Chico Xavier / Emmanuel
Saulo de Tarso, nas características de sua
impulsividade, deixou-se empolgar pela ideia de vingança,
impressionado com o desassombro de Estevão em face da sua
autoridade e da sua fama.
A seu ver, o pregador do Evangelho infligira-lhe humilhações
públicas, que impunham reparações equivalentes.
Todos os círculos de Jerusalém, não obstante o curto prazo da
sua nova permanência na cidade, não escondiam a admiração que
lhe votavam. Os intelectuais do Templo estimavam nele uma
personalidade vigorosa, um guia seguro, tomando-o por mestre
no racionalismo superior. Os mais antigos sacerdotes e
doutores do Sinédrio reconheciam-lhe a inteligência aguda e
nele depositavam a esperança do porvir. Na época, sua
juventude dinâmica, votada quase inteiramente ao ministério da
Lei, centralizava, por assim dizer, todos os interesses da
casuística. Com a argúcia psicológica que o caracterizava, o
jovem tarsense conhecia o papel que Jerusalém lhe destinava.
Assim, as controvérsias de Estevão doíam-lhe nas fibras mais
sensíveis do coração. No fundo, seu ressentimento era apanágio
de uma juventude ardorosa e sincera; entretanto, a vaidade
ferida, o orgulho racial, o instinto de domínio, toldavam-lhe
a retina espiritual.
No âmago das suas reflexões, odiava agora aquele Cristo
crucificado, porque detestava a Estevão, considerado então
como perigoso inimigo. Não poderia tolerar qualquer expressão
daquela doutrina, aparentemente simples, mas que vinha abalar
o fundamento dos princípios estabelecidos. Perseguiria
inflexivelmente o “Caminho”, na pessoa de quantos lhe
estivessem associados.
Mobilizaria, intencionalmente, todas as simpatias de que
dispunha, para multiplicar a devassa imprescindível. Certo,
deveria contar com as admoestações conciliatórias de um
Gamaliel e de outros raros espíritos, que, a seu ver, se
deixariam embair pela filosofia de bondade que os Galileus
haviam suscitado com as novas escrituras; mas estava
convencido de que a maioria farisaica, em função política,
ficaria a seu lado, animando-o na empresa começada.
No dia seguinte à prisão de Estevão, procurou arregimentar as
primeiras forças com a máxima habilidade. À cata de simpatia
para o amplo movimento de perseguição que pretendia efetuar,
visitou as personalidades mais eminentes do judaísmo,
abstendo-se, contudo, de procurar a cooperação das autoridades
reconhecidamente pacifistas. A inspiração dos prudentes não o
interessava. Necessitava de temperamentos análogos ao seu,
para que o cometimento não falhasse.
Depois de consertar largo projeto entre os compatrícios,
solicitou uma audiência da Corte Provincial, para obter o
apoio dos romanos encarregados da solução de todos os assuntos
políticos da província. O Procurador, apesar de residir
oficialmente em Cesareia, estagiava na cidade e ali tivera
notícia dos fatos interessantes da véspera. Recebendo a
petição do prestigioso doutor da Lei, hipotecou-lhe
solidariedade plena, elogiando as providências em perspectiva.
Seduzido pelo verbo fluente do moço rabino, fez-lhe sentir,
com a displicência do homem de Estado de todos os tempos e em
quaisquer circunstâncias pelos assuntos religiosos, que
reconhecia no farisaísmo razões de sobra para mover combate
aos Galileus ignorantes, que perturbavam o ritmo das
manifestações de fé, nos santuários da cidade santa.
Concretizando as promessas, concedeu, imediatamente, ao moço
de Tarso a necessária outorga para o feito colimado,
ressalvando naturalmente os direitos de natureza política, que
a suprema autoridade romana devia manter intangíveis.
Entretanto, bastava ao novel rabino a adesão dos poderes
públicos aos projetos aventados.
Animado em seus propósitos pela quase geral aprovação do seu
plano, Saulo começou a coordenar as primeiras diligências por
desvendar as atividades do “Caminho” em suas mínimas
modalidades. Obcecado pela ideia da desforra pública,
idealizava quadros sinistros na mente superexcitada. Tão logo
fosse possível, prenderia todos os implicados. O Evangelho,
aos seus olhos, dissimulava sedição iminente. Apresentaria os
conceitos oratórios de Estevão como senha da bandeira
revolucionária, de maneira a despertar a repulsa dos
companheiros menos vigilantes, habituados a pactuar com o mal,
a pretexto de acomodatícia tolerância. Combinaria os textos da
Lei de Moisés e dos Escritos Sagrados, para justificar que se
deveria conduzir os desertores dos princípios da raça, até a
morte. Demonstraria a irrepreensibilidade da sua conduta
inflexível. Tudo faria por conduzir Simão Pedro ao calabouço.
Na sua opinião, devia ser ele o autor intelectual da trama
sutil que se vinha formando em torno da memória de um simples
carpinteiro. No arrebatamento das ideias precipitadas, chegava
a concluir que ninguém seria poupado nas suas decisões
irrevogáveis.
Nesse dia, singularizado pela visita às autoridades em
evidência, no intuito de as atrair à sua causa, outros fatos
surpreendentes vieram agravar as preocupações que o
assoberbavam. Oseias Marcos e Samuel Natan, dois compatriotas
riquíssimos, de Jerusalém, depois de ouvirem a defesa pessoal
de Estevão, no Sinédrio, impressionados com a eloquência e
justeza dos conceitos do orador, distribuíram com os filhos a
parte da herança cabível a cada um, e doaram ao “Caminho” o
restante de seus haveres. Para isso, procuraram Simão Pedro
beijando-lhe as mãos calejadas no trabalho, depois de lhe
ouvirem a palavra acerca de Jesus Cristo.
A notícia ecoou nos círculos farisaicos com as características
de verdadeiro escândalo.
