Chico Xavier / Emmanuel
À vista disso, embora respeitado pela
franqueza e lealdade, Paulo houve de amargar dois anos de
reclusão em Cesareia, tempo esse aproveitado em relações
constantes com as suas igrejas bem-amadas. Inumeráveis
mensagens iam e vinham, trazendo consultas e levando pareceres
e instruções.
A esse tempo, o ex-doutor de Jerusalém chamou a atenção de
Lucas para o velho projeto de escrever uma biografia de Jesus,
valendo-se das informações de Maria; lamentou não poder ir a
Éfeso, incumbindo-o desse trabalho, que reputava de capital
importância para os adeptos do Cristianismo, O médico amigo
satisfez-lhe integralmente o desejo, legando à posteridade o
precioso relato da vida do Mestre, rico de luzes e esperanças
divinas.
Terminadas as anotações evangélicas, o espírito dinâmico do
Apóstolo da gentilidade encareceu a necessidade de um trabalho
que fixasse as atividades apostólicas logo após a partida do
Cristo, para que o mundo conhecesse as gloriosas revelações do
Pentecostes, e assim se originou o magnífico relatório de
Lucas, que é “Atos dos Apóstolos”.
Não obstante a condição de prisioneiro, o convertido de
Damasco não relaxou o trabalho um só dia, valendo-se de todos
os recursos ao seu alcance, em favor da difusão da Boa Nova.
O tempo corria célere. Os israelitas, no entanto, nunca
desistiram do primitivo plano de eliminar o valoroso campeão
das verdades do Céu. O governador foi abordado, várias vezes,
sobre a oportunidade de reenviar o encarcerado a Jerusalém;
entretanto, ao lembrar-se de Paulo, a consciência lhe
vacilava. Além do que por si mesmo observara, ouvira o tribuno
Cláudio Lísias que lhe falara do ex-rabino com indisfarçável
respeito. Mais por medo dos poderes sobrenaturais atribuídos
ao Apóstolo, que por dedicação aos seus deveres de
administrador, resistiu a todas as investidas dos judeus,
mantendo-se firme no propósito de custodiar o acusado, até que
surgisse o ensejo de um julgamento mais ponderado.
Dois anos de prisão contava a folha corrida do grande amigo
dos gentios.
Uma ordem imperial transferira Félix para a administração de
outra província.
Sem esquecer a mágoa que a franqueza de Paulo lhe causara, fez
questão de abandoná-lo à própria sorte.
O novo governador, Pórcio Festo, chegou a Cesareia em meio de
ruidosas manifestações populares. Jerusalém não poderia
esquivar-se às homenagens políticas e, tão logo assumira o
poder, o ilustre patrício foi visitar a grande cidade dos
rabinos. O Sinédrio aproveitou o ensejo para requisitar,
instantemente, o velho inimigo de tantos anos. Um grupo de
doutores da Lei Antiga buscou avistar-se, cerimoniosamente,
com o generoso romano, solicitando a restituição do
prisioneiro para julgamento do Tribunal religioso.
Festo recebeu a comissão, cavalheirescamente, e mostrou-se
inclinado a atender, mas, prudente por índole e por dever do
cargo, declarou que preferia solucionar a questão em Cesareia,
onde se lhe facultava conhecer o assunto com os detalhes
imprescindíveis. Para esse fim, convidava os rabinos a
acompanhá-lo no seu regresso. Os israelitas exultaram de
contentamento.
Espalharam-se os mais sinistros projetos, para a recepção do
Apóstolo em Jerusalém.
O governador ali ficou dez dias, mas, antes que regressasse,
alguém se encaminhava a Cesareia, de coração oprimido e
ansioso. Era Lucas, que, esforçado e solícito, propunha-se
informar o prisioneiro de todas as singulares ocorrências.
Paulo de Tarso ouvia-o com atenção e serenidade; mas, quando o
companheiro passou a relatar os planos do Sinédrio, o amigo do
gentilismo fez-se pálido. Estava definitivamente assentado que
o trânsfuga seria crucificado, como o Divino Mestre, no mesmo
local da Caveira. Havia preparativos para encenar fielmente o
drama do Calvário. O acusado carregaria a cruz até lá,
arrostando os sarcasmos da populaça e havia até quem falasse
no sacrifício de dois ladrões, para que se repetissem todos os
detalhes característicos do martírio do Carpinteiro.
