Chico Xavier / Emmanuel
A manhã enfeitava-se de
muita alegria e de sol, mas as ruas centrais de Corinto
estavam quase desertas.
No ar brincavam as mesmas brisas perfumadas, que sopravam de
longe; entretanto, não se observava, na fisionomia suntuosa
das vias públicas, o sorriso de suas crianças despreocupadas,
nem o movimento habitual das liteiras de luxo, em seu giro
costumeiro.
A cidade, reedificada por Júlio César, era a mais bela joia da
velha Acaia, servindo de capital à formosa província. Não se
podia encontrar, na sua intimidade, o espírito helênico em sua
pureza antiga, mesmo porque, depois de um século de lamentável
abandono, após a destruição operada por Múmio, restaurando-a,
o grande imperador transformara Corinto em colônia importante
de romanos, para onde acorrera grande número de libertos
ansiosos de trabalho remunerador, ou proprietários de
promissoras fortunas. A estes, associara-se vasta corrente de
israelitas e considerável percentagem de filhos de outras
raças que ali se aglomeravam, transformando a cidade em núcleo
de convergência de todos os aventureiros do Oriente e do
Ocidente. Sua cultura estava muito distante das realizações
intelectuais do gosto grego mais eminente, misturando-se, em
suas praças, os templos mais diversos.
Obedecendo, talvez, a essa heterogeneidade de sentimentos,
Corinto tornara-se famosa pelas tradições de libertinagem da
grande maioria dos seus habitantes.
Os romanos lá encontravam campo largo para a s suas paixões,
entregando-se, desvairadamente, ao venenoso perfume desse
jardim de flores exóticas. Ao lado dos aspectos soberbos e das
pedrarias rutilantes, o pântano das misérias morais exalava
nauseante bafio. A tragédia foi sempre o preço doloroso dos
prazeres fáceis. De quando em quando, os grandes escândalos
reclamavam as grandes repressões.
Nesse ano de 34, a cidade em peso fora atormentada por
violenta revolta dos escravos oprimidos.
Crimes tenebrosos foram perpetrados na sombra, exigindo
severas devassas. O Procônsul não hesitara, ante a gravidade
da situação. Expedindo mensageiros oficiais, solicitara de
Roma os recursos precisos. E os recursos não tardaram. Em
breve, a galera das águias dominadoras, auxiliada por ventos
favoráveis, trazia no bojo as autoridades da missão punitiva,
cuja ação deveria esclarecer os acontecimentos.
Eis por que, nessa manhã radiosa e alegre, os edifícios
residenciais e as lojas do comércio apresentavam-se envolvidos
em profundo silêncio, semicerrados e tristes. Os transeuntes
eram raros, com exceção de vários magotes de soldados, que
cruzavam as esquinas despreocupados e satisfeitos, como quem
se entregava, de bom grado, ao sabor das novidades.
Já de alguns dias, um chefe romano, cujo nome se fazia
acompanhar de sombrias tradições, fora recebido pela Corte
Provincial, ali desempenhando as elevadas funções de legado de
César, cercado de grande número de agentes políticos e
militares e estabelecendo o terror entre todas as classes, com
os seus processos infamantes. Licínio Minucio chegara ao
poder, mobilizando todos os recursos da intriga e da calúnia.
Conseguindo voltar a Corinto, onde estacionara anos antes, sem
maior autoridade, tudo ousava agora, por aumentar seus
cabedais, fruto de avareza insaciável e sem escrúpulos.
Pretendia recolher-se, mais tarde, àqueles sítios, onde suas
propriedades particulares atingiam grandes proporções,
esperando aí a noite da decrepitude.
Assim, de maneira a consumar seus criminosos desígnios,
iniciou largo movimento de arbitrárias expropriações, a
pretexto de garantir a ordem pública em benefício do poderoso
Império, que a sua autoridade representava.
Numerosas famílias de origem judaica foram escolhidas como
vítimas preferenciais da nefanda extorsão.
