Chico Xavier / Emmanuel
Saulo não sabia como traduzir sua gratidão
por aquele gesto de generosidade espontânea. Profundamente
comovido, adiantou-se, então, e, com o cidadão cipriota,
agradeceu a dádiva que vinha prestigiar e facilitar a obra
apostolar.
Os três falaram ainda largo tempo sobre os empreendimentos em
perspectiva. Sérgio Paulo pediu-lhes indicassem as pessoas
capazes de construir o novo templo, enquanto Barnabé e o
companheiro expunham suas esperanças.
Somente à noite os missionários puderam voltar à tenda humilde
das pregações.
— Estou impressionado! – dizia Barnabé, recordando o ocorrido.
– Que fizeste? Tenho para mim que hoje é o dia maior da tua
existência. Tua palavra tinha um timbre sagrado e diferente;
anima-te, agora, o dom das profecias…
Além disso, o Mestre agraciou-te com o poder de dominar as
ideias malignas.
Viste como o charlatão sentiu a influência de energias
poderosas quando fizeste o teu apelo?
Saulo ouviu atento e com a maior simplicidade acentuou:
— Também não sei como traduzir meu espanto pelas graças
obtidas. Foi pelo Cristo que nos tornamos instrumentos da
conversão do Pro cônsul, pois a verdade é que de nós mesmos
nada valemos.
— Nunca esquecerei os acontecimentos de hoje – tornou o
ex-levita, admirado.
E depois de uma pausa:
— Saulo, quando Ananias te batizou não chegou a sugerir a
mudança do teu nome?
— Não me lembrei disso.
—Pois suponho que, doravante, deves considerar tua vida como
nova. Foste iluminado pela graça do Mestre, tiveste o teu
Pentecostes, foste sagrado Apóstolo para os labores divinos da
redenção.
O ex-doutor da Lei não dissimulou a própria admiração e
concluiu:
— É muito significativo para mim que um chefe político seja
atraído para Jesus, por nosso intermédio, mesmo porque, nossa
tarefa conclama os gentios ao Sol divino do Evangelho de
salvação.
Intimamente, recordou os laços sublimes que o ligavam à
memória de Estevão, a generosa influência do patrício romano
que o libertara dos trabalhos duros da escravidão e, invocando
a memória do mártir, num apelo silencioso, falou comovido:
— Sei, Barnabé, que muitos dos nossos companheiros trocaram de
nome quando se converteram ao amor de Jesus; quiseram
assinalar desse modo sua separação dos enganos fatais do
mundo. Não quis valer-me do recurso, de qualquer modo. Mas a
transformação do governador, a luz da graça que nos acompanhou
no curso dos acontecimentos de hoje, levam-me, igualmente, a
procurar um motivo de perenes lembranças.
Depois de longa pausa, dando a entender quanto refletira para
tomar aquela resolução, falou:
— Razões íntimas, absolutamente respeitáveis, obrigam-me a
reconhecer, doravante, um benfeitor no chefe político desta
ilha. Sem trocar formalmente meu nome passarei a assinar-me à
romana.
— Muito bem – respondeu o companheiro, entre Saulo e Paulo
nenhuma diferença existe, a não ser a do hábito de grafia ou
de pronúncia. A decisão será uma formosa homenagem ao nosso
primeiro triunfo missionário junto dos gentios, ao mesmo tempo
em que constituirá agradável lembrança de um espírito tão
generoso.
Nesse fato baseou-se a mudança de uma letra no nome do
ex-discípulo de Gamaliel.
Caráter íntegro e enérgico, o rabino de Jerusalém, nem mesmo
transformado em modesto tecelão, quis modificar, portas a
dentro do Cristianismo, a sua fidelidade inata. Se servira a
Moisés como Saulo, com o mesmo nome haveria de servir
igualmente a Jesus Cristo. Se errara e fora perverso, na
primeira condição, aproveitaria a oportunidade dos Céus,
corrigiria a existência e seria um homem bom e justo na
segunda. Nesse particular, não chegou a considerar qualquer
sugestão dos amigos. Fora o primeiro perseguidor da
instituição cristã, verdugo inflexível do proselitismo
alvorecente, mas fazia questão de continuar como Saulo, para
lembrar-se de todo o mal e envidar esforços para fazer todo o
bem ao seu alcance. Mas, naquele instante, a lembrança de
Estevão falava-lhe brandamente ao coração. Ele fora o seu
maior exemplo para a marcha espiritual. Era o Jeziel bem-amado
de Abigail.
Para procurá-lo, ambos se haviam prometido ir, sem vacilações,
fosse aonde fosse. Os dois irmãos de Corinto estavam vivos, de
tal modo, em sua alma sensível, que não era possível apagar na
memória os mínimos fatos de sua vida. A mão de Jesus o
encaminhara ao Pro cônsul, o libertador de Jeziel dos grilhões
do cativeiro; o ex-escravo demandara Jerusalém para tornar-se
discípulo do Cristo! O ex-rabino sentia-se ditoso, por ter
sido auxiliado pelas forças divinas, tornando-se por sua vez
libertador de Sérgio Paulo, escravizado ao sofrimento e às
ilusões perigosas do mundo. Era justo gravar na memória uma
lembrança indelével daquele que, vítima dele em Jerusalém, era
agora irmão abençoado, o qual não conseguia esquecer, nos mais
fugazes instantes da vida e do seu ministério.
Daí por diante o convertido de Damasco, em memória do
inolvidável pregador do Evangelho, que sucumbira a pedradas,
passou a assinar-se Paulo, até ao fim de seus dias.
A notícia da cura e da conversão do Pro cônsul encheu
Nea-Pafos de grande assombro.
Os missionários não mais tiveram descanso. Embora o protesto
quase apagado dos israelitas, a comunidade cresceu
extraordinariamente. Integrado nos bens da saúde, o chefe
provincial forneceu o necessário à construção da igreja. O
movimento era extraordinário. E os dois mensageiros do
Evangelho não cessavam de render graças a Deus.
O triunfo cercava-os de profunda consideração, quando Paulo
foi procurado por Barjesus que lhe solicitava uma palavra
confidencial. O ex-rabino não hesitou. Era uma boa ocasião
para provar, ao velho israelita, os seus propósitos generosos
e sinceros. Recebeu-o, pois, com toda a afabilidade.
Barjesus parecia tomado de grande acanhamento. Após
cumprimentar o missionário, atencioso, exprimiu-se com certo
embaraço:
— Afinal, precisava desfazer o mal-entendido, no caso do Pro
cônsul.
Ninguém, mais do que eu, desejava tanto a saúde do enfermo, e,
por conseguinte, ninguém mais agradecido a vossa intervenção,
libertando-o de enfermidade tão dolorosa.
— Sou muito grato ao vosso parecer e regozijo-me com a vossa
compreensão – disse Paulo, com gentileza.
— Entretanto…
O visitante vacilava se devia ou não expor seus objetivos mais
íntimos.
Atento às reticências sem presumir-lhes a causa, o ex-rabino
adiantou-se benévolo.
— Que desejais dizer? Com franqueza. Nada de cerimônias!
— Acontece – retrucou mais animado – que venho afagando a
ideia de consultar-vos a respeito dos vossos dons espirituais.
Penso que não haverá maior tesouro para triunfar na vida…
Paulo estava confundido, sem saber que rumo tomaria a
conversação.
Mas, focando o ponto mais delicado da pretensão, Barjesus
continuou:
— Quanto ganhais no vosso ministério?
— Ganho a misericórdia de Deus – disse o missionário,
compreendendo, então, todo o alcance daquela vi sita
inesperada, – vivo do meu trabalho de tecelagem e não seria
lícito mercadejar com o que pertence ao Pai que está nos céus.
—É quase incrível! Murmurou o mago arregalando os olhos. – Eu
estava convicto de que trazíeis convosco certos talismãs, que
me dispunha a comprar por qualquer preço.
E enquanto o ex-rabino o contemplava cheio de comiseração pela
sua ignorância, o visitante prosseguiu:
—Mas, será crível que façais semelhantes obras sem
contribuição de sortilégios?
O missionário fixou-o mais atento e murmurou:
— Só conheço um sortilégio eficiente.
— Qual é? – interrogou o mago de olhar faiscante e cobiçoso.
—É o da fé em Deus com sacrifício de nós mesmos.
O velho israelita demonstrou não entender toda a significação
daquelas palavras, objetando:
— Sim, mas a vida tem suas necessidades urgentes. É
indispensável prever e amealhar recursos.
