Chico Xavier / Emmanuel
Transformado em rude operário, Saulo de
Tarso apresentava notável diferença fisionômica.
Acentuara-se-lhe a feição de asceta. Os olhos, contudo,
denunciando o homem ponderado e resoluto, revelavam igualmente
uma paz profunda e indefinível.
Compreendendo que a situação não lhe permitia idealizar
grandes projetos de trabalho, contentava-se em fazer o que
fosse possível. Sentia prazer em testemunhar a mudança de
conduta aos antigos camaradas de triunfo, por ocasião das
festividades tarsenses. Orgulhava-se, quase, de viver do
modesto rendimento do seu árduo labor. Vezes várias, ele
próprio atravessava as praças mais frequentadas, carregando
pesados fardos de pelo caprino. Os conterrâneos admiravam a
atitude humilde, que era agora o seu traço dominante. As
famílias ilustres contemplavam-no com piedade. Todos os que o
conheceram na fase áurea da juventude, não se cansavam de
lamentar aquela transformação. A maioria tratava-o como
alienado pacífico. Por isso, nunca faltavam encomendas ao
tecelão das proximidades do Tauro. A simpatia dos seus
concidadãos, que jamais lhe compreenderiam integralmente as
ideias novas, tinha a virtude de amplificar seu esforço,
aumentando-lhe os parcos recursos.
Ele, por sua vez, vivia tranquilo e satisfeito. O programa de
Abigail constituía permanente mensagem ao seu coração.
Levantava-se, todos os dias, procurando amar a tudo e a todos;
para prosseguir nos caminhos retos, trabalhava ativamente. Se
lhe chegavam desejos ansiosos, inquietações para intensificar
suas atividades fora do tempo apropriado, bastava esperar; se
alguém dele se compadecia, se outros o apelidavam de louco,
desertor ou fantasista, procurava esquecer a incompreensão
alheia com o perdão sincero, refletindo nas vezes muitas que,
também ele, ofendera os outros, por ignorância. Estava sem
amigos, sem afetos, suportando os desencantos da soledade que,
se não tinha companheiros carinhosos, também não necessitava
temer os sofrimentos oriundos das amizades infiéis. Procurava
encontrar no dia o colaborador valioso que não lhe subtraia as
oportunidades. Com ele tecia tapetes complicados, barracas e
tendas, exercitando-se na paciência indispensável aos
trabalhos outros que ainda o esperavam nas encruzilhadas da
vida. A noite era a bênção do espírito. A existência corria
sem outros pormenores de maior importância, quando, um dia,
foi surpreendido com a visita inesperada de Barnabé.
O ex-levita de Chipre encontrava-se em Antioquia a braços com
sérias responsabilidades. A igreja ali fundada reclamava a
cooperação de servos inteligentes.
Inúmeras dificuldades espirituais a serem resolvidas, intensos
serviços a fazer. A instituição fora iniciada por discípulos
de Jerusalém, sob os alvitres generosos de Simão Pedro. O
ex-pescador de Cafarnaum ponderou que deveriam aproveitar o
período de calma, no capítulo das perseguições, para que os
laços do Cristo fossem dilatados. Antioquia era dos maiores
centros operários. Não faltavam contribuintes para o custeio
das obras, porque o empreendimento grandioso tivera
repercussão nos ambientes de trabalho mais humildes;
entretanto, escasseavam os legítimos trabalhadores do
pensamento.
Ainda, aí, entrou a compreensão de Pedro para que não faltasse
ao tecelão de Tarso o ensejo devido. Observando as
dificuldades, depois de indicar Barnabé para a direção do
núcleo do “Caminho”, aconselhou-o a procurar o convertido de
Damasco, a fim de que sua capacidade alcançasse um campo novo
de exercício espiritual.
Saulo recebeu o amigo com imensa alegria.
Vendo-se lembrado pelos irmãos distantes, tinha a impressão de
receber um novo alento.
O companheiro expôs o elevado plano da igreja que lhe
reclamava o concurso fraterno, o desdobramento dos serviços, a
colaboração constante de que poderiam dispor para a construção
das obras de Jesus Cristo. Barnabé exaltou a dedicação dos
homens humildes que cooperavam com ele. A instituição,
todavia, reclamava irmãos dedicados, que conhecessem
profundamente a Lei de Moisés e o Evangelho do Mestre, a fim
de não ser prejudicada a tarefa da iluminação intelectual.
O ex-rabino edificou-se com a narração do outro e não teve
dúvidas em atender ao apelo. Apenas apresentava uma condição,
qual a de prosseguir no seu ofício, de maneira a não ser
pesado aos seus confrades de Antioquia. Inútil qualquer
objeção de Barnabé, nesse sentido.
Pressuroso e prestativo, Saulo de Tarso em breve se instalava
em Antioquia, onde passou a cooperar ativa mente com os amigos
do Evangelho.
Durante largas horas do dia, consertava tapetes ou se
entretinha no trabalho de tecelagem. Destarte, ganhava o
necessário para viver, tornando-se um modelo no seio da nova
igreja. Utilizando o grande cabedal de experiências já
adquirido nas refregas e padecimentos do mundo, jamais o viam
ocupar os primeiros lugares. Nos Atos dos Apóstolos, vemos-lhe
o nome citado sempre por último, quando se referem aos
colaboradores de Barnabé. Saulo havia aprendido a esperar. Na
comunidade, preferia os labores mais simples. Sentia-se bem,
atendendo aos doentes numerosos. Recordava Simão Pedro e
procurava cumprir os novos deveres na pauta da bondade
despretensiosa, embora imprimindo em tudo o traço da sua
sinceridade e franqueza, quase ásperas.
A igreja não era rica, mas a boa vontade dos componentes
parecia provê-la de graças abundantes.
Antioquia, cidade cosmopolita, tornara-se um foco de grandes
devassidões.
Na sua paisagem enfeitada de mármores preciosos, que deixavam
entrever a opulência dos habitantes, proliferava toda a
espécie de abusos. Os afortunados entregavam-se aos prazeres
licenciosos, desenfreadamente. Os bosques artificiais reuniam
assembleias galantes, onde criminosa tolerância caracterizava
todos os propósitos. A riqueza pública ensejava grandes
possibilidades às extravagâncias. A cidade estava cheia de
mercadores que se guerreavam sem tréguas, de ambições
inferiores, de dramas passionais. Mas, diariamente, à noite,
se reuniam, na casa singela onde funcionava a célula do
“Caminho”, grandes grupos de pedreiros, de soldados
paupérrimos, de lavradores pobres, ansiosos todos pela
mensagem de um mundo melhor. As mulheres de condição humilde
compareciam, igualmente, em grande número.
A maioria dos frequentadores interessava-se por conselhos e
consolações, remédios para as chagas do corpo e do espírito.
Geralmente, eram Barnabé e Manahen os pregadores mais
destacados, ministrando o Evangelho às assembleias
heterogêneas. Saulo de Tarso limitava-se a cooperar. Ele mesmo
notara que Jesus, por certo, recomendara absoluto recomeço em
suas experiências. Certa feita, fez o possível por conduzir as
pregações gerais, mas nada conseguiu. A palavra, tão fácil
noutros tempos, parecia retrair-se-lhe na garganta.
Compreendeu que era justo padecer as torturas do reinício, em
virtude da oportunidade que não soubera valorizar. Não
obstante as barreiras que se antepunham às suas atividades,
jamais se deixou avassalar pelo desânimo. Se ocupava a
tribuna, tinha extrema dificuldade na interpretação das ideias
mais simples. Por vezes, chegava a corar de vergonha ante o
público que lhe aguardava as conclusões com ardente interesse,
dada a fama de pregador de Moisés, no Templo de Jerusalém.
