumegantes, mais
imponente e mais bela. Imensa multidão ouvia-lhe a palavra,
atenta aos seus mínimos gestos. O imperador na sua mímica
teatral assumia atitudes comovedoras. Referia-se aos
santuários perdidos, debulhado em pranto. Invocava a proteção
dos deuses, a cada frase de maior efeito. A turba
sensibilizara-se. Jamais o César se mostrara tão paternalmente
comovido. Não seria razoável duvidar das suas promessas e
observações.
Em dado instante, a sua palavra vibrou mais patética e
expressiva.
Comprometia-se, solenemente, com o povo, a punir
inexoravelmente os responsáveis. Procuraria os incendiários,
vingaria a desgraça romana sem piedade. Rogava, mesmo, a todos
os habitantes da cidade cooperassem com ele, procurando e
denunciando os culpados.
Nesse ínterim, quando o verbo imperial se tornara mais
significativo, notou-se que a massa popular se agitava
estranhamente. Maioria esmagadora irmanava-se, agora, num
grito terrível:
—Cristãos às feras! Às feras!
O filho de Agripina encontrara a solução que procurava. Ele
que procurava, em vão, no espírito superexcitado, as novas
vítimas das suas maquinações execrandas, às quais pudesse
atribuir a culpa dos sucessos lamentáveis, viu no brado
ameaçador da turba uma resposta às próprias cogitações
sinistras.
Nero conhecia o ódio que o vulgo votava aos seguidores
humildes do Nazareno. Os discípulos do Evangelho mantinham-se
alheios e superiores aos costumes dissolutos e brutais da
época. Não frequentavam os circos, afastavam-se dos templos
pagãos, não se prosternavam diante dos ídolos nem aplaudiam as
tradições políticas do Império. Além disso, pregavam
ensinamentos estranhos e pareciam aguardar um novo reino. O
grande histrião do Palatino sentiu uma onda de alegria
invadir-lhe os olhos míopes e congestos. A escolha do povo
romano não poderia ser melhor. Os cristãos deviam ser mesmo os
criminosos. Sobre eles deveria cair o gládio vingador.
Trocou um olhar inteligente com Tigelino, como a exprimir que
haviam apanhado, ao acaso, a solução imprevista e logo afirmou
à massa enfurecida que tomaria providências imediatas para
reprimir os abusos e castigar os culpados da catástrofe;
finalmente, que o incêndio seria considerado crime de
lesa-majestade e sacrilégio, para que os castigos também
fossem excepcionais.
O povo aplaudia freneticamente, antegozando as sensações do
circo, com esgares de feras e cânticos de martírio.
A nefanda acusação pesou sobre os discípulos de Jesus, como
fardo hediondo.
As primeiras prisões realizaram-se como flagelo maldito.
Numerosas famílias refugiaram-se nos cemitérios e nos
arredores da cidade meio destruída, receosas dos algozes
implacáveis. Praticava-se toda a espécie de abusos. Jovens
indefesas eram entregues, nos cárceres, ao instinto feroz de
soldados sem entranhas. Anciães respeitáveis conduzidos à
enxovia, sob algemas e pancadas. Os filhos arrancados do colo
maternal, entre lágrimas e apelos comovedores. Tempestade
sinistra caíra sobre os seguidores do Crucificado, que se
submetiam a punições injustas, de olhos postos no céu.
De nada valeram, para Nero, as ponderações dos patrícios
ilustres, que ainda cultivavam as tradições de prudência e
honestidade. Quantos se aproximavam da autoridade imperial,
com a valiosa contribuição de alvitres justos, eram declarados
suspeitos, agravando a situação.
O filho de Agripina e seus áulicos imediatos deliberaram que
se oferecesse ao povo o primeiro espetáculo no princípio de
agosto de 64, como positiva demonstração das providências
oficiais, contra os supostos autores do nefando atentado. As
demais vítimas, isto é, todos os prisioneiros que chegassem ao
cárcere, depois da festa inicial, serviriam de ornamento aos
futuros regozijos, à medida que a cidade pudesse recompor-se
com as novas construções em perspectiva. Para isso,
determinara-se a reedificação imediata do Grande Circo. Antes
de atender às próprias necessidades da Corte, o imperador
desejava as simpatias do povo ignorante e sofredor,
alimentando o que pudesse satisfazer seus estranhos caprichos.
A primeira carnificina, destinada a distrair o ânimo popular,
foi levada a efeito em jardins imensos, na parte que
permanecera imune da destruição, por entre orgias indecorosas,
de que participaram a plebe e a grande fração do patriciado
que se entregara à dissolução e ao desregramento. A
festividade prolongou-se por noites sucessivas, sob a
claridade de esplêndida iluminação e o ritmo harmonioso de
numerosas orquestras, que inundavam o ar de melodias
enternecedoras. Nos lagos artificiais deslizavam barcos
graciosos, artisticamente iluminados. No seio da paisagem,
favorecida pelas sombras da noite, que as tochas poderosas não
conseguiam afastar de todo, repastava-se a devassidão em jogo
franco. Ao Lado das expressões festivas, enfileiravam-se as do
martírio dos pobres condenados. Os cristãos eram entregues ao
povo para o castigo que ele julgasse mais justo. Para isso,
com intervalos regulares, os jardins estavam cheios de cruzes,
de postes, de açoites e numerosos instrumentos outros de
flagelação. Havia guardas imperiais para auxiliarem as
atividades punitivas. Em fogueiras preparadas, encontravam-se
água e azeite fervente, bem como pontas de ferro em brasa,
para os que desejassem aplicá-las.
Os gemidos e soluços dos desgraçados casavam-se ironicamente
com as notas harmoniosas dos alaúdes. Uns expiravam entre
lágrimas e preces, aos apupos do povo; outros, entregavam-se
estoicamente ao martírio, contemplando o céu alto e estrelado.
A linguagem mais forte será pobre para traduzir as dores
imensas da grei cristã, naqueles dias angustiosos. Não
obstante os tormentos inenarráveis, os seguidores fiéis de
Jesus revelaram o poder da fé àquela sociedade perversa e
decadente, afrontando as torturas que lhes cabiam.
Interrogados nos tribunais, em momento tão trágico, declaravam
abertamente sua confiança em Cristo Jesus, aceitando os
sofrimentos com humildade, por amor ao seu nome.