Paulo pensou um minuto e disse:
— De mim mesmo, nada tenho com que vos esclarecer. Mas Deus
tem sempre uma resposta para nossas preocupações mais simples.
Consultemos suas eternas verdades.
Vejamos qual a mensagem destinada ao vosso coração.
Ia abrir o Evangelho, conforme seu costume, quando o visitante
observou:
— Nada conheço desse livro. Para mim, portanto, não poderá
trazer advertência alguma.
O missionário compreendeu a relutância e acentuou:
— Que conheceis então?
— Moisés e os Profetas.
Tomou do rolo de pergaminhos onde se podia ler a Lei Antiga e
o deu ao velho malicioso, para que o abrisse em alguma
sentença, ao acaso, segundo os hábitos da época. No entanto
Barjesus, com evidente má vontade, acrescentou:
—Só leio os Profetas, de joelhos.
— Podeis ler como quiserdes, porque o ato de compreender é o
que nos interessa, antes de tudo.
Assinalando suas presunções farisaicas, o charlatão
ajoelhou-se e abriu solenemente o texto, sob o olhar sereno e
perquiridor do ex-rabino. O velho israelita fez-se pálido.
Esboçou um gesto para se abstrair da leitura; mas Paulo
percebeu o movimento sutil e, aproximando-se, falou com alguma
veemência:
— Leiamos a mensagem permanente dos emissários de Deus.
Tratava-se de um fragmento dos Provérbios, que Barjesus
pronunciou em voz alta, com enorme desapontamento:
Duas coisas eu te pedi; não mas negues, antes que eu morra.
Afasta de mim as vaidades e as mentiras. Não me dês a pobreza,
nem a riqueza. Concede-me apenas o alimento de que necessito,
para não acontecer que, estando farto, eu te negue e pergunte:
Quem é Jeová? Ou que, estando pobre, me ponha a furtar e
profane o nome de meu Deus. (Provérbios, capítulo 30,
versículos de 7 a 91)
O mago levantou-se atarantado, O próprio missionário estava
surpreso.
— Vistes, amigo? – interrogou Paulo – a palavra da verdade é
muito eloquente. Será grande talismã, na existência, o
sabermos viver com os nossos próprios recursos, sem exorbitar
do necessário ao nosso enrique cimento espiritual.
— Efetivamente – respondeu o charlatão – este processo de
consultas é muito interessante. Vou meditar seriamente na
experiência de hoje.
Logo em seguida se despedia, depois de mastigar alguns
monossílabos que mal disfarçavam a perturbação que todo o
empolgara.
Impressionado, o tecelão consagrado ao Cristo anotou as
profundas exortações, para consolidar o seu programa de
atividades espirituais, isento de interesses inferiores.
A missão permaneceu em Nea-Pafos ainda alguns dias,
sobrecarregada de muito trabalho. João Marcos colaborava com
os recursos ao seu alcance; todavia, de vez em quando, Barnabé
surpreendia-o entristecido e queixoso.
Não esperava encontrar tão vultosa cota de trabalho.
—Mas, assim é melhor – acentuava Paulo, – o serviço do bem é a
muralha defensiva das tentações. O rapaz conformava-se;
contudo, sua contrariedade era evidente. Além disso, fiel
observador do judaísmo, não obstante a paixão pelo Evangelho,
o filho de Maria Marcos sentia grandes escrúpulos, com a
largueza de vistas do tio e do missionário, relativamente aos
gentios. Desejava servir a Jesus, sim, de todo o coração, mas
não podia distanciar o Mestre das tradições do berço.
Enquanto as sementes lançadas em Chipre começavam a germinar
na terra dos corações, os trabalhadores do Messias abandonavam
Nea-Pafos, absorvidos em vastas esperanças.
Depois de muito confabularem, Paulo e Barnabé resolveram
estender a missão aos povos da Panfília, com grande escândalo
para João Marcos, que se admirava de semelhante alvitre.
— Mas que fazermos com essa gente tão estranha?
— Perguntou o rapaz contrariado. — Sabemos, em Jerusalém, que
esse país é povoado por criaturas supinamente ignorantes. E,
ao demais, que a li existem ladrões por toda parte.
— No entanto — obtemperou Paulo, convicto, — penso que devemos
procurar a região, justamente por isso. Para outros, uma
viagem a Alexandria pode oferecer maior interesse; mas todos
esses grandes centros estão cheios de mestres da palavra.
Possuem sinagogas importantes, conhecimentos elevados, grandes
expoentes de ciência e riqueza. Se não servem a Deus é por
má-vontade ou endurecimento de coração. A Panfília, ao
contrário, é muito pobre, rudimentar e carente de luz
espiritual. Antes de ensinar em Jerusalém, o Mestre preferiu
manifestar-se em Cafarnaum e noutras aldeias quase anônimas,
da Galileia.
Ante o argumento irretorquível, João absteve-se de insistir.
Dentro de poucos dias, singela embarcação deixava-os em
Atália, onde Paulo e Barnabé encontraram singular encanto nas
paisagens que circundavam o Cestro.
Nessa localidade muito pobre, pregaram a Boa Nova ao ar livre,
com êxito imenso.
Observando no companheiro um traço superior, Barnabé como que
entregara a chefia do movimento ao ex-rabino, cuja palavra,
então, sabia despertar encantadores arrebatamentos, O povo
simples acolheu a pregação de Paulo, com profundo interesse.
Ele falava de Jesus, como de um príncipe celestial, que
visitara o mundo e fora esperar os súditos amados na esfera da
glorificação espiritual. Via-se a atenção que os habitantes de
Atália dispensaram ao assunto. Alguns pediram cópias das
lições do Evangelho, outros procuravam obsequiar os
mensageiros do Mestre com o que possuíam de melhor. Muito
comovidos, recebiam as carinhosas dádivas dos novos amigos,
que, quase sempre, se constituíam em pratos de pão, laranjas
ou peixe.
A permanência na localidade trouxera novos problemas. Era
indispensável alguma atividade culinária. Barnabé,
delicadamente, designou o sobrinho para o mister, mas o rapaz
não conseguia disfarçar a contrariedade. Notando-lhe o
constrangimento, Paulo adiantou-se, pressuroso:
— Não nos impressionemos com os problemas naturais. Procuremos
restringir, doravante, as necessidades e gostos alimentares.
Comeremos apenas pão, frutas, mel e peixe.
Destarte, o trabalho de cozinha ficará simplificado e reduzido
à preparação dos peixes assados, no que tenho grande prática,
desde o meu retiro lá no Tauro. Que João não se amofine com o
problema, pois é justo que essa parte fique a meu cargo.
Não obstante a atitude generosa de Paulo, o rapaz continuou
acabrunhado.
Em breve a missão alugava um barco, largando-se para Perge.
Nesta cidade, de regular importância para a região em que se
localizava, anunciaram o Evangelho com imensa dedicação. Na
pequena sinagoga, encheram o sábado de grande movimento.
Alguns judeus e numerosos gentios na maioria gente pobre e
simples, acolheram os missionários, cheios de júbilo. As
notícias do Cristo despertaram singular curiosidade e
encantamento. O modesto pardieiro, alugado por Barnabé, ficava
repleto de criaturas ansiosas por obter cópia das anotações de
Levi. Paulo regozijava-se. Experimentava alegria indefinível
ao contacto daqueles corações humildes e simples, que lhe
davam ao espírito cansado de casuística a doce impressão de
virgindade espiritual.
Alguns indagavam da posição de Jesus na hierarquia dos deuses
do paganismo; outros desejavam saber a razão por que haviam
crucificado o Messias, sem consideração aos seus elevados
títulos, como Mensageiro do Eterno. A região estava cheia de
superstições e crendices. A cultura judaica restringia-se ao
ambiente fechado das sinagogas. A missão, não obstante
consagrar seu maior esforço aos israelitas, pregando n o
círculo dos que seguiam a Lei de Moisés, interessara as
camadas mais obscuras do povo, em razão das curas e do convite
amoroso ao Evangelho, movimento esse no qual os trabalhadores
de Jesus punham todo o seu empenho.
Plenamente satisfeitos, Paulo e Barnabé resolveram seguir dali
mesmo para Antioquia de Pisídia. Informado a esse respeito,
João Marcos não conseguiu sopitar os íntimos receios, por mais
tempo, e perguntou:
— Supunha que não iríamos além da Panfília. Como, pois, chegar
até Antioquia? Não temos recursos para atravessar tamanhos
precipícios. As florestas estão infestadas de bandidos, o rio
encachoeirado não faculta o trânsito de barcas. E as noites?
Como dormir?