Além disso, o sublime acontecimento de Damasco cercava-o de
nobre e justa curiosidade. O próprio Barnabé, várias vezes,
surpreendera-se com a sua dialética confusa na interpretação
dos Evangelhos e refletia na tradição do seu passado como
rabino, que não chegara a conhecer pessoalmente, e na timidez
que o assomava, justo no momento de conquistar o público. Por
esse motivo, foi afastado discretamente da pregação e
aproveitado noutros misteres. Saulo, porém, compreendia e não
desanimava. Se não era possível regressar, de pronto, ao labor
da pregação, preparar-se-ia, de novo, para isso. Nesse
intuito, retinha irmãos humildes na sua tenda de trabalho e,
enquanto as mãos teciam com segurança, entabulava conversas
sobre a missão do Cristo. À noite, promovia palestras na
igreja com a cooperação de todos os presentes. Enquanto não se
organizava a direção superior para o trabalho das assembleias,
sentava-se com os operários e soldados que compareciam em
grande número. Interessava a atenção das lavadeiras, das
jovens doentes, das mães humildes. Lia, às vezes, trechos da
Lei e do Evangelho, estabelecia comparações, provocava
pareceres novos. Dentro daquelas atividades constantes, a
lição do Mestre parecia sempre tocada de luzes progressivas.
Em breve, o ex-discípulo de Gamaliel tornava-se um amigo amado
de todos. Saulo sentia-se imensamente feliz. Tinha enorme
satisfação sempre que via a tenda pobre repleta de irmãos que
o procuravam, tomados de simpatia. As encomendas não faltavam.
Havia sempre trabalho suficiente para não se tornar pesado a
ninguém. Ali conheceu Trófimo, que lhe seria companheiro fiel
em muitos transes difíceis; ali abraçou Tito, pela primeira
vez, quando esse abnegado colaborador mal saía da infância.
A existência, para o ex-rabino, não podia ser mais tranquila
nem mais bela.
Era-lhe o dia cheio das notas harmoniosas do trabalho digno e
construtivo; à noite, recolhia-se à igreja em companhia dos
irmãos, entregando-se prazenteiro às lides sublimes do
Evangelho.
A instituição de Antioquia era, então, muito mais sedutora que
a própria igreja de Jerusalém. Vivia-se ali num ambiente de
simplicidade pura, sem qualquer preocupação com as disposições
rigoristas do judaísmo. Havia riqueza, porque não faltava
trabalho. Todos amavam as obrigações diuturnas, aguardando o
repouso da noite nas reuniões da igreja, qual uma bênção de
Deus. Os israelitas, distantes do foco das exigências
farisaicas, cooperavam com os gentios, sentindo-se todos
unidos por soberanos laços fraternais.
Raríssimos os que falavam na circuncisão e que, por
constituírem fraca minoria, eram contidos pelo convite amoroso
à fraternidade e à união. As assembleias eram dominadas por
ascendentes profundos de amor espiritual. A solidariedade
estabelecera-se com fundamentos divinos. As dores e os júbilos
de um pertenciam a todos. A união de pensamentos em torno de
um só objetivo dava ensejo a formosas manifestações de
espiritualidade. Em noites determinadas, havia fenômenos de
“vozes diretas”. A instituição de Antioquia foi um dos raros
centros apostólicos onde semelhantes manifestações chegaram a
atingir culminância indefinível. A fraternidade reinante
justificava essa concessão do Céu. Nos dias de repouso, a
pequena comunidade organizava estudos evangélicos no campo. A
interpretação dos ensinos de Jesus era levada a efeito em
algum recanto ameno e solitário da Natureza, quase sempre às
margens do Orontes.
Saulo encontrara em tudo isso um mundo diferente. A
permanência em Antioquia era interpretada como um auxílio de
Deus. A confiança recíproca, os amigos dedicados, a boa
compreensão, constituem alimento sagrado da alma.
Procurava valer-se da oportunidade, a fim de enriquecer o
celeiro íntimo.
A cidade estava repleta de paisagens morais menos dignas, mas
o grupo humilde dos discípulos anônimos aumentava sempre em
legítimos valores espirituais.
A igreja tornou-se venerável por suas obras de caridade e
pelos fenômenos de que se constituíra organismo central.
Viajantes ilustres visitavam-na cheios de interesse. Os mais
generosos faziam questão de lhe amparar os encargos de
benemerência social. Foi aí que surgiu, certa vez, um médico
muito jovem, de nome Lucas. De passagem pela cidade,
aproximou-se da igreja animado por sincero desejo de aprender
algo de novo. Sua atenção fixou-se, de modo especial, naquele
homem de aparência quase rude, que fermentava as opiniões,
antes que Barnabé empreendesse a abertura dos trabalhos.
Aquelas atitudes de Saulo, evidenciando a preocupação generosa
de ensinar e aprender simultaneamente, impressionaram-no a
ponto de apresentar-se ao ex-rabino, desejoso de ouvi-lo com
mais frequência.
— Pois não, disse o Apóstolo satisfeito, minha tenda está às
suas ordens.
E enquanto permaneceu na cidade, ambos se empenhavam
diariamente em proveitosas palestras, concernentes ao ensino
de Jesus. Retomando aos poucos seu poder de argumentação,
Saulo de Tarso não tardou a incutir no espírito de Lucas as
mais sadias convicções. Desde a primeira entrevista, o hóspede
de Antioquia não mais perdeu uma só daquelas assembleias
simples e construtivas. Na véspera de partir, fez uma
observação que modificaria para sempre a denominação dos
discípulos do Evangelho.
Barnabé havia terminado os comentários da noite, quando o
médico tomou a palavra para despedir-se. Falava emocionado e,
por fim, considerou acertadamente:
— Irmãos, afastando-me de vós, eu levo o propósito de
trabalhar pelo Mestre, empregando nisso todo o cabedal de
minhas fracas forças. Não tenho dúvida alguma quanto à
extensão deste movimento espiritual. Para mim, ele
transformará o mundo inteiro. Entretanto, pondero a
necessidade de imprimirmos a melhor expressão de unidade às
suas manifestações. Quero referir-me aos títulos que nos
identificam a comunidade. Não vejo na palavra “caminho” uma
designação perfeita, que traduza o nosso esforço, Os
discípulos do Cristo são chamados “viajores”, “peregrinos”,
“caminheiros”. Mas há viandantes e estiadas de todos os
matizes, O mal tem, igualmente, os seus caminhos, Não seria
mais justo chamarmo-nos “cristãos” uns aos outros?
Este título nos recordará a presença do Mestre, nos dará
energia em seu nome e caracterizará, de modo perfeito, as
nossas atividades em concordância com os seus ensinos.
A sugestão de Lucas foi aprovada com geral alegria. O próprio
Barnabé abraçou-o, enternecidamente, agradecendo o acertado
alvitre, que vinha satisfazer a certas aspirações da
comunidade inteira. Saulo consolidou suas impressões
excelentes, a respeito daquela vocação superior que começava a
exteriorizar-se.
No dia seguinte, o novo convertido despediu-se do ex-rabino
com lágrimas de reconhecimento. Partiria para a Grécia, mas
fazia questão de lembrá-lo em todos os pormenores da nova
tarefa. Da porta de sua tenda rústica, o ex-doutor da Lei
contemplou o vulto de Lucas até que desaparecesse ao longe,
voltando ao tear, de olhos úmidos.
Gratamente emocionado reconhecia que, no trato do Evangelho,
aprendera a ser amigo fiel e dedicado. Cotejava os sentimentos
de agora com as concepções mais antigas e verificava profundas
diferenças. Outrora, suas relações se prendiam a conveniências
sociais, os afeiçoados vinham e seguiam sem deixar grandes
sinais em sua alma vibrátil; agora, o coração renovara-se em
Jesus Cristo, tornara-se mais sensível em contacto com o
divino, as dedicações sinceras insculpiam-se nele para sempre.