Aquele heroísmo parecia acirrar, ainda mais, os ânimos da
multidão animalizada.
Inventavam-se novos gêneros de suplício. A perversidade
apresentava, diariamente, números novos em sua venenosa
facúndia. Mas os cristãos pareciam possuídos de energias
diferentes das conhecidas nos campos de batalhas
sanguinolentas. A paciência invencível, a fé poderosa, a
capacidade moral de resistência, assombravam os mais afoitos.
Não foram poucos os que se entregaram ao sacrifício, cantando.
Muita vez, diante de tanta coragem, os verdugos improvisados
temeram o misterioso poder triunfante da morte.
Terminada a chacina de agosto, com grande entusiasmo popular,
continuou a perseguição sem tréguas, para que não faltasse o
contingente de vítimas nos espetáculos periódicos, oferecidos
ao povo em regozijo pela reconstrução da cidade.
Diante das torturas e da carnificina, o coração de Paulo de
Tarso sangrava de dor. A tormenta operava confusão em todos os
setores. Os cristãos do Oriente, em sua maioria, trabalhavam
por desertar do campo da luta, forçados por circunstâncias
imperiosas da vida particular. O velho Apóstolo, entretanto,
unindo-se a Pedro, reprovava essa atitude. À exceção de Lucas,
todos os cooperadores diretos, conhecidos desde a Ásia, haviam
regressado. O ex-tecelão, todavia, fazendo causa comum com os
desamparados, fez questão de assisti-los no transe inaudito.
As igrejas domésticas estavam silenciosas. Fechados os grandes
salões alugados na Suburra para as pregações da doutrina.
Restava aos seguidores do Mestre apenas um meio de se
entreverem e se reconfortarem na prece e nas lágrimas comuns:
eram as reuniões nas catacumbas abandonadas. E a verdade é que
não poupavam sacrifícios para acorrer a esses lugares tristes
e ermos. Era nesses cemitérios esquecidos que encontravam o
conforto fraternal, para o momento trágico que os visitava.
Ali oravam, comentavam as luminosas lições do Mestre e hauriam
novas forças para os testemunhos impendentes.
Amparando-se em Lucas, Paulo de Tarso enfrentava o frio da
noite, as sombras espessas, os caminhos ásperos. Enquanto
Simão Pedro cogitava de atender a outros setores, o ex-rabino
encaminhava-se aos antigos sepulcros, levando aos irmãos
aflitos a inspiração do Mestre Divino, que lhe borbulhava na
alma ardente. Muitas vezes as pregações se realizavam alta
madrugada, quando soberano silêncio dominava a Natureza.
Centenas de discípulos escutavam a palavra luminosa do velho
Apóstolo dos gentios, experimentando o poderoso influxo da sua
fé. Nesses recintos sagrados, o convertido de Damasco
associava-se aos cânticos que se misturavam de prantos
dolorosos.
O espírito santificado de Jesus, nesses momentos, parecia
pairar na fronte daqueles mártires anônimos, infundindo-lhes
esperanças divinas.
Dois meses haviam decorrido, após a festa hedionda, e o
movimento das prisões aumentava dia a dia. Esperavam-se
grandes comemorações. Alguns edifícios nobres do Palatino,
reconstruídos em linhas sóbrias e elegantes, reclamavam
homenagens dos poderes públicos. As obras de reedificação do
Grande Circo estavam adiantadíssimas. Era imprescindível
programar festejos condignos. Para esse fim, os cárceres
estavam repletos.
Não faltariam figurantes para as cenas trágicas. Projetavam-se
naumaquias (espetáculo romano) pitorescas, bem como caçadas
humanas no circo, em cuja arena seriam igualmente
representadas peças famosas de sabor mitológico.
Os cristãos oravam, sofriam, esperavam.
Certa noite, Paulo dirigia aos irmãos a palavra afetuosa, no
comentário do Evangelho de Jesus. Seus conceitos pareciam,
mais que nunca, divinamente inspirados. As brisas da madrugada
penetravam a caverna mortuária, que se iluminava de algumas
tochas bruxuleantes. O recinto estava repleto de mulheres e
crianças, ao lado de muitos homens embuçados.
Depois da pregação comovedora, ouvida por todos, com os olhos
molhados de lágrimas, o ex-tecelão de Tarso perolava solícito:
— Sim, irmãos, Deus é mais belo nos dias trágicos. Quando as
sombras ameaçam o caminho, a luz é mais preciosa e mais pura.
Nestes dias de sofrimento e morte, quando a mentira destronou
a verdade e a virtude foi substituída pelo crime, lembremos
Jesus no madeiro infamante. A cruz tem, para nós outros, uma
divina mensagem. Não desdenhemos o testemunho sagrado, quando
o Mestre, não obstante imáculo, só alcançou neste mundo
batalhas silenciosas e sofrimentos indefiníveis.
Fortaleçamo-nos na ideia de que seu reino ainda não é deste
mundo. Alcemos o espírito à esfera do seu amor imortal. A
cidade dos cristãos não está na Terra; ela não poderia ser a
Jerusalém que crucificou o Enviado Divino, nem a Roma que se
comprás em derramar o sangue dos mártires. Neste mundo,
estamos em uma frente de combate incruento, trabalhando pelo
triunfo eterno da paz do Senhor. Não esperemos, portanto,
repousar no lugar do trabalho e dos testemunhos vivos.
Da cidade indestrutível da nossa fé, Jesus nos contempla e
balsamiza o coração. Caminhemos ao seu encontro, através dos
suplícios e das perplexidades dolorosas. Ele ascendeu ao Pai,
do cimo do Calvário; nós lhe seguiremos as pegadas, aceitando
com humildade os sofrimentos que, por seu amor, nos forem
reservados...
O auditório parecia extático, ouvindo as palavras proféticas
do Apóstolo.
Entre as lajes frias e impassíveis, os irmãos na fé sentiam-se
mais unidos entre si. Em todos os olhares cintilava a certeza
da vitória espiritual. Naquelas expressões de dor e de
esperança havia o tácito compromisso de seguir o Crucificado
até ao seu Reino de Luz.
O orador fizera uma pausa, sentindo-se dominado por estranhas
comoções.
Nesse instante inesquecível, um magote de guardas rompeu
afoito no recinto. O centurião Volúmnio, à testa da patrulha
armada, fazia intimações em alta voz, enquanto os crentes
pacíficos estarreciam surpresos.