Essa viagem não se pode tentar sem animais e servos, coisa que
não temos.
Paulo refletiu um minuto e exclamou:
— Ora, João, quando trabalhamos para alguém, de vemos fazê-lo
com amor. Julgo que anunciar o Cristo àqueles que não o
conhecem, em vista de suas numerosas dificuldades naturais,
representa uma glória para nós. O espírito de serviço nunca
atira a parte mais difícil para os outros. O Mestre não
transferiu sua cruz aos companheiros. Em nosso caso, se
tivéssemos muitos escravos e cavalos, não seriam eles os
carregadores das responsabilidades mais pesadas, no que se
refere às questões propriamente materiais? O trabalho de
Jesus, entretanto, é tão grande aos nossos olhos que devemos
disputar aos outros qualquer parte de sua execução, em
benefício próprio.
O rapaz pareceu mais angustiado. A energia de Paulo era
desconcertante.
— Mas não seria mais prudente — continuou muito pálido —
demandarmos Alexandria e organizar pelo menos alguns recursos
mais fáceis?
Enquanto Barnabé acompanhava o diálogo com a serenidade que
lhe era peculiar, o ex-rabino continuou:
— Dás demasiada importância aos obstáculos. Já pensaste nas
dificuldades que o Senhor certamente venceu para vir ter
conosco? Ainda que pudesse atravessar livremente os abismos
espirituais para chegar ao nosso círculo de perversidade e
ignorância, temos de considerar a muralha de lodo de nossas
viscerais misérias... E tu te espantas apenas com os palmos de
caminho que nos separam da Pisídia?
O jovem calou-se, evidentemente contrariado. A argumentação
era forte demais, aos seus olhos, e não lhe ensejava qualquer
nova objeção.
Á noite, Barnabé, visivelmente preocupado, aproximou-se do
companheiro, expondo-lhe as intenções do sobrinho. O rapaz
resolvera regressar a Jerusalém, de qualquer modo. Paulo ouviu
calmamente as explicações, como quem não podia opor qualquer
embargo à decisão.
— Não poderíamos acompanhá-lo, pelo menos, até algum ponto
mais próximo do destino? Perguntou o ex-levita de Chipre, como
tio solícito.
— Destino? Perguntou Paulo admirado. Mas já temos o nosso.
Desde o primeiro entendimento, planejamos a excursão a
Antioquia. Não posso impedir que faças companhia ao rapaz; por
mim, contudo, não devo modificar o roteiro traçado. Caso
resolvas regressar, seguirei sozinho. Julgo que as empresas de
Jesus têm seu momento justo de atuação. É preciso
aproveitá-lo.
Se deixarmos a visita à Pisídia para o mês próximo, talvez
seja tarde.
Barnabé refletiu alguns minutos, retrucando convictamente:
— Tua observação é incontestável. Não posso quebrar os
compromissos.
Além do mais, João está homem e poderá voltar só. Tem o
dinheiro indispensável a esse fim, em virtude dos cuidados
maternos.
— O dinheiro quando não bem aproveitado – rematou Paulo
tranquilamente – sempre dissolve os laços e as
responsabilidades mais santas.
A conversação terminou, enquanto Barnabé voltava a aconselhar
o sobrinho, altamente impressionado.
Daí a dois dias, antes de tomar a barca que o levaria à foz do
Cestro, o filho de Maria Marcos despedia-se do ex-doutor de
Jerusalém com um sorriso contrafeito.
Paulo abraçou-o sem alegria e falou em tom de serena
advertência:
— Deus te abençoe e te proteja. Não te esqueças de que a
marcha para o Cristo é feita igualmente por fileiras. Todos
nós devemos chegar bem, entretanto, os que se desgarram têm de
chegar bem por conta própria.
— Sim – disse o jovem envergonhado, – procurarei trabalhar e
servir a Deus, de toda a minha alma.
— Fazes bem e cumprirás teu dever assim procedendo – exclamou
o ex-rabino convicto.
— Lembra sempre que David, enquanto esteve ocupado, foi fiel
ao Todo Poderoso, mas, quando descansou, entregou-se ao
adultério; Salomão, durante os serviços pesados da construção
do Templo, foi puro na fé, mas, quando chegou ao repouso, foi
vencido pela devassidão; Judas começou bem e foi discípulo
direto do Senhor, mas bastou a impressão da triunfal entrada
do Mestre em Jerusalém para que cedesse à traição e à morte.
Com tantos exemplos expostos aos nossos olhos, será útil não
venhamos nunca a descansar.
O sobrinho de Barnabé partiu sinceramente tocado por essas
palavras, que o seguiriam, de futuro, como apelo constante.
Logo após o incidente, os dois missionários demandaram as
estradas impérvias. Pela primeira vez, foram obrigados a
pernoitar ao relento, no seio da Natureza. Vencendo
precipícios, encontraram uma gruta rochosa na qual se
ocultaram, para repousar o corpo mortificado e dorido. O
segundo dia da marcha escoou-se-lhes com a coragem indômita de
sempre. A alimentação constituía-se de alguns pães trazidos de
Perge e frutas silvestres, colhidas ali e acolá. Resolutos e
bem-humorados enfrentavam e venciam todos os óbices.
De quando em vez, era indispensável ganhar a outra margem do
rio, ao toparem barreiras intransponíveis. Ei-los então
apalpando o álveo das torrentes, cautelosos, com longas varas
verdes, ou desbravando os caminhos perigosos e ignorados.
A solidão lhes sugeria belos pensamentos. Sagrado otimismo
extravasava dos menores conceitos. Ambos afagavam carinhosas
lembranças do passado afetivo e esperançoso. Como homens
experimentavam todas as necessidades humanas, mas era
profundamente comovedora a fidelidade com que se entregavam ao
Cristo, confiando ao seu amor a realização dos santificados
desejos de uma vida mais alta.
Na segunda noite acomodaram-se em pequena caverna, algo
distante do trilho estreito, logo após os derradeiros tons do
crepúsculo. Depois de frugalíssima refeição, passaram a
comentar animadamente os feitos da igreja de Jerusalém. Noite
fechada e ainda suas vozes quebravam o grande silêncio.
Desdobrando os assuntos, passaram a falar das excelências do
Evangelho, exaltando a grandeza da missão de Jesus Cristo.
— Se os homens soubessem... – dizia Barnabé fazendo
comparações.
— Todos se reuniriam em torno do Senhor e descansariam –
rematava Paulo cheio de convicção.
— Ele é o Príncipe que reinará sobre todos.
— Ninguém trouxe a este mundo riqueza maior.
— Ah! Comentava o discípulo de Simão Pedro – o tesouro de que
foi mensageiro engrandecerá a Terra para sempre.
E assim prosseguiam, valendo-se de preciosas imagens da vida
comum para simbolizar os bens eternos, quando singular
movimento lhes despertou atenção. Dois homens armados
precipitaram-se sobre ambos, à fraca luz de uma tocha acesa em
resinas.
— A bolsa! – gritou um dos malfeitores.
Barnabé empalideceu ligeiramente, mas Paulo estava sereno e
impassível.
— Entreguem o que têm ou morrem – exclamou o outro bandido,
alçando o punhal.
Olhando fixamente o companheiro, o ex-rabino ordenou:
— Dá-lhes o dinheiro que resta, Deus suprirá nossas
necessidades de outro modo.
Barnabé esvaziou a bolsa que trazia entre as dobras da túnica,
enquanto os malfeitores recolhiam, ávidos, a pequena quantia.
Reparando nos pergaminhos do Evangelho que os missionários
consultavam à luz da tocha improvisada, um dos ladrões
interrogou desconfiado e irônico:
— Que documentos são esses? Faláveis de um príncipe
opulento...
Ouvimos referências a um tesouro... Que significa tudo isso?
Com admirável presença de espírito, Paulo explicou:
— Sim, de fato estes pergaminhos são o roteiro do imenso
tesouro que nos trouxe o Cristo Jesus, que há de reinar sobre
os príncipes da Terra.
Um dos bandidos, grandemente interessado, examinou o rolo das
anotações de Levi.
— Quem encontrar esse tesouro – prosseguia Paulo, resoluto, –
nunca mais sentirá necessidades.
Os ladrões guardaram o Evangelho cuidadosamente.
— Agradecei a Deus não vos tirarmos a vida – disse um deles.
E apagando a tocha bruxuleante, desapareceram na escuridão da
noite.
Quando se viram a sós, Barnabé não conseguiu dissimular o
assombro.
— E agora? – perguntou com voz trêmula.