O alvitre de Lucas estendeu-se rapidamente a todos os núcleos
evangélicos, inclusive Jerusalém, que o recebeu com especial
simpatia. Dentro de breve tempo, em toda parte, a palavra
“cristianismo” substituía a palavra “caminho”.
A igreja de Antioquia continuava oferecendo as mais belas
expressões evolutivas. De todas as grandes cidades afluíam
colaboradores sinceros. As assembleias estavam sempre cheias
de revelações. Numerosos irmãos profetizavam, animados do
Espírito Santo. (Ninguém deverá ignorar que Espírito Santo
designa a legião dos Espíritos santificados na luz e no amor,
que cooperam com o Cristo desde os primeiros tempos da
Humanidade. – Nota de Emmanuel.)
Foi aí que Agabo, grande inspirado pelas forças do plano
superior, recebeu a mensagem referente às tristes provações de
que Jerusalém seria vítima. Os orientadores da instituição
ficaram sobremaneira impressionados. Por insistência de Saulo,
Barnabé expediu um mensageiro a Simão Pedro, enviando notícias
e exortando-o à vigilância. O emissário regressou, trazendo a
impressão de surpresa do ex-pescador, que agradecia os apelos
generosos.
Com efeito, daí a meses, um portador da igreja de Jerusalém
chegava apressadamente a Antioquia, trazendo notícias
alarmantes e dolorosas. Em longa missiva, Pedro relatava a
Barnabé os últimos fatos que o acabrunhavam.
Escrevia na data em que Tiago, filho de Zebedeu, sofrera a
pena de morte, em grande espetáculo público. Herodes Agripa
não lhe tolerara as pregações cheias de sinceridade e apelos
justos, O irmão de João vinha da Galileia com a primitiva
franqueza dos anúncios do novo Reino. Inadaptado ao
convencionalismo farisaico, levara muito longe o sentido de
suas exortações profundas.
Verificou-se perfeita repetição dos acontecimentos que
assinalaram a morte de Estevão. Os judeus exasperaram-se
contra as noções de liberdade religiosa.
Sua atitude, sincera e simples, foi levada à conta de
rebeldia. Tremendas perseguições irromperam sem tréguas. A
mensagem de Pedro relatava também as penosas dificuldades da
igreja. A cidade sofria fome e epidemias.
Enquanto a perseguição cruel apertava o cerco, inumeráveis
filas de famintos e doentes batiam-lhe às portas. O
ex-pescador solicitava de Antioquia os socorros possíveis.
Barnabé apresentou as notícias, de alma confrangida. A
laboriosa comunidade solidarizou-se, de bom grado, para
atender a Jerusalém.
Recolhidas as cotas de auxílio, o ex-levita de Chipre
prontificou-se a ser o portador da resposta da igreja;
Barnabé, porém, não poderia partir só. Surgiram dificuldades
na escolha do companheiro necessário. Sem hesitar, Saulo de
Tarso ofereceu-se para lhe fazer companhia. Trabalhava por
conta própria, explicou aos amigos, e desse modo poderia tomar
a iniciativa de acompanhar Barnabé, sem esquecer as obrigações
que ficavam à sua espera.
O discípulo de Simão Pedro alegrou-se. Aceitou jubiloso, o
oferecimento.
Daí a dois dias, ambos demandavam Jerusalém corajosamente. A
jornada era assaz difícil, mas os dois venceram os caminhos no
menor prazo de tempo.
Imensas surpresas aguardavam os emissários de Antioquia, que
já não encontraram Simão Pedro em Jerusalém. As autoridades
haviam efetuado a prisão do ex-pescador de Cafarnaum, logo
após a dolorosa execução do filho de Zebedeu. Amargas
provações haviam caído sobre a igreja e seus discípulos. Saulo
e Barnabé foram recebidos especialmente por Prócoro, que os
informou de todos os sucessos. Por haver solicitado
pessoalmente o cadáver de Tiago para dar-lhe sepultura, Simão
Pedro fora preso, sem compaixão e com todo o desrespeito,
pelos criminosos sequazes de Herodes.
Mas, dias depois, um anjo visitara o cárcere do Apóstolo,
restituindo-o à liberdade. O narrador referiu-se ao feito, com
os olhos fulgurantes de fé.
Contou o júbilo dos irmãos quando Pedro surgiu à noite com o
relato da sua libertação. Os companheiros mais ponderados
induziram-no, então, a sair de Jerusalém e esperar na igreja
incipiente de Jope a normalidade da situação.
Prócoro contou como o Apóstolo relutara em aquiescer a esse
alvitre dos mais prudentes. João e Filipe haviam partido. As
autoridades apenas toleravam a igreja em consideração à
personalidade de Tiago, que, pelas suas atitudes de profundo
ascetismo impressionava a mentalidade popular, criando em
torno dele uma atmosfera de respeito intangível. Na mesma
noite da libertação, por atender-lhe a insistência, Pedro fora
conduzido à igreja pelos amigos. Desejava ficar, despreocupado
das consequências; mas, quando viu a casa cheia de enfermos,
de famintos, de mendigos andrajosos, houve de ceder a Tiago a
direção da comunidade e partir para Jope, a fim de que os
pobrezinhos não tivessem a situação agravada por sua causa.
Saulo mostrava-se grandemente impressionado com tudo aquilo.
Junto de Barnabé, tratou logo de ouvir a palavra de Tiago, o
filho de Alfeu. O Apóstolo recebeu-os de bom grado, mas,
podiam-se-lhe notar desde logo os receios e inquietações.
Repetiu as informações de Prócoro, em voz baixa, como se
temesse a presença de delatores; alegou a necessidade de
transigência com as autoridades; invocou o precedente da morte
do filho de Zebedeu; referiu-se às modificações essenciais que
introduzira na igreja. Na ausência de Pedro, criara novas
disciplinas. Ninguém poderia falar do Evangelho sem referir-se
à Lei de Moisés. As pregações só poderiam ser ouvidas pelos
circuncisos. A igreja estava equiparada às sinagogas. Saulo e
o companheiro ouviram-no com grande surpresa. Entregaram-lhe
em silêncio o auxílio financeiro de Antioquia.
A ausência eventual de Simão transformara a estrutura da obra
evangélica.
Aos dois recém-chegados tudo parecia inferior e diferente.
Barnabé, sobretudo, notara algo, em particular. É que o filho
de Alfeu, elevado à chefia provisória, não os convidou para se
hospedarem na igreja. À vista disso, o discípulo de Pedro foi
procurar a casa de sua irmã Maria Marcos, mãe do futuro
evangelista, que os recebeu com grande júbilo. Saulo sentiu-se
bem no ambiente de fraternidade pura e simples. Barnabé, por
sua vez, reconheceu que a casa da irmã se tornara o ponto
predileto dos irmãos mais dedicado s ao Evangelho. Ali se
reuniam, à noite, às ocultas, como se a verdadeira igreja de
Jerusalém houvesse transferido sua sede para um reduzido
círculo familiar. Observando as assembleias íntimas do
santuário doméstico, o ex-rabino recordou a primeira reunião
de Damasco. Tudo era afabilidade, carinho, acolhimento. A mãe
de João Marcos era uma das discípulas mais desassombradas e
generosas. Reconhecendo as dificuldades dos irmãos de
Jerusalém, não vacilara em colocar seus bens à disposição de
todos os necessitados, nem hesitou em abrir as portas para que
as reuniões evangélicas, em sua feição mais pura, não
sofressem solução de continuidade.
A palestra de Saulo impressionou-a vivamente. Seduziam-na,
sobretudo, as descrições do ambiente fraternal da igreja
antioquiana, cujas virtudes Barnabé não cessava de glosar
instantemente.
Maria expôs ao irmão o seu grande sonho. Queria dar o filho,
ainda muito jovem, a Jesus. De há muito vinha preparando o
menino para o apostolado.