Poucas vezes o Apóstolo manifestara tamanha impressão de
espanto. Por fim, acrimonioso e enérgico, exclamou:
— Tenho experimentado açoites, apedrejamentos e insultos por
toda parte, mas, de todas as perseguições e provações, esta é
a mais absurda...
O próprio médico não sabia como interpretar esse conceito,
quando o ex-rabino prosseguiu:
— Temos de evitar isso, por todos os meios ao nosso alcance.
Como encarar essa deliberação extravagante de repetir a cena
do Calvário? Qual o discípulo que teria a coragem de
submeter-se a essa falsa paródia com a ideia mesquinha de
atingir o plano do Mestre, no testemunho aos homens? O
Sinédrio está enganado. Ninguém no mundo logrará um Calvário
igual ao do Cristo. Sabemos que em Roma os cristãos começam a
morrer no sacrifício, tomados por escravos misérrimos. Os
poderes perversos do mundo desencadeiam a tempestade de
ignomínias sobre a fronte dos seguidores do Evangelho. Se eu
tiver de testificar de Jesus, fá-lo-ei em Roma. Saberei morrer
junto dos companheiros, como um homem comum e pecador; mas não
me submeterei ao papel de falso imitador do Messias prometido.
Destarte, já que o processo vai ser novamente debatido pelo
novo governador, apelarei para César.
O médico fez um gesto de assombro. Como a maio ria dos
cristãos eminentes de todas as épocas, Lucas não conseguia
compreender aquele gesto, interpretado, à primeira vista, como
negativa do testemunho.
— Entretanto, – objetou com certa hesitação, – Jesus não
recorreu para as altas autoridades no sacrifício da cruz, e eu
receio que os discípulos não saibam interpretar tua atitude,
como convém.
—Discordo de ti, – respondeu Paulo, resoluto, se as
comunidades cristãs não puderem compreender minha resolução,
prefiro passar a seus olhos como pedante e desatento, nesta
hora singular de minha vida. Sou pecador e devo desprezar o
elogio dos homens. Se me condenarem, não estarão em erro. Sou
imperfeito e preciso testemunhar nessa condição verdadeira de
minha vida. De outro modo seria perturbar minha consciência,
provocando um falso apreço humano.
Muito impressionado, Lucas guardou a lição inesquecível.
Três dias depois dessa entrevista, o governador regressava à
sede do Governo provincial, acompanhado de numeroso séquito de
israelitas dispostos a conseguir a entrega do famoso
prisioneiro.
Pórcio Festo, com a serenidade que lhe marcava as atitudes
políticas, procurou conhecer imediatamente a situação. Reviu o
processo meticulosamente, inteirando-se dos títulos de
cidadania romana do acusado, de acordo com a legislação em
vigor. E notando a insistência dos rabinos que denotavam
enorme ansiedade pela solução do assunto, convocou uma reunião
para novo exame das declarações do acusado, no intuito de
satisfazer a política regional de Jerusalém.
O convertido de Damasco, alquebrado de corpo, mas sempre
revigorado de espírito, compareceu à assembleia sob os olhares
rancorosos dos irmãos de raça, que pleiteavam sua remoção a
todo custo. O Tribunal de Cesareia atraía grande multidão,
ansiosa de conhecer o novo julgamento. Discutiam os
israelitas, os cristãos comentavam os debates em atitude
defensiva. Mais de uma vez, Pórcio Festo foi obrigado a
levantar a voz, reclamando atenção e silêncio.
Abertos os trabalhos da assembleia singular, o governador
interrogou o acusado, com energia cheia de nobreza.
Paulo de Tarso, entretanto, respondeu a todas as arguições com
a serenidade que lhe era peculiar. Não obstante a manifesta
animosidade dos judeus, declarou que em nada os havia ofendido
e não se recordava de qualquer ato de sua vida no qual
houvesse atacado o Templo de Jerusalém ou as leis de César.