— Em nome de César! Bradava o preposto imperial, exultando de
contentamento. E ordenando aos soldados que fechassem o
círculo em torno dos cristãos indefesos, continuava gritando
de modo espetacular. E que ninguém fuja! Quem o tentar, morre
como um cão!
Apoiando-se a forte cajado, pois, nessa noite não tivera a
companhia de Lucas, Paulo, ereto, evidenciando sua energia
moral, exclamou firmemente:
— E quem vos disse que fugiríamos? Ignorais, porventura, que
os cristãos conhecem o Mestre a quem servem? Sois emissários
de um príncipe do mundo, que estes sepulcros esperam; mas nós
somos trabalhadores do Salvador magnânimo e imortal!…
Volúmnio fitou-o surpreso. Quem seria aquele velho, cheio de
energia e combatividade?
Apesar da admiração que lhe inspirava, o centurião manifestou
seu desagrado num sorriso de ironia. Medindo o ex-rabino de
alto a baixo, com olhar de profundo desprezo, acrescentou:
— Atentem bem no que aqui dizem e fazem…
E depois de uma gargalhada, dirigiu-se a Paulo com insolência:
— Como ousas afrontar a autoridade de Augusto? Devem existir,
de fato, diferenças singulares entre o imperador e o
crucificado de Jerusalém. Não sei onde estaria seu poder de
salvação para deixar suas vítimas ao abandono, no fundo dos
cárceres ou nos postes do martírio...
Essas palavras eram pontilhadas de mordaz ironia, mas o
Apóstolo respondeu com a mesma nobreza de Convicção:
— Enganai-vos, centurião! As diferenças são apreciáveis!... É
que vós obedeceis a um infeliz e odiento perseguidor e nós
trabalhamos por um salvador que ama e perdoa. Os
administradores romanos, impensadamente, poderão inventar
crueldades; mas Jesus nunca cessará de nutrir a fonte das
bênçãos!..
A resposta produzira grande sensação no auditório. Os cristãos
pareciam mais calmos e confiantes, os soldados não ocultavam a
enorme impressão que os dominava. O centurião, embora
reconhecendo o desassombro daquele espírito varonil, não
queria parecer fraco aos olhos dos subalternos e exclamou
irritado:
— Vamos, Lucílio: três bastonadas neste velho atrevido.
O nomeado avançou para o Apóstolo, impassível. Ante a
admiração silenciosa dos presentes, o bastão zuniu no ar,
bateu em cheio no rosto do Apóstolo que, nem por isso, se
alterou. As três pancadas foram rápidas; no entanto, um filete
de sangue lhe escorria da face dilacerada.
O ex-rabino, a quem haviam tomado o cajado de apoio,
mantinha-se de pé com certa dificuldade, mas sem trair o bom
ânimo que lhe caracterizava a alma enérgica. Fixou os verdugos
com firmeza e sentenciou:
— Não podeis ferir senão o corpo. Podereis amarrar-me de pés e
mãos; quebrar-me a cabeça, mas as minhas convicções são
intangíveis, inacessíveis aos vossos processos de perseguição.
Diante de tanta serenidade, Volúmnio quase recuou aterrado.
Não podia compreender aquela energia moral que se lhe deparava
aos olhos cheios de espanto. Começava a acreditar que os
cristãos, desprotegidos e anônimos, retinham um poder que a
sua inteligência não lograva atingir. Impressionando-se com
semelhante resistência organizou, à pressa, as filas dos
pobres perseguidos, que, humildes, obedeciam sem vacilar. O
velho Apóstolo tarsense tomou lugar entre os prisioneiros sem
trair o mínimo gesto de enfado ou rebeldia.
Observando atentamente a conduta dos guardas, exclamou, quando
se deslocava o bloco de vítimas e verdugos, ao primeiro
contacto com o relento frio da madrugada:
— Exigimos o máximo respeito para com as mulheres e
crianças!... Ninguém ousou responder à observação, articulada
em tom grave de advertência. O próprio Volúmnio parecia
obedecer inconscientemente às admoestações daquele homem de fé
poderosa e invencível.
O grupo marchou em silêncio, atravessando as estradas
desertas, chegando à Prisão Mamertina quando listravam o
horizonte os primeiros clarões da aurora.
Atirados, previamente, num pátio escuro, até serem alojados
individualmente nas divisões gradeadas e infectas, os
discípulos do Senhor aproveitaram esses rápidos momentos para
conforto mútuo, para trocarem ideias e conselhos edificantes.
Paulo de Tarso, todavia, não descansou. Solicitou audiência ao
administrador da prisão, prerrogativa conferida ao seu titulo
de cidadania romana, sendo prestes atendido. Expôs sua
doutrina sem rebuços e, impressionando a autoridade com seu
verbo fluente e sedutor, encareceu as providências atinentes
ao seu caso, pedindo a presença de vários amigos como Acácio
Domício e outros, para deporem no concernente à sua conduta e
antecedentes honestos. O administrador vacilava na resolução a
tomar. Tinha ordens terminantes de recolher ao cárcere todos
os componentes de assembleias que se filiassem à crença
perseguida e execrada. No entanto, as determinações de ordem
superior continham certas restrições, no sentido de preservar,
de algum modo, os “humiliores” aos quais a Corte oferecia
recursos de liberdade, caso prestassem juramento a Júpiter,
abjurando o Cristo Jesus. (Humiliores eram as pessoas de
condição humilde sem qualquer título de dignidade social. Nota
de Emmanuel).
Examinando os títulos de Paulo e conhecendo, através de seus
informes verbais, as prestigiosas relações de que podia dispor
nos círculos romanos, o chefe da Prisão Mamertina resolveu
consultar Acácio Domício, sobre as providências cabíveis no
caso.
Chamado ao estudo da questão, o amigo do Apóstolo compareceu
solícito, procurando falar com o prisioneiro, depois de longa
entrevista com o diretor da prisão.
Domício explicou ao benfeitor que a situação era muito grave;
que o Prefeito dos Pretorianos estava investido de plenos
poderes para dirigir a campanha como melhor entendesse; que
toda a prudência era indispensável e que, como último recurso,
só restava um apelo à magnanimidade do imperador, perante o
qual o Apóstolo devia comparecer para defender-se
pessoalmente, caso fosse deferida a petição apresentada a
César naquele mesmo dia.