Saulo de Tarso teve conhecimento do fato, no dia imediato,
aferindo o abalo geral que a atitude de Estevão provocara. A
defecção dos dois correligionários bandeando-se para os
Galileus causou-lhe profundo sentimento de revolta. Falava-se,
mais, que Oseias e Samuel, entregando ao “Caminho” a
totalidade de seus bens, haviam declarado, entre lágrimas, que
aceitavam o Cristo como o Messias prometido. Os comentários
dos amigos, a respeito, instigavam-no às mais fortes
represálias. Designado pelas caprichosas correntes populares
como o mais jovem defensor da Lei, sentia-se compelido, cada
vez mais, a revelar o seu ascendente nesse posto que
considerava sagrado. Na defesa do seu mandato, por isso mesmo,
desprezaria todas as considerações tendentes a infirmar-lhe o
rigorismo, em que presumia um divino dever.
Considerando a gravidade da última ocorrência que ameaçava a
estabilidade do judaísmo no seio mesmo dos seus elementos mais
destacados, procurou novamente as autoridades supremas do
Sinédrio, a fim de apressar as repressões em perspectiva.
Atento à autorização concedida pelos mais altos poderes
políticos da província, Caifás propôs fosse o zeloso doutor de
Tarso nomeado chefe e promotor de todas as providências
atinentes e indispensáveis à guarda e defesa da Lei.
Competia-lhe, então, promover todos os recursos que julgasse
convenientes e úteis, reservadas ao Sinédrio as últimas
decisões, máxime, as de natureza mais grave.
Satisfeito com o resultado da reunião que improvisara, o moço
tarsense acentuou antes de se despedir dos amigos:
— Hoje mesmo requisitarei o corpo de tropa que deverá operar
no perímetro da cidade.
Amanhã ordenarei a detenção de Samuel e Oseias, até que se
resolvam a retomar juízo e, no fim da semana, tratarei das
capturas da gentalha do “Caminho”.
— Não temerás, acaso, os sortilégios? — interrogou Alexandre
com ironia.
— De modo algum — respondeu sentencioso e decisivo. — Sabendo
de oitiva que os próprios militares começam a ficar
supersticiosos sob a influência das ideias extravagantes dessa
gente, chefiarei em pessoa a expedição, porquanto tenciono
recolher o tal Simão Pedro ao calabouço.
— Simão Pedro? — perguntou, admirado, um dos presentes.
— Por que não?
— Sabes o motivo da ausência de Gamaliel ao nosso encontro de
hoje? — tornou o outro.
— Não.
— É que, a convite desse mesmo Simão, ele foi observar as
instalações e os feitos do “Caminho”. Não achas tudo isso
extremamente curioso? Temos, de maneira geral, a impressão de
que o chefe humilde dos Galileus, desaprovando a atitude de
Estevão perante o Sinédrio, deseja recompor a situação,
buscando aproximar-se de nossa autoridade administrativa. Quem
sabe? Talvez tudo isso seja útil. No mínimo, é bem possível
estejamos caminhando para a necessária rearmonização.
Saulo mostrava-se mais que surpreso, porque estupefato.
— Mas, que vem a ser tudo isso? Gamaliel visitando o
“Caminho”? Chego a duvidar da sua integridade mental.
— Mas sabemos — interveio Alexandre — que o mestre sempre
pautou seus atos e pensamentos com a máxima correção. Era
justo se negasse a tal convite, em consideração a nós outros;
entretanto, se tal não fez, é igualmente preciso não
desacatemos a deliberação tomada, certo, com a nobreza de
objetivos que sempre o inspirou.
— De acordo — disse Saulo algo contrafeito, entretanto, apesar
da amizade e gratidão que lhe consagro, nem mesmo Gamaliel
poderá modificar minhas resoluções. É possível que Simão Pedro
se justifique, saindo ileso das provas a que será submetido;
mas, seja como for, terá de ser conduzido ao cárcere para as
necessárias inquirições. Desconfio da sua aparente humildade.
Com que fim se abalançaria ele a deixar suas redes para
arvorar-se em benfeitor gracioso dos pobres de Jerusalém?
Vejo, em tudo isso, propósitos de sedução que não deve andar
muito longe. Os mais humildes e ignorantes caminham à frente
dos perigos. Os senhores da destruição aparecem depois.
A palestra animou-se ainda algum tempo, em torno da
expectativa geral dos acontecimentos que se aproximavam, até
que Saulo se despediu e voltou para casa, disposto a assentar
os últimos detalhes do seu plano.
A prisão de Estevão tivera, na igreja modesta do “Caminho”,
ampla repercussão despertando justificados receios aos
Apóstolos da Galileia. Pedro recebera a notícia com profunda
tristeza. Encontrara no rapaz de Corinto um auxiliar devotado
e um irmão. Além disso, pela nobreza de suas qualidades
afetivas, Estevão se tornara uma figura central a focalizar
todas as atenções.
Para a sua fronte inspirada convergiam numerosos problemas, em
cuja solução o ex-pescador de Cafarnaum não mais dispensava a
sua prestigiosa cooperação.
Amado pelos aflitos e sofredores, tinha sempre a palavra de
bom ânimo, que levantava o mais desalentado coração. Pedro e
João preocuparam-se mais por amor, que por quaisquer outras
considerações. Entretanto Tiago, filho de Alfeu, não conseguia
disfarçar seu desgosto em face da conduta desassombrada do
irmão de fé, que não hesitara em afrontar os poderes
farisaicos, dos senhores da situação. Na opinião dele, Estevão
andara errado no capítulo das exortações; deveria comedir-se,
merecera a prisão pelos argumentos precipitados na defesa de
si mesmo. Fermentara-se a discussão.
Pedro fazia-lhe sentir a oportunidade da ocorrência, para que
se revelasse a liberdade do Evangelho. E reforçava os
argumentos com a lógica dos fatos. A resolução de Oseias e
Samuel, entregando-se ao Cristo, era invocada para justificar
o êxito espiritual do “Caminho”. Toda a cidade comentava os
acontecimentos; muitos se aproximavam da igreja com sincero
desejo de melhor conhecer o Cristo, e isso devia significar a
vitória da causa. Tiago, no entanto, não se deixava vencer
pelos mais fortes raciocínios. A discórdia tomava corpo, mas
Simão e o filho de Zebedeu sobrepunham a tudo os interesses da
Mensagem de Jesus.
O Mestre afirmara-se emissário para todos os desalentados e
doentes. E estes já conheciam a igreja humilde de Jerusalém,
iluminando-se com a palavra de vida e de verdade.
