Chico Xavier / Emmanuel
No dia fixado, o grande
recinto do mais alto sodalício (tribunal) israelita enchia-se
de verdadeira multidão de crentes e curiosos, ávidos de
assistir ao primeiro embate entre os sacerdotes e os homens
piedosos e estranhos, do “Caminho”.
A assembleia congraçava o que Jerusalém tinha de mais
aristocrático e de mais culto. Os mendigos, porém, não tiveram
acesso, embora se tratasse de um ato público.
O Sinédrio exibia suas personagens mais eminentes. De mistura
com os sacerdotes e mestres de Israel, notava-se a presença
das personalidades mais salientes do farisaísmo. Lá estavam
representantes de todas as sinagogas.
Compreendendo a acuidade intelectual de Estevão, Saulo queria
fornecer-lhe um confronto do cenário em que dominava o seu
talento, com a igreja humilde dos adeptos do carpinteiro de
Nazaré. No fundo, seu propósito radicava na jactanciosa
demonstração de superioridade, afagando, ao mesmo tempo, a
íntima esperança de conquistá-lo para as hostes do judaísmo.
Preparara, por isso, a reunião com todos os requisitos, de
feição a impressionar-lhe os sentidos.
Estevão comparecia como um homem chamado a defender-se das
acusações a ele imputadas, não como prisioneiro comum obrigado
a acertar contas com a justiça. Examinando, pois, a situação,
rogou com insistência aos Apóstolos galileus não o
acompanhassem, considerando, não só a necessidade de
permanecerem junto dos sofredores, como também a possível
ocorrência de sérios atritos, no caso de comparecimento dos
adeptos do “Caminho”, dada a firmeza de ânimo com que
procuraria salvaguardar a pureza e a liberdade do Evangelho do
Cristo. Além disso, os recursos de que poderiam dispor eram
demasiadamente simples e não seria justo afrontar com eles o
poderio supremo dos sacerdotes, que tinham encontrado recursos
para crucificar o próprio Messias. Em favor do “Caminho”
pontificavam, apenas, aqueles enfermos desventurados; as
convicções puras dos mais humildes; a gratidão dos mais
infelizes — única força poderosa pelo seu conteúdo de virtude
divina, a lhes amparar a causa perante as autoridades
dominantes do mundo. Assim ponderando, disputava o júbilo de
assumir, sozinho, a responsabilidade da sua atitude, sem
comprometer qualquer companheiro, tal como fizera Jesus um
dia, no seu apostolado sublime. Se necessário, não desdenharia
a possibilidade do derradeiro sacrifício, no sagrado
testemunho de amor ao seu coração augusto e misericordioso. O
sofrimento, por Ele, ser-lhe-ia suave e doce. Sua argumentação
vencera o bom desejo dos companheiros mais veementes.
Assim, sem amparo de qualquer amigo, compareceu ao Sinédrio,
tomado de forte impressão ao lhe observar a grandeza e a
suntuosidade. Habituado aos quadros tristes e pobres dos
subúrbios, onde se refugiavam os infelizes de toda espécie,
deslumbrava-se com a riqueza do Templo, com o aspecto soberbo
da torre dos romanos, com os edifícios residenciais de estilo
grego, com a feição exterior das sinagogas que se espalhavam
em grande número por toda parte.
Compreendendo a importância daquela sessão a que acorriam os
elementos de escol, por identificarem o invulgar interesse de
Saulo, que, no momento, era a expressão de mocidade mais
vibrante do judaísmo, o Sinédrio requisitara o concurso da
autoridade romana para a absoluta manutenção da ordem. A Corte
Provincial não regateara providências. Os próprios patrícios
residentes em Jerusalém compareceram, numerosos, ao grande
feito do dia, considerando que se tratava do primeiro processo
em torno das ideias ensinadas pelo profeta nazareno, depois da
sua crucificação, que deixara tanta perplexidade e tantas
dúvidas no espírito público.
Quando o grande recinto regurgitava de pessoas de alto
destaque social, Estevão sentou-se no lugar previamente
designado, conduzido por um ministro do Templo, ali
permanecendo sob a guarda de soldados que o fixavam
ironicamente.