Ouvindo essas ponderações, o ex-rabino recordou que uma noite,
em meio à tempestade, entre a Grécia e a Ilha de Malta, ouvira
a voz profética de um mensageiro de Jesus, que lhe anunciava o
comparecimento perante César, sem esclarecer os motivos do
evento. Não seria aquele o momento previsto?
Milhares de irmãos estavam presos ou em extrema desolação.
Acusados de incendiários, não haviam encontrado uma voz firme
e resoluta que lhes advogasse a causa com o preciso
desassombro. Percebia em Acácio a preocupação pela sua
liberdade, mas, por trás das insinuações delicadas, havia um
convite discreto para que ocultasse a sua fé perante o
imperador, na hipótese de ser admitido à real entre vista.
Compreendia os receios do amigo, mas, intimamente, desejava
alcançar a audiência de Nero, a fim de esclarecê-lo quanto aos
sublimes princípios do Cristianismo. Constituir-se-ia advogado
dos irmãos perseguidos e desditosos.
Afrontaria de face a tirania ovante (triunfante), clamaria
pela retificação do seu ato injusto.
Se fosse novamente preso, voltaria ao cárcere com a
consciência edificada no cumprimento de um sagrado dever.
Depois de rápida meditação sobre a conveniência do recurso que
lhe parecia providencial, insistiu com Domício para que o
patrocinasse com os empenhos ao seu alcance.
O amigo do Apóstolo multiplicou atividades pessoais para
alcançar os fins em vista.
Valendo-se do prestígio de todos os que viviam em condições de
subalternidade junto do imperador, conseguiu a desejada
audiência para que Paulo de Tarso se defendesse, como
convinha, no apelo direto à autoridade de Augusto.
No dia aprazado, foi conduzido entre guardas, à presença de
Nero, que o recebeu curioso num vasto salão onde costumava
reunir os favoritos ociosos da sua Corte criminosa e
excêntrica. Interessava-lhe a personalidade do ex-rabino.
Queria conhecer o homem que mobilizara grande número de seus
íntimos para apoiar-lhe o recurso. A presença do Apóstolo dos
gentios causou-lhe enorme decepção. Que valor poderia ter
aquele velho insignificante e franzino? Ao lado de Tigelino e
de outros conselheiros perversos, fixou ironicamente a figura
de Paulo. Era incrível tamanho interesse em torno de uma
criatura tão vulgar. Quando se dispunha a recambiá-lo à prisão
sem lhe ouvir o apelo, um dos áulicos lembrou que seria
conveniente facultar-lhe a palavra, para que se lhe aferisse a
indigência mental. Nero, que jamais perdia ocasião de ostentar
suas presunções artísticas, considerou o alvitre
bem-apresentado e ordenou ao prisioneiro que falasse à
vontade.
Ladeado por dois guardas, o inspirado pregador do Evangelho
levantou a fronte cheia de nobreza, fitou César e os
companheiros do seu séquito leviano e começou resoluto:
— Imperador dos romanos, compreendo a grandeza desta hora em
que vos falo, apelando para os vossos sentimentos de
generosidade e justiça. Não me dirijo, aqui, a um homem
falível, a uma personalidade humana, simplesmente, mas ao
administrador que deve ser consciencioso e justo, ao maior dos
príncipes do mundo e que, antes de tomar o cetro e a coroa de
um Império imenso, deve considerar-se o pai magnânimo de
milhões de criaturas!
As palavras do velho Apóstolo ecoavam no recinto com o caráter
de uma profunda revelação. O imperador fixava-o, admirado e
enternecido. Seu temperamento caprichoso era sensível às
referências pessoais, onde predominassem as imagens
brilhantes. Percebendo que se impunha ao reduzido auditório, o
convertido de Damasco prosseguiu mais corajoso:
— Confiando em vossa longanimidade, pleiteei esta hora
inesquecível, a fim de apelar para o vosso coração, não
somente por mim, mas por milhares de homens, mulheres e
crianças, que padecem nos cárceres ou sucumbem nos circos do
martírio. Falo, aqui, em nome dessa multidão incontável de
sofredores, perseguida com requintes de crueldade por
favoritos de vossa Corte, que deveria ser constituída de
homens íntegros e humanitários.
Acaso não chegarão aos vossos ouvidos os lamentos angustiosos
da viuvez, da velhice e da orfandade? Oh! Augusto imperante do
trono de Cláudio, sabei que uma onda de perversidade e de
crimes odiosos varre os bairros da cidade imperial, arrancando
soluços dolorosos aos vossos tutelados miserandos! Ao lado da
vossa atividade governamental, por certo, rastejam víboras
venenosas que é necessário extirpar, a bem da tranquilidade e
do trabalho honesto do vosso povo. Esses cooperadores
perversos desviam vossos esforços do caminho reto, espalham
terror entre as classes desfavorecidas da sorte, ameaçam os
mais infelizes! São eles os acusadores dos prosélitos de uma
doutrina de amor e redenção. Não acrediteis no embuste dos
seus conselhos que ressumam crueldade. Ninguém trabalhou,
talvez, quanto os cristãos, no socorro às vítimas do incêndio
voraginoso. Enquanto os patrícios ilustres fugiam de Roma
desolada, enquanto os mais tímidos se recolhiam aos lugares
mais abrigados de perigo, os discípulos de Jesus percorriam os
quarteirões em chamas, aliviando as vítimas infortunadas.
Alguns imolaram a vida ao altruísmo dignificador.
E por fim, vede, os trabalhadores sinceros do Cristo foram
recompensados com a pecha de autores do crime hediondo, de
caluniadores sem entranhas.
Acaso não vos doeu a consciência ao endossardes tão infames
alegações, à revelia de uma sindicância imparcial e rigorosa?
No esfervilhar das calúnias, não vi surgir uma voz que vos
esclarecesse. Admito que participais, certamente, de tão
trágicas ilusões, porque não creio no desvirtuamento da vossa
autoridade reservada às melhores resoluções em favor do
Império. É por isso – imperador dos romanos! – que,
reconhecendo o grandioso poder enfeixado em vossas mãos, ouso
levantar minha voz para esclarecer-vos.
Atentai para a extensão gloriosa de vossos deveres. Não vos
entregueis à sanha de políticos inconscientes e cruéis.