Os enfermos, os desiludidos da sorte, os desprotegidos do
mundo, os tristes, iam-lhe ao encontro para o esclarecimento
consolador. Era de ver-se como se rejubilavam na dor, quando
se lhes falava da claridade eterna da ressurreição. Velhinhos
trêmulos abriam os olhos desmesuradamente, como se
contemplassem novos horizontes de imprevistas esperanças.
Criaturas cansadas da luta terrestre sorriam venturosas,
quando, em ouvindo a Boa Nova, compreendiam que a existência
amargurada não era tudo.
Pedro observava os sofredores que Jesus tanto amara e
experimentava novas forças.
Ciente da atitude nobre de Gamaliel ante as acusações do
doutor de Tarso, e crente de que só ela evitara o
apedrejamento imediato de Estevão, concebeu o projeto de
convidá-lo a visitar as instalações toscas da igreja do
“Caminho”.
Exposta aos companheiros, a ideia foi unanimemente aprovada.
João era o mensageiro escolhido para o novo cometimento.
Gamaliel não só recebeu cavalheirescamente o emissário como
também demonstrou grande interesse pelo convite, aceitando-o
com a generosidade que lhe exornava a velhice veneranda.
Entabuladas as combinações, o sábio rabino deu entrada na casa
pobre dos Galileus, que o receberam com infinita alegria.
Simão Pedro, profundamente respeitoso, explicou-lhe as
finalidades da instituição, esclareceu-o relativamente aos
feitos verificados e falou do conforto dispensado aos que se
encontravam em abandono. Carinhosamente, ofereceu-lhe uma
cópia, em pergaminho, de todas as anotações de Mateus sobre a
personalidade do Cristo e seus gloriosos ensinamentos.
Gamaliel agradecia, atencioso, ao ex-pescador, tratando-o
igualmente com deferência e consideração. Dando a entender que
desejava expor à sua respeitável apreciação todos os programas
da igreja humilde, Simão conduziu o velho doutor da Lei a
todas as dependências. Chegados à longa enfermaria em que se
aglomeravam os mais diversos doentes, o grande rabino de
Jerusalém não pôde ocultar a máxima impressão, comovido até as
lágrimas com o quadro que se lhe deparava aos olhos
espantados. Em leitos acolhedores via anciães de cabelos
nevados pelos invernos da vida, e crianças esquálidas cujos
olhares agradecidos acompanhavam o vulto de Pedro, como se
estivessem na presença de um pai. Não dera ainda dez passos em
torno dos móveis singelos e limpos, quando estacou à frente de
um velhinho de miserável aspecto.
Imobilizado pela enfermidade que o prostrara, o pobre enfermo
pareceu reconhecê-lo igualmente.
E o diálogo se travou sem preâmbulos:
— Samônio, tu aqui? – interrogou Gamaliel admirado. – Pois
será possível que abandonasses Cesareia?
— Ah! sois vós, senhor! — respondeu o interpelado com uma
lágrima no canto dos olhos. — Ainda bem que um dos meus
compatrícios e amigos chegou a observar minha grande miséria.
O pranto embargou-lhe a voz, impedindo-o de continuar.
— Mas, os teus filhos? E os parentes? Na posse de quem estão
tuas propriedades da Samaria? — perguntava o velho mestre
perplexo. — Não chores, Deus tem sempre muito para nos dar.
Decorrida longa pausa em que Samônio pareceu coordenar as
ideias para explicar-se, conseguiu limpar as lágrimas e
prosseguir:
— Ah! senhor, como Job, vi meu corpo apodrecer entre os
confortos de minha casa; Jeová em sua sabedoria reservava-me
longas provanças.
Denunciado como leproso, em vão solicitei socorro dos filhos
que o Criador me concedeu na mocidade. Todos me abandonaram.
Os familiares deram-se pressa em partir deixando-me sozinho.
Os amigos que se banqueteavam comigo, em Cesareia, fugiram sem
que os pudesse ver. Fiquei só e desamparado. Um dia, para
suprema desesperação da minha desdita, os executores da
justiça procuraram-me para notificar a sentença cruel.
Combinados entre si, a conselho da iniquidade, meus filhos
destituíram-me de todos os bens, assenhorearam-se de minhas
posses e dos títulos em dinheiro, que representavam a
esperança de uma velhice honesta. Por fim e para cúmulo de
sofrimentos, conduziram-me ao vale dos imundos, onde me
abandonaram como se fora um criminoso sentenciado a morte.
Senti tanto abandono e tanta fome, experimentei tamanhas
necessidades, talvez pela minha vida passada no trabalho e no
conforto, que fugi do vale dos leprosos, fazendo longa jornada
a pé, esperançoso de encontrar em Jerusalém as amizades
valiosas de outrora.
Ouvindo o relato doloroso, o velho mestre tinha os olhos
úmidos.
Conhecera Samônio nos dias mais felizes de sua vida.
Homenageado em sua residência, de passagem por Cesareia,
espantava-se agora daquela angustiosa indigência.
Depois de pequeno interregno em que o doente procurava enxugar
o suor e as lágrimas, com voz pausada continuou:
— Empreendi a viagem, mas tudo conspirou contra mim. Em breve
os pés chagados não podiam caminhar. Arrastava-me como podia,
cheio de cansaço e sede, quando um carroceiro humilde,
apiedado, me colheu e trouxe a esta casa, onde a dor encontra
um consolo fraternal.
Gamaliel não sabia como externar sua surpresa, tal a emoção
que lhe vibrava no íntimo. Pedro, igualmente, estava
sensibilizado. Acostumando-se à prática do bem sem cogitar
jamais dos antecedentes do socorrido, via no caso uma
confortadora revelação do amoroso poder do Cristo.
O grande rabino estava atônito diante do que ali via e ouvia.
Com a sinceridade que lhe era peculiar, não podia dissimular
sua amizade agradecida ao pobre enfermo; mas, sem recursos
para retirá-lo daquele pobre albergue, via-se na contingência
de estender seu reconhecimento a Simão Pedro e demais
companheiros do ex-pescador de Cafarnaum. Só agora reconhecia
que o judaísmo não havia cogitado desses pousos de amor.