Por toda parte começavam a chorar os oprimidos; entretanto,
quem ousaria o recurso das reclamações públicas e oficiais? A
escravidão esperava sempre os que se entregassem a qualquer
impulso de liberdade contra as expressões da tirania romana. E
não era só a figura desprezível do odioso funcionário que
constituía para a cidade uma angustiosa e permanente ameaça.
Seus asseclas
espalhavam-se em vários pontos das vias públicas, provocando
cenas insuportáveis, características de uma perversidade
inconsciente.
A manhã ia alta, quando um homem idoso, dando a entender que
buscava o mercado, pelo cesto que lhe pendia das mãos,
atravessava, a passos vagarosos, uma praça ensolarada e
extensa.
Um grupo de tribunos alvejava-o com ditérios deprimentes,
entre gargalhadas de ironia.
O velhinho, que denunciava nos traços fisionômicos a linha
israelita, demonstrava perceber o ridículo de que vinha sendo
objeto, mas, distanciando-se dos militares patrícios, como
desejoso de resguardar-se, caminhou com mais timidez e
humildade, desviando-se em silêncio.
Foi nesse instante que um dos tribunos, em cujo olhar
autoritário perpassava acentuada malícia, acercou-se dele,
interrogando-o asperamente: Olá, judeu desprezível, como ousas
passar sem saudar os teus senhores?
O interpelado estacou, pálido e trêmulo. Seus olhos revelaram
estranha angústia que resumia, na sua eloquência silenciosa,
todos os martírios infinitos que flagelavam a sua raça. As
mãos enrugadas lhe tremiam ligeiramente, enquanto o busto se
arqueava reverente, premindo a longa barba encanecida.
— Teu nome? Tornou o oficial, entre desrespeitoso e irônico.
— Jochedeb, filho de Jared, respondeu timidamente.
— E por que não saudaste os tribunos imperiais?
— Senhor, eu não ousei, explicou quase lacrimoso.
— Não ousaste? Perguntou o oficial com profunda aspereza.
E, antes que o interpelado conseguisse oportunidade para mais
amplas desculpas, o mandatário imperial assentou-lhe os punhos
cerrados no rosto venerável, em bofetões sucessivos e
impiedosos.
— Toma! Toma! Exclamava rudemente, ao estridor das gargalhadas
dos companheiros presentes à cena, em tom festivo – guarda
mais esta lembrança! Cão asqueroso, aprende a ser educado e
agradecido!…
O velhinho cambaleou, mas não reagiu. Percebia-se-lhe a surda
revolta íntima, a traduzir-se no olhar chamejante, indignado,
que lançou ao agressor com uma serenidade terrível. Num
movimento espontâneo, olhou os braços encarquilhados na luta e
no sofrimento, reconhecendo a inutilidade de qualquer revide.
Foi quando o verdugo inesperado, observando-lhe a calma
silenciosa, pareceu medir a extensão da própria covardia e,
colando as mãos na complicada armadura do cinto, voltou a
dizer com profundo desdém:
— Agora que recebeste a lição, podes procurar o mercado, judeu
insolente!
A vítima dirigiu-lhe, então, um olhar de ansiosa amargura, no
qual transpareciam as dolorosas angústias em toda uma longa
existência.
Emoldurado na túnica singela e na velhice venerável, aureolada
por cabelos branqueados nas mais penosas experiências da vida,
o olhar do ofendido semelhava-se a um dardo invisível que
penetraria, para sempre, a consciência do agressor
desrespeitoso e mau. No entanto, aquela dignidade ferida não
se demorou muito na atitude de exprobração, intraduzível em
palavras. Em breves instantes, suportando os ditérios da geral
zombaria, prosseguiu no objetivo que o levara a sair à rua.
O velho Jochedeb experimentava agora estranhas e amargas
reflexões.
Duas lágrimas quentes e doloridas sulcavam-lhe as rugas da
face macilenta, perdendo-se nos fios grisalhos da barba
veneranda. Que fizera para merecer tão pesados castigos? A
cidade fora trabalhada pelos movimentos de rebeldia de
numerosos escravos, mas seu pequeno lar prosseguia com a mesma
paz dos que trabalham com dedicação e obediência a Deus.