A sessão começou com todas as cerimônias regimentais. Ao
iniciar os trabalhos, o sumo sacerdote anunciou a escolha de
Saulo, consoante seu próprio desejo, para interpelar o
denunciado e averiguar a extensão de sua culpa no aviltamento
dos princípios sagrados da raça. Recebendo o convite para
funcionar como juiz do feito, o jovem tarsense esboçou um
sorriso triunfante. Com imperioso gesto, mandou que o humilde
pregador do “Caminho” se aproximasse do centro da sala
suntuosa, para onde se dirigiu Estevão serenamente,
acompanhado por dois guardas de cenho carregado.
O moço de Corinto fixou o quadro que o rodeava, considerando o
contraste de uma e outra assembleia e recordando a última
reunião da sua igreja pobre, onde fora compelido a conhecer
tão caprichoso antagonista. Não seriam aquelas as “ovelhas
perdidas” da casa de Israel, a que aludia Jesus nos seus
vigorosos ensinamentos? Ainda que o judaísmo não houvesse
aceitado a missão do Evangelho, como conciliava ele as
observações sagradas dos profetas e sua elevada exemplificação
de virtude, com a avareza e o desregramento? O próprio Moisés
fora escravo e, por dedicação ao seu povo, sofrera inúmeras
dificuldades em todos os dias da existência consagrada ao Todo
Poderoso. Job padecera misérias sem-nome e dera testemunho de
fé nos sofrimentos mais acerbos. Jeremias chorara
incompreendido. Amós experimentara o fel da ingratidão. Como
poderiam os israelitas harmonizar o egoísmo com a sabedoria
amorosa dos Salmos de David? Estranhável que, tão zelosos da
Lei, se entregassem de modo absoluto aos interesses
mesquinhos, quando Jerusalém estava cheia de famílias, irmãs
pela raça, em completo abandono. Como cooperante de uma
comunidade modesta, conhecia de perto as necessidades e
sofrimentos do povo. Com essas unções, sentia que o Mestre de
Nazaré se elevava muito mais, agora, aos seus olhos,
distribuindo entre os aflitos as esperanças mais puras e as
mais consoladoras verdades espirituais.
Ainda não voltara a si da surpresa com que examinava as
túnicas brilhantes e os ornamentos de ouro que exuberavam no
recinto, quando a voz de Saulo, clara e vibrante, o chamou à
realidade da situação.
Depois de ler a peça acusatória em que Neemias figurava como
principal testemunha e no que foi ouvido com a máxima atenção,
Saulo interrogou Estevão entre ríspido e altivo:
— Como vedes, sois acusado de blasfemo, caluniador e
feiticeiro, perante as autoridades mais representativas. No
entanto, antes de qualquer decisão, o Tribunal deseja conhecer
vossa origem para determinar os direitos que vos assistem
neste momento. Sois, porventura, de família israelita?
O interrogado fez-se pálido, ponderando as dificuldades de uma
plena identificação, caso fosse indispensável, mas respondeu
firmemente:
— Pertenço aos filhos da tribo de Issacar.
O doutor da Lei surpreendeu-se, ligeiramente, de maneira
imperceptível para a assembleia, e continuou:
— Como israelita, tendes o direito de replicar livremente às
minhas interpelações; todavia, faz-se mister esclarecer que
essa condição não vos eximirá de pesados castigos, caso
perseverardes na exposição dos erros crassos de uma doutrina
revolucionária, cujo fundador foi condenado à cruz infamante
pela autoridade deste Tribunal, onde pontificam os filhos mais
veneráveis das tribos de Deus. Aliás, apreciando, por
suposição, a vossa origem, convidei-vos a discutir lealmente
comigo, quando de nosso primeiro encontro na assembleia dos
homens do “Caminho”. Fechei os olhos aos quadros de miséria
que então me cercavam, para analisar tão-só os vossos dotes de
inteligência; mas, evidenciando estranha exaltação de
espírito, talvez em virtude de sortilégios, cujas influências
são ali visíveis, vos mantivestes em singular reserva de
opinião, apesar dos meus apelos reiterados. Vossa atitude
inexplicável deu azo a que o Sinédrio considerasse a presente
denúncia de vosso nome como inimigo de nossas ordenações.
Sereis agora obrigado a responder a todas as interpelações
convenientes e necessárias, e eu espero reconheçais que o
título de israelita não vos poderá livrar da punição reservada
aos traidores de nossa causa.
Depois de não pequeno intervalo em que o juiz e o denunciado
puderam verificar a ansiosa expectativa da assembleia, Saulo
entrou a interrogar:
— Por que rejeitastes meu convite à discussão quando honrei a
pregação no “Caminho” com a minha presença?