— A missão continua bem – glosou Paulo cheio de bom ânimo, –
não contávamos com a excelente oportunidade de transmitir a
Boa Nova aos ladrões.
O discípulo de Pedro, admirando-se de tamanha serenidade,
voltou a dizer:
— Mas, levaram-nos, também, os derradeiros pães de cevada, bem
como as capas...
— Haverá sempre alguma fruta na estrada – esclarecia Paulo,
decidido – e, quanto às coberturas, não tenhamos maior
cuidado, pois não nos faltará o musgo das árvores.
E, desejoso de tranquilizar o companheiro, acrescentava:
— De fato, não temos mais dinheiro, mas julgo não será difícil
conseguir trabalho com os tapeceiros de Antioquia de Pisídia.
Além disso, a região está muito distante dos grandes centros e
posso levar certas novidades aos colegas do ofício. Esta
circunstância será vantajosa para nós.
Depois de tecerem esperanças novas, dormiram ao relento,
sonhando com as alegrias do Reino de Deus.
No dia seguinte, Barnabé continuava preocupado. Interpelado
pelo companheiro confessou compungido:
— Estou resignado com a carência absoluta de recursos
materiais, mas não posso esquecer que nos subtraíram também as
anotações evangélicas que possuíamos. Como recomeçar nossa
tarefa? Se temos de cor grande parte dos ensinamentos, não
poderemos conferir todas as expressões...
Paulo, todavia, fez um gesto significativo e, desabotoando a
túnica, retirou alguma coisa que guardava junto do coração.
— Enganas-te, Barnabé – disse com um sorriso otimista, – tenho
aqui o Evangelho que me recorda a bondade de Gamaliel. Foi um
presente de Simão Pedro ao meu velho mentor, que, por sua vez,
mo deu pouco antes de morrer.
O missionário de Chipre apertou nas mãos o tesouro do Cristo.
O júbilo voltou a iluminar-lhe o coração. Poderiam dispensar
todo o conforto do mundo, mas a palavra de Jesus era
imprescindível. Vencendo obstáculos de toda sorte, chegaram a
Antioquia fundamente abatidos. Paulo, principalmente, a
determinados momentos da noite, sentia-se cansado e febril.
Barnabé tinha frequentes acessos de tosse. O primeiro contacto
com a natureza hostil acarretara aos dois mensageiros do
Evangelho fortes desequilíbrios orgânicos.
Não obstante a precária saúde, o tecelão de Tarso procurou
informar-se, logo na manhã da chegada, sobre as tendas de
artefatos de couro existentes na cidade.
Antioquia de Pisídia contava grande número de israelitas. Seu
movimento comercial era mais que regular. As vias públicas
ostentavam lojas bem sortidas e pequenas indústrias variadas.
Confiando na Providência Divina, alugaram um quarto muito
simples, e, enquanto Barnabé repousava da fadiga extrema,
Paulo procurou uma das tendas indicadas por um negociante de
frutas.
Um judeu de bom aspecto, cercado de três auxiliares, entre
numerosas prateleiras com sandálias, tapetes e outras
utilidades numerosas, atinentes à sua profissão, dirigia
extensa banca de serviço. Ciente do seu nome, dado o interesse
de sua indagação junto ao comerciante referido, o ex-doutor de
Jerusalém chamou pelo senhor Ibraim, sendo atendido com enorme
curiosidade.
— Amigo – explicou Paulo, sem rodeios, – sou vosso colega de
ofício e, premido por necessidades urgentes, venho
solicitar-vos o imenso obséquio de admitir-me nas atividades
da vossa tenda. Tenho de fazer longa viagem e, não possuindo
recurso algum, apelo para vossa generosidade, esperando
favorável acolhimento.
O tapeceiro contemplava-o com simpatia, mas, um tanto
desconfiado.
Espantava-se e agradava-se, simultaneamente, da sua franqueza
e desembaraço. Depois de refletir algum tempo, respondeu algo
vagamente:
— Nosso trabalho é muito escasso e, para usar de sinceridade,
não disponho de capital para remunerar a muitos empregados.
Nem todos compram sandálias; os arreamentos de tropa ficam à
espera das caravanas que somente passam de tempos a tempos;
poucos tapetes vendemos, e se não fossem os tecidos de couro
para tendas improvisadas, suponho que não teríamos o
necessário para manter o negócio. Como vedes, não seria fácil
arranjar-vos trabalho.
— Entretanto, – tornou o ex-rabino, comovido com a sinceridade
do interlocutor, – ouso insistir no pedido. Será tão só por
alguns dias... Além do mais, ficaria satisfeito em trabalhar a
troco de pão e teto, para mim e um companheiro enfermo.
O bondoso Ibraim sensibilizou-se com aquela confissão. Depois
de uma pausa longa, em que o tapeceiro de Antioquia ainda
hesitava entre o “sim” e o “não”, Paulo rematou:
— Tão grande é a minha necessidade que insisto convosco, em
nome de Deus.
— Entrai – disse o negociante, vencido pela argumentação.
Embora doente, o emissário do Cristo atirou-se ao trabalho com
afã. Um velho tear foi instalado apressadamente, junto à banca
cheia de facas, martelos e peças de couro.
Paulo entrou a trabalhar, tendo um olhar amigo e uma boa
palavra para cada companheiro. Longe de se impor pelos
conhecimentos superiores que possuía, observava o sistema de
trabalho dos auxiliares de Ibraim e sugeria novas providências
favoráveis ao serviço, com bondade, sem afetação.
Comovido pelas suas declarações sinceras, o dono da casa
mandou a refeição a Barnabé, enquanto o ex-rabino vencia
galhardamente as primeiras dificuldades, experimentando o
júbilo de um grande triunfo.
Naquela noite, junto do companheiro de lutas, elevou a Jesus a
prece do mais entranhado agradecimento. Ambos comentaram a
nova situação. Tudo ia bem, mas era necessário pensar no
dinheiro indispensável, com que atender ao aluguel do quarto.
Edificado na exemplificação do amigo, agora era Barnabé que
procurava confortá-lo:
— Não importa, Jesus levará em conta a nossa boa vontade, não
nos deixará ao desamparo.
No dia seguinte, quando Paulo regressou da oficina, teve de
esperar o companheiro, com alguma ansiedade. O mensageiro de
Ibraim, que levara a refeição de Barnabé, não o havia
encontrado. Após alguma inquietação, o ex-rabino abriu-lhe a
porta com inexcedível surpresa. O discípulo de Pedro parecia
extremamente abatido, mas profunda alegria lhe transbordava do
olhar.
Explicou que também ele conseguira trabalho remunerador. Em
pregara-se com um oleiro necessitado de operários para
aproveitar o bom tempo. Abraçaram-se comovidos. Se houvessem
alcançado o domínio do mundo, com a fortuna fácil, não
experimentariam tanto júbilo. Pequena fração de serviço
honesto lhes bastava ao coração iluminado por Jesus Cristo.
No primeiro sábado de permanência em Antioquia, os arautos do
Evangelho dirigiram-se à sinagoga local. Ibraim,
satisfeitíssimo com a cooperação do novo em pregado, dera-lhe
duas túnicas usadas, que Paulo e Barnabé envergaram com
alegria.
Toda a população “temente a Deus” comprimia-se no recinto.
Sentaram-se os dois no local reservado aos visitantes ou
desconhecidos. Terminado o estudo e comentários da Lei e dos
Profetas, o diretor dos serviços religiosos perguntou-lhes, em
voz alta, se desejariam dizer algumas palavras aos presentes.
De pronto, Paulo levantou-se e aceitou o convite. Dirigiu-se à
modesta tribuna em atitude nobre e começou a discorrer sobre a
Lei, tomado de eloquência sublime. O auditório, não afeito a
raciocínios tão altos, seguia-lhe a palavra fluente como se
houvera encontrado um profeta autêntico, a espalhar
maravilhas. Os israelitas não cabiam em si de contentes. Quem
era aquele homem de quem se poderia orgulhar o próprio Templo
de Jerusalém? Em dado momento, contudo, as palavras do orador
passaram a ser quase incompreensíveis para todos.
Seu verbo sublime anunciava um Messias que já viera ao mundo.
Alguns judeus aguçaram os ouvidos. Tratava-se do Cristo Jesus,
por intermédio de quem as criaturas deveriam esperar a graça e
a verdade da salvação. O ex-doutor observou que numerosas
fisionomias mostravam-se contrariadas, mas a maioria
escutava-o com indefinível vibração de simpatia. A relação dos
feitos de Jesus, sua exemplificação divina, a morte na cruz,
arrancavam lágrimas do auditório. O próprio chefe da sinagoga
estava profundamente surpreendido...