Festo percebeu que tratava com um espírito culto e eminente, e
que não seria tão fácil entregá-lo ao Sinédrio, conforme
julgara a princípio. Alguns rabinos haviam insistido para que
ordenasse a remoção para Jerusalém, pura e simplesmente, à
revelia de quaisquer preceitos legais. O governador não
hesitaria, nesse particular, fazendo valer sua influência
política; mas, não quis praticar um ato arbitrário antes de
conhecer as qualidades morais do homem focalizado pelas
intrigas judaicas. No íntimo, considerava que, se tratasse-se
de uma personagem vulgar, poderia entregá-lo sem receio à
autoridade tirânica do Sinédrio que, certo, o liquidaria; mas,
outro tanto não aconteceria, caso verificasse nobreza e
inteligência no prisioneiro, porquanto, com o seu acurado
senso político, não desejava adquirir um inimigo capaz de
prejudicá-lo a qualquer tempo. Tendo reconhecido os altos
dotes intelectuais e morais do Apóstolo, modificou
inteiramente a sua atitude. Passou logo a considerar com mais
severidade o interlocutor, chegando à conclusão de que seria
crime agir com parcialidade no feito. Além da cultura que o
acusado exibia, tratava-se de um cidadão romano por títulos
legitimamente adquiridos. Formulando novas conjeturas e com
imensa surpresa para os representantes confiados do Sinédrio,
Pórcio Festo perguntou ao prisioneiro se consentia em voltar a
Jerusalém, a fim de lá ser julgado, perante ele próprio, pelo
Tribunal religioso da sua raça. Paulo de Tarso, compreendendo
a cilada dos israelitas, replicou tranquilamente, enchendo a
assembleia de assombro:
— Senhor governador, estou diante do Tribunal de César, a fim
de ser definitivamente julgado. Há mais de dois anos espero a
decisão de um processo que não posso compreender. Como sabeis,
a ninguém ofendi. Minha prisão derivou, tão só, das intrigas
religiosas de Jerusalém. Desafio, neste particular, o conceito
dos mais exigentes. Se pratiquei algum ato indigno, peço, eu
mesmo, a sentença de morte. Convocado a novo julgamento,
acreditei tivésseis a coragem necessária para romper com as
aspirações inferiores do Sinédrio, fazendo justiça à vossa
longanimidade de administrador consciencioso e reto. Continuo
confiando na vossa autoridade, na vossa imparcialidade, isenta
de favor, que ninguém poderá exigir dos vossos encargos
honrosos e delicados. Examinai detidamente as acusações que me
retêm no cárcere de Cesareia! Verificareis que nenhum poder
provincial poderá entregar-me à tirania de Jerusalém!
Reconhecendo essa valiosa circunstância e invocando meus
títulos, embora creia sinceramente em vossas deliberações
sábias e justas, apelo, desde já, para César!...
A atitude inesperada do Apóstolo dos gentios provocou geral
espanto.
Pórcio Festo, muito pálido, engolfou-se em sérias cogitações.
De sua cátedra de juiz, ensinara, generosamente, o caminho da
vida a muitos acusados e malfeitores; entretanto, naquela hora
inolvidável de sua existência, encontrava um réu que lhe
falava ao coração. A resposta de Paulo valia um programa de
justiça e de ordem. Com imensa dificuldade pedia o
restabelecimento da calma, no recinto. Os representantes do
judaísmo discutiam acaloradamente entre si; alguns cristãos,
mais apressados, comentavam desfavoravelmente a atitude do
Apóstolo, apreciando-a superficialmente, como se constituísse
uma negação do testemunho. O governador reuniu, à pressa, o
pequeno conselho dos rabinos mais influentes.
Os doutores da Lei antiga insistiram pela adoção de medidas
mais enérgicas, no pressuposto de que Paulo se modificaria com
algumas bastonadas.
Entretanto, sem desprezar a oportunidade de mais uma
prestigiosa lição para sua vida pública, o governador cerrou
ouvidos às intrigas de Jerusalém, afirmando que de modo algum
podia transigir no cumprimento do dever, naquele significativo
instante de sua vida. Desculpou-se, desapontado, com os velhos
políticos do Sinédrio e do Templo, que o fixavam com olhos
rancorosos e pronunciou as célebres palavras.