Estevão, que tinha os olhos fulgurantes, como inspirado por
uma força divina, replicou em voz firme, sem revelar a emoção
que intimamente o dominava:
— O Cristo, a quem sirvo, recomendou aos seus discípulos
evitassem, a qualquer tempo, o fermento das discórdias. Quanto
ao ato de haverdes honrado minha palavra humilde com a vossa
presença, agradeço a prova de imerecido interesse, mas prefiro
considerar com David (Salmos de David, capítulo 34, versículo
2 (Nota de Emmanuel.) que nossa alma se gloriará no Senhor,
visto nada possuirmos de bom em nós mesmos, se Deus nos não
amparar com a grandeza da sua glória.
Em face da lição sutil que lhe era lançada em rosto, Saulo de
Tarso mordeu os lábios, entre colérico e despeitado, e,
procurando evitar, agora, qualquer alusão pessoal, para não
cair em situação semelhante, prosseguiu:
— Sois acusado de blasfemo, caluniador e feiticeiro.
— Permito-me perguntar em que sentido – retrucou o
interpelado, com desassombro.
— Blasfemo quando inculcais o carpinteiro de Nazaré como
Salvador; caluniador quando achincalhais a Lei de Moisés,
renegando os princípios sagrados que nos regem os destinos.
Confirmais tudo isso? Aprovais essas acusações?
Estevão esclareceu sem titubear:
— Mantenho minha crença de que o Cristo é o Salvador prometido
pelo Eterno, através dos ensinos dos profetas de Israel, que
choraram e sofreram no decurso de longos séculos, por
transmitir-nos os júbilos doces da Promessa. Quanto à segunda
parte, suponho que a acusação procede de interpretação errônea
em torno de minhas palavras. Jamais deixei de venerar a Lei e
as Sagradas Escrituras, mas considero o Evangelho de Jesus o
seu divino complemento. As primeiras são o trabalho dos
homens, o segundo é o salário de Deus aos trabalhadores fiéis.
— Sois então de parecer – disse Saulo sem dissimular irritação
diante de tanta firmeza – que o carpinteiro é maior que o
grande legislador?
— Moisés é a justiça pela revelação, mas o Cristo é o amor
vivo e permanente.
A essa resposta do acusado, houve um prurido de exaltação na
grande assembleia.
Alguns fariseus encolerizados gritavam injúrias. Saulo, porém,
lhes fez um sinal imperioso e o silêncio voltou a possibilitar
o interrogatório. E, dando à voz um timbre de severidade,
prosseguiu:
— Sois israelita e jovem ainda. Uma inteligência apreciável
serve ao vosso esforço.
Temos então o dever, antes de qualquer punição, de trabalhar
pelo vosso regresso ao aprisco. É imprescindível chamar o
irmão desertor, com carinho, antes do extremo recurso às
armas. A Lei de Moisés poderá conferir-vos uma situação de
grande relevo, mas, que proveito tiraríeis da palavra
insignificante, inexpressiva, do operário ignorante de Nazaré,
que sonhou com a glória para pagar as esperanças loucas numa
cruz de ignomínia?
— Desprezo o valor puramente convencional que a Lei me poderia
oferecer em troca do apoio à política do mundo, que se
transforma todos os dias, considerando que a nossa segurança
reside na consciência iluminada com Deus e para Deus.
— Mas, que esperais do mistificador que lançou a confusão
entre nós, para morrer no Calvário? — tornou Saulo
exaltadamente.
— O discípulo do Cristo deve saber a quem serve e eu me honro
em ser instrumento humilde nas suas mãos.
— Não precisamos de um inovador para a vida de Israel.
— Compreendereis, um dia, que, para Deus, Israel significa a
Humanidade inteira.
Diante dessa resposta ousada, a quase totalidade da assembleia
prorrompeu em apupos, mostrando sua hostilidade franca ao
denunciado de Neemias. Afeitos a um regionalismo
intransigente, os israelitas não toleravam a ideia de
confraternização com os povos que consideravam bárbaros e
gentios.
Enquanto os mais exaltados davam expansão a protestos
veementes, os romanos observavam a cena, curiosos e
interessados, como se presenciassem uma cerimônia festiva.