Todavia, Jerusalém afogava-se em lutas religiosas, sem
tréguas. As perseguições surgiam e ressurgiam. A organização
cristã da cidade experimentava profundas alternativas. Só a
paciência de Pedro conseguia manter a continuidade do ideal
divino. Não seria melhor que João Marcos se transferisse para
Antioquia, junto do tio? Barnabé não se opôs ao plano da irmã
entusiasmada. O jovem, a seu turno, seguia as conversações,
mostrando-se satisfeito. Chamado a opinar, Saulo percebeu que
os irmãos deliberavam sem consultar o interessado. O rapaz
acompanhava os projetos, sempre jovial e sorridente. Foi aí
que o ex-doutor da Lei, profundo conhecedor da alma humana,
desviou a palavra, procurando interessá-lo mais diretamente.
— João, disse bondosamente, sentes, de fato, verdadeira
vocação para o ministério?
— Sem dúvida, confirmou o adolescente algo perturbado.
— Mas, como defines teus propósitos? – tornou a perguntar o
ex-rabino.
— Penso que o ministério de Jesus é uma glória – respondeu um
tanto acanhado sob o exame daquele olhar ardente e inquiridor.
Saulo refletiu um instante e sentenciou:
— Teus intuitos são louváveis, mas é preciso não esqueceres
que a mínima expressão de glória mundana apenas chega após o
serviço. Se assim acontece no mundo, que não será com o
trabalho para o reino do Cristo?
Mesmo porque, na Terra, todas as glórias passam e a de Jesus é
eterna!…
O jovem anotou a observação e, embora desconcertado pela
profundez dos conceitos, acrescentou:
— Sinto-me preparado para os labores do Evangelho e, além
disso, mamãe faz muito gosto que eu aprenda os melhores
ensinamentos nesse sentido, a fim de tornar-me um pregador das
verdades de Deus.
Maria Marcos olhou o filho, cheia de maternal orgulho. Saulo
percebeu a situação, teve um dito alegre e depois acentuou:
— Sim, as mães sempre nos desejam todas as glórias deste e do
outro mundo. Por elas, nunca haveria homens perversos. Mas, no
que nos diz respeito, convém lembrar as tradições evangélicas.
Ainda ontem, lembrei a generosa inquietação da esposa de
Zebedeu, ansiosa pela glorificação dos filhinhos!… Jesus lhe
recebeu os anseios maternais, mas, não deixou de lhe perguntar
se os candidatos ao Reino estavam devidamente preparados para
beber do seu cálice… E, ainda agora, vimos que o cálice
reservado a Tiago continha vinagre tão amargo quanto o da cruz
do Messias!…
Todos silenciaram, mas Saulo continuou em tom prazenteiro,
modificando a impressão geral:
— Isto não quer dizer que devamos desanimar ante as
dificuldades, para aliciar as glórias legítimas do Reino de
Jesus, Os obstáculos renovam as forças. A finalidade divina
deve representar nosso objetivo supremo. Se assim pensares,
João, não duvido de teus futuros triunfos.
Mãe e filho sorriram tranquilos.
Ali mesmo, combinaram a partida do jovem, em companhia de
Barnabé. O tio discorreu ainda sobre as disciplinas
indispensáveis, o espírito de sacrifício reclamado pela nobre
missão. Naturalmente, se Antioquia representava um ambiente de
profunda paz, era também um núcleo de trabalhos ativos e
constantes. João precisaria esquecer qualquer expressão de
esmorecimento, para entregar-se, de alma e corpo, ao serviço
do Mestre, com absoluta compreensão dos deveres mais justos.
O rapaz não hesitou nos compromissos, sob o olhar amorável de
sua mãe, que lhe buscava amparar as decisões com a coragem
sincera do coração devotado a Jesus.
Dentro de poucos dias os três demandavam a formosa cidade do
Orontes.
Enquanto João Marcos extasiava-se na contemplação das
paisagens, Saulo e Barnabé entretinham-se em longas palestras,
relativamente aos interesses gerais do Evangelho. O ex-rabino
voltava sumamente impressionado com a situação da igreja de
Jerusalém. Desejaria sinceramente ir até Jope, para avistar-se
com Simão Pedro. No entanto, os irmãos dissuadiram-no de o
fazer.
As autoridades mantinham-se vigilantes. A morte do Apóstolo
chegara a ser reclamada por vários membros do Sinédrio e do
Templo. Qualquer movimento mais importante, no caminho de
Jope, poderia dar azo à tirania dos prepostos herodianos.
Francamente, dizia Saulo a Barnabé, mostrando-se apreensivo,
regresso de ânimo quase abatido aos nossos serviços de
Antioquia. Jerusalém dá impressão de profundo desmantelo e
acentuada indiferença pelas lições do Cristo. As altas
qualidades de Simão Pedro, na chefia do movimento, não me
deixam dúvidas; mas precisamos cerrar fileiras em torno dele.
Mais que nunca me convenço da sublime realidade de que Jesus
veio ao que era seu, mas não foi compreendido.
— Sim, obtemperava o ex-levita de Chipre, desejoso de dissipar
as apreensões do companheiro, confio, antes de tudo, no
Cristo; depois, espero muito de Pedro…
— Entretanto – insinuava o outro sem vacilar, – precisamos
considerar que em tudo deve existir uma pauta de equilíbrio
perfeito. Nada poderemos fazer sem o Mestre, mas não é lícito
esquecer que Jesus instituiu no mundo uma obra eterna e, para
iniciá-la, escolheu doze companheiros. Certo, estes nem sempre
corresponderam à expectativa do Senhor; contudo, não deixaram
de ser os escolhidos. Assim, também precisamos examinar a
situação de Pedro.
Ele é, sem contestação, o chefe legítimo do colégio
apostólico, por seu espírito superior afinado com o pensamento
do Cristo, em todas as circunstâncias; mas, de modo algum
poderá operar sozinho. Como sabemos, dos doze amigos de Jesus,
quatro ficaram em Jerusalém, com residência fixa. João foi
obrigado a retirar-se; Filipe compelido a abandonar a cidade,
com a família; Tiago volta aos poucos para as comunidades
farisaicas. Que será de Pedro se lhe faltar a cooperação
devida?
Barnabé pareceu meditar seria mente.
— Tenho uma ideia que parece vir de mais alto – disse o
ex-doutor da Lei sinceramente comovido.
E continuou:
— Suponho que o Cristianismo não atingirá seus fins, se
esperarmos tão só dos israelitas anquilosados (paralisados) no
orgulho da Lei. Jesus afirmou que seus discípulos viriam do
Oriente e do Ocidente. Nós, que pressentimos a tempestade, e
eu, principalmente, que a conheço nos seus paroxismos, por
haver desempenhado o papel de verdugo, precisamos atrair esses
discípulos.
Quero dizer, Barnabé, que temos necessidade de buscar os
gentios onde quer que se encontrem. Só assim reintegrar-se-á o
movimento em função de universalidade.
O discípulo de Simão Pedro fez um movimento de espanto.
O ex-rabino percebeu o gesto de estranheza e ponderou de modo
conciso:
— É natural prever com isso muitos protestos e lutas enormes;
no entanto, não consigo vislumbrar outros recursos. Não é
justo esquecer os grandes serviços da igreja de Jerusalém aos
pobres e necessitados, e creio mesmo que a assistência piedosa
dos seus trabalhos tem sido, muitas vezes, sua tábua de
salvação. Existem, porém, outros setores de atividade, outros
horizontes essenciais. Poderemos atender a muitos doentes,
ofertar um leito de repouso aos mais infelizes; mas sempre
houve e haverá corpos enfermos e cansados, na Terra. Na tarefa
cristã, semelhante esforço não poderá ser esquecido, mas a
iluminação do espírito deve estar em primeiro lugar. Se o
homem trouxesse o Cristo no íntimo, o quadro das necessidades
seria modificado.