— Apelaste para César? Irás a César!
Com essa antiga fórmula ficaram encerrados os trabalhos do
novo julgamento. Os representantes do Sinédrio retiraram-se
extremamente irritados, exclamando um deles, em voz alta, para
o prisioneiro que recebeu o insulto serenamente:
— Só os desertores malditos apelam para César. Vai-te para os
gentios, indigno intrujão (trapaceiro)!...
O Apóstolo fixou-o com benignidade, enquanto se preparava para
voltar ao cárcere.
O governador, sem perder tempo, determinou se anotasse a
petição do réu, para prosseguimento do feito. No dia seguinte
demorou-se a estudar o caso e sentiu-se presa de grande
indecisão. Não podia enviar o acusado à capital do Império,
sem justificar os motivos da prisão, por tanto tempo, nos
cárceres de Cesareia. Como proceder? Mas, decorridos alguns
dias, Herodes Agripa e Berenice vinham saudar o novo
governador, em visita cerimoniosa e imprevista. O preposto
imperial não pôde dissimular as preocupações que o absorviam,
e depois das solenidades protocolares, devidas a hóspedes tão
ilustres, Contou a Agripa a história de Paulo de Tarso, cuja
personalidade empolgava os mais indiferentes. O rei
palestinense, que conhecia a fama do ex-rabino, manifestou
desejo de observá-lo de perto, ao que Festo anuiu
satisfeitíssimo, não somente pela possibilidade de
proporcionar um prazer ao hóspede generoso, senão também por
esperar das impressões do mesmo algo de útil para ilustrar o
processo do Apóstolo, que lhe incumbia enviar para Roma.
Pórcio deu a esse ato um caráter festivo. Convidou as
personalidades mais eminentes de Cesareia, reunindo luzida
assembleia em torno do rei, no melhor e mais vasto auditório
da Corte Provincial. Primeiramente houve bailados e música; em
seguida, o convertido de Damasco, devidamente escoltado, foi
apresentado pelo próprio governador, em termos discretos, mas
cordiais e sinceros.
Herodes Agripa impressionou-se logo, vivamente, com a figura
alquebrada e franzina do Apóstolo, cujos olhos serenos
traduziam a energia inquebrantável da raça. Curioso por
conhecê-lo melhor, mandou que se defendesse de viva voz.
Paulo compreendeu a profunda significação daquele minuto e
passou a historiar os transes da sua existência com grande
erudição e sinceridade. O rei ouvia assombrado. O ex-rabino
evocou a infância, deteve-se nas reminiscências da mocidade,
explicou sua aversão aos seguidores do Cristo Jesus e,
exuberante de inspiração, traçou o quadro do seu encontro com
o Mestre redivivo, às portas de Damasco, à viva luz do sol. Em
seguida, passou a enumerar os feitos da obra de gentilidade,
as perseguições sofridas em toda parte por amor ao Evangelho,
concluindo, com veemência, que, sem embargo, suas pregações
não contrariavam, antes corroboravam as profecias da Lei
Antiga, desde Moisés.
Dando curso à imaginação ardente e fácil, o orador tinha os
olhos jubilosos e brilhantes.
A assembleia aristocrática estava eminentemente impressionada
com os fatos narrados, denotando entusiasmo e alegria. Herodes
Agripa, muito pálido, tinha a impressão de haver encontrado
uma das mais profundas vozes da revelação divina. Pórcio Festo
não ocultava a surpresa que lhe assaltara subitamente o
espírito. Não presumia no prisioneiro tamanho cabedal de fé e
persuasão. Ouvindo o Apóstolo descrever as cenas mais belas do
seu apostolado com os olhos repletos de alegria e de luz,
transmitindo ao auditório atento e comovido ideias imprevistas
e singulares, o governador considerou que se trataria de um
louco sublime e disse-lhe, em alta voz, na intercorrência de
uma pausa mais prolongada:
— Paulo, és um desvairado! As muitas letras fazem-te
delirar!...