Depois de longa pausa, o futuro rabino continuou:
— Confirmais a acusação de blasfêmia, enunciando semelhante
princípio contra a situação do povo escolhido, a vossa
primeira condenação.
—E isso não me atemoriza – disse o acusado, resoluto; – às
ilusões orgulhosas que nos conduziriam a tenebrosos abismos,
prefiro acreditar, com o Cristo, que todos os homens são
filhos de Deus, merecendo o carinho do mesmo Pai.
Saulo mordeu os lábios raivosamente, e, acentuando sua atitude
rigorosa de julgador, prosseguiu com aspereza.
— Caluniais Moisés, proferindo tais palavras. Aguardo vossa
confirmação.
O interpelado, dessa vez, endereçou-lhe significativo olhar e
murmurou:
— Por que aguardais minha confirmação se obedeceis a um
critério arbitrário? O Evangelho desconhece as complicações da
casuística. Não desdenho Moisés, mas não posso deixar de
proclamar a superioridade de Jesus Cristo. Podeis lavrar
sentenças e proferir anátemas contra mim; entretanto, é
necessário que alguém coopere com o Salvador no
restabelecimento da verdade acima de tudo, e sem embargo das
mais dolorosas consequências. Aqui estou para fazê-lo e
saberei pagar, pelo Mestre, o preço da mais pura fidelidade.
Depois de cessar o abafado vozerio da assistência, Saulo
voltou a dizer:
— O Tribunal reconhece-vos como caluniador, passível das
punições atinentes a esse título odioso.
E tão logo foram grafadas as novas declarações pelo escriba
que anotava os termos da inquirição, acentuou sem disfarçar a
ira que o dominava:
— É indispensável não esquecer que sois acusado de feiticeiro.
Que respondeis a semelhante arguição?
— De que me acusam, nesse particular? – interrogou o pregador
do “Caminho”, com galhardia.
— Eu próprio vos vi curar uma jovem muda, num dia de sábado, e
ignoro a natureza dos sortilégios que utilizastes nesse feito.
— Não fui eu quem praticou esse ato de amor, como, certamente,
me ouvistes afirmar; foi o Cristo, por intermédio de minha
pobreza, que nada tem de boa.
— Pensais inocentar-vos com esta ingênua declaração? – objetou
Saulo com ironia. — A suposta humildade não vos exculpa. Fui
testemunha do fato e só a feitiçaria poderá elucidar seus
ascendentes estranhos.
Longe de se perturbar, o acusado respondeu inspiradamente:
— E, contudo, o judaísmo está cheio desses fatos que julgais
não compreender. Em virtude de que sortilégio conseguiu Moisés
fazer jorrar de uma rocha a fonte de água-viva? Com que
feitiçaria o povo eleito viu abrirem-se-lhe as ondas revoltas
do mar para a necessária fuga do cativeiro? Com que talismã
presumiu Josué atrasar a marcha do Sol? Não vedes em tudo
isso, os recursos da Providência Divina? De nós nada temos, e,
todavia, no cumprimento do nosso dever, tudo devemos esperar
da divina misericórdia.
Analisando a resposta concisa, reveladora de raciocínios
lógicos, irretorquíveis, o doutor de Tarso quase rilhou os
dentes. Um rápido relancear de olhos na assembleia deu-lhe a
conhecer que o antagonista contava com a simpatia e admiração
de muitos. Chegava a desconcertar-se intimamente.
Como recuperar a calma, dado o temperamento impulsivo que o
levava aos extremos emotivos? Examinando a última assertiva de
Estevão, sentia dificuldade em coordenar uma argumentação
decisiva. Sem poder revelar o desapontamento próprio, incapaz
de encontrar a resposta devida, considerou a urgência de uma
saída a propósito e dirigiu-se ao sumo sacerdote, nestes
termos:
— O acusado confirma, por sua palavra, a denúncia de que foi
objeto.
Acaba de confessar, de público, que é blasfemo, caluniador e
feiticeiro.
Entretanto, por sua condição de nascimento, ele tem direito à
defesa última, independentemente das minhas interpretações de
julgador. Proponho, então, que a autoridade competente lhe
conceda esse recurso.
Grande número de sacerdotes e personalidades eminentes
entreolharam-se, quase com espanto, como a prelibar a primeira
derrota do orgulhoso doutor da Lei, cuja palavra vibrante
sempre conseguira triunfar sobre quaisquer adversários,
fixando-lhe o rosto rubro de cólera, denunciando a tempestade
que lhe rugia no coração.