A humilhação experimentada fazia-o regressar, pela imaginação,
aos períodos mais difíceis da história de sua raça. Por que
motivo, e até quando sofreriam os israelitas a perseguição dos
elementos mais poderosos do mundo? Qual a razão de serem
sempre estigmatizados, como indignos e miseráveis, em todos os
recantos da Terra? Entretanto, amavam sinceramente aquele Pai
de justiça e amor, que velava dos Céus pela grandeza da sua fé
e pela eternidade dos seus destinos. Enquanto os outros povos
se entregavam ao relaxamento das forças espirituais,
transformando esperanças sagradas em expressões de egoísmo e
idolatria, Israel sustentava a lei do Deus único,
esforçando-se, em todas as circunstâncias, por conservar
intacto o seu patrimônio religioso, com sacrifício embora da
sua independência política.
Acabrunhado, o pobre velho meditava na própria sorte.
Esposo dedicado, enviuvara quando aquele mesmo Licínio
Minucio, questor do Império, anos antes, instaurara nefandos
processos em Corinto, a fim de punir alguns elementos de sua
população descontente e rebelada. Sua grande fortuna pessoal
fora extremamente reduzida e houve de amargar uma prisão
injusta, resultante de falsas acusações, que lhe valeram
pesados dissabores e terríveis confiscos. Sua mulher não havia
resistido aos sucessivos golpes que lhe feriram fatalmente o
coração sensível, mergulhando-se na morte, ralada de acerbos
desgostos e deixando-lhe os dois filhinhos que constituíam a
coroa de esperança da sua laboriosa existência. Jeziel e
Abigail desenvolviam-se sob o carinho de seus braços afetuosos
e, por eles, no acúmulo dos sagrados deveres domésticos,
sentia que a neve da estrada humana lhe alvejara precocemente
os cabelos, consagrando a Deus as suas mais santas
experiências. À mente lhe veio então, mais viva, a silhueta
graciosa dos filhos. Era um lenitivo conhecer o sabor
agradável das experiências do mundo, a benefício deles. O
tesouro filial compensava-o das flagelações em cada acidente
do caminho. A evocação do lar, onde o amor carinhoso dos
filhos alimentava as esperanças paternas, suavizou -lhe as
amarguras.
Que importava a brutalidade do romano conquistador, quando sua
velhice se aureolava dos mais santos afetos do coração?
Experimentando resignado consolo, chegou ao mercado, onde se
abasteceu do que necessitava.
O movimento não era intenso, na feira habitual, como nos dias
mais comuns; entretanto, havia certa concorrência de
compradores, mormente de libertos e pequenos proprietários,
que afluíam das estradas de Cencreia.
Mal não havia terminado a compra de peixe e legumes, luxuosa
liteira parou no centro da praça e dela saltou um oficial
patrício, desdobrando largo pergaminho. Ao sinal de silêncio,
que fizera emudecer todas as vozes, a palavra da estranha
personagem vibrou forte na leitura fiel do édito que trazia:
“Licínio Minucio, questor do Império e legado de César,
encarregado de abrir nesta província a necessária devassa para
restabelecimento da ordem em toda a Acaia, convida a todos os
habitantes de Corinto que se considerarem prejudicados em seus
interesses pessoais, ou que se encontrarem necessitados de
amparo legal, a comparecerem amanhã, ao meio-dia, no palácio
provincial, junto ao templo de Vênus Pandemos, a fim de
exporem suas queixas e reclamações, que serão plenamente
atendidas pelas autoridades competentes.”
Lido o aviso, o mensageiro retornou a elegante viatura, que,
sustentada por hercúleos braços escravos, desapareceu na
primeira esquina, envolvida por uma nuvem de pó levantada em
remoinho pela ventania da manhã.
Entre os circunstantes, surgiram logo opiniões e comentários.