Encontrando ali o amigo leproso, desejou sinceramente
ampará-lo. Mas como? Pela primeira vez pensou na dolorosa
eventualidade de enviar um ente amado ao vale dos imundos. Ele
que aconselhara esse recurso a tanta gente, ali estava
considerando, agora, a situação de um amigo querido. O
episódio abalava-o profundamente Procurando evitar raciocínios
filosóficos, de modo a não cair em conclusões apressadas,
falou com doçura:
— Sim, tens razão para agradecer o esforço dos teus
benfeitores.
— E também a misericórdia do Cristo — acentuou o doente com
uma lágrima. — Creio, agora, que o generoso profeta de Nazaré,
com o testemunho de amor que nos trouxe, é o Messias
prometido.
O grande doutor compreendeu o êxito da nova doutrina. Aquele
Jesus desconhecido, ignorado da sociedade mais culta de
Jerusalém, triunfava no coração dos infelizes, pela
contribuição de amor desinteressado que trouxera aos mais
deserdados da sorte.
Compreendeu, ao mesmo tempo, a discrição que se lhe impunha
naquele meio humilde, atentas as suas responsabilidades na
vida pública. Precisando prosseguir na conversa, por
testemunhar o seu altruísmo e piedade, advertiu com um
sorriso:
— Acredito que Jesus de Nazaré, de fato, foi um modelo de
renúncia a prol de ideias que, até hoje, não pude perquirir ou
compreender; mas daí a considerá-lo o próprio Messias…
Essas palavras reticenciosas davam a compreender o escrúpulo
do seu coração delicado, entre a Lei Antiga e as novas
revelações do Evangelho.
Simão Pedro assim o entendeu e, debalde, procurava um meio
para desviar a palestra noutro rumo, O próprio Samônio, porém,
como tutelado do Mestre, foi em auxílio do Apóstolo,
redarguindo a Gamaliel com observações ponderadas e justas:
— Se eu estivesse com saúde, plenamente identificado com a
família e no gozo dos bens que conquistei com esforço e
trabalho, talvez duvidasse também dessa realidade
confortando-a, mas estou prostrado, esquecido de todos e sei
quem me deu mão amiga. Como israelitas, amantes da Lei de
Moisés, temos esperado um Salvador na pessoa mortal de um
príncipe do mundo; contudo, essa crença há de prevalecer para
uma situação passageira.
São ilusórios preconceitos, esses que nos levam a induzir uma
dominação de forças perecíveis. A enfermidade, porém, é
conselheira carinhosa e esclarecida. De que nos valeria um
profeta que salvasse o mundo para depois desaparecer entre as
misérias anônimas de um corpo apodrecido? Não está escrito que
toda iniquidade perecerá? E onde está o príncipe poderoso da
Terra que domine sem a garantia das armas? O leito de dor é um
campo de ensinamentos sublimes e luminosos. Nele, a alma
exausta vai estimando no corpo a função de uma túnica.
Tudo o que se refira à vestimenta vai perdendo,
consequentemente, de importância.
Persevera, contudo, a nossa realidade espiritual. Os antigos
afirmavam que somos deuses. Na minha situação atual tenho a
perfeita impressão de que somos deuses projetados num
turbilhão de pó. Apesar das chagas pustulentas que me
segregaram das afeições mais queridas, penso, quero e amo. Na
câmara escura do sofrimento, encontrei o Senhor Jesus, para
compreendê-lo melhor. Hoje creio que seu poder dominará as
nações, porque é a força do amor triunfando da própria morte.
A voz daquele homem marcado de feridas roxas, no seu grave
entono, parecia o clarim da verdade saindo de um montão de pó.
Pedro verificava, satisfeito, o progresso moral daquele
mendigo anônimo, para avaliar intimamente a força regeneradora
do Evangelho.
Gamaliel, por sua vez, aturdia-se com o profundo sentido
daqueles conceitos. A pregação do Cristo, nos lábios de um
doente desamparado, tinha um cunho de beleza misteriosa e
singular. Samônio falara no tom de quem tivera experiências
diretas de um encontro real com o profeta nazareno.
Buscando afastar qualquer possibilidade de controvérsia
religiosa, o generoso rabino sorriu e acrescentou:
— Reconheço que falas com muita sabedoria. Se é incontestável
que estou numa idade em que não seria útil alterar os
princípios, não posso manifestar-me contrário às tuas
suposições, pois estou bem de saúde, gozo o carinho dos meus e
tenho vida tranquila. Minha faculdade de julgar, portanto, tem
de operar noutro rumo.
Sim, é justo — retrucou Samônio, inspirado —, por enquanto não
estais precisando de um salvador. Eis por que o Cristo
afirmava que viera para os doentes e para os aflitos.
Gamaliel compreendeu o alcance dessas palavras que davam para
meditar uma vida inteira. Sentiu os olhos úmidos. A observação
de Samônio penetrara-lhe fundo o coração sensível de homem
justo. Percebendo, todavia, que necessitava de prudência para
não confundir os sentimentos do povo, atento o cargo oficial
que ocupava, esboçou um manso sorriso para o interlocutor,
bateu-lhe levemente no ombro, e com acento de fraternal
sinceridade acentuou:
— Talvez tenhas razão. Estudarei o teu Cristo.
E lembrando o pouco tempo de que dispunha, recomendou o amigo
a Simão, despedindo-se num abraço, para acompanhar o Apóstolo
de Cafarnaum às últimas dependências.
Antes de se retirar, o sábio rabino felicitou os companheiros
de Jesus pela obra que realizavam na cidade, e, compreendendo
a delicadeza de sua missão num ambiente por vezes tão hostil,
aconselhou a Pedro não esquecer, na igreja do “Caminho”, todas
as práticas exteriores do judaísmo. Seria justo, a seu ver,
que se cuidasse da circuncisão de todos os que lhe batessem à
porta; que evitassem as viandas impuras; que não olvidassem o
Templo e seus princípios.
Gamaliel sabia que os Galileus não seriam isentos de
perseguição, ainda mais tratando-se de uma organização
iniciada por alguém que fora condenado à morte pelo Sinédrio.
Com aqueles conselhos, visava aparar os golpes da violência,
que, cedo ou tarde, haveriam de chegar.
Pedro, João e Tiago agradeceram sensibilizados a carinhosa
admoestação e o velho doutor regressou ao lar, fundamente
impressionado com as lições do dia, levando consigo os
apontamentos de Mateus, que se pôs a ler imediatamente.