Aceita a proposta formulada pelo juiz da causa, Estevão passou
a usar de um direito que lhe era conferido pelo seu
nascimento.
Levantando-se, nobremente contemplou os rostos ansiosos que o
buscavam de todos os lados. Adivinhou que a maioria dos
presentes presumia na sua figura um perigoso inimigo das
tradições raciais, tal a sua expressão de hostilidade; mas
notou, igualmente, que alguns israelitas o encaravam com
simpatia e compreensão. Valendo-se desse auxílio, sentiu
consolidar-se-lhe o bom ânimo, de maneira a expor com maior
serenidade os sagrados ensinos do Evangelho. Lembrou,
instintivamente, a promessa de Jesus aos seus continuadores,
de que estaria presente no instante em que devessem dar
testemunho pela palavra, competindo-lhe não tremer ante as
provocações inconscientes do mundo. Mais que nunca, sentiu a
convicção de que o Mestre auxiliá-lo-ia na exposição da
doutrina de amor.
Passado um minuto de ansiosa expectativa, começou a falar de
modo impressionante:
— Israelitas, por maior que fosse nossa divergência de opinião
religiosa, não poderíamos alterar nossos laços de fraternidade
em Deus – o supremo dispensador de todas as graças. É a esse
Pai, generoso e justo, que elevo minha rogativa em favor de
nossa compreensão fiel das verdades santas.
Outrora, nossos antepassados ouviram as exortações grandiosas
e profundas dos emissários do Céu. Por organizar um futuro de
paz sólida aos seus descendentes, nossos avós sofreram
misérias e penúrias do cativeiro. Seu pão era molhado nas
lágrimas de amargura, sua sede angustiava. Viram malogradas
todas as esperanças de independência, perseguições sem conto
destruíram-lhes o lar, com agravo de sofrimentos nas lutas de
seu roteiro. A frente de seus martírios dignificantes, andaram
os santos varões de Israel, como gloriosa coroa do seu
triunfo. Alimentou-os a palavra do Eterno, através de todas as
vicissitudes. Suas experiências constituem poderoso e sagrado
patrimônio. Delas, temos a Lei e os Escritos dos profetas.
Apesar disso, não podemos iludir nossa sede. Nossa concepção
de justiça é fruto de um labor milenar, em que empregamos as
maiores energias, mas sentimos, por intuição, que existe algo
de mais elevado, além dela. Temos o cárcere para os que se
transviam, o vale dos imundos para os que adoecem sem a
proteção da família, a lapidação na praça pública para a
mulher que fraqueja, a escravidão para os endividados, os
trinta e nove açoites para os mais infelizes. Bastará isso? As
lições do passado não estão cheias da palavra “misericórdia”?
Algo nos fala à consciência, de uma vida maior, que inspira
sentimentos mais elevados e mais belos. Ingente foi o trabalho
no curso longo e multissecular, mas o Deus justo respondeu aos
angustiados apelos do coração, enviando-nos seu Filho
bem-amado – O Cristo Jesus!
A assembleia ouvia grandemente surpreendida. No entanto,
quando o orador frisou mais forte a referência ao Messias de
Nazaré, os fariseus presentes, fazendo causa comum com o jovem
de Tarso, prorromperam em protestos, gritando alucinadamente:
— Anátema! Anátema! Punição ao trânsfuga!
Estevão recebeu com serenidade a tormenta objurgatória e, tão
logo foi a ordem restabelecida, prosseguiu com firmeza:
— Por que me apupais desta forma? Toda precipitação de
julgamento demonstra fraqueza. Primeiramente, renunciei à
discussão considerando que se deve eliminar todo fermento de
discórdia; mas, dia a dia o Cristo nos convoca para um
trabalho novo e, certamente, o Mestre me chama hoje, a fim de
palestrar convosco relativamente às suas verdades poderosas.
Desejais impor-me o ridículo e a zombaria? Isso, porém, deve
confortar-me, porque Jesus experimentou esse tratamento em
grau superlativo. Não obstante vossa repulsa, honra-me em
proclamar as glórias inexcedíveis do profeta nazareno, cuja
grandeza veio ao encontro de nossas ruínas morais,
levantando-nos para Deus com o seu Evangelho de redenção.