Os queixosos não tinham conta. O legado e seus prepostos logo
de começo se apossaram de pequenos patrimônios territoriais da
maioria das famílias mais humildes, cujos recursos financeiros
não davam para custear processos no foro provincial. Daí, a
onda de esperanças que avassalava o coração de muitos e a
opinião pessimista de outros, que não enxergavam no édito
senão nova cilada, para obrigar os reclamantes a pagarem muito
caro as suas legítimas reivindicações.
Jochedeb ouviu a comunicação oficial, colocando-se
imediatamente entre os que se julgavam com direito a esperar
legítima indenização pelos prejuízos sofridos noutros tempos.
Animado das melhores esperanças, desandou para casa,
escolhendo caminho mais longo, de modo a evitar novo encontro
com os que o haviam humilhado rudemente.
Não havia caminhado muito, quando lhe surgiram à frente novos
grupos de militares romanos, em conversações ruidosas, que
transbordavam alacremente nas claridades da manhã.
Defrontando o primeiro grupo de tribunos e sentindo-se alvo de
comentários deprimentes a transparecerem em risos escarninhos,
o velho israelita considerou: “Deverei saudá-los, ou passar
mudo e reverente, como procurei fazer na vinda?” Preocupado
com o evitar novo pugilato que agravasse as humilhações
daquele dia, inclinou-se profundamente qual mísero escravo e
murmurou, tímido: Salve, valorosos tribunos de César!
Mal acabou de o dizer e um oficial de fisionomia dura e
impassível se acercou, exclamando colérico:
Que é isso? Um judeu a dirigir-se impunemente aos patrícios?
Chegou a tanto a condenável tolerância da autoridade
provincial? Façamos justiça por nossas próprias mãos.
E novas bofetadas estalaram no rosto dorido do infeliz, que
necessitava concentrar todas as energias na vontade para não
se atirar, de qualquer modo, a uma reação desesperada. Sem uma
palavra de justificação, o filho de Jared submeteu-se ao
castigo cruel. Seu coração precipite, parecia rebentar de
angústia no peito envelhecido; todavia, o olhar refletia a
intensa revolta que lhe ia na alma opressa. Impossibilitado de
coordenar ideias em face da agressão inesperada, na sua
atitude humilde reparou que, desta vez, o sangue jorrava das
narinas, tingindo-lhe a barba branca e o linho singelo das
vestiduras. Isso, porém, não chegou a sensibilizar o agressor,
que, por fim, lhe vibrou a última punhada na fronte enrugada,
murmurando: Safa-te, insolente!
Sustentando, a custo, o cesto que lhe pendia dos braços
trêmulos, Jochedeb avançou cambaleante, sufocando a explosão
do seu extremo desespero. Ah, ser velho, pensava.
Simultaneamente, os símbolos da fé modificavam-lhe as
disposições espirituais, e sentia no íntimo a palavra antiga
da Lei: “Não matarás”. No entanto, os ensinamentos divinos, a
seu ver, na voz dos profetas, aconselhavam o revide: olho por
olho, dente por dente. Seu espírito guardava a intenção da
represália como remédio às reparações a que se julgava com
direito; mas as forças físicas já não eram compatíveis com os
requisitos da reação.
Profundamente humilhado e presa de angustiosos pensamentos,
buscou recolher-se ao lar, onde se aconselharia com os filhos
muito amados, em cujo afeto encontraria, decerto, a necessária
inspiração.
Sua modesta vivenda não demorava longe e, ainda a distância,
acabrunhado, entreviu o singelo e pequenino teto do qual
fizera a edícula do seu amor. Presto, enveredou na trilha que
terminava na cancelinha tosca, quase afogada pelas roseiras de
Abigail, a exalarem forte e delicioso perfume.
As árvores verdes e copadas espalhavam frescor e sombra, que
atenuavam o rigor do sol. Uma voz clara e amiga chegava de
longe aos seus ouvidos. O coração paternal adivinhava. Àquela
hora, Jeziel, conforme o programa por ele mesmo traçado, arava
a terra, preparando-a para as primeiras semeaduras. A voz do
filho parecia casar-se à alegria do sol.