Lembrai-vos de que, numa vida mais elevada que esta,
ser-vos-ão pedidas contas de vossa conduta nos atos públicos.
Não alimenteis a pretensão de que vosso cetro seja eterno.
Sois mandatário de um Senhor poderoso, que reside nos Céus.
Para vos convencerdes da singularidade de semelhante situação,
volvei um olhar, apenas, ao passado brumoso. Onde os vossos
antecessores? Em vossos palácios faustosos perambularam
guerreiros triunfantes, reis improvisados, herdeiros vaidosos
de suas tradições. Onde estão eles? A História nos conta que
chegaram ao trono com os aplausos delirantes das multidões.
Vinham soberbos, ostentando magnificências nos carros do
triunfo, decretando a morte dos inimigos, adornando-se com os
despojos sangrentos das vítimas.
Entretanto, bastou um sopro para que resvalassem do esplendor
do trono para a escuridão do sepulcro. Uns partiram pelas
consequências fatais dos próprios excessos destruidores;
outros assassinados pelos filhos da revolta e do desespero.
Recordando semelhante situação, não desejo transformar o culto
da vida em culto da morte, mas demonstrar que a fortuna
suprema do homem é a paz da consciência pelo dever cumprido.
Por todas essas razões, apelo para a vossa magnanimidade, não
só por mim como por todos os correligionários que gemem à
sombra dos cárceres, esperando o gládio da morte.
Observando-se longa pausa no verbo eloquente do orador, podia
ver-se a estranha sensação que a sua palavra havia causado.
Nero estava lívido.
Tigelino, profundamente irritado, procurava um recurso para
insinuar-se com alguma observação menos digna, a respeito do
postulante. As raras cortesãs presentes não disfarçavam a
indizível comoção que lhes abalara o sistema nervoso. Os
amigos do Prefeito dos Pretorianos mostravam-se indignados,
rubros de cólera. Depois de ouvir um áulico, o imperador
ordenou que o apelante se conservasse em silêncio, até que
tomasse as primeiras deliberações.
Estavam todos surpreendidos. Não se podia esperar de um velho
franzino e doente tamanho poder de persuasão, um desassombro
que raiava pela loucura, segundo as noções do patriciado. Por
muito menos, velhos e probos conselheiros da Corte haviam
alcançado o exílio ou a sentença de morte.
O filho de Agripina parecia abalado. Não mais assentava no
olho a impertinente esmeralda, à guisa de monóculo. Tinha a
impressão de haver escutado sinistros vaticínios.
Entregava-se, automaticamente, aos seus gestos
característicos, quando impressionado e nervoso. As
advertências do Apóstolo penetravam-lhe o coração, suas
palavras pareciam ecoar-lhe nos ouvidos para sempre. Tigelino
percebeu a delicadeza da situação e aproximou-se.
— Divino, exclamou o Prefeito dos Pretorianos em atitude
servil, a voz quase imperceptível, se quiserdes, o atrevido
poderá morrer aqui mesmo, ainda hoje!
— Não, não, redarguiu Nero comovido, este homem é dos mais
perigosos que tenho encontrado. Ninguém, como ele, ousou
comentar a presente situação nestes termos.
Vejo, por detrás da sua palavra, muitos vultos talvez
eminentes, que, conjugando valores, poderiam fazer-me grande
mal.
— Concordo, disse o outro hesitante, em voz muito baixa.
— Assim, pois, continuou o imperador prudentemente, é preciso
parecer magnânimo e sagaz. Dar-lhe-ei o perdão, por agora,
recomendando que não se afaste da cidade, até que se esclareça
de todo a situação dos seguidores do Cristianismo…
Tigelino escutava com um sorriso ansioso, enquanto o filho de
Agripina rematava em voz sumida:
— Mas vigiarás seus menores passos, mantê-lo-ás em custódia
oculta, e quando vier a festividade da reconstrução do Grande
Circo, aproveitaremos a oportunidade para despachá-lo a lugar
distante, onde deverá desaparecer para sempre.
O odioso Prefeito sorriu e acentuou:
— Ninguém resolveria melhor o intrincado problema.
Terminada a breve conversação, imperceptível aos demais, Nero
declarou, com enorme surpresa dos palacianos, conceder ao
apelante a liberdade que pleiteava em sua primeira defesa, mas
reservava o ato de absolvição para quando se apurasse
definitivamente a responsabilidade dos cristãos. Destarte, o
defensor do Cristianismo poderia permanecer em Roma, à
vontade, submetendo-se, contudo, ao compromisso de não se
ausentar da sede do Império, até que seu caso pessoal fosse
bastantemente esclarecido, O Prefeito dos Pretorianos lavrou a
sentença em pergaminho. Paulo de Tarso, por sua vez, estava
confortado e radiante.
O caviloso monarca pareceu-lhe menos mau, digno de amizade e
reconhecimento. Sentia-se possuído de grande alegria, por isso
que os resultados da sua primeira defesa eram de molde a
proporcionar nova esperança aos seus irmãos na fé.
Paulo retornou ao cárcere, ficando o administrador notificado
das últimas disposições a seu respeito. Só então lhe deram
liberdade.
Assaz esperançado, procurou os amigos; mas, por toda parte, só
encontrava desoladoras notícias. A maioria dos colaboradores
mais íntimos e prestimosos havia desaparecido, presos ou
mortos. Muitos haviam debandado temerosos do extremo
sacrifício. Por fim, sempre teve a satisfação de reencontrar
Lucas. O piedoso médico informou-o dos acontecimentos
dolorosos e trágicos que se repetiam, diariamente. Ignorando
que um guarda o seguia de longe, para lhe situar a nova
residência, Paulo, acompanhado do amigo, atingiu uma casa
pobre nas proximidades da Porta Capena.
Necessitando repousar e fortalecer o corpo debilitado, o velho
pregador procurou dois generosos irmãos, que o receberam com
imensa alegria. Trata-se de Lino e Cláudia, dedicados
servidores de Jesus.
O Apóstolo dos gentios instalou-se no lar pobre, com a
obrigação de comparecer à Prisão Mamertina, de três em três
dias, até que se aclarasse a situação, de modo definitivo.
Não obstante o consolo de que se sentia possuído, o venerável
amigo do gentilismo experimentava singulares presságios.