Nova saraivada de apóstrofes cortou-lhe a palavra. Ditos
mordentes e ásperos baldões eram-lhe atirados a esmo, de todos
os lados. Estevão não esmoreceu. Voltando-se, sereno, fixou
nobremente os circunstantes, guardando a intuição de que os
mais exaltados seriam os fariseus, os mais fundamente
atingidos pelas verdades novas.
Esperando que recobrassem a calma, falou nova mente:
— Fariseus amigos, por que teimais em não compreender?
Porventura temeis a realidade das minhas afirmações? Se vossos
protestos se fundam nesse receio, calai-vos para que eu
continue. Lembrai-vos de que me refiro aos nossos erros do
passado e quem se associa na culpa dá testemunho de amor, no
capítulo das reparações. Apesar de nossas misérias, Deus nos
ama e, reconhecendo eu a própria indigência, não poderia
falar-vos senão como irmão. Entretanto, se expressais
desespero e revolta, recordai que não poderemos fugir à
realidade da nossa profunda insignificância. Lestes, acaso, as
lições de Isaías? Importa considerar a exortação (Isaías,
capítulo 52. Versículo 12 (Nota de Emmanuel.) de que não
poderemos sair, apressadamente, nem enganando a nós mesmos,
nem fugindo aos nossos deveres, porque o Senhor irá adiante e
o Deus de Israel será a nossa retaguarda. Ouvi-me! Deus é o
Pai, o Cristo é o Senhor nosso.
Muito falais da Lei de Moisés e dos Profetas; todavia,
podereis afirmar com a mão na consciência a plena observância
dos seus gloriosos ensinamentos?
Não estaríeis cegos atualmente, negando-vos à compreensão da
mensagem divina? Aquele, a quem chamais ironicamente o
carpinteiro de Nazaré, foi amigo de todos os infelizes. Sua
pregação não se limitou a expor princípios filosóficos. Antes,
pela exemplificação, renovou nossos hábitos, reformou as
ideias mais elevadas, com o selo do amor divino. Suas mãos
nobilitaram o trabalho, pensaram úlceras, curaram leprosos,
deram vista aos cegos. Seu coração repartiu-se entre todos os
homens, dentro do novo entendimento do amor que nos trouxe com
o exemplo mais puro.
Acaso ignorais que a palavra de Deus tem ouvintes e
praticantes? Convém consultardes se não tendes sido meros
ouvintes da Lei, de maneira a não falsear o testemunho.
Jerusalém não me parece o santuário de tradições da fé, que
conheci por informações de meus pais, desde criança.
Atualmente, dá impressão de um grande bazar onde se vendem as
coisas sagradas. O Templo está cheio de mercadores. As
sinagogas regurgitam de assuntos atinentes a interesses
mundanos. As células farisaicas assemelham-se a um vespeiro de
interesses mesquinhos. O luxo das vossas túnicas assombra.
Vossos desperdícios espantam. Não sabeis que à sombra de
vossos muros há infelizes que morrem de fome? Venho dos
subúrbios, onde se concentra grande parte de nossas misérias.
Falais de Moisés e dos Profetas, repito. Acreditais que os
antepassados veneráveis mercadejassem com os bens de Deus? O
grande legislador viveu entre experiências terríveis e
dolorosas. Jeremias conheceu longas noites de angústias, a
trabalhar pela intangibilidade do nosso patrimônio religioso,
entre as perdições de Babilônia. Amós era pobre pastor, filho
do trabalho e da humildade. Elias sofreu toda sorte de
perseguições, compelido a recolher-se ao deserto, tendo só
lágrimas como preço do seu iluminismo. Esdras foi modelo de
sacrifício pela paz dos seus compatriotas. Ezequiel foi
condenado à morte por haver proclamado a verdade. Daniel
curtiu as infinitas amarguras do cativeiro. Mencionais os
nossos heroicos instrutores do passado, tão-só para justificar
o gozo egoístico da vida? Onde guardais a fé? No conforto
ocioso, ou no trabalho produtivo? Na bolsa do mundo, ou no
coração que é o templo divino? Incentivais a revolta e quereis
a paz? Explorais o próximo e falais de amor a Deus? Não vos
lembrais de que o Eterno não pode aceitar o louvor dos lábios
quando o coração da criatura permanece dele distante?