A compreensão do Evangelho e da exemplificação do Mestre
renovaria as noções de dor e sofrimento. O necessitado
encontraria recursos no próprio esforço, o doente sentiria, na
enfermidade mais longa, um escoadouro das imperfeições;
ninguém seria mendigo, por que todos teriam luz cristã para o
auxílio mútuo, e, por fim, os obstáculos da vida seriam amados
como corrigendas benditas de Pai amoroso a filhos inquietos.
Barnabé pareceu entusiasmar-se com a ideia. Mas, depois de
pensar um minuto, acrescentou:
— Entretanto, esse empreendimento não deveria partir de
Jerusalém?
— Penso que não – sentenciou Saulo, de pronto. –Seria absurdo
agravar as preocupações de Pedro. Excede a tudo esse movimento
de pessoas necessitadas e abatidas, convergentes de todas as
províncias, a lhe baterem às portas. Simão está
impossibilitado para o desdobramento dessa tarefa.
— Mas, e os outros companheiros? – inquiriu Barnabé revelando
espírito de solidariedade.
—Os outros, certo, hão de protestar. Principalmente agora, que
o judaísmo vai absorvendo os esforços apostólicos, é justo
prever muitos clamores.
Contudo, a própria Natureza dá lições neste sentido. Não
clamamos tanto contra a dor? E quem nos traz maiores
benefícios? Às vezes, nossa redenção está naquilo mesmo que
antes nos parecia verdadeira calamidade. É indispensável
sacudir o marasmo da instituição de Jerusalém, chamando os
incircuncisos, os pecadores, os que estejam fora da Lei. De
outro modo, dentro de alguns poucos anos, Jesus será
apresentado como aventureiro vulgar.
Naturalmente, depois da morte de Simão, os adversários dos
princípios ensinados pelo Mestre acharão grande facilidade em
deturpar as anotações de Levi. A Boa Nova será aviltada e, se
alguém perguntar pelo Cristo, daqui a cinquenta anos, terá
como resposta que o Mestre foi um criminoso comum, a expiar na
cruz os desvios da vida. Restringir o Evangelho a Jerusalém
será condená-lo à extinção, no foco de tantos dissídios
religiosos, sob a política mesquinha dos homens. Necessitamos
levar a notícia de Jesus a outras gentes, ligar as zonas de
entendimento cristão, abrir estradas novas…
Será mesmo justo que também façamos anotações do que sabemos
de Jesus e de sua divina exemplificação. Outros discípulos,
por exemplo, poderiam escrever o que viram e ouviram, pois,
com a prática, vou reconhecendo que Levi não anotou mais
amplamente o que se sabe do Mestre.
Há situações e fatos que não foram por ele registrados. Não
conviria também que Pedro e João anotassem suas observações
mais íntimas? Não hesito em afirmar que os pósteros hão de
rebuscar muitas vezes a tarefa que nos foi confiada.
Barnabé rejubilava-se com perspectivas tão sedutoras. As
advertências de Saulo eram mais que justas. Haveria que
prestar informações amplas ao mundo.
— Tens razão – disse admirado, – precisamos pensar nesses
serviços, mas como?
— Ora, – esclareceu Saulo tentando aplainar as dificuldades, –
se quiseres chefiar qualquer esforço neste sentido, podes
contar com a minha cooperação incondicional. Nosso plano seria
desenvolvido na organização de missões abnegadas, sem outro
fito que servir, de forma absoluta, à difusão da Boa Nova do
Cristo. Começaríamos, por exemplo, em regiões não de todo
desconhecidas, formaríamos o hábito de ensinar as verdades
evangélicas aos mais vários agrupamentos; em seguida,
terminada essa experiência, demandaríamos outras zonas,
levaríamos a lição do Mestre a outras gentes.
O companheiro ouvia-o, afagando sinceras esperanças. Tomado de
novo ânimo, disse ao convertido de Damasco, esboçando o
primeiro número do programa:
— De há muito, Saulo, tenho necessidade de voltar à minha
terra, a fim de resolver certos problemas de família. Quem
sabe poderíamos iniciar o serviço apostólico através das
aldeias e cidades de Chipre? Conforme o resultado,
prosseguiríamos por outras zonas. Estou informado de que a
região em que demora Antioquia da Pisídia é habitada por gente
simples e generosa, e suponho que colheríamos belos resultados
no empreendimento.
— Poderás contar comigo, – respondeu Saulo de Tarso, resoluto.
– A situação requer o concurso de irmãos corajosos e a igreja
do Cristo não poderá vencer com o comodismo.
Comparo o Evangelho a um campo infinito, que o Senhor nos deu
a cultivar. Alguns trabalhadores devem ficar ao pé dos
mananciais, velando-lhes a pureza, outros revolvem a terra em
zonas determinadas; mas não há dispensar a cooperação dos que
precisam empunhar instrumentos rudes, desfazer cipoais
intensos, cortar espinheiros para ensolarar os caminhos.
Barnabé reconheceu a excelência do projeto, mas considerou:
— Todavia, temos ainda a examinar a questão do dinheiro. Tenho
alguns recursos, mas insuficientes para atender a todas as
despesas. Por outro lado, não seria possível sobrecarregar as
igrejas…
—Absolutamente! – adiantou o ex-rabino – onde estacionarmos,
poderei exercer o meu ofício. Por que não? Qualquer aldeia
paupérrima tem sempre teares de aluguel. Montarei, então, uma
tenda móvel!
Barnabé achou graça no expediente e ponderou:
— Teus sacrifícios não serão pequenos. Não receias as
dificuldades imprevisíveis?
— Por quê? – interrogou Saulo com firmeza.
Certo, se Deus não me permitiu a vida em família foi para que
me dedicasse exclusivamente ao seu serviço. Por onde
passarmos, montaremos a tenda singela, e onde não houver
tapetes, a consertar e a tecer, haverá sandálias.
O discípulo de Simão Pedro entusiasmou-se. O resto da viagem
foi dedicado aos projetos da futura excursão. Havia,
entretanto, uma coisa a considerar. Além da necessidade de
submeter o plano à aprovação da igreja de Antioquia, era
indispensável pensar no jovem João Marcos. Barnabé procurou
interessar o sobrinho nas conversações. Em breve, o rapaz
convenceu-se de que deveria incorporar-se à missão, caso a
assembleia antioquiana não a desaprovasse. Interessou-se por
todas as minúcias do programa tracejado. Seguiria o trabalho
de Jesus, fosse onde fosse.
— E se houver muitos obstáculos? – perguntou Saulo
avisadamente.
— Saberei vencê-los – respondeu João, convicto.
— Mas é possível venhamos a experimentar dificuldades sem
conta – continuava o ex-rabino preparando-lhe o espírito. Se o
Cristo, que era sem pecado, encontrou uma cruz entre apodos e
flagelos, quando ensinava as verdades de Deus, que não devemos
esperar em nossa condição de almas frágeis e indigentes?
— Hei de encontrar as forças necessárias.
Saulo contemplou-o, admirado da firme resolução que suas
palavras deixaram transparecer, e observou:
— Se deres um testemunho tão grande como a coragem que
revelas, não tenho dúvidas quanto à grandeza de tua missão.
Entre confortadoras esperanças, o projeto terminou com
formosas perspectivas de trabalho para os três.
Na primeira reunião, depois de relatar as observações pessoais
concernentes à igreja de Jerusalém, Barnabé expôs o plano à
assembleia, que o ouviu atentamente. Alguns anciães falaram da
lacuna que se abriria na igreja, expuseram o desejo de que se
não quebrasse o conjunto harmonioso e fraternal. No entanto, o
orador voltou a explicar as necessidades novas do Evangelho.