Surpreendia-se a refletir no coroamento da carreira apostólica
como se nada mais lhe restasse senão morrer por Jesus.
Combatia tais pensamentos, no propósito de continuar
propugnando pela difusão dos ensinamentos evangélicos. Não
mais pôde encaminhar-se à pregação das catacumbas, dada a
prostração física, mas, valia-se da colaboração afetuosa e
dedicada de Lucas para as epístolas que julgava necessárias.
Nessas, inclui-se a derradeira carta que escreveu a Timóteo,
aproveitando dois amigos que partiam para a Ásia. Paulo
escreve esse último documento ao discípulo muito amado,
tomando-se de singulares emoções que lhe enchem os olhos de
lágrimas abundantes. Sua alma generosa deseja confiar ao filho
de Eunice as últimas disposições, mas luta consigo mesmo, de
modo a não se dar por vencido.
O ex-rabino, ao traçar conceitos afetuosos, sente-se qual
discípulo chamado a esferas mais altas, sem poder furtar-se à
condição de homem que não deseja capitular na luta. Ao mesmo
tempo em que confia a Timóteo a convicção de haver terminado a
carreira, pede-lhe que envie a ampla capa de couro deixada em
Trôade, em casa de Carpo, visto necessitar de agasalho para o
corpo abatido. Enquanto lhe envia as últimas impressões cheias
de prudência e carinho, roga os seus bons ofícios para que
João Marcos venha à sede do Império, a fim de auxiliá-lo no
serviço apostólico.
Quando a mão trêmula e rugosa escreve melancolicamente:
— “Só Lucas está comigo”. (2ª Epístola a Timóteo.
Capítulo 4, versículo 11. Nota de Emmanuel), O convertido de
Damasco interrompe-se para chorar sobre os pergaminhos. Nesse
instante, porém, sente afagar-lhe a fronte um como flabelo
(leque) de asas que adejassem de leve. Brando conforto lhe
invade o coração amoroso e intrépido. Nesse ponto da carta,
recobra novo ânimo e volta a demonstrar decisão de luta,
terminando com as recomendações atinentes às necessidades da
vida material e aos seus labores evangélicos.
Paulo de Tarso, entretanto, entrega a missiva a Lucas para
expedi-la, sem conseguir disfarçar os seus lúgubres
pressentimentos. Em vão, o carinhoso médico e devotado amigo
procura desfazer aquelas apreensões. Debalde Lino e Cláudia
tentam distraí-lo.
Embora não abandonasse os trabalhos condizentes com a nova
situação, o velho Apóstolo mergulhou-se em profundas
meditações, das quais apenas se forrava para atender às
necessidades triviais.
Efetivamente, decorridas algumas semanas após a carta a
Timóteo, um grupo armado visitou a residência de Lino, depois
de meia-noite, na véspera das grandes festividades com que a
administração pública desejava assinalar a reconstrução do
Grande Circo. O dono da casa, a esposa e Paulo de Tarso foram
presos, escapando Lucas pelo fato de pernoitar em outra parte.
As três vítimas foram conduzidas a um cárcere do monte
Esquilino, dando provas de poderosa fé em face do martírio que
começava.
O Apóstolo foi atirado a uma cela escura e incomunicável, Os
próprios soldados se intimidavam da sua coragem. Ao
despedir-se de Lino e sua mulher, enquanto esta se desfazia em
lágrimas, o valoroso pregador abraçava- os dizendo:
— Tenhamos coragem. Esta deve ser a última vez em que nos
saudamos com os olhos materiais; mas havemos de avistar-nos no
reino do Cristo. O poder tirânico de César não atinge senão o
corpo miserável...
Em virtude de ordem expressa de Tigelino, o prisioneiro ficou
insulado de todos os companheiros.
Na escuridão do cárcere, que mais se assemelhava a uma cova
úmida, deu um balanço retrospectivo em todas as atividades de
sua vida, entregando-se a Jesus, inteiramente confiado na sua
divina misericórdia. Desejou sinceramente permanecer junto dos
irmãos que, por certo, se destinavam aos espetáculos nefandos
do dia imediato, esperando com eles comungar a hóstia dos
martírios, quando chegasse a hora extrema.
Não pôde dormir, a considerar as horas transcorridas desde o
momento da prisão, e concluiu que o dia do sacrifício estaria
iminente. Nem uma réstia de Luz penetrava o cubículo infecto e
acanhado. Percebia, somente, vagos rumores longínquos, que lhe
davam ideia da aglomeração popular nas vias públicas. As horas
passaram em expectativas que pareciam intermináveis. Depois de
angustioso cansaço, conseguiu algumas horas de sono. Acordou,
mais tarde, já incapacitado de calcular as horas decorridas.
Tinha sede e fome, mas orou com fervor, sentindo que fluíam
brandas consolações para sua alma, das fontes da providência
invisível. No fundo, estava preocupado com a situação dos
companheiros. Um guarda o informara de que enorme contingente
de cristãos seria levado ao circo e ele sofria por não ter
sido chamado a perecer com os irmãos, na arena do martírio,
por amor a Jesus. Mergulhado nessas reflexões, não tardou a
sentir que alguém abria, cautelosamente, a porta da enxovia.
Conduzido ao exterior, o ex-rabino defrontou seis homens
armados que o aguardavam junto de um veículo de regulares
proporções. Ao longe, no horizonte pontilhado de estrelas,
delineavam-se os tons maravilhosos da madrugada próxima.
O Apóstolo, silencioso, obedeceu à escolta. Ataram-lhe as mãos
calejadas, brutalmente, com grosseiras cordas. Um vigilante
noturno, visivelmente embriagado, aproximou-se e escarrou-lhe
na face. O ex-rabino recordou os sofrimentos de Jesus e
recebeu o insulto sem revelar o mínimo gesto de amor-próprio
ofendido.
Mais uma ordem, tomou lugar no veículo, junto dos seis homens
armados que o observavam, admirados de tanta serenidade e
coragem.
Os cavalos trotaram lépidos como se quisessem atenuar a
friagem úmida da manhã.
Chegados aos cemitérios que se enfileiravam ao longo da Via
Apia, as sombras noturnas se desfaziam quase completamente,
auspiciando um dia de sol radioso.