Terminada a longa oração, o novo missionário foi abraçado por
grande número de assistentes. Ibraim, que acabava de
conhecê-lo sob novo aspecto, cumprimentou-o radiante.
Eustáquio, o oleiro que dera trabalho a Barnabé, aproximou-se
para as saudações, altamente sensibilizado. Os descontentes,
no entanto, não faltaram. O êxito de Paulo contrariou o
espírito fariseu da assembleia.
No dia imediato, Antioquia de Pisídia estava empolgada pelo
assunto. A tenda de Ibraim e a olaria de Eustáquio foram
locais de grandes discussões e entendimentos. Paulo falou,
então, das curas que se poderiam fazer em nome do Mestre. Uma
velha tia do seu patrão foi curada de enfermidade pertinaz,
com a simples imposição das mãos e as preces ao Cristo. Dois
filhinhos do oleiro restabeleceram-se com a intervenção de
Barnabé. Os dois emissários do Evangelho ganharam logo muito
conceito. A gente simples vinha solicitar-lhes orações, cópias
dos ensinos de Jesus, enquanto muitos enfermos se
restabeleciam. Se o bem estava crescendo, a animosidade contra
eles também crescia, da parte dos mais altamente colocados na
cidade. Iniciou-se o movimento contrário ao Cristo. Não
obstante a continuidade das pregações de Paulo aumentava,
entre os israelitas poderosos, a perseguição, o apodo e a
ironia. Os mensageiros da Boa Nova, entretanto, não
desanimaram. Confortados pelos mais sinceros, fundaram a
igreja na casa de Ibraim. Quando tudo ia bem, eis que o
ex-rabino, ainda em consequência das vicissitudes
experimentadas na travessia dos pântanos da Panfília, cai
gravemente enfermo, preocupando a todos os irmãos. Durante um
mês, esteve sob a influência maligna de uma febre devoradora.
Barnabé e os novos amigos foram inexcedíveis em cuidados.
Explorando o incidente, os inimigos do Evangelho puseram-se em
campo, ironizando a situação. Havia mais de três meses que os
dois anunciavam o novo Reino, reformavam as noções religiosas
do povo, curavam as moléstias mais pertinazes e, por que
motivo o poderoso pregador não se curava a si mesmo?
Fervilhavam, assim, os ditos mordazes e os conceitos
deprimentes.
Os confrades, entretanto, foram de uma dedicação sem limites.
Paulo foi tratado com extremos de ternura, no lar de Ibraim,
como se houvesse encontrado um novo lar.
Após a convalescença, o desassombrado tecelão voltou mais
alvissareiro à pregação das verdades novas.
Observando-lhe a coragem, os elementos judaicos, ralados de
despeito, tramaram sua expulsão sem qual quer condescendência.
Por vários meses o ex-doutor de Jerusalém lutou contra os
golpes do farisaísmo dominante na cidade, mantendo-se superior
a calúnias e insultos. Mas, quando revelava seu poder de
resolução e firmeza de ânimo, eis que os israelitas
descontentes ameaçam Ibraim e Eustáquio com a supressão de
regalias e banimento. Os dois antigos habitantes de Antioquia
de Pisídia eram acusados como partidários da revolução e da
desordem. Altamente comovidos, receberam a notificação de que
somente a retirada de Paulo e Barnabé poderia salvá-los do
cárcere e da flagelação.
Os missionários de Jesus consideram a penosa situação dos
amigos e resolvem partir. Ibraim tem os olhos rasos de
lágrimas. Eustáquio não consegue esconder o abatimento. Ante
as interrogações de Barnabé, o ex-rabino expõe o plano das
atividades futuras. Demandariam Icônio. Pregariam ali as
verdades de Deus. O discípulo de Simão Pedro aprova sem
hesitar.
Reunindo os irmãos em noite memorável para quantos lhe viveram
as profundas emoções, os mensageiros da Boa Nova se despedem.
Por mais de oito meses haviam ensinado o Evangelho. Afrontaram
zombarias e apodos, haviam conhecido provações bem amargas.
Seus labores estavam sendo premiados pelo mundo com o
banimento, como se eles fossem criminosos comuns, mas a igreja
do Cristo estava fundada. Paulo falou nisso, quase com
orgulho, não obstante as lágrimas que lhe rolavam dos olhos.
Os novos discípulos do Mestre não deveriam estranhar as
incompreensões do mundo, mesmo porque, o próprio Salvador não
escapara à cruz da ignomínia, acrescentando que a palavra
“cristão” significava seguidor do Cristo. Para descobrir e
conhecer as sublimidades do Reino de Deus era preciso
trabalhar e sofrer sem descanso.
A assembleia afetuosa, por sua vez, acolheu as exortações,
lavada em lágrimas.
Na manhã imediata, munidos de uma carta de recomendação de
Eustáquio e carregando vasta provisão de pequeninas lembranças
dos companheiros de fé, puseram-se a caminho, intrépidos e
felizes.
O percurso excedente a cem quilômetros foi difícil e doloroso,
mas os pioneiros não se detiveram na consideração de qualquer
obstáculo.
Chegados à cidade, apresentaram-se ao amigo de Eustáquio, de
nome Onesíforo.
Recebidos com generosa hospitalidade, no sábado imediato,
antes mesmo de fixar-se no trabalho profissional, Paulo foi
expor os objetivos de sua passagem pela região. A estreia na
sinagoga provocou animadas discussões, O elemento político da
cidade constituía-se de judeus ricos e instruídos na Lei de
Moisés; contudo, os gentios representavam, em grande número, a
classe média. Estes últimos receberam a palavra de Paulo com
profundo interesse, mas os primeiros desfecharam grande reação
logo de início. Houve tumultos.
Os orgulhosos filhos de Israel não podiam tolerar um Salvador
que se entregara, sem resistência, à cruz dos ladrões. A
palavra do Apóstolo, entretanto, alcançara tão grande favor
público que os gentios de Icônio ofereceram-lhe um vasto salão
para que lhes fosse ministrado o ensinamento evangélico, todas
as tardes. Queriam notícias do novo Messias, interessavam-se
pelos seus menores feitos e por suas máximas mais simples. O
ex-rabino aceitou o encargo, cheio de gratidão e simpatia.
Diariamente, terminada a tarefa comum, compacta multidão de
iconienses aglomerava -se ansiosa por lhe ouvir o verbo
vibrante. Dominando a administração, os judeus não tardaram em
reagir, mas foi inútil a tentativa de intimidar o pregador com
as mais fortes ameaças. Ele continuou pregando intrépida,
desassombradamente. Onesíforo, a seu turno, dava-lhe mão forte
e, dentro em pouco, fundava-se a igreja em sua própria casa.
Os israelitas mantinham viva a ideia da expulsão dos
missionários, quando um incidente ocorreu em auxílio deles.
É que uma jovem noiva, ouvindo ocasionalmente as pregações do
Apóstolo dos gentios, diariamente penetrava no salão em busca
de novos ensinamentos. Enlevada com as promessas do Cristo e
sentindo extrema paixão pela figura empolgante do orador,
fanatizara-se lamentavelmente, esquecendo os deveres que a
prendiam ao noivo e à ternura maternal.
Tecla, que assim se chamava, não mais atendia aos laços
sacrossantos que deveria honrar no ambiente doméstico.
Abandonou o trabalho diuturno para esperar o crepúsculo, com
ansiedade. Teóclia, sua mãe, e Tamíris, o noivo, acompanham o
caso com desagradável surpresa. Atribuíam a Paulo semelhante
desequilíbrio. O ex-doutor, por sua vez, estranhava a atitude
da jovem, que, diariamente, insinuava-se com perguntas,
olhares e momices singulares.
Certa vez, quando se dispunha a voltar para casa de Onesíforo,
em companhia de Barnabé, a moça lhe pediu uma palavra em
particular.
Ante suas perguntas atenciosas, Tecla corava, gaguejando:
— Eu... Eu...
— Dize, filha – murmurou o Apóstolo um tanto preocupado, –
deves considerar-te em presença de um pai.
— Senhor – conseguiu dizer ofegante, – não sei por que, tenho
recebido grande impressão com a vossa palavra.
— O que tenho ensinado – esclareceu Paulo – não é meu; vem de
Jesus, que nos deseja todo o bem.
— De qualquer modo, porém, – disse ela com mais timidez, –
amo-vos muito!...