A assembleia, ante o sopro daquela sublime inspiração, parecia
imóvel, incapaz de se definir. Muitos israelitas supunham ver
em Estevão o ressurgimento de um dos primevos profetas da
raça. Mas os fariseus, como se quebrassem a misteriosa força
que os emudecia, romperam em algazarra ensurdecedora,
gesticulando a esmo, proferindo impropérios, no propósito de
atenuar a forte impressão causada pelos surtos eloquentes e
calorosos do orador.
— Apedrejemos o imundo! Matemos a calúnia! Anátema ao caminho
de Satanás!
Nesse comenos, Saulo levantou-se rubro de cólera. Não
conseguia disfarçar a fúria do temperamento impulsivo, a
desbordar-lhe dos olhos inquietos e brilhantes.
Caminhou presto para o acusado, dando a entender que ia
cassar-lhe a palavra, e a assembleia logo se acalmou, embora
continuasse o rumor dos comentários abafados.
Percebendo que ia talvez ser coagido pela violência e, mais,
que os fariseus pediam sua morte, Estevão fixou os mais
irônicos e arrebatados, exclamando em voz alta e tranquila:
— Vossa atitude não me intimida. O Cristo foi solícito no
recomendar não temêssemos os que só podem matar-nos o corpo.
Não pôde prosseguir. O moço tarsense, mãos à cintura, olhar
iracundo e gestos rudes como se defrontasse um malfeitor
comum, gritou-lhe furiosamente no ouvido:
— Basta! Basta! Nem mais uma palavra! Agora que te foi
concedido o último recurso inutilmente, também usarei o que me
faculta a condição do nascimento, em face de um irmão
desertor.
E caiu-lhe de punhos fechados no rosto, sem que Estevão
tentasse a menor reação. Os fariseus aplaudiram o gesto
brutal, em atroada delirante, qual se estivessem num dia de
festa.
Dando expansão ao seu arrebatamento, Saulo esmurrava sem
compaixão.
Sem recursos de ordem moral, ante a lógica do Evangelho,
recorria à força física, satisfazendo à índole voluntariosa.
O pregador do “Caminho”, submetido a tais extremos, implorava
de Jesus a necessária assistência para não se trair no
testemunho. Não obstante a reforma radical que a influência do
Cristo havia imposto às suas concepções mais íntimas, ele não
podia fugir à dor da dignidade ferida. Procurou, contudo,
recompor imediatamente as energias interiores, na compreensão
da renúncia que o Mestre predicara como lição suprema. Lembrou
os sacrifícios do pai em Corinto, reviu na imaginação o seu
suplício e morte. Recordou a prova angustiosa que sofrera e
considerou que, se tão-só no conhecimento de Moisés e dos
Profetas tanto conseguira em energia moral para enfrentar os
ignorantes da bondade divina, que não poderia testemunhar
agora com o Cristo no coração? Esses pensamentos acudiam-lhe
ao cérebro atormentado, como bálsamo de suprema consolação.
Entretanto, embora a fortaleza de ânimo que lhe marcava o
caráter, viu-se que ele vertia copiosas lágrimas.
Quando lhe observou o pranto misturado com o sangue a jorrar
da ferida que as punhaladas lhe abriram em pleno rosto, Saulo
de Tarso conteve-se saciado na sua imensa cólera. Não podia
compreender a passividade com que o agredido recebera os
bofetões da sua força enrijada nos exercícios do esporte.
A serenidade de Estevão perturbou-o ainda mais. Sem dúvida,
estava diante de uma energia ignorada.
Esboçando um sorriso de zombaria, advertiu altaneiro:
— Não reages, covarde? Tua escola é também a da indignidade?
O pregador cristão, apesar dos olhos molhados, respondeu com
firmeza:
— A paz difere da violência, tanto quanto a força do Cristo
diverge da vossa.
Verificando tamanha superioridade de concepção e pensamento, o
doutor da Lei não podia ocultar o despeito e a fúria que lhe
transpareciam nos olhos chamejantes. Parecia no auge da
irritação, a extravasar nos maiores despropósitos. Dir-se-ia
haver chegado ao cúmulo de tolerância e resistência.
Voltando-se para observar a aprovação dos seus partidários,
que se contavam por maioria, dirigiu-se ao sumo sacerdote e
impetrou uma sentença cruel. Tremia-lhe a voz, pelo esforço
físico despendido.
— Analisando a peça condenatória – acrescentou ufano – e,
considerados os graves insultos aqui bolçados, como juiz da
causa rogo seja o réu lapidado.