O militar que chefiava a escolta mandou parar o carro e,
fazendo descer o prisioneiro, disse-lhe hesitante:
— O Prefeito dos Pretorianos, por sentença de César, ordenou
que fosseis sacrificado no dia imediato ao da morte dos
cristãos votados às comemorações do circo, realizadas ontem.
Deveis saber, portanto, que estais vivendo os últimos minutos.
Calmo, olhos brilhantes e mãos amarradas, Paulo de Tarso, mudo
até então, exclamou, surpreendendo os verdugos com a sua
majestosa serenidade:
— Ciente da tarefa criminosa que vos incumbe desempenhar... Os
discípulos de Jesus não temem os algozes que só lhes podem
aniquilar o corpo. Não julgueis que vossa espada possa
eliminar-me a vida, de vez que, vivendo estes fugazes minutos
em corpo carnal, isso significa que vou penetrar, sem mais
demora, nos tabernáculos da vida eterna, com o meu Senhor
Jesus Cristo, o mesmo que vos tomará contas, tanto quanto a
Nero e Tigelino....
A patrulha sinistra estarrecia de assombro. Aquela energia
moral, no momento supremo, era de molde a abalar os mais
fortes. Percebendo a surpresa geral e cioso do seu mandato, o
chefe da escolta tomou a iniciativa do sacrifício. Os demais
companheiros pareciam desorientados, nervosos, trêmulos. O
inflexível preposto de Tigelino, porém, ordenou ao prisioneiro
que desse vinte passos à frente. Paulo de Tarso caminhou
serenamente, embora, no íntimo, se recomendasse a Jesus,
compreendendo a necessidade de amparo espiritual para o
testemunho supremo.
Ao chegar ao local indicado, o sequaz de Tigelino desembainhou
a espada, mas, nesse instante, tremeu-lhe a mão, fixando a
vítima, e falou-lhe em tom quase imperceptível:
— Lastimo ter sido designado para este feito e intimamente não
posso deixar de lamentar-vos...
Paulo de Tarso, erguendo a fronte quanto lhe era possível,
respondeu sem hesitar:
— Não sou digno de lástima. Tende antes compaixão de vós
mesmo, porquanto morro cumprindo deveres sagrados, em função
de vida eterna; enquanto que vós ainda não podeis fugir às
obrigações grosseiras da vida transitória. Chorai por vós,
sim, porque eu partirei buscando o Senhor da Paz e da Verdade,
que dá vida ao mundo; ao passo que vós, terminada vossa tarefa
de sangue, tereis de voltar à hedionda convivência dos
mandantes de crimes tenebrosos da vossa época!...
O algoz continuava a fitá-lo com assombro e Paulo, notando a
tremura com que ele empunhava a espada, concitou resoluto:
—Não tremais!... Cumpri vosso dever até ao fim! Um golpe
violento fendeu-lhe a garganta, seccionando quase inteiramente
a velha cabeça que se nevara aos sofrimentos do mundo.
Paulo de Tarso caiu redondamente, sem articular uma palavra. O
corpo alquebrado embolou-se no solo, como um despojo horrendo
e inútil. O sangue jorrava em golfões nas últimas contrações
da agonia rápida, enquanto a expedição regressava penosamente,
muda, dentro da luz matinal e triunfante.
O valoroso discípulo do Evangelho sentia a angústia das
derradeiras repercussões físicas; mas, aos poucos,
experimentava uma sensação branda de alívio reparador. Mãos
carinhosas e solicitas pareciam tocá-lo de leve, como se
arrancassem, tão só nesse contacto divino, as terríveis
impressões dos seus amargurosos padecimentos. Tomado de
surpresa, verificou que o transportavam a local distante e
pensou que amigos generosos desejavam assisti-lo, em lugar
mais conveniente, para que lhe não faltasse a doce consolação
da morte tranquila.
Depois de alguns minutos as dores haviam desaparecido por
completo.
Guardando a impressão de permanecer à sombra de alguma árvore
frondosa e amiga, experimentava a carícia das brisas matinais
que passavam em lufadas frescas. Tentou levantar-se, abrir os
olhos, identificar a paisagem. Impossível!
Sentia-se fraco, qual convalescente de moléstia prolongada e
gravíssima.
Reuniu as energias mentais, como lhe foi possível, e orou,
suplicando a Jesus permitisse o esclarecimento de sua alma,
naquela nova situação.
Sobretudo, a falta de visão deixava-o submerso em angustiosa
expectativa.
Recordou os dias de Damasco, quando a cegueira lhe invadira os
olhos de pecador, ofuscados pela luz gloriosa do Mestre.
Lembrou o carinho fraternal de Ananias e chorou ao influxo
daquelas singulares reminiscências. Depois de grande esforço,
conseguiu levantar-se e refletiu que o homem precisava servir
a Deus, ainda que tateasse em densas trevas.
Foi ai que ouviu passos de alguém que se aproximava de leve.
Ocorreu-lhe subitamente o dia inesquecível em que fora
visitado pelo emissário do Cristo, na pensão de Judas.
— Quem sois? – perguntou como o fizera outrora, naquele lance
inolvidável.
—Irmão Paulo... – começou a dizer o recém-chegado.
Mas o Apóstolo dos gentios, identificando aquela voz
bem-amada, interrompeu-lhe a palavra, bradando com júbilo
inexprimível: – Ananias!… Ananias!…
E caiu de joelhos, em pranto convulsivo.
— Sim, sou eu — disse a veneranda entidade pousando a mão
luminosa na sua fronte; — um dia Jesus mandou que te
restituísse a visão, para que pudesses conhecer o caminho
áspero dos seus discípulos e hoje, Paulo, concedeu-me a dita
de abrir-te os olhos para a contemplação da vida eterna.
Levanta-te! Já venceste os últimos inimigos, alcançaste a
coroa da vida, atingiste novos planos da Redenção!…
O Apóstolo levantou-se afogado em lágrimas de jubilosa
gratidão, enquanto Ananias, pousando a destra nos seus olhos
apagados, exclamou com carinho:
— Vê, novamente, em nome de Jesus!… Desde a revelação de
Damasco, dedicaste os olhos ao serviço do Cristo! Contempla,
agora, as belezas da vida eterna, para que possamos partir ao
encontro do Mestre amado!…
Então, o devotado trabalhador do Evangelho reconheceu as
maravilhas que Deus reserva aos seus cooperadores no mundo
cheio de sombras.