A velha canção hebraica, que lhe saía dos lábios quentes de
mocidade, era um hino de exaltação ao trabalho e à Natureza.
Os versos harmoniosos falavam do amor à terra e da proteção
constante de Deus. O generoso pai afogava, a custo, as
lágrimas do coração. A melodia popular sugeria-lhe um mundo de
reflexões. Não havia trabalhado a existência inteira? Não se
presumia um homem honesto nos mínimos atos da vida, para
jamais per der o título de justo? Entretanto, o sangue da
perseguição cruel ali estava a pingar-lhe da barba veneranda
sobre a túnica branca e indene de qualquer mácula que lhe
pudesse atormentar a consciência.
Ainda não transpusera o cercado rústico da vivenda humilde,
quando uma voz cariciosa lhe gritava assustadiça e veemente:
Pai! Pai! Que sangue é esse?
Uma jovem de notável formosura corria a abraçá-lo com imensa
ternura, ao mesmo tempo que lhe arrancava o cesto das mãos
trêmulas e doloridas.
Abigail, na candidez dos seus dezoito anos, era um gracioso
resumo de todos os encantos das mulheres da sua raça. Os
cabelos sedosos caíam-lhe em anéis caprichosos sobre os
ombros, emoldurando-lhe o rosto atraente num conjunto
harmonioso de simpatia e beleza. No entanto, o que mais
impressionava, no seu talhe esbelto de menina e moça, eram os
olhos profundamente negros, nos quais intensa vibração
interior parecia falar dos mais elevados mistérios do amor e
da vida.
— Filhinha, minha querida filha, murmurou ele, amparando-se
nos seus braços carinhosos.
Em breve, dava conta de todas as ocorrências. E, enquanto o
velho genitor banhava o rosto contundido, na infusão balsâmica
que a filha preparara cuidadosamente, Jeziel era chamado a
inteirar-se do acontecido.
O jovem acorreu solícito e pressuroso. Abraçado ao pai,
ouviu-lhe o desabafo amargo, palavra por palavra. No vigor da
juventude, não se lhe poderia dar mais de vinte e cinco anos;
mas o comedimento dos gestos e a gravidade com que se
exprimia, deixavam entrever um espírito nobre, ponderado e
servido por uma consciência cristalina.
Coragem, pai, exclamou depois de ouvir a dolorosa exposição,
pondo nas expressões de firmeza um acentuado cunho de ternura,
nosso Deus é de justiça e sabedoria. Confiemos na sua
proteção!
Jochedeb contemplou o filho de alto a baixo, fixando-lhe o
olhar bondoso e calmo, onde desejaria lobrigar, naquele
momento, a indignação que lhe parecia natural e justa,
dominado pelo desejo das represálias. É verdade que criara
Jeziel para as alegrias puras do dever, em obediência à leal
execução da lei, entretanto, nada o compelia a abandonar suas
ideias de desforra, de maneira a desafrontar-se dos ultrajes
recebidos.
— Filho – obtemperou depois de meditar longo tempo, – Jeová é
cheio de justiça, mas os filhos de Israel, como escolhidos,
precisam igualmente exercê-la. Poderíamos ser justos,
olvidando afrontas? Não poderei descansar, sem o repouso da
consciência pela obrigação cumprida. Tenho necessidade de
assinalar os erros de que fui vítima, no presente e no
passado, e amanhã irei ao legado ajustar minhas contas.
O jovem hebreu fez um movimento de espanto e acrescentou:
— Ireis, porventura, à presença do questor Licínio, esperando
providências legais? E os antecedentes, meu pai? Pois não foi
esse m esmo patrício quem vos despojou de grande patrimônio
territorial, atirando-vos ao cárcere? Não vedes que ele tem
nas mãos as forças da iniquidade? Não será de temer novas
investidas com o fim de extorquir o pouco que nos resta?