Mais dois dias decorreram e as perseguições capitaneadas por
Saulo de Tarso começaram a sacudir Jerusalém em todos os
setores de suas atividades religiosas.
Oseias Marcos e Samuel Natan foram presos, sem nota de culpa,
a fim de responderem a rigoroso inquérito. Os cooperadores do
movimento organizaram longas nominatas dos israelitas mais
destacados que frequentavam as reuniões da igreja do
“Caminho”. O moço de Tarso determinara que se abrisse
inquérito geral. Entretanto, como desejava dar uma
demonstração de desassombro aos adversários, julgou que
deveria iniciar as prisões de maior importância, depois do
encarceramento de Oseias e Samuel, no reduto mesmo dos
Galileus obscuros, que haviam ousado afrontar a sua
autoridade.
Foi pela manhã de um dia muito claro, que o futuro rabino,
cercado de alguns companheiros e soldados, bateu à porta da
casa humilde, fazendo grande alarde dos fins de sua visita
insidiosa. Simão Pedro em pessoa foi atendê-lo com grande
serenidade nos olhos.
Indisfarçável pavor estabeleceu-se entre os mais tímidos,
porquanto, dois jovens que acompanhavam o Apóstolo se
incumbiram de correr ao interior e espalhar a notícia.
— És tu Simão Pedro, antigo pescador de Cafarnaum? Perguntou
Saulo com certa insolência.
— Eu mesmo — respondeu com firmeza.
—Estás preso! — disse o chefe da expedição num gesto de
triunfo. E mandando que dois dos companheiros se adiantassem,
ordenou fosse o Apóstolo algemado incontinente. Pedro não opôs
a mínima resistência.
Impressionado com o temperamento pacífico que os continuadores
do Nazareno testemunhavam sempre, Saulo objetou com escárnio:
— O Mestre do “Caminho” deve ter sido um alto modelo de
inércia e covardia. Ainda não encontrei qual quer indício de
dignidade nos seus discípulos, cujas faculdades de reação
parecem mortas.
Recebendo em cheio tão acerba injúria, o ex-pescador respondeu
serenamente:
— Enganei-vos quando assim julgais. O discípulo do Evangelho é
apenas inimigo do mal e, na sua tarefa coloca o amor acima de
todos os princípios.
Além do mais, nós consideramos que todo jugo, com Jesus, é
suave.
O jovem tarsense, detentor de tão alto poderio, não dissimulou
o mal-estar que a resposta lhe causava e, apontando o
continuador de Jesus, disse a um dos homens da escolta:
—Jonas, toma conta dele.
E, acentuando ironicamente as palavras, dirigiu-se aos demais
com um gesto de desprezo para o Apóstolo algemado, que o
contemplava sereno, embora surpreendido:
Não discutamos com este homem. Esta gente do “Caminho” está
sempre cheia de raciocínios absurdos. É preciso não perder
tempo com a cegueira da ignorância. Vamos até lá dentro,
prendamos os chefes. Os sequazes do carpinteiro hão de ser
perseguidos até ao fim.
Resoluto, tomou a dianteira, penetrando ousadamente em busca
dos apartamentos mais íntimos. De porta a porta, encontrava
mendigos que o fitavam tomados de espanto e amargura. O quadro
vivo de tanta miséria abrigada enchia-o de admiração; mas,
esforçava-se por não perder a enfibratura implacável, de
maneira a executar seus projetos nos menores detalhes. Ao lado
da enfermaria de mais vastas proporções, encontrou o filho de
Zebedeu, que lhe ouviu a voz de prisão sem alterar a
serenidade fisionômica.
Sentindo as mãos grosseiras do soldado que lhe aplicava as
algemas, João ergueu os olhos ao Alto e murmurou simplesmente:
— Encomendo-me ao Cristo.
O chefe da caravana olhou-o com profundo desprezo e exclamou
altivamente para os companheiros:
— Faltam dois dos mais suspeitos. Procuremo-los Referia-se a
Filipe e Tiago, na qualidade de discípulos diretos do Messias
Nazareno.
Mais alguns passos e o primeiro foi encontrado facilmente.
Filipe deixou-se algemar sem um protesto. Suas filhas o
rodearam aflitas e chorosas.
— Coragem, filhas — disse ele sem temor —, acaso seríamos
superiores a Jesus, que foi perseguido e crucificado pelos
homens?
— Ouves, Clemente? — perguntou Saulo, irritado, a um dos
amigos mais cotados. — Não se percebe outra coisa a não ser
referências ao estranho Nazareno! O primeiro falou em jugo do
Cristo, o segundo encomendou-se ao Cristo, este alude à
superioridade do Cristo… Aonde iremos?
Após desabafar a cólera, em termos ásperos, rematava com o
estribilho constante:
— Havemos de ir até ao fim.
Seguros os três prisioneiros, faltava o filho de Alfeu. Alguém
se lembrou de procurá-lo no tosco biombo que ocupava. Com
efeito, lá o acharam ajoelhado, tendo diante dos olhos um rolo
de pergaminhos em que se encontrava a Lei de Moisés.
Via-se-lhe a palidez marmórea do rosto, quando Saulo se
aproximou ríspido:
— Que é isso? Há aqui alguém que cuide da Lei?
O irmão de Levi levantou os olhos transbordantes de sincero
receio e explicou humilde:
— Senhor, jamais esqueci a Lei de nossos pais. Meus avós
ensinaram-me a receber de joelhos as luzes do profeta santo.
A atitude de Tiago não traduzia fingimento. Consagrando o
máximo respeito ao libertador de Israel, sempre ouvira dizer
que seus livros sagrados estavam tocados de virtude santa. Na
expectativa do cárcere, atemorizara-se com o perigo iminente.
Não pudera compreender, maiormente, como outros companheiros,
o sentido divino e oculto das lições do Evangelho. O
sacrifício inspirava-lhe indisfarçáveis temores. Afinal,
pensava ele na compreensão parcial do Cristo: — quem ficaria
para superintender as obras começadas? O Mestre expirara na
cruz e, naquele instante, os Apóstolos de Jerusalém estavam
presos.
Precisava defender-se com os meios possíveis, ao seu alcance.