Tomado de espanto, identificou a paisagem que o rodeava. Não
longe estavam as catacumbas da Via Apia. Misteriosas forças o
haviam afastado do quadro triste em que se decompunham os
despojos sangrentos. Sentiu-se jovem e feliz. Compreendia,
agora, a grandeza do corpo espiritual no ambiente estranho aos
organismos da Terra. Suas mãos estavam sem rugas, a epiderme
sem cicatrizes. Tinha a impressão de haver sorvido um
misterioso elixir de juventude. Uma túnica de alvura
resplandecente envolvia-o em graciosas ondulações. Mal
despertava do seu deslumbramento, quando alguém lhe bateu
levemente no ombro: Era Gamaliel que lhe trazia um ósculo
fraternal. Paulo de Tarso sentiu-se o mais ditoso dos seres.
Abraçando-se ao velho mestre e a Ananias, num só gesto de
ternura, exclamava entre lágrimas:
— Só Jesus me poderia conceder alegria igual.
Mal não acabara de o dizer, começaram a chegar velhos
companheiros de lutas terrenas, amigos de outros tempos,
irmãos desvelados que lhe vinham trazer as boas-vindas, ao
transpor os umbrais da eternidade. Os deslumbramentos do
Apóstolo sucediam-se ininterruptos. Como se ficassem em Roma,
à sua espera, todos os mártires das festividades da véspera
chegaram cantando, nas proximidades das catacumbas. Todos
queriam abraçar o generoso discípulo, oscular-lhe as mãos.
Nesse ínterim, dando a impressão de nascer em maravilhosas
fontes do mais além, ouviu-se uma cariciosa melodia
acompanhada de vozes argentinas, que deviam ser angélicas.
Surpreendido com a beleza da composição, intraduzível na
linguagem humana, Paulo ouvia o venerando amigo de Damasco,
que explicava solícito:
—Este é o hino dos prisioneiros libertados!…
Observando-lhe a intensa comoção, Ananias perguntou qual o seu
primeiro desejo na esfera dos redimidos. Paulo de Tarso,
intimamente, recordou Abigail e os anelos sagrados do coração,
como aconteceria a qualquer ser humano; mas, integrado no
ministério divino, que manda esquecer os caprichos mais
singelos, e sem trair a gratidão à misericórdia do Cristo,
respondeu comovidamente:
— Meu primeiro desejo seria rever Jerusalém, onde pratiquei
tantos males e, ali, orar a Jesus, para ofertar-lhe o meu
agradecimento.
Tão depressa o disse e a luminosa assembleia se punha em
movimento.
Assombrado com o poder da volitação, Paulo observava que as
distâncias nada representavam agora para as suas
possibilidades espirituais.
De mais alto continuavam fluindo harmonias de sublimada
beleza. Eram hinos que exaltavam a ventura dos trabalhadores
triunfantes, e a misericórdia das bênçãos do Todo Poderoso.
Paulo desejava imprimir à divina excursão o sabor de suas
reminiscências.
Para esse fim, o grupo seguiu ao longo da Via Apia até Arícia,
de onde se desviou em direção a Pouzzoles, em cuja igreja se
deteve em preces, por alguns minutos de ventura inigualável.
Daí a caravana espiritual demandou a Ilha de Malta.
Transportando-se em seguida para o Peloponeso, onde Paulo se
extasiou na contemplação de Corinto, dando curso a recordações
carinhosas e doces. Inflamados de entusiasmo fraternal, os
componentes da caravana acompanhavam o valoroso discípulo no
caminho das sagradas lembranças que lhe vibravam no coração.
Atenas, Tessalônica, Filipes, Neápolis, Trôade e Éfeso foram
pontos nos quais o Apóstolo estacionara, demoradamente, orando
com lágrimas de gratidão ao Altíssimo.
Atravessadas as zonas da Panfília e da Cilícia, entraram na
Palestina, tomados de júbilo e sagrado respeito. Em todos os
caminhos incorporavam-se emissários e trabalhadores do Cristo.
Paulo não conseguia avaliar a alegria da chegada a Jerusalém,
sob o prodigioso azul do crepúsculo.
Obedecendo ao alvitre de Ananias, reuniram-se no cimo do
Calvário e ali cantaram hinos de esperanças e de luz.
Lembrando os erros do passado amarguroso, Paulo de Tarso
ajoelhou-se e elevou a Jesus fervorosa súplica. Os
companheiros remidos recolheram-se em êxtase, enquanto ele,
transfigurado, em pranto, procurava exprimir a mensagem de
gratidão ao Divino Mestre.
Desenhou-se então, na tela do Infinito, um quadro de beleza
singular.
Como se houvesse rasgado a imensurável umbela azul, surgiu na
amplidão do espaço uma senda luminosa e três vultos que se
aproximavam radiantes. O Mestre estava no centro, conservando
Estevão à direita e Abigail ao lado do coração. Deslumbrado,
arrebatado, o Apóstolo apenas pôde estender os braços, porque
a voz lhe fugia no auge da comoção. Lágrimas abundantes
perolavam-lhe o rosto também transfigurado. Abigail e Estevão
adiantaram-se.
Ela tomou-lhe delicadamente as mãos num assomo de ternura,
enquanto Estevão o abraçava com efusão.
Paulo quis lançar-se nos braços dos dois irmãos de Corinto,
beijar-lhes as mãos no seu arroubo de ventura, mas, qual a
criança dócil que tudo devesse ao Mestre dedicado e bom,
procurou o olhar de Jesus, para sentir-lhe a aprovação.
O Mestre sorriu, indulgente e carinhoso, e falou:
— Sim, Paulo, sê feliz! Vem, agora, a meus braços, pois é da
vontade de meu Pai que os verdugos e os mártires se reúnam,
para sempre, no meu reino!...
E assim unidos, ditosos, os fiéis trabalhadores do Evangelho
da redenção seguiram as pegadas do Cristo, em demanda às
esferas da Verdade e da Luz...
Lá em baixo, Jerusalém contemplava embevecida, o dilúculo
vespertino, esperando o luar que não tardaria com os primeiros
clarões...
Kardec e amigos
Jesus Cristo
Chico Xavier
..."Recordemos que o
Espiritismo nos solicita uma espécie permanente de caridade:
a caridade de sua própria divulgação" Emmanuel
Abigail, doente
Emmanuel e Chico Xavier
Aparição de Jesus