Jochedeb mergulhou no olhar do filho, olhar que a nobreza do
coração orvalhava de lágrimas emotivas, porém, na sua rigidez
de caráter, acostumado a executar os desígnios próprios até ao
fim, exclamou quase secamente:
— Como sabes, tenho contas velhas e novas a acertar, e,
amanhã, de conformidade com o édito, aproveitarei o ensejo que
o Governo provincial nos faculta.
— Meu pai, suplico-vos – advertiu o rapaz, entre respeitoso e
carinhoso – não lanceis mão desses re cursos!
— E as perseguições? – explodiu o velho energicamente – e esse
turbilhão incessante de ignomínias em torno dos homens de
nossa raça? Não haverá um paradeiro nesse caminho de infinitas
angústias? Assistiremos, inermes, ao enxovalho de tudo que
possuímos de mais sagrado? Tenho o coração revoltado com esses
crimes odiosos, que nos atingem impunemente…
A voz tornara-se-lhe arrastada e melancólica, deixando
perceber extremo desânimo; todavia, sem se perturbar com as
objeções paternas, Jeziel prosseguiu:
—Essas torturas, entretanto, não são novas. Há muitos séculos,
os faraós levaram tão longe a crueldade para com os nossos
ascendentes, que os meninos de nossa raça eram trucidados logo
ao nascer. Antíoco Epifânio, na Síria, mandou degolar mulheres
e crianças, no recesso mesmo dos nossos lares. Em Roma, de
tempos a tempos, todos os israelitas sofrem vexames e
confiscos, perseguição e morte. Mas, certamente, meu pai, Deus
permite que assim aconteça para que Israel reconheça, nos
sofrimentos mais atrozes, a sua missão divina.
O velho israelita parecia meditar as ponderações do filho;
contudo, acrescentou resoluto:
— Sim, tudo isso é verdade, mas a justiça reta deve ser
cumprida, ceitil por ceitil, e nada poderá demover-me.
— Então, ireis reclamar, amanhã, perante o legado?
— Sim!
Nesse momento, o olhar do jovem demorou na velha mesa onde
repousava a coleção dos Escritos Sagrados da família. Animado
por súbita inspiração, Jeziel lembrou humildemente:
— Pai, não tenho o direito de exortar-vos, mas vejamos o que
nos suscita a palavra de Deus a respeito do que pensais neste
momento.
E abrindo os textos ao acaso, conforme o costume da época, a
fim de conhecer a sugestão que lhes pudessem facultar as
sagradas letras, leu na parte dos Provérbios:
— “Filho meu, não rejeites o corretivo do Senhor, nem te
enojes de sua repreensão; porque Deus repreende aquele a quem
ama, assim como o pai ao filho a quem quer bem”. (Provérbios,
capítulo 3º, versículos 11 e 12.13).
O velho israelita abriu os olhos espantados, revelando a
estupefação que a mensagem indireta lhe causava; e como Jeziel
o fixasse longamente, demonstrando ansioso interesse por
conhecer-lhe a atitude íntima, em face da sugestão dos
pergaminhos sagrados, acentuou:
— Recebo a advertência dos Escritos, meu filho, mas não me
conformo com a injustiça e, segundo tenho resolvido, levarei
minha queixa às autoridades competentes.
O rapaz suspirou e disse resignado:
— Que Deus nos proteja!…
No dia seguinte, avolumava-se compacta multidão junto ao
templo da Vênus popular. Do antigo casarão onde funcionava um
tribunal improvisado, viam-se as luxuosas e extravagantes
viaturas que cruzavam a grande praça em todas as direções.
Eram patrícios que se dirigiam às audiências da Corte
Provinciana, ou antigos proprietários da fortuna particular de
Corinto, que se entregavam aos entretenimentos do dia, à custa
do suor dos misérrimos cativos. Desusado movimento
caracterizava o local, observando-se, de vez em quando, os
oficiais embriagados que deixavam o ambiente viciado do templo
da famosa deusa, entupido de capitosos perfumes e condenáveis
prazeres.