Imaginou recorrer às virtudes sobrenaturais da Lei de Moisés,
de acordo com as velhas crenças. Genuflexo, esperara os
verdugos que se aproximavam.
Em face da atitude imprevista de Tiago, Saulo de Tarso estava
atônito. Só os espíritos profundamente aferrados ao judaísmo
liam, de joelhos, os ensinamentos de Moisés. Em sã
consciência, não poderia ordenar a prisão daquele homem, O
argumento que justificava sua tarefa, perante as autoridades
políticas e religiosas de Jerusalém, era o combate aos
inimigos das tradições.
— Mas não sois amigo do carpinteiro?
Com invejável presença de espírito o interpelado respondeu:
— Não me consta que a Lei nos impeça de ter amigos.
Saulo perturbou-se, mas prosseguiu:
— Mas, que escolheis? A Lei ou o Evangelho? Qual dos dois
aceitais em primeiro lugar?
— A Lei é a primeira revelação divina — disse Tiago com
inteligência.
Ante a resposta que o desconcertava, de alguma sorte, o moço
de Tarso refletiu um momento e acrescentou, dirigindo-se, aos
circunstantes:
— Está bem. Este homem fica em paz.
O filho de Alfeu, intimamente satisfeito com o resultado de
sua iniciativa, acreditava agora que a Lei de Moisés estava
tocada de graças vivas e permanentes. A seu ver, fora o código
do judaísmo o talismã que o conservara em liberdade. Desde
esse dia, o irmão de Levi ia consolidar, para sempre, suas
tendências supersticiosas. O fanatismo que os historiadores do
Cristianismo encontraram na sua personalidade enigmática teve
aí sua origem.
Afastando-se do aposento de Tiago, Saulo preparava-se para
sair, quando, de regresso à portaria para ordenar a partida
dos prisioneiros, esbarrou com a cena que mais o haveria de
impressionar.
Todos os doentes que se podiam arrastar, todos os abrigados
capazes de se moverem, cercavam a pessoa de Pedro, chorando
comovidamente.
Algumas crianças lhe chamavam “pai”; anciães trêmulos
osculavam-lhe as mãos...
— Quem se compadecerá de nós, agora? — perguntava uma velhinha
debulhada em pranto.
— Meu “pai”, aonde vão levar-vos? — dizia um órfão afetuoso,
abraçando-se ao prisioneiro.
— Vou ao monte, filho — respondia o Apóstolo.
— E se vos matarem? — tornava o pequenino com uma grande
interrogação nos olhos azuis.
— Encontrar-me-ei com o Mestre e voltarei com ele — esclarecia
Pedro bondosamente.
Nesse instante, surgiu a figura de Saulo, que regressava.
Contemplando a multidão de aleijados, cegos, leprosos e
crianças que entupiam a sala, exclamou irritado:
— Afastem-se, abram caminho!
Alguns recuaram, espavoridos, vendo os soldados que se
aproximavam, enquanto que os mais resolutos não arredavam
passo. Um leproso, que mal se punha em pé, adiantou-se. O
velho Samônio, recordando-se do tempo em que podia mandar e
ser obedecido, aproximou-se de Saulo com desassombro.
— Nós precisamos saber para onde vão estes prisioneiros disse
com gravidade.
— Para trás! — exclamou o moço tarsense, esboçando um gesto de
repugnância.
Será possível que um homem da Lei tenha de dar satisfações a
um velho imundo?
Os guardas armados tentaram adiantar-se, para castigar o
atrevido; no entanto, a lepra defendia Samônio dos seus
ataques.
Prevalecendo-se da situação, o antigo proprietário de Cesareia
revidou com firmeza:
— O homem da Lei não precisa prestar contas senão a Deus,
quando no exato cumprimento dos seus deveres; mas, nesta casa,
falam os códigos de humanidade. Para vós eu sou imundo, mas
para Simão Pedro sou um ir mão.
Prendeis os bons e libertais os maus!
Onde a vossa justiça? Credes somente no Deus dos exércitos? É
indispensável saberdes que se o Eterno é o fator supremo da
ordem, o Evangelho nos ensina a buscar em sua providência o
carinho de um Pai.
Em ouvindo aquela voz digna, que fluía da miséria e do
sofrimento como um apelo de desesperação, Saulo quedara-se
admirado. O mendigo, entretanto, depois de longa pausa,
prosseguia resoluto:
— Onde estão vossas casas de arrimo aos oprimidos da sorte?
Quando vos lembrastes de um asilo para os mais infelizes?
Enganai-vos se supondes inércia em nossa atitude. Os fariseus
levaram Jesus ao Calvário da crucificação, privando os
necessitados de sua presença inefável. Por haver praticado o
bem, Estevão foi metido no cárcere. Agora, o Sinédrio
requisita os Apóstolos do “Caminho”, retribuindo-lhes a
bondade com a escuridão do calabouço. Mas estais equivocados.
Nós, os miseráveis de Jerusalém, haveremos de lutar convosco.
De Simão Pedro nós disputaremos a própria sombra. Se vos
negardes a atender nossas súplicas, importa lembrardes que
somos leprosos. Envenenaremos vossos poços. Pagareis a
perversidade com a saúde e com a vida.
Nesse ínterim, não pôde continuar.
Ante a expectação angustiosa de todos, Saulo de Tarso
sentenciou ríspido:
— Cala-te miserável! Onde estou que te pude ouvir até agora?
Nem mais uma palavra.
E designando-o a um dos soldados, murmurou com desprezo:
— Sinésio, dá-lhe dez bastonadas. É indispensável castigar-lhe
a língua insolente e viperina.
Ali mesmo, à vista de todos os companheiros que se retraíam
amedrontados, Samônio recebeu o castigo sem balbuciar uma
queixa. Pedro e João tinham os olhos úmidos. Os demais doentes
encolhiam-se estarrecidos.
Terminada a tarefa, um grande silêncio dominava os corações
ansiosos e doloridos. O doutor de Tarso rompeu a expectativa
com a ordem de partida, a caminho do cárcere.
Duas crianças pálidas acercaram-se, então, do ex-pescador de
Cafarnaum e perguntaram chorosas:
— “Pai”, com quem ficaremos nós?