Pintou os quadros de Jerusalém com a fidelidade possível, fez
a súmula de suas conversações com Saulo de Tarso e salientou a
conveniência de chamar novos trabalhadores ao serviço do
Mestre.
Quando tratou o problema com toda a gravidade que lhe era
devida, os chefes da comunidade mudaram de atitude.
Estabeleceu-se o acordo geral. De fato, a situação explanada
por Barnabé era muito séria. Seus pareceres veementes eram
mais que justos. Se perseverasse o marasmo nas igrejas, o
Cristianismo estava destinado a perecer. Ali mesmo, o
discípulo de Simão recebeu a aquiescência irrestrita e, no
instante das preces, a voz do Espírito Santo se fez ouvir no
ambiente de simplicidade pura, inculcando fossem Barnabé e
Saulo destacados para a evangelização dos gentios.
Aquela recomendação superior, aquela voz que provinha dos
arcanos celestes, ecoou no coração do ex-rabino como um
cântico de vitória espiritual.
Sentia que acabava de atravessar imenso deserto para encontrar
de novo a mensagem doce e eterna do Cristo. Por conquistar a
dignidade espiritual, só experimentara padecimentos, desde a
cegueira dolorosa de Damasco.
Ansiara por Jesus. Tivera sede abrasadora e terrível. Pedira
em vão a compreensão dos amigos, debalde buscara o terno
aconchego da família. Mas, agora, que a palavra mais alta o
chamava ao serviço, deixava-se empolgar por júbilos infinitos.
Era o sinal de que havia sido considerado digno dos esforços
confiados aos discípulos. Refletindo como as dores passadas
lhe pareciam pequeninas e infantis, comparadas à alegria
imensa que lhe inundava a alma, Saulo de Tarso chorou
copiosamente, experimentando maravilhosas sensações. Nenhum
dos irmãos presentes, nem mesmo Barnabé, poderia avaliar a
grandiosidade dos sentimentos que aquelas lágrimas revelavam.
Tomado de profunda emoção, o ex-doutor da Lei reconhecia que
Jesus se dignava de aceitar suas oblatas de boa vontade, suas
lutas e sacrifícios. O Mestre chamava-o e, para responder ao
apelo, iria aos confins do mundo.
Numerosos companheiros colaboraram nas providências iniciais,
em favor do empreendimento.
Dentro em pouco, cheios de confiança em Deus, Saulo e Barnabé,
seguidos por João Marcos, despediam-se dos irmãos, a caminho
de Selêucia.
A viagem para o litoral decorreu em ambiente de muita alegria.
De quando a quando, repousavam à margem do Orontes, para a
merenda salutar. À sombra dos carvalhos, na paz dos bosques
enfeitados de flores, os missionários comentaram as primeiras
esperanças.
Em Selêucia não foi demorada a espera de embarcação. A cidade
estava sempre cheia de peregrinos que demandavam o Ocidente,
sendo frequentada por elevado número de navios de toda ordem.
Entusiasmados com o acolhimento dos irmãos de fé, Barnabé e
Saulo embarcaram para Chipre, sob a impressão de comovente e
carinhosa despedida.
Chegaram à ilha, com o jovem João Marcos, sem incidentes
dignos de menção. Estacionados em Cítium por muitos dias, aí
solucionou Barnabé vários assuntos de seu interesse familiar.
Antes de se retirarem, visitaram a sinagoga, num sábado, com o
propósito de iniciar o movimento. Como chefe da missão,
Barnabé tomou a palavra, procurou conjugar o texto da Lei,
examinado naquele dia, às lições do Evangelho, para destacar a
superioridade da missão do Cristo. Saulo notou que o
companheiro explanava o assunto com respeito algo excessivo às
tradições judaicas. Via-se claramente que desejava, antes de
tudo, conquistar as simpatias do auditório; em alguns pontos,
demonstrava o temor de encetar o trabalho, abrindo as lutas
tão em desacordo com o seu temperamento. Os israelitas
mostraram-se surpreendidos, mas satisfeitos. Observando o
quadro, Saulo não se sentiu plenamente confortado. Fazer
reparos a Barnabé seria ingratidão e indisciplina; concordar
com o sorriso dos compatrícios perseverantes nos erros do
fingimento farisaico seria negar fidelidade ao Evangelho.
Procurou resignar-se e esperou.
A missão percorreu numerosas localidades, entre vibrações de
largas simpatias. Em Amatonte, os mensageiros da Boa Nova
demoraram mais de uma semana. A palavra de Barnabé era
profundamente contemporizadora.
Caracterizava-se, em tudo, pelo grande cuidado, de não ofender
os melindres judaicos.
Depois de grandes esforços, chegaram a Nea-Pafos, onde residia
o Pro cônsul. A sede do Governo provincial era uma formosa
cidade cheia de encantos naturais e que se assinalava por
sólidas expressões de cultura. O discípulo de Pedro, porém,
estava exausto. Nunca tivera labores apostólicos tão intensos.
Conhecendo a deficiência do verbo de Saulo nos serviços da
igreja de Antioquia, temia confiar ao ex-rabino as
responsabilidades diretas do ensinamento.
Não obstante sentir-se cansadíssimo, fez a pregação na
sinagoga, no sábado imediato à chegada. Nesse dia, entretanto,
ele estava divinamente inspirado. A apresentação do Evangelho
foi feita com raro brilhantismo. O próprio Saulo comoveu-se
profundamente. O êxito foi inexcedível. A segunda assembleia
reuniu os elementos mais finos; judeus e romanos
aglomeravam-se ansiosos. O ex-levita fez nova apologia do
Cristo, bordando conceitos de maravilhosa beleza espiritual. O
ex-doutor da Lei, com os trabalhos informativos da missão,
atendia prazerosamente a todas as consultas, pedidos,
informações.
Nenhuma cidade manifestara tamanho interesse, quanto aquela;
os romanos, em grande número, iam solicitar esclarecimentos
quanto aos objetivos dos mensageiros, recebiam notícias do
Cristo, revelando júbilos e esperanças; desfaziam-se em gestos
de espontânea bondade. Entusiasmados com o êxito, Saulo e
Barnabé organizaram reuniões em casas particulares,
especialmente cedidas para esse fim pelos simpatizantes da
doutrina de Jesus, onde encetaram formoso movimento de curas.
Com alegria infinita, o tecelão de Tarso viu chegar a extensa
fileira dos “filhos do Calvário”. Eram mães atormentadas,
doentes desiludidos, anciães sem nenhuma esperança, órfãos
sofredores, que agora procuravam a missão. A notícia das curas
julgadas impossíveis encheu Nea-Pafos de grande assombro. Os
missionários impunham as mãos, fazendo preces fervorosas ao
Messias Nazareno; de outras vezes, distribuíam água pura, em
seu nome.
Extremamente cansado e achando que o novo auditório não
requeria maior erudição, Barnabé encarregou o companheiro das
pregações da Boa Nova; mas, com grande surpresa, verificou que
Saulo se modificara radicalmente. Seu verbo parecia inflamado
de nova luz; tirava do Evangelho ilações tão profundas que o
ex-levita o escutava agora sem dissimular o próprio espanto.
Notava, particularmente, o carinho do ex-doutor no apresentar
os ensinamentos do Cristo aos mendigos e sofredores. Falava
como alguém que houvesse convivido com o Senhor, por largos
anos. Referia-se a certos lances das lições do Mestre com um
manancial de lágrimas nos olhos. Prodigiosas consolações
derramavam-se no espírito das turbas. Dia e noite, havia
operários e estudiosos copiando as anotações de Levi.
Os acontecimentos abalaram a opinião da cidade em peso. Os
resultados eram os mais confortadores. Foi quando enorme
surpresa chegou ao Espírito dos missionários.
A manhã ia alta. Saulo atendia a numerosos necessitados quando
um legionário romano se fez anunciar.
Barnabé e o companheiro deixaram os serviços entregues a João
Marcos e foram atender.