O ex-rabino, longe de se atemorizar, respondeu nobremente:
— Enganais-vos! Não sou um louco! Diante da vossa autoridade
de romano ilustre, eu não me atreveria a falar desta maneira,
pois reconheço que não estais devidamente preparado para
ouvir-me. Os patrícios de Augusto são também de Jesus Cristo,
mas ainda não conhecem plenamente o Salvador. A cada qual,
devemos falar de acordo com sua capacidade espiritual. Aqui,
porém, senhor governador, se falo com ousadia é porque me
dirijo a um rei que não ignora o sentido de minhas palavras.
Herodes Agripa terá ouvido Moisés, desde a infância. É romano
pela cultura, mas alimentou-se da revelação de Deus aos seus
antepassados. Nenhuma de minhas afirmações lhe pode ser
desconhecida. De outro modo, ele trairia sua origem sagrada,
pois todos os filhos da nação que aceitou o Deus único devem
conhecer a revelação de Moisés e dos profetas. Credes assim,
rei Agripa?
A pergunta causou enorme espanto. O próprio administrador
provincial não teria coragem de se dirigir ao rei com tamanha
desenvoltura. O ilustre descendente de Ântipas estava
altamente surpreendido. Extrema palidez cobria-lhe o
semblante. Ninguém, assim, jamais lhe houvera falado em toda a
sua vida.
Percebendo-lhe a atitude mental, Paulo de Tarso completou a
poderosa argumentação, acrescentando:
— Sei que credes!...
Confuso com o desembaraço do orador, Agripa sacudiu a fronte
como se desejasse expulsar alguma ideia importuna, esboçou um
sorriso vago, dando a entender que estava senhor de si, e
disse em tom de gracejo:
—Ora esta! Por pouco me persuades a fazer uma profissão de fé
cristã...
O Apóstolo não se deu por vencido e revidou:
—Oxalá que, por pouco ou muito, vos fizésseis discípulo de
Jesus; não somente vós, mas todos quantos nos ouviram hoje.
Pórcio Festo compreendeu que o rei estava muito mais
impressionado do que se supunha e, desejoso de modificar o
ambiente, propôs que as altas personalidades se retirassem
para a refeição da tarde, em palácio. O ex-rabino foi
reconduzido ao cárcere, deixando nos ouvintes imorredoura
impressão.
Berenice, sensibilizada, foi a primeira a manifestar-se,
reclamando clemência para o prisioneiro. Os demais seguiram a
mesma corrente de benévola simpatia. Herodes Agripa tentou uma
fórmula digna para que o Apóstolo fosse restituído à
liberdade. O governador, porém, explicou que, conhecendo a
fibra moral de Paulo, tomara a sério o seu recurso para César,
estando já pergaminhadas as primeiras instruções a respeito.
Cioso das leis romanas, pôs embargos ao alvitre, embora
pedisse o socorro intelectual do rei para a carta de
justificação, com que o acusado deveria apresentar-se à
autoridade competente, na capital do Império.
Desejoso de conservar sua tranquilidade política, o
descendente dos Herodes não aventou qualquer nova sugestão,
lamentando apenas que o prisioneiro já houvesse recorrido em
derradeira instância. Procurou então cooperar na redação do
documento, mostrando-se contrário ao pregador do Evangelho tão
só pela circunstância d e haver suscitado muitas lutas
religiosas na camada popular, em desacordo com a unidade de fé
colimada pelo Sinédrio como baluarte defensivo das tradições
do judaísmo. Para isso, o próprio rei assinara como
testemunha, emprestando maior importância às alegações do
preposto imperial. Pórcio Festo registrou o auxílio,
extremamente satisfeito. Estava resolvido o problema e Paulo
de Tarso poderia partir com a primeira leva de sentenciados,
para Roma.
Escusado dizer que recebeu a notícia com serenidade. Depois de
um entendimento com Lucas, pediu que a igreja de Jerusalém
fosse avisada, bem como a de Sídon, onde o navio, certo,
haveria de receber carga e passageiros.