Frenéticos aplausos secundaram-lhe a palavra inflexível. Os
fariseus tão duramente atingidos pelo verbo ardente do
discípulo do Evangelho supunham vingar, desse modo, o que
consideravam escárnio criminoso às suas prerrogativas.
A autoridade superior recebeu o alvitre e procurou submetê-lo
à votação no reduzido círculo dos colegas mais eminentes.
Foi então que Gamaliel,
depois de palestrar em voz baixa com os colegas de elevada
investidura, comentando talvez o caráter generoso e a
incoercível impulsividade do ex-discípulo, dando-lhes a
entender que a sanção proposta seria a morte imediata do
pregador do “Caminho”, levantou-se no inquieto cenáculo e
ponderou nobremente:
— Tendo voto neste Tribunal e não desejando precipitar a
solução de um problema de consciência, proponho que se estude
mais ponderadamente a sentença pedida, retendo-se o acusado em
calabouço até que se esclareça a sua responsabilidade perante
a justiça.
Saulo percebeu o ponto de vista do antigo mestre, inferindo
que ele punha em jogo o seu reconhecido pendor à tolerância.
Aquela advertência contrariava-lhe sobremaneira os propósitos
resolutos, mas, sabendo que não lhe poderia ultrapassar a
autoridade veneranda, acentuou:
— Aceito a proposição na qualidade de juiz do feito;
entretanto, adiada a execução da pena, qual fora de desejar e
tendo em vista o veneno destilado pelo verbo irreverente e
ingrato do réu, espero seja este algemado e recolhido
imediatamente ao cárcere. E proponho igualmente investigações
mais amplas sobre as atividades supostamente piedosas dos
perigosos crentes do “Caminho”, a fim de que se extirpe na
raiz a noção de indisciplina por eles criada contra a Lei de
Moisés, movimento revolucionário de consequências
imprevisíveis, que significa, em substância, desordem e
confusão em nossas próprias fileiras e ominoso esquecimento
das ordenações divinas, conjurando assim a propagação do mal,
cujo crescimento intensificará os castigos.
A nova proposta foi plenamente aprovada. Com a sua profunda
experiência dos homens, Gamaliel compreendeu que era
indispensável conceder alguma coisa.
Ali mesmo, Saulo de Tarso foi autorizado pelo Sinédrio a
iniciar as mais latas diligências em torno das atividades do
“Caminho”, com ordem de admoestar, corrigir e prender todos os
descendentes de Israel dominados pelos sentimentos colhidos no
Evangelho, considerado, desde aquela hora, pelo regionalismo
semita, como repositório de veneno ideológico, com que o
ousado carpinteiro nazareno pretendia revolucionar a vida
israelita, operando a dissolução dos seus elos mais legítimos.
O moço tarsense, em frente de Estevão prisioneiro, recebeu a
notificação oficial com um sorriso triunfante.
Encerrou-se, assim, a memorável sessão. Numerosos companheiros
acercaram-se do moço judeu, felicitando-o pela palavra
vibrante, ciosa da hegemonia de Moisés. O ex-discípulo de
Gamaliel recebia a saudação dos amigos e murmurava confortado:
— Conto com todos, lutaremos até ao fim.
Os trabalhos daquela tarde tinham sido exaustivos, mas o
interesse despertado fora enorme. Estevão sentia-se
cansadíssimo. Ante os grupos que se retiravam esflorando os
mais diversos comentários, foi ele manietado antes de
conduzido à prisão. Polarizando os sentimentos do Mestre, não
obstante a fadiga, tinha confortada a consciência. Com sincera
alegria interior, verificava que mais uma vez Deus lhe
concedia a oportunidade de testemunhar a sua fé.
Em poucos instantes, a sombra do crepúsculo parecia caminhar
rápida para a noite sombria.
Após suportar as mais dolorosas humilhações de alguns fariseus
que se retiravam sob profunda impressão de despeito,
custodiado por guardas rudes e insensíveis, ei-lo recolhido ao
cárcere, com pesadas algemas.
Kardec e amigos
Jesus Cristo
Chico Xavier
..."Recordemos que o
Espiritismo nos solicita uma espécie permanente de caridade:
a caridade de sua própria divulgação" Emmanuel
Abigail, doente
Emmanuel e Chico Xavier
Aparição de Jesus