Pedro voltou-se, acabrunhado, e respondeu com ternura:
— As filhas de Filipe ficarão convosco... Se Jesus permitir,
meus filhos, não me demorarei.
O próprio Saulo, intimamente, estava comovido; entretanto, não
desejava trair-se a si mesmo, deixando-se vencer pela emoção
que o quadro lhe provocava.
Pedro compreendeu que as lágrimas silenciosas de todos os
tutelados humildes do “Caminho” traduziam desvelado amor,
naquele momento de angustiantes despedidas.
Em seguida a esse feito, o jovem tarsense desdobrou as
energias na primeira perseguição experimentada pelas
expressões individuais e coletivas do Cristianismo nascente.
Mais do que se poderia supor, Jerusalém regurgitava de
criaturas que se interessavam pelas ideias do Messias
Nazareno. Saulo prevaleceu-se dessa circunstância para fazer
sentir, mais uma vez, o perigo ideológico que o Evangelho
representava. Numerosas prisões foram efetuadas.
Na cidade, iniciara-se um êxodo de grandes proporções. Os
amigos do “Caminho”, com possibilidades financeiras, preferiam
encetar vida nova na Idumeia ou na Arábia, na Cilícia ou na
Síria. Os que podiam escapavam ao rigor dos inquéritos
violentos, iniciados com retumbâncias de escândalo público. As
personalidades mais eminentes eram metidas na prisão,
incomunicáveis, mas os anônimos e humildes, os da plebe,
sofriam grandes vexames nas dependências do tribunal onde se
faziam os interrogatórios. Os guardas assalariados por Saulo,
para a execução do nefando trabalho, excediam-se nos abusos.
— És do “Caminho” de Cristo Jesus? — perguntava um deles a uma
desventurada mulher, com risinhos de ironia.
— Eu... eu... — gaguejava a infeliz, compreendendo a
delicadeza da situação.
— Depressa, dize depressa! — tornava o beleguim desrespeitoso.
A mísera criatura empalidecia a tremer, refletindo nos pesados
castigos que lhe seriam impostos e retrucava com profundo
temor:
— Eu... não...
— E que foste fazer nas suas assembleias sediciosas?
— Fui buscar remédio para um filhinho doente.
Em face da negativa, o preposto do Sinédrio parecia
acalmar-se, mas logo exclamava para um dos auxiliares:
— Muito bem! A interrogada pode ir em paz; antes, porém, de
retirar-se, manda o regulamento se lhe aplique alguns golpes
de chanfalho.
E era inútil resistir. Naquele tribunal singular, por longos
dias seguidos, verificaram-se punições de toda espécie. Das
respostas do querelado dependiam o encarceramento, os açoites,
o chanfalho, as bastonadas, as macerações e os apupos.
Saulo tornara-se a mola central do movimento terrível e
execrado por todos os simpatizantes do “Caminho”.
Multiplicando energias, visitava diariamente os núcleos do
serviço a que costumava chamar “expurgo de Jerusalém”,
desenvolvendo atividade pasmosa, dentro da qual mantinha a
vigilância constante das autoridades administrativas,
encorajava os auxiliares e prepostos, instigava outros
perseguidores dos princípios de Jesus, sem deixar arrefecer-se
o zelo religioso do Sinédrio.
Dentro de uma semana, após as prisões efetuadas na igreja
modesta, realizava-se a memorável sessão em que Pedro, João e
Filipe deveriam ser julgados. A assembleia excepcional
despertara a maior curiosidade. Lá se congregavam todas as
personalidades eminentes do farisaísmo dominante.
Gamaliel compareceu, dando mostras de profundo abatimento.
De modo geral, comentava-se a atitude dos mendigos que, não
obtendo permissão de ingresso, aglomeravam-se em longas filas
na grande praça e protestavam em atroante vozerio.
Debalde aplicavam-lhes bastonadas a torto e a direito, porque
a turba de miseráveis assumira proporções nunca vistas, O
quadro era curioso e alarmante. Tomar providências para correr
com a massa, parecia tarefa impossível, Os peregrinos e os
doentes contavam-se por centenas numerosas.
Era inútil reprimir nos pontos isolados, o que somente vinha
agravar a revolta e desesperação de muitos. Em altos brados
reclamavam a liberdade de Simão Pedro.
Exigiam em tumulto a sua libertação, como se exigissem um
legado de seu legítimo direito.
No salão nobre, não só os assistentes comentavam o fato, mas,
também os juízes não dissimulavam profunda impressão. O
próprio Anás contava o assédio de que vinha sendo objeto, por
parte dos favorecidos de Jerusalém.
Alexandre alegava que à sua residência afluíram centenas de
aflitos a solicitar-lhe os bons ofícios a favor dos
prisioneiros. Saulo, de vez em quando, respondia a um que
outro, com rápidos monossílabos. Sua fisionomia carregada
traduzia propósitos inferiores relativamente ao destino dos
Apóstolos da Boa Nova, que lá estavam à sua frente, no fundo
da sala, humildes, serenos, no banco dos criminosos comuns.
Viu-se, então, que Gamaliel se detinha com o sumo sacerdote em
conversação íntima, que durou alguns minutos e despertava
grande curiosidade entre os colegas. Em seguida, o venerando
doutor da Lei chamou o ex-discípulo para um entendimento
particular, antes de iniciarem os trabalhos. Os colegas
perceberam que o rabino tolerante e generoso ia advogar a
causa dos continuadores do Nazareno.
— Qual a sentença a ser proposta para os prisioneiros? —
interrogou o velhinho com bondoso interesse, logo que se viram
distanciados dos grupos rumorosos.
— Sendo eles Galileus — disse Saulo enfático da sua autoridade
—, não lhes será conferido o direito da palavra no recinto; de
maneira que já deliberei a punição que lhes cabe.
Vou propor a morte dos três, com a de Estevão, pelo
apedrejamento.
— Que dizes? — exclamou Gamaliel, surpreso.
— Não vejo outro recurso — disse o moço tarsense —, precisamos
extirpar pela raiz os males que começam. Acredito que, se
encararmos o movimento com tolerância, teremos o prestígio do
judaísmo abalado por nossas próprias mãos.
— Entretanto, Saulo — replicou o velho mestre com profunda
bondade —, devo invocar o ascendente que tenho em tua formação
espiritual, para defender estes homens da pena de morte.