— Paulo assustou-se. Não contava com essa declaração. A
expressão “amo-vos muito” não era articulada em tom de
fraternidade pura, mas com laivos de particularismo que o
Apóstolo percebeu sobremaneira impressionado.
Depois de meditar muito na situação imprevista, respondeu
convicto:
— Filha, os que se amam em espírito, unem-se em Cristo para a
eternidade das emoções mais santas, mas, quem sabe está amando
a carne que vai morrer?
— Tenho necessidade da vossa afeição – exclamou a jovem, de
olhar lacrimoso.
— Sim – esclareceu o ex-rabino, – mas os dois temos
necessidade da afeição do Cristo. Somente amparados nele
poderemos experimentar algum ânimo em nossas fraquezas.
— Não poderei esquecer-vos – soluçou a moça, despertando-lhe
compaixão.
Paulo ficou pensativo. Recordou a mocidade. Lembrou os sonhos
que tecera ao lado de Abigail. Num minuto, seu espírito
devassou um mundo de suaves e angustiosas reminiscências; e
como se voltasse de um misterioso país de sombras, exclamou
como se falasse consigo mesmo:
— Sim, o amor é santo, mas a paixão é venenosa. Moisés
recomendou que amássemos a Deus acima de tudo; e o Mestre
acrescentou que nos amássemos uns aos outros, em todas as
circunstâncias da vida...
E fixando os olhos, agora muito brilhantes, na jovem que
chorava, exclamou quase acrimonioso:
— Não te apaixones por um homem feito de lodo e de pecado, e
que se destina a morrer!...
Tecla ainda não voltara a si da própria surpresa, quando o
noivo desolado penetrou no recinto deserto. Tamíris faz as
primeiras objeções em grandes brados, ao passo que o
mensageiro da Boa Nova lhe ouve a s reprimendas com grande
serenidade. A noiva replica mal-humorada. Reafirma sua
simpatia por Paulo, expõe francamente as intenções mais
íntimas, O rapaz escandaliza-se, O Apóstolo espera
pacientemente que o noivo o interrogue. E, quando convocado a
justificar-se, explica em tom fraternal:
— Amigo, não te acabrunhes nem te exaltes, em face dos
sucessos que se originam de profundas incompreensões. Tua
noiva está simplesmente enferma.
Estamos anunciando o Cristo, mas o Salvador tem os seus
inimigos ocultos em toda parte, como a luz tem por inimiga a
treva permanente. Mas a luz vence a treva de qualquer
natureza. Iniciamos o labor missionário nesta cidade, sem
grandes obstáculos. Os judeus nos ridicularizam e, todavia,
nada encontraram em nossos atos que justifique a perseguição
declarada. Os gentios nos abraçam com amor. Nosso esforço
desenvolve-se pacificamente e nada nos induz ao desânimo. Os
adversários invisíveis, da verdade e do bem, certo se
lembraram de influenciar esta pobre criança, para fazê-la
instrumento perturbador de nossa tarefa. Ë possível que não me
compreendas de pronto, no entanto, a realidade não é outra.
Tamíris, contudo, deixando entrever que padecia da mesma
influência perniciosa, bradou enraivecido:
— Sois um feiticeiro imundo! Esta é que é a verdade.
Mistificador do povo simplório e rude, não passais de reles
sedutor de moças impressionáveis.
Insultais uma viúva e um homem honesto, qual sou,
insinuando-vos no espírito frágil de uma órfã de pai.
Espumava de cólera. Paulo ouviu-lhe as diatribes, com grande
presença de espírito.
Quando o moço cansou de esbravejar, o Apóstolo tomou o manto,
fez um gesto de despedida e acentuou:
— Quando somos sinceros, estamos em repouso invulnerável; mas
cada um aceita a verdade como pode. Pensa, pois, e entende
como puderes.
E abandonou o recinto para ir ter com Barnabé.
Os parentes de Tecla, porém, não descansaram em face do que
consideravam um ultraje.
Na mesma noite, valendo-se do pretexto, as autoridades
judaicas de Icômo ordenaram a prisão do emissário da Boa Nova.
A fileira dos descontentes afluiu à porta de Onesíforo,
vociferando impropérios. Apesar da interferência dos amigos,
Paulo foi arrastado ao cárcere, onde sofreu o suplício dos
trinta e nove açoites. Acusado como sedutor e inimigo das
tradições da família, ao demais blasfemo e revolucionário, foi
indispensável muita dedicação dos confrades recém-convertidos
para restituir-lhe a liberdade.
Depois de cinco dias de prisão com severos castigos, Barnabé o
recebeu exultante de alegria.
O caso de Tecla revestira proporções de grande escândalo, mas
o Apóstolo, na primeira noite de liberdade, reuniu a igreja
doméstica, fundada com Onesíforo, e esclareceu a situação,
para conhecimento de todos.
Barnabé considerou impossível ali ficarem por mais tempo. Novo
atrito com as autoridades poderia prejudicar-lhes a tarefa.
Paulo, entretanto, mostrava-se bastante resoluto.
Se fosse preciso voltaria a pregar o Evangelho na via pública,
revelando a verdade aos gentios, já que os filhos de Israel se
compraziam nos desvios clamorosos.
Chamado a opinar, Onesíforo ponderou a situação da pobre moça,
transformada em objeto da ironia popular. Tecla era noiva e
órfã de pai. Tamíris havia criado a lenda de que Paulo não
passava de poderoso feiticeiro. Se, na qualidade de noiva, ela
fosse encontrada novamente junto do Apóstolo, mandava a
tradição que fosse condenada à fogueira.
Ciente das superstições regionais, o ex-rabino não hesitou um
minuto.
Deixaria Icônio, no dia imediato. Não que capitulasse diante
do inimigo invisível, mas porque a igreja estava fundada e não
era justo cooperar no martírio moral de uma criança.
A decisão do Apóstolo mereceu aprovação geral. Assentaram-se
as bases para a continuação do aprendizado evangélico.
Onesiforo e os demais irmãos assumiram o compromisso de velar
pelas sementes recebidas como dádiva celestial.
No curso das conversações, Barnabé estava pensativo. Para onde
iriam?
Não seria justo pensar na volta? As dificuldades avultavam dia
a dia e a saúde de ambos, desde a internação nas margens do
Cestro, era muito inconstante, O discípulo de Pedro, contudo,
conhecendo o ânimo e o espírito de resolução do companheiro,
esperou pacientemente que o assunto aflorasse espontânea e
naturalmente.
Em socorro dos seus cuidados, um dos amigos presentes
interrogou Paulo com vivacidade.
— Quando pretendem partir?
— Amanhã, respondeu o Apóstolo.
— Mas, não será melhor repousar alguns dias? Tendes as mãos
inchadas e o rosto ferido pelos açoites.
O ex-doutor sorriu e falou prazenteiro:
O serviço é de Jesus e não nosso. Se cuidarmos muito de nós
mesmos, nesse capítulo de sofrimentos, não daremos conta do
recado; e se paralisarmos a marcha nos lances difíceis,
ficaremos com os tropeços e não com o Cristo.
Seus argumentos pitorescos e concludentes espalhavam uma
atmosfera de bom humor.
— Voltareis a Antioquia? Perguntou Onesíforo com atenção.
Barnabé aguçou os ouvidos para conhecer detalhadamente a
resposta, enquanto o companheiro retrucava:
— Certo que não: Antioquia já recebeu a Boa Nova da redenção.
E a Licaônia?
Olhando agora para o ex-levita de Chipre, como a solicitar a
sua aprovação, acentuava:
— Marcharemos para frente. Não estás de acordo, Barnabé? Os
povos da região precisam do Evangelho. Se nós estamos tão
satisfeitos com as notícias do Cristo, por que negá-las aos
que necessitam do batismo da verdade e da nova fé?...
O companheiro fez um sinal afirmativo e concordou, resignado:
— Sem dúvida. Iremos para frente; Jesus nos auxiliará.
E os presentes passaram a comentar a posição de Listra, bem
como os costumes interessantes da sua gente simples. Onesíforo
tinha lá uma irmã viúva, por nome Lóide. Daria uma carta de
recomendação aos missionários.
Seriam hóspedes de sua irmã, durante o tempo que precisassem.
Os dois pregoeiros do Evangelho rejubilaram-se. Principalmente
Barnabé não cabia em si de contenta mento, afastando a ideia
triste de ficarem completamente isolados.
No dia seguinte, sob comovidos adeuses, os missionários
tomavam a estrada que os conduziria ao novo campo de lutas.
Após viagem penosíssima, chegaram à pequena cidade, num
crepúsculo pardacento. Estavam exaustos.