Todos os amigos de Cesareia foram mobilizados no serviço das
comovedoras mensagens que o ex-rabino dirigiu às amadas
igrejas, menos Timóteo, Lucas e Aristarco, que se propunham
acompanhá-lo à capital do Império.
Os dias correram céleres, até que chegou o momento em que o
centurião Júlio com a sua escolta foi buscar os prisioneiros
para a viagem tormentosa. O centurião tinha plenos poderes
para determinar todas as providências e, logo, evidenciando
simpatia pelo Apóstolo, ordenou fosse ele conduzido à
embarcação desalgemado, em contraste com os demais
prisioneiros.
O tecelão de Tarso, apoiado ao braço de Lucas, reviu,
placidamente, a tela clara e barulhenta das ruas, afagando a
esperança de uma vida mais alta, em que os homens pudessem
gozar fraternidade em nome do Senhor Jesus. Seu coração
mergulhava em doces reflexões e preces ardentes, quando foi
surpreendido com a compacta multidão que se premia e agitava
na extensa praça a beira-mar.
filas de velhos, de jovens e crianças, aglomeraram-se junto
dele, a poucos metros da praia. À frente, Tiago alquebrado e
velhinho, vindo de Jerusalém com grande sacrifício, por
trazer-lhe o ósculo fraternal. O ardente defensor da
gentilidade não conseguiu dominar a emoção. Bandos de crianças
atiraram-lhe flores. O filho de Alfeu, reconhecendo a nobreza
daquele Espírito heroico, tomou-lhe a destra e beijou-a com
efusão. Ali estava com todos os cristãos de Jerusalém, em
condições de fazer a viagem. Ali estavam confrades de Jope, de
Lida, de Antipátris, de todos os quadrantes provinciais. As
crianças da gentilidade uniam-se aos pequeninos judeus, que
saudavam carinhosamente o Apóstolo prisioneiro. Velhos
aleijados aproximavam-se respeitosos e exclamavam:
— Não deveríeis partir!...
Mulheres humildes agradeciam os benefícios recebidos de suas
mãos.
Doentes curados comentavam a colônia de trabalho que ele
sugerira e ajudara a fundar na igreja de Jerusalém e
proclamavam sua gratidão em altas vozes.
Os gentios, convertidos ao Evangelho, beijavam-lhe as mãos,
murmurando:
— Quem nos ensinará doravante, a sermos filhos do Altíssimo?
Meninos amorosos apegavam-se-lhe à túnica, sob os olhares de
mães consternadas.
Todos lhe pediam que ficasse, que não partisse, que voltasse
breve para os serviços abençoados de Jesus.
Subitamente, recordou a velha cena da prisão de Pedro, quando,
ele, Paulo, arvorado em verdugo dos discípulos do Evangelho,
visitara a igreja de Jerusalém, chefiando uma expedição
punitiva. Aqueles carinhos do povo lhe falavam brandamente à
alma. Significavam que já não era o algoz implacável que, até
então, não pudera compreender a misericórdia divina; traduziam
a quitação do seu débito com a alma do povo. De consciência um
tanto aliviada, recordou-se de Abigail e começou a chorar.
Sentia-se, ali, como no seio dos “filhos do Calvário” que o
abraçavam, reconhecidos. Aqueles mendigos, aqueles aleijados,
aquelas criancinhas eram a sua família. Naquele inesquecível
minuto da sua vida, sentia-se plenamente identificado no ritmo
da harmonia universal. Brisas suaves de mundos diferentes
balsamizarvam-lhe a alma, como se houvesse atingido uma região
divina, depois de vencer grande batalha. Pela primeira vez,
alguns pequeninos chamaram-lhe “pai”. Inclinou-se, com mais
ternura, para as criancinhas que o rodeavam. Interpretava
todos os episódios daquela hora inolvidável como uma bênção de
Jesus que o ligava a todos os seres. À sua frente, o oceano em
calma assemelhava-se a um caminho infinito e promissor de
misteriosas e inefáveis belezas.
Júlio, o centurião da guarda, aproximou-se comovido e falou
com brandura:
— Infelizmente, chegou o momento de partir.