— O Pro cônsul Sérgio Paulo – disse o mensageiro, solene, –
manda convidar-vos a visitá-lo em palácio.
A mensagem era muito mais uma ordem que simples convite. O
discípulo de Simão compreendeu de pronto e respondeu:
— Agradecemos de coração e iremos ainda hoje.
O ex-rabino estava confuso. Não só o conteúdo político do fato
surpreendia-o, sobremaneira. Em vão, procurava recordar-se de
alguma coisa. Sérgio Paulo? Não conheceria alguém com esse
nome? Buscou relembrar os jovens de origem romana, do seu
conhecimento. Afinal, veio-lhe à memória a palestra de Pedro
sobre a personalidade de Estevão e concluiu que o Pro cônsul
não podia ser outro senão o salvador do irmão de Abigail.
Sem comunicar as íntimas impressões a Barnabé, examinou a
situação em sua companhia. Quais os objetivos da delicada
intimação? Segundo a voz pública, o chefe político vinha
sofrendo pertinaz enfermidade. Desejaria curar-se ou, quem
sabe, provocar um meio de expulsá-los da ilha, induzido pelos
judeus? A situação, entretanto, não se resolveria por
conjeturas.
Incumbindo João Marcos de atender a quantos se interessassem
pela doutrina, no referente a informes necessários, os dois
amigos puseram-se a caminho, resolutamente.
Conduzidos através de galerias extensas, foram dar com um
homem relativamente moço, deitado em largo divã e deixando
perceber extremo abatimento. Magro, pálido, revelando singular
desencanto da vida, o Pro cônsul entremostrava, todavia, uma
bondade imensa na suave irradiação do olhar humilde e
melancólico.
Recebeu os missionários com muita simpatia, apresentando-lhes
um mago judeu de nome Barjesus, que de longa data o vinha
tratando. Sérgio Paulo, prudentemente, mandou que os guardas e
servos se retirassem. Apenas os quatro se viram a sós, em
círculo muito íntimo, falou o enfermo com amarga serenidade:
— Senhores, diversos amigos me deram notícia dos vossos êxitos
nesta cidade de Nea-Pafos. Tendes curado moléstias perigosas,
devolvido a fé a inúmeros descrentes, consolado míseros
sofredores… Há mais de um ano venho cuidando de minha saúde
arruinada. Nestas condições, estou quase inutilizado para a
vida pública.
Apontando Barjesus que, por sua vez, fixava o olhar malicioso
nos visitantes, o chefe romano prosseguiu:
— Há muito contratei os serviços deste vosso conterrâneo,
ansioso e confiante na ciência de nossa época, mas os
resultados têm sido insignificantes. Mandei chamar-vos,
desejoso de experimentar os vossos conhecimentos. Não
estranheis minha atitude. Se pudesse, teria ido procurar-vos
em pessoa, pois conheço o limite de minhas prerrogativas; como
vedes, porém, sou antes de tudo um necessitado.
Saulo ouviu aquelas declarações, profundamente comovido pela
bondade natural do ilustre enfermo. Barnabé estava atônito,
sem saber o que dizer. O ex-doutor da Lei, entretanto, senhor
da situação e quase certo de que a personagem era a mesma que
figurava na existência do mártir vitorioso, tomou a palavra e
disse convictamente:
— Nobre Pro cônsul, temos conosco, de fato, o poder de um
grande médico. Podemos curar, quando os enfermos estejam
dispostos a compreendê-lo e segui-lo.
— Mas quem é ele? Perguntou o enfermo.
— Chama-se Cristo Jesus. Sua fórmula é sagrada, continuava o
tecelão com ênfase, e destina-se a medicar, antes de tudo, a
causa de todos os males. Como sabemos, todos os corpos da
Terra terão de morrer. Assim, por força de leis naturais
inelutáveis, jamais teremos, neste mundo, absoluta saúde
física. Nosso organismo sofre a ação de todos os processos
ambientes. O calor incomoda, o frio nos faz tremer, a
alimentação nos modifica, os atos da vida determinam a mudança
dos hábitos. Mas o Salvador nos ensina a procurar uma saúde
mais real e preciosa, que é a d o espírito. Possuindo-a,
teremos transformado as causas de preocupação de nossa vida, e
habilitamo-nos a gozar a relativa saúde física que o mundo
pode oferecer nas suas expressões transitórias.
Enquanto Barjesus, irônico e sorridente, escutava o introito,
Sérgio Paulo acompanhava a palavra do ex-rabino, atento e
comovido:
— Contudo, como encontrar esse médico? – perguntou o Pro
cônsul, mais preocupado com a cura do que com o elevado
sentido metafísico das observações ouvidas.
— Ele é a bondade perfeita – esclareceu Saulo de Tarso – e sua
ação consoladora está em toda parte. Antes mesmo que o
compreendamos, cerca-nos com a expressão do seu amor
infinito!…
Observando o entusiasmo com que o missionário tarsense falava,
o chefe político de Nea-Pafos buscou a aprovação de Barjesus
com olhar indagador.
O mago judeu, evidenciando profundo desprezo, ex clamou:
— Julgávamos que estivésseis aparelhados de alguma ciência
nova… Não quero acreditar no que ouço. Acaso me supondes um
ignorante, relativamente ao falso profeta de Nazaré? Ousais
franquear o palácio de um governador, em nome de um miserável
carpinteiro?
Saulo mediu toda a extensão daquelas ironias, respondendo sem
se intimidar:
— Amigo, quando eu afivelava a máscara farisaica, também assim
pensava; mas, agora, conheço a gloriosa luz do Mestre, o Filho
do Deus Vivo!…
Essas palavras eram ditas num tom de convicção tão ardente que
o próprio charlatão israelita se fizera lívido. Barnabé também
empalidecera, enquanto o nobre patrício observava o ardoroso
pregador com visível interesse. Depois de angustiosa
expectativa, Sérgio Paulo voltou a dizer:
— Não tenho o direito de duvidar de ninguém, enquanto as
provas concludentes não me levem a fazê-lo.
E procurando fixar a fisionomia de Saulo, que lhe enfrentava o
olhar perquiridor, serenamente continuou:
— Falais desse Cristo Jesus, enchendo-me de assombro. Alegais
que sua bondade nos assiste antes mesmo de o conhecermos. Como
obter uma prova concreta de vossa afirmativa?
Se não entendo o Messias de que sois mensageiros, como saber
se sua assistência me influenciou algum dia?
Saulo lembrou repentinamente as palestras de Simão Pedro, ao
lhe narrar os antecedentes do mártir do Cristianismo. Num
instante alinhou os mínimos episódios. E valendo-se de todas
as oportunidades para destacar o amor infinito de Jesus, como
aconteceu nos menores fatos da sua carreira apostólica,
sentenciou com singular entono:
— Pro cônsul, ouvi-me! Para revelar-vos, ou melhor, a fim de
lembrar-vos a misericórdia de Jesus de Nazaré, o nosso
Salvador, chamarei vossa atenção para um acontecimento
importante.
Enquanto Barnabé manifestava profunda surpresa, em face da
desassombrada atitude do companheiro, o político aguçava a
curiosidade.
— Não é a primeira vez que experimentais uma grave
enfermidade. Há quase dez anos, ao tentardes os primeiros
passos na vida pública, embarcastes no porto de Cefalônia em
demanda desta ilha. Viajáveis para Citium, mas, antes que o
navio aportasse em Corinto, fostes acometido de febre
terrível, o corpo aberto em feridas venenosas…
Brancura de cera estampava-se no semblante do chefe de
Nea-Pafos.
Colocando a mão no peito, como a conter as pulsações
aceleradas do coração, ergueu-se extremamente perturbado.
— Como sabeis tudo isso? – murmurou aterrado.
— Não é só – disse o missionário, sereno, – esperai o resto.