A irmã de Onesíforo, no entanto, foi pródiga em gentilezas.
Velha viúva de um grego abastado, Lóide morava em companhia de
sua filha Eunice, igualmente viúva, e de seu neto Timóteo,
cuja inteligência e generosos sentimentos de menino
constituíam o maior encanto das duas senhoras. Os mensageiros
da Boa Nova foram recebidos nesse lar com inequívocas provas
de simpatia. O inexcedível carinho dessa família foi um
bálsamo confortador para ambos. Conforme seu hábito, Paulo
referiu-se na primeira oportunidade ao desejo imenso de
trabalhar, durante o tempo de sua permanência em Listra, de
modo a não se tornar passível de maledicência ou crítica, mas
a dona da casa opôs-se terminantemente. Seriam seus hóspedes.
Bastava a recomendação de Onesíforo para que ficassem
tranquilos. Além disso, explicava: Listra era uma cidade muito
pobre, possuía apenas duas tendas humildes, onde nunca se
faziam tapetes.
Paulo estava muito sensibilizado com o acolhimento carinhoso.
Na mesma noite da chegada, observou a ternura com que Timóteo,
tendo pouco mais de treze anos, tomava os pergaminhos da Lei
de Moisés e os Escritos Sagrados dos Profetas. Deixou o
Apóstolo que as duas senhoras comentassem as revelações em
companhia do mesmo, até que fosse chamado a intervir.
Quando tal se deu, aproveitou o ensejo para fazer a primeira
apresentação do Cristo ao coração enlevado dos ouvintes. Tão
logo começou a falar, observou a profunda impressão das duas
mulheres, cujos olhos brilhavam enternecidos; mas o pequeno
Timóteo ouvia-o com tais demonstrações de interesse que,
muitas vezes, lhe acariciou a fronte pensativa.
Os parentes de Onesíforo receberam a Boa Nova com júbilos
infinitos. No dia imediato não se falou de outra coisa. O
rapaz fazia interrogações de toda espécie. O Apóstolo, porém,
atendia-o com alegria e interesse fraternais.
Durante três dias os missionários entregaram-se a caridoso
descanso das energias físicas.
Paulo aproveitou a ocasião para conversar largamente com
Timóteo, junto do grande curral onde as cabras se recolhiam.
Somente no sábado, procuraram tomar contacto mais íntimo com a
população. Listra estava cheia das mais estranhas lendas e
crendices. As famílias judaicas eram muito raras e o povo
simplório aceitava como verdades todos os símbolos
mitológicos. A cidade não possuía sinagoga, mas um pequeno
templo consagrado a Júpiter, que os camponeses aceitavam como
o pai absoluto dos deuses do Olimpo. Havia um culto
organizado. As reuniões efetuavam-se periodicamente, os
sacrifícios eram numerosos.
Numa praça nua movimentava-se. O mercado parco, pela manhã.
Paulo compreendeu que não encontraria melhor local para o
primeiro contacto direto com o povo.
De cima de uma tribuna improvisada de pedras superpostas,
começou a pregação em voz forte e comovedora. Os populares
aglomeraram-se de súbito.
Alguns surgiam das casas pacíficas, para verificar o motivo do
compacto ajuntamento. Ninguém se lembrou das aquisições de
carne, de frutas, de verduras. Todos queriam ouvir o
desconhecido forasteiro.
O Apóstolo falou, primeiramente, das profecias que haviam
anunciado a vinda do Nazareno e, em seguida, passou a relatar
os feitos de Jesus entre os homens. Pintou a paisagem da
Galileia com as cores mais brilhantes do seu gênio descritivo,
falou da humildade e da abnegação do Messias. Quando se
referia às curas prodigiosas que o Cristo realizara, notou que
um pequeno grupo de assistentes lhe dirigiam chufas. Inflamado
de fervor na sua parenética, Paulo recordou o dia em que vira
Estevão curar uma jovem muda, em nome do Senhor.
Crente de que o Mestre não o desampararia, passeou o olhar
pela turba numerosa. A distância de alguns metros enxergou um
mendigo miserável, que se arrastava penosamente. Impressionado
com o discurso evangélico, o aleijado de Listra aproximou-se,
bracejando no solo e, sentando-se com dificuldade, fixou os
olhos no pregador que o observava sumamente comovido.
Renovando os valores da sua fé, Paulo contemplou-o com energia
e falou com autoridade:
— Amigo, em nome de Jesus, levanta-te!
O mísero, olhos fixos no Apóstolo, levantou-se com facilidade,
enquanto a multidão dava gritos, surpreendida. Alguns recuaram
aterrados. Outros procuraram o vulto de Paulo e o de Barnabé,
contemplando-os, deslumbrados e satisfeitos. O aleijado
começou a saltar de alegria. Conhecido na cidade, de longa
data, a cura prodigiosa não deixava a menor dúvida.
Muitas pessoas se ajoelharam. Outras correram aos quatro
cantos de Listra para anunciar que o povo havia recebido a
visita dos deuses. A praça encheu-se em poucos minutos. Todos
queriam ver o mendigo reintegrado nos seus movimentos livres.
Espalhou-se o sucesso, rapidamente. Barnabé e Paulo eram
Júpiter e Mercúrio descidos do Olimpo. Os Apóstolos, jubilosos
com a dádiva de Jesus, mas, profundamente surpreendidos com a
atitude dos licaônios, perceberam logo o mal-entendido. Em
meio do respeito geral, Paulo subiu de novo à tribuna
improvisada, explicando que ele e o companheiro eram simples
criaturas mortais, realçando a misericórdia do Cristo, que se
dignara ratificar a promessa do Evangelho, naquele minuto
inesquecível. Debalde, porém, multiplicava os seus
esclarecimentos. Todos lhe ouviam a palavra, genuflexos, em
atitude estática. Foi aí que um velho sacerdote, paramentado
segundo os hábitos da época, surgiu inesperadamente conduzindo
dois bois engrinaldados de flores, com ademanes e mesuras
solenes. Em voz alta, o ministro de Júpiter convida o povo ao
cerimonial do sacrifício aos deuses vivos.
Paulo percebe o movimento popular e, descendo ao centro da
praça, grita com toda força dos pulmões, abrindo a túnica na
altura do peito:
— Não cometais sacrilégios!... Não somos deuses... Vede!...
Somos simples criaturas de carne!.
Seguido de perto por Barnabé, arrebata das mãos do velho
sacerdote a delicada trança de couro que prendia os animais,
soltando os dois touros pacíficos, que se puseram a devorar as
verdes coroas.
O ministro de Júpiter quis protestar, calando-se em seguida,
muito desapontado. E entre os mais extravagantes comentários,
os missionários bateram em retirada, ansiosos por um local de
oração, onde pudessem elevar a Jesus seus votos de alegria e
reconhecimento.
— Grande triunfo! – disse Barnabé quase orgulhoso. – As
dádivas do Cristo foram numerosas, o Senhor lembra-se de
nós!...
Paulo ficou pensativo e redarguiu:
— Quando recebemos muitos favores, precisamos pensar nos
muitos testemunhos. Penso que experimentaremos grandes
provações. Aliás, não devemos esquecer que a vitória da
entrada do Mestre em Jerusalém precedeu os suplícios da cruz.
O companheiro, considerando o elevado sentido daquelas
afirmações, entrou a meditar em profundo silêncio.
Lóide e a filha estavam radiantes. A cura do aleijado conferia
aos mensageiros da Boa Nova singular situação de evidência.
Paulo valeu-se da oportunidade para fundar o primeiro núcleo
do Cristianismo na pequena cidade.
As providências iniciais foram tomadas na residência da
generosa viúva, que pôs à disposição dos missionários todos os
recursos ao seu alcance.
Tal como em Nea-Pafos, estabeleceram num casebre muito humilde
a sede das atividades de informações e de auxílio. Em lugar de
João Marcos, era o pequeno Timóteo quem auxiliava em todos os
misteres. Numerosas pessoas copiavam o Evangelho, durante o
dia, enquanto os enfermos acorriam de toda parte, carecidos de
imediata assistência.
Não obstante tal êxito, crescia igualmente a animosidade de
uns tantos, contra a nova doutrina.
Os poucos judeus de Listra deliberaram consultar as
autoridades de Icônio, relativamente aos dois desconhecidos. E
foi isso o bastante para que se turvassem os horizontes. Os
comissionários regressaram com um acervo de notícias ingratas.