E, testemunha das manifestações tributadas ao Apóstolo, também
ele tinha os olhos úmidos. Muitos réus se lhe haviam já
deparado naquelas circunstâncias e eram todos revoltados,
desesperados, ou penitentes arrependidos. Aquele, porém,
estava sereno e quase feliz. Júbilo indizível lhe transbordava
dos olhos brilhantes. Além disso, sabia que aquele homem,
dedicado ao bem de todas as criaturas, não cometera falta
alguma. Por isso mesmo, conservou-se ao seu lado, como
querendo compartilhar dos transportes afetuosos do povo, como
a demonstrar a consideração que lhe merecia.
O Apóstolo dos gentios abraçou os amigos pela última vez.
Todos choravam discretamente, à maneira dos sinceros
discípulos de Jesus, que não pranteiam sem consolo: as mães
ajoelhavam-se com os filhinhos na areia alva, os velhos,
apoiando-se a rudes cajados, com imenso esforço. Todos os que
abraçavam o campeão do Evangelho, punham-se de joelhos,
rogando ao Senhor que abençoasse o seu novo roteiro.
Concluindo as despedidas, Paulo acentuava com serenidade
heroica:
—Choremos de alegria, irmãos! Não há maior glória neste mundo
que a de estar o homem a caminho de Cristo Jesus!... O Mestre
foi ao encontro do Pai, através dos martírios da Cruz!
Abençoemos nossa cruz de cada dia. É preciso trazermos as
marcas do Senhor Jesus! Não acredito possa voltar aqui, com
este alquebrado corpo de minhas lutas materiais. Espero que o
Senhor me conceda o derradeiro testemunho em Roma; entretanto,
estarei convosco pelo coração; voltarei às nossas igrejas em
Espírito; cooperarei no vosso esforço nos dias mais amargos. A
morte não nos separará, tal como não separou o Senhor da
comunidade dos discípulos. Nunca estaremos distantes uns dos
outros e, por isso mesmo, prometeu Jesus que estaria ao nosso
lado até ao fim dos séculos!...
Júlio ouviu a exortação, comovidamente. Lucas e Aristarco
soluçavam baixinho.
A seguir, o Apóstolo tomou o braço do médico amigo e, seguido
de perto pelo centurião, caminhou resoluto e sereno em demanda
do barco.
Centenas de pessoas acompanharam as manobras da largada, em
santificado recolhimento regado de lágrimas e preces. Enquanto
o navio se afastava lento, Paulo e os companheiros
contemplavam Cesareia, de olhos umedecidos. A multidão
silenciosa, dos que ficavam em pranto, acenava e ondeava na
praia que a distância, aos poucos, diluía. Jubiloso e
reconhecido, Paulo de Tarso descansava o olhar no campo de
suas lutas acerbas, meditando nos longos anos de lutas e
reparações necessárias. Recordava a infância, os primeiros
sonhos da juventude, as inquietações da mocidade, os serviços
dignificantes do Cristo, sentindo que deixava a Palestina para
sempre.
Grandiosos pensamentos o empolgavam, quando Lucas se aproximou
e, apontando a distância os amigos que continuavam genuflexos,
exclamou brandamente:
— Poucos fatos me comoveram tanto no mundo, como este!
Registrarei nas minhas anotações como foste amado por quantos
receberam das tuas mãos fraternais o benefício de Jesus!...
Paulo pareceu ponderar profundamente a advertência e acentuou:
— Não, Lucas. Não escrevas sobre virtudes que não tenho. Se me
amas não deves expor meu nome a falsos julgamentos. Deves
falar, isso sim, das perseguições por mim movidas aos
seguidores do santo Evangelho; do favor que o Mestre me
dispensou às portas de Damasco, para que os homens mais
empedernidos não desesperem da salvação e aguardem a sua
misericórdia no momento justo; citarás os combates que temos
travado desde o primeiro instante, em face das imposições do
farisaísmo e das hipocrisias do nosso tempo; comentarás os
obstáculos vencidos, as humilhações dolorosas, as dificuldades
sem conta, para que os futuros discípulos não esperem a
redenção espiritual com o repouso falso do mundo, confiantes
no favor incompreensível dos deuses e sim com trabalhos
ásperos, com sacrifícios abençoados pelo aperfeiçoamento de si
mesmos; falarás de nossos encontros com os homens poderosos e
cultos; de nossos serviços junto dos desfavorecidos da sorte,
para que os seguidores do Evangelho, no futuro, não se receiem
das situações mais difíceis e escabrosas, conscientes de que
os mensageiros do Mestre os assistirão, sempre que se tornem
instrumentos legítimos da fraternidade e do amor, ao longo dos
caminhos que se desdobram à evolução da Humanidade.