O moço caprichoso fez-se lívido. Não se habituara a transigir
nos seus conceitos e decisões. Sua vontade era sempre tirânica
e inflexível. Mas Gamaliel fora de todos os tempos o seu
melhor amigo. Aquelas mãos rugosas lhe haviam ministrado os
exemplos mais santos.
Delas recebera vasto potencial de socorro em todos os dias da
vida.
Compreendeu que defrontava um obstáculo poderoso na consecução
integral de seus desejos. O venerando rabino percebeu a
perplexidade e logo insistiu:
— Ninguém mais do que eu conhece a generosidade do teu coração
e sou o primeiro a reconhecer que tuas resoluções obedecem ao
zelo inexcedível na defesa de nossos princípios milenários;
mas o “Caminho”, Saulo, parece ter uma grande finalidade na
renovação dos nossos valores humanos e religiosos.
Quem, entre nós, se havia lembrado de amparar os infortunados
com o provimento de um lar afetuoso e fraterno? Antes da tua
diligência corretiva, visitei essa instituição singela e pude
confortar-me na observação do seu excelente programa.
O jovem doutor estava pálido, ouvindo tais conceitos, que, a
seu ver, eram positivo sinal de fraqueza.
Mas será possível — disse admirado — que também vós tenhais
lido o Evangelho dos Galileus?
— Estou a lê-lo — confirmou Gamaliel sem titubear — e pretendo
meditar mais demoradamente os fenômenos que ocorrem em nosso
tempo. Pressinto grandes transformações em toda parte.
Tenciono retirar-me da vida pública em breves dias, a fim de
tomar o caminho do deserto. É claro, porém, que estas minhas
palavras devem ser guardadas por ti, em penhor de mútua
confiança.
Sumamente impressionado, o moço de Tarso não sabia o que
responder.
Presumia o mestre respeitável mentalmente prejudicado por
excesso de lucubrações. O mestre, porém, como se lhe
adivinhasse o pensamento, acrescentou:
— Não me suponhas mentalmente debilitado. A velhice no corpo
não me apagou a capacidade de pensar e discernir por mim
mesmo. Compreendo o escândalo que se levantaria em Jerusalém
se um rabino do Sinédrio modificasse publicamente as
convicções mais íntimas. Mas é preciso convir que estou
falando a um filho espiritual. E expondo, sinceramente, o meu
ponto de vista, faço-o tão só para defender homens generosos e
justos de uma sentença iníqua e indevida.
— Vossa revelação — exclamou Saulo de roldão — decepciona-me
profundamente!
— Conheces-me de menino e sabes que o homem sincero não se
poderá preocupar com os que o elogiem ou o lamentem no
cumprimento de um sagrado dever.
E, imprimindo carinhoso acento à voz, acentuava solícito:
— Não me faças ir contigo, nesta assembleia, aos debates
públicos escandalosos e atentatórios da feição amorosa que
toda verdade deve trazer consigo. Libertarás estes homens em
atenção ao nosso passado de mútuo entendimento. É só o que te
peço. Deixa-os em paz, por amor aos nossos laços afetivos.
Daqui a alguns dias não precisarás conceder mais coisa alguma
ao velho mestre. Serás meu substituto neste cenáculo,
porquanto tenciono abandonar a cidade em breves dias.
E como Saulo hesitasse, continuou:
— Não precisarás refletir muito tempo. O sumo sacerdote está
ciente de que eu pediria tua demência para os prisioneiros.
— Mas... e a minha autoridade? — interrogou o rapaz com
orgulho. — Como conciliar a indulgência com a necessidade de
reprimir o mal?
— Toda a autoridade é de Deus. Nós somos simples instrumentos,
meu filho. Ninguém se diminuirá por ser bom e tolerante.
Quanto à providência mais digna, cabível no caso, é conceder
liberdade a todos eles.
— Todos? — perguntou Saulo num gesto de grande admiração.
— Como não? — confirmou o venerável doutor da Lei. — Pedro é
um homem generoso, Filipe é um pai de família extremamente
dedicado ao cumprimento de seus deveres, João é um moço
simples, Estevão se consagrou aos pobres.
— Sim, sim — interrompeu o moço tarsense. —Concordo com a
libertação dos três primeiros, com uma condição. Por serem
casados, Pedro e Filipe poderão continuar em Jerusalém,
restringindo suas atividades ao socorro dos doentes e
necessitados; João será banido; mas Estevão deverá sofrer a
sentença decisiva. Já propus, publicamente, a lapidação, e não
vejo motivos para transigir, mesmo porque, para escarmento,
pelo menos um dos discípulos do carpinteiro deve morrer.
Gamaliel compreendeu a força daquela resolução pela veemência
das palavras que a traduziam. Saulo deixara bem claro que não
transigiria, quanto ao taumaturgo. O velho rabino não
insistiu. Para evitar um escândalo, entendeu que Estêvão
pagaria com o sacrifício. Aliás, considerando o temperamento
voluntarioso do ex-discípulo, a quem a cidade havia conferido
atribuições tão vastas, já não era pouco obter demência para
os três homens justos, consagrados ao bem comum.
Compreendendo a situação, acentuou o respeitável rabino.
— Pois bem, seja assim!
E, com um sorriso de bondade, deixou o moço algo preocupado e
perplexo.
Daí a instantes, com surpresa geral da assembleia, Saulo de
Tarso, da tribuna, propunha a libertação de Pedro e Filipe, o
banimento de João, e reiterava o pedido de apedrejamento para
Estevão, por considerá-lo o mais perigoso dos elementos do
“Caminho”. As autoridades do Sinédrio apreciando os alvitres,
com satisfação, por saberem que a medida agradaria à turba
numerosa, afirmaram seu unânime consentimento e a morte de
Estevão foi aprazada para uma semana depois, convidando Saulo
os amigos para a triste cerimônia pública a que ele próprio
haveria de presidir.
Kardec e amigos
Jesus Cristo
Chico Xavier
..."Recordemos que o
Espiritismo nos solicita uma espécie permanente de caridade:
a caridade de sua própria divulgação" Emmanuel
Abigail, doente
Emmanuel e Chico Xavier
Aparição de Jesus