O caso de Tecla era pintado a cores negras. Paulo e Barnabé
eram acusados de blasfemos, feiticeiros, ladrões e sedutores
de mulheres honestas. Paulo, principalmente, era apresentado
como revolucionário temível. O assunto, em Listra, foi
discutido “intra muros”, Os administradores da cidade
convidaram o sacerdote de Júpiter a entrar na campanha contra
os embusteiros e, com a mesma facilidade com que haviam
acreditado na sua condição de deuses, passaram todos a
atribuir aos pregadores as maiores perversões. Combinaram-se
providências criminosas. Desde a chegada dos dois
desconhecidos, que falavam em nome de um novo profeta, Listra
vivia sobressaltada por ideias diferentes. Era preciso coibir
os abusos. A palavra de Paulo era audaciosa e requeria
corretivo eficaz. Finalmente, deliberaram que o fogoso
pregador fosse apedrejado na primeira ocasião que falasse em
público.
Ignorando o que se tramava, o Apóstolo dos gentios, deixando
Barnabé acamado por excesso de trabalho, fez-se acompanhar do
pequeno Timóteo, no sábado imediato, ao entardecer, foi até à
praça pública onde, mais uma vez, anunciou as verdades e
promessas do Evangelho do Reino.
O logradouro apresentava movimento invulgar. O pregador notou
a presença de muitas fisionomias suspeitas e absolutamente
desconhecidas.
Todos lhe acompanhavam os mínimos gestos com evidente
curiosidade.
Com a máxima serenidade, subiu à tribuna e começou a falar das
glórias eternas que o Senhor Jesus havia trazido à Humanidade
sofredora. No entanto, mal havia iniciado o sermão evangélico,
quando, aos gritos furiosos dos mais exaltados, começaram a
chover pedras em barda.
Paulo recordou subitamente a figura inesquecível de Estevão.
Certo, o Mestre lhe reservara o mesmo gênero de morte, para
que se redimisse do mal infligido ao mártir da igreja de
Jerusalém. Os pequenos e duros granizos caíam-lhe nos pés, no
peito, na fronte.
Sentiu o sangue a escorrer-lhe da cabeça ferida e ajoelhou-se,
sem uma queixa, rogando a Jesus que o fortalecesse no
angustioso transe.
Nos primeiros momentos, Timóteo, aterrado, pôs-se a gritar,
suplicando socorro; mas um homem de braços atléticos
aproxima-se cauto e murmura-lhe no ouvido:
— Cala-te se queres ser útil!...
— És tu, Gaio? – exclamou o pequeno de olhos lacrimosos,
experimentando certo conforto em reconhecer um rosto amigo no
pandemônio em que se via.
— Sim – disse o outro baixinho, – aqui estou para socorrer o
Apóstolo.
Não posso esquecer que ele curou minha mãe.
E olhando o movimento da turba criminosa, acrescentou:
— Não temos tempo a perder. Não tardará que o levem ao
monturo. Se tal se der, procura seguir-nos com um pouco de
água. Se o missionário não sucumbir, prestarás os primeiros
socorros, até que eu consiga prevenir tua mãe!...
Separaram-se imediatamente. Ralado de aflição, o rapaz viu o
pregador de joelhos, olhos fitos no céu, num transporte
inesquecível. Filetes de sangue desciam-lhe da fronte
fraturada.
Em dado momento, a cabeça pendeu e o corpo tombou desamparado.
A multidão parecia tomada de assombro. Prevalecendo-se da
situação em que não se observavam diretrizes prévias, Gaio
insinuou-se. Aproximou-se do Apóstolo inerme, fez um gesto
significativo para o povo e bradou:
— O feiticeiro está morto!...
Sua figura gigantesca despertara as simpatias da turba
inconsciente. Estrugiram aplausos.
Os que haviam promovido o nefando atentado desapareceram. Gaio
compreendeu que ninguém ousava assumir a responsabilidade
individual. Em estranhas vibrações, bradavam os mais
perversos:
— Fora das portas... Fora das portas!... Feiticeiro ao
monturo!... Feiticeiro ao monturo!...
O amigo de Paulo, disfarçando a comiseração com gestos de
ironia, falou à multidão satisfeita:
— Levarei os despojos do bruxo!
A turba fez um alarido ensurdecedor e Gaio procurou arrastar o
missionário com a cautela possível. Atravessaram vielas
extensas, em gritos, até que, atingindo um local deserto, um
tanto distante dos muros de Listra, deixaram Paulo semimorto,
na montureira do lixo.
O latagão inclinou-se, como a verificar a morte do apedrejado,
e observando, cuidadosamente, que ainda vivia, gritou:
—Deixemo-lo aos cães, que se incumbirão do resto! É preciso
celebrar o feito com algum vinho!...
E seguindo o líder daquela tarde, a multidão bateu em
retirada, enquanto Timóteo se aproximava do local, valendo-se
das sombras da noite que começava a fechar-se. Correndo a um
poço, não muito distante, e que se destinava à serventia
pública, o pequeno encheu o gorro impermeável, de água pura,
prestando os primeiros socorros ao ferido. Banhado em
lágrimas, notou que Paulo respirava com dificuldade, como se
houvesse mergulhado em profundo desmaio, O jovem listrense
assentou-se ao seu lado, banhou-lhe a testa ferida com
extremos de carinho. Mais alguns minutos e o Apóstolo voltava
a si para examinar a situação.
Timóteo o informou de tudo. Muito compungido, Paulo agradeceu
a Deus, pois reconhecia que somente a misericórdia do
Altíssimo poderia ter operado o milagre, por sequestra-lo aos
propósitos criminosos da turba inconsciente.
Decorridas duas horas, três vultos silenciosos aproximavam-se.
Muito aflito, Barnabé deixara o leito, não obstante o estado
febril, para acompanhar Lóide e Eunice, que, avisadas por
Gaio, acorriam com os primeiros socorros.
Todos renderam graças a Jesus, enquanto Paulo tomava pequena
dose de vinho reconfortador. Organização espiritual poderosa,
apesar das sevícias físicas, o tecelão de Tarso levantou-se e
regressou a casa com os amigos, levemente amparado por
Barnabé, que lhe oferecera o braço amigo.
O resto da noite passou-se em conversações carinhosas. Os dois
emissários da Boa Nova temiam agressão do povo às generosas
senhoras que os haviam hospedado e socorrido. Era preciso
partir, para evitar maiores incômodos e complicações.
Em vão a palavra de Lóide se fez ouvir, procurando dissuadir
os pregoeiros do Cristo; debalde Timóteo beijou as mãos de
Paulo e lhe pediu que não partisse. Receosos de mais tristes
consequências, depois de coordenarem as instruções necessárias
à igreja nascente, transpuseram as portas da cidade ao
amanhecer, em direção a Derbe, que ficava algo distante.
Depois de penosa caminhada, atingiram o novo setor de
trabalho, onde haveriam de estagiar mais de um ano. Embora
entregues ao trabalho manual, com que ganhavam o pão da vida,
os dois companheiros precisaram de seis meses para
restabelecer a saúde comprometida. Como tecelão e oleiro
anônimos, Paulo e Barnabé deixaram-se ficar em Derbe longo
tempo, sem despertar a curiosidade pública. Só depois de
refeitos dos abalos sofridos, recomeçaram a Boa Nova do Reino
de Jesus. Visitando os arredores, provocaram grande interesse
da gente simples, pelo Evangelho da redenção.
Pequenas comunidades cristãs foram fundadas em ambiente de
muitas alegrias.
Após muito tempo de labor, resolveram regressar ao núcleo
original do seu esforço.
Vencendo etapas difíceis, visitaram e encorajaram todos os
irmãos escalonados nas diversas regiões da Licaônia, Pisídia e
Panfília.
De Perge desceram a Atália, de onde embarcaram com destino a
Selêucia e dali ganharam Antioquia.
Ambos haviam experimentado a dificuldade dos serviços mais
rudes. Muita vez se viram perplexos com os problemas
intrincados da empresa: em troca da dedicação fraternal,
haviam recebido remoques, açoites e acusações pérfidas;
contudo, através do abatimento físico e dos gilvazes,
irradiavam ondas invisíveis de intenso júbilo espiritual. Ë
que, entre os espinhos da estrada escabrosa, os dois
companheiros desassombrados mantinham ereta a cruz divina e
consoladora, espalhando a mancheias as sementes benditas do
Evangelho de Redenção.
Kardec e amigos
Jesus Cristo
Chico Xavier
..."Recordemos que o
Espiritismo nos solicita uma espécie permanente de caridade:
a caridade de sua própria divulgação" Emmanuel
Abigail, doente
Emmanuel e Chico Xavier
Aparição de Jesus