E depois de longa pausa, em que observou a atenção com que
Lucas lhe acompanhou os inspirados raciocínios, prosseguiu em
tom sereno e firme:
— Cala sempre, porém, as considerações, os favores que
tenhamos recolhido na tarefa, porque esse galardão só pertence
a Jesus. Foi Ele quem removeu nossas misérias angustiosas,
enchendo o nosso vácuo; foi sua mão que nos tomou
caridosamente e nos reconduziu ao caminho santo. Não me
contaste tuas lutas amargurosas no passado distante? Não te
contei como fui perverso e ignorante, em outros tempos? Assim
como iluminou minhas veredas sombrias, às portas de Damasco,
levou-te Ele à igreja de Antioquia, para que lhe ouvisses as
verdades eternais. Por mais que tenhamos estudado, sentimos um
abismo entre nós e a sabedoria eterna; por mais que tenhamos
trabalhado, não nos encontramos dignos d’Aquele que nos
assiste e guia desde o primeiro instante da nossa vida. Nada
possuímos de nós mesmos!... O Senhor enche o vácuo de nossa
alma e opera o bem que não possuímos. Esses velhinhos trêmulos
que nos abraçaram em lágrimas, as crianças que nos beijaram
com ternura, fizeram-no ao Cristo. Tiago e os companheiros não
vieram de Jerusalém tão só para manifestar-nos sua
fraternidade afetuosa; vieram trazer testemunhos de amor ao
Mestre que nos reuniu na mesma vibração de solidariedade
sacrossanta, embora não saibam traduzir o mecanismo oculto
dessas emoções grandiosas e sublimes. No meio de tudo isso,
Lucas, fomos apenas míseros servos que se aproveitaram dos
bens do Senhor para pagar as próprias dívidas. Ele nos deu a
misericórdia para que a justiça se cumprisse.
Esses júbilos e essas emoções divinas lhe pertencem... Não
tenhamos, portanto, a mínima preocupação de relatar episódios
que deixariam uma porta aberta para a vaidade incompreensível.
Que nos baste a profunda convicção de havermos liquidado
nossos débitos clamorosos...
Lucas ouviu, admirado, essas considerações oportunas e justas,
sem saber definir a surpresa que lhe causavam.
— Tens razão, disse finalmente, somos fracos demais para nos
atribuirmos qualquer valor.
— Além disso, acrescentou Paulo, a batalha do Cristo está
começada.
Toda vitória pertencerá ao seu amor e não ao nosso esforço de
servos endividados... Escreve, portanto, tuas anotações do
modo mais simples e nada comentes que não seja para
glorificação do Mestre no seu evangelho imortal!...
Enquanto Lucas procurava Aristarco para transmitir-lhe aquelas
sugestões sábias e afetuosas, o ex-rabino continuou fitando o
casario de Cesareia, que se apagava agora no horizonte. A
embarcação navegava suavemente, afastando-se da costa... Por
longas horas, deixou-se ficar ali, meditando o passado que lhe
surgia aos olhos espirituais, qual imenso crepúsculo.
Mergulhado nas reminiscências entrecortadas de preces a Jesus,
ali permaneceu em significativo silêncio, até que começaram a
brilhar no firmamento muito azul os primeiros astros da noite.
Kardec e amigos
Jesus Cristo
Chico Xavier
..."Recordemos que o
Espiritismo nos solicita uma espécie permanente de
caridade:
a caridade de sua própria divulgação" Emmanuel
Abigail, doente
Emmanuel e Chico Xavier
Aparição de Jesus