Vários dias permanecestes entre a vida e a morte. Debalde os
médicos de bordo comentaram vossa enfermidade. Vossos amigos
fugiram. Quando ficastes de todo abandonado, não obstante o
prestígio político do vosso cargo, o Messias Nazareno vos
mandou alguém, no silêncio de sua misericórdia divina.
O Pro cônsul, com o despertar das velhas reminiscências,
sentia-se profundamente comovido.
— Quem teria sido o mensageiro do Salvador? –prosseguia Saulo,
enquanto Barnabé o contemplava com inaudito assombro. – Um de
vossos íntimos? Um amigo eminente? Um dos colegas ilustres que
presenciavam vossas dores? Não! Apenas um escravo humilde, um
serviçal anônimo dos remos homicidas. Jeziel velou por vós,
dia e noite! E o que a Ciência do mundo não conseguiu fazer,
fê-lo o coração empossado pelo amor do Cristo!
Compreendeis agora? Vosso amigo Barjesus fala de um
carpinteiro sem-nome de um Messias que preferiu a condição da
humildade suprema para nos trazer as torrentes preciosas de
suas graças!…
Sim, Jesus também, como aquele escravo que vos restabeleceu a
saúde perdida, fez-se servo do homem para conduzi-lo a uma
vida melhor!... Quando todos nos abandonam, Ele está conosco;
quando os amigos fogem, sua bondade mais se aproxima. Para
forrarmo-nos das míseras contingências desta vida mortal, é
preciso crer nele e segui-lo sem descanso!...
Ante as lágrimas convulsivas do Pro cônsul, Barnabé, aturdido,
considerava: Onde fora o companheiro colher tão profundas
revelações? A seu ver, naquele instante, Saulo de Tarso
estaria iluminado pelo dom maravilhoso das profecias.
— Senhores, tudo isso é a verdade pura! Trouxeste-me a santa
notícia de um Salvador!…
– exclamou Sérgio Paulo.
Reconhecendo a capitulação do generoso patrício que lhe
recheava a bolsa de fartos recursos, o mago israelita, apesar
de muito surpreso, exclamou com energia:
— Mentira!… São mentirosos! Tudo isso é obra de Satanás! Estes
homens são portadores de sortilégios infames do “Caminho”!
Abaixo a exploração vil!…
A boca lhe espumava, os olhos rebrilhavam de cólera. Saulo
mantinha-se calmo, impassível, quase sorridente. Depois,
timbrando forte:
— Acalmai-vos, amigo! A fúria não é amiga da verdade e quase
sempre esconde inconfessáveis interesses. Acusai-nos de
mentirosos, mas nossas palavras não se desviaram uma linha da
realidade dos acontecimentos. Alegais que nosso esforço
procede de Satanás, no entanto, onde já se viu maior
incoerência? Onde encontraríamos um adversário trabalhando
contra si mesmo? Afirmais que somos portadores de sortilégios;
se o amor constitui esse talismã, nós o trazemos no coração,
ansiosos por comunicar a todos os seres sua benéfica
influência. Finalmente, lançais a nós outros a pecha de
exploradores sagazes, quando aqui viemos chamados por alguém
que nos honrou com sinceridade e confiança e, de modo algum,
poderíamos oferecer as graças do Salvador a título mercatório
(mercantil).
Seguiu-se acalorada discussão: Barjesus fazia empenho em
demonstrar a inferioridade dos intuitos de Saulo, enquanto
este se esforçava em timbrar nobreza e cordialidade.
Embalde o Pro cônsul tentava dissuadir o judeu de continuar na
requesta e naquele diapasão. Barnabé, por sua vez, confiando
muito mais nos poderes espirituais do amigo, acompanhava a
discussão sem ocultar admiração pelos infinitos recursos que o
missionário tarsense estava revelando.
A polêmica já durava mais de hora, quando o mago fez uma
alusão mais ferina à personalidade e feitos de Jesus Cristo.
Em atitude mais enérgica, o Apóstolo sentenciou:
— Tudo fiz por convencer-vos sem demonstrações mais diretas,
de maneira a não ferir a parte respeitável de vossas
convicções; todavia, estais cego e é nessa condição que
podereis enxergar a luz. Como vós, também já vivi em trevas e,
no instante do meu encontro pessoal com o Messias, foi
necessário que as trevas se adensassem em meu espírito, a fim
de que a luz ressurgisse mais brilhante. Tereis igualmente
esse benefício. A visão do corpo fechar-se-vos-á, para que
possais divisar a verdade em espírito!.
Nesse comenos, Barjesus deu um grito: – Estou cego!
Estabeleceu-se alguma confusão no recinto. Barnabé
adiantou-se, amparando o israelita que tateava aflito. O
tecelão e o governador aproximaram-se surpreendidos. Foram
chamados alguns servos que atenderam as necessidades do
momento, carinhosos e solícitos. Por quatro longas horas,
Barjesus chorou, mergulhado na sombra espessa que lhe invadira
os olhos cansados. Ao fim desse tempo, os missionários oraram
de joelhos… Branda serenidade estabeleceu-se no vasto
aposento. Em seguida, Saulo impôs-lhe as mãos na fronte e, com
um suspiro de alívio, o velho israelita recobrou a vista,
retirando-se confuso e sucumbido.
O Pro cônsul, porém, vivamente interessado nos fatos intensos
daquele dia, chamou os missionários em particular e falou
sensibilizado:
— Amigos, eu creio nas verdades divinas que anunciais e desejo
sinceramente compartilhar do Reino esperado. Nada obstante,
conviria inteirar-me dos vossos objetivos de trabalho, dos
vossos planos enfim. Estou ciente de que não mercadejais os
dons espirituais de que sois portadores, e proponho-me
auxiliar-vos com os meus préstimos em tudo que me for
possível.
Poderia saber os projetos que vos animam?
Os dois missionários entreolharam-se, surpresos. Barnabé ainda
não havia saído do espanto que o companheiro lhe causara.
Saulo, por sua vez, mal dissimulava o próprio assombro pelo
auxílio espiritual que obtivera no afã de confundir os
maliciosos intuitos de Barjesus.
Reconhecendo, contudo, o elevado e sincero interesse do chefe
político da província, esclareceu com jubilosos conceitos:
— O Salvador fundou a religião do amor e da verdade,
instituição invisível e universal, onde se acolham todos os
homens de boa vontade. Nosso fim é dar feição visível à obra
divina, estabelecendo templos que se irmanem nos mesmos
princípios, em seu nome.
Avaliamos a delicadeza de semelhante tentame e estamos crentes
de que as maiores dificuldades vão surgir em nosso caminho. É
quase impossível encontrar o cabedal humano indispensável ao
cometimento; mas é forçoso movimentar o plano. Quando falhem
os elementos da instituição visível, esperaremos na igreja
infinita, onde, nas luzes da universalidade, Jesus será o
chefe supremo de todas as forças que se consagrem ao bem.
— Trata-se de sublime iniciativa – aparteou o Pro cônsul
evidenciando nobre interesse.
— Onde encetastes a construção dos santuários?
— Nossa missão está começando precisamente agora. Os
discípulos do Messias fundaram as igrejas de Jerusalém e
Antioquia. Por enquanto, não temos outros núcleos educativos,
além desses. Há muitos cristãos em toda parte, mas suas
reuniões se fazem em domicílios particulares. Não possuem
templos, propriamente, que os habilitem a mais eficiente
esforço de assistência e propaganda.
— Nea-Pafos terá, então, a primeira igreja, filha do vosso
trabalho direto.
Kardec e amigos
Jesus Cristo
Chico Xavier
..."Recordemos que o
Espiritismo nos solicita uma espécie permanente de caridade:
a caridade de sua própria divulgação" Emmanuel
Abigail, doente
Emmanuel e Chico Xavier
Aparição de Jesus