Jochedeb atravessou a praça, sem se deter para fixar qualquer
detalhe da multidão que o rodeava e penetrou no recinto, onde
Licínio Minucio, cercado de muitos auxiliares e soldados,
expedia numerosas ordens.
Os que se atreveram à queixa pública excediam tão-somente de
uma centena e, depois de prestarem declarações individuais,
sob o olhar percuciente do legado eram, um por um, conduzidos
para a solução isolada do assunto que lhes dizia respeito.
Chegada a sua vez, o velho israelita expôs suas reclamações
particulares, atinentes às indébitas expropriações do passado
e aos insultos de que fora vítima na véspera, enquanto o
orgulhoso patrício lhe anotava as menores palavras e atitudes,
do alto de sua cátedra, como quem já conhecia, de longo tempo,
a personagem em causa. Conduzido novamente ao interior,
Jochedeb esperou, como os demais, a solução dos seus pedidos
de reparação e Justiça; mas aos poucos, enquanto outros eram
convocados nominalmente ao acerto das contas com o Governo
provincial, reparava que o antigo casarão se envolvia em
grande silêncio, percebendo que sua vez, possivelmente, fora
adiada por circunstâncias que não podia presumir.
Instado nominalmente a dirigir-se ao juiz, ouviu, grandemente
surpreendido, a sentença negativa, lida por um oficial que
desempenhava as atribuições de secretário daquela alçada.
— O legado imperial, em nome de César, resolve ordenar o
confisco da suposta propriedade de Jochedeb ben Jared,
concedendo-lhe três dias para desocupar as terras que ocupa
indebitamente, visto pertencerem, com fundamento legal, ao
questor Licínio Minucio, habilitado a provar, a qualquer
tempo, seus direitos de propriedade.
A decisão inesperada causou intensa comoção ao velho
israelita, a cuja sensibilidade aquelas palavras levaram um
efeito de morte. Nem saberia definir a angustiosa surpresa.
Não confiara na Justiça e não estava à procura de sua ação
reparadora? Queria gritar o seu ódio, manifestar suas
pungentes desilusões; mas a língua estava como que petrificada
na boca retraída e trêmula. Após um minuto de profunda
ansiedade, fixou no alto a figura detestada do antigo
patrício, que lhe causava, agora, a derradeira ruína, e,
envolvendo-o na vibração colérica da alma revoltada e
sofredora, encontrou energias para dizer:
— Ó ilustríssimo questor, onde está a equidade das vossas
sentenças?
Venho até aqui implorando a intervenção da Justiça e me
retribuís a confiança com mais uma extorsão que me aniquilará
a existência? No passado, sofri a desapropriação descabida de
todos os meus bens territoriais, conservando com enormes
sacrifícios a chácara humilde, onde pretendo esperar a morte!…
Será crível que vós, dono de opulentos latifúndios, não
sintais remorso em subtrair ao mísero velho a derradeira côdea
de pão?
O orgulhoso romano, sem um gesto que denotasse a mais leve
emoção, retrucou secamente:
— Ponha-se na rua; e que ninguém discuta as decisões
imperiais!
— Não discutir? – clamou Jochedeb já desvairado.
— Não poderei altear a voz amaldiçoando a memória dos
criminosos romanos que me espoliaram? Onde colocareis vossas
mãos, envenenadas com o sangue das vítimas e as lágrimas das
viúvas e dos órfãos esbulhados, quando soar a hora do
julgamento no Tribunal de Deus?
Mas, recordando subitamente o lar povoado pela ternura dos
filhos amorosos, modificou a atitude mental, sensibilizado nas
fibras recônditas do ser. Prostrando-se, de joelhos, em
convulsivo pranto, exclamou comovedoramente:
— Tende piedade de mim, Ilustríssimo! Poupai-me a vivenda
modesta, onde, acima de tudo, sou pai. Meus filhos esperam-me
com o beijo da sua afeição sincera e desvelada!
E acrescentava, afogado em lágrimas:
— Tenho dois filhos que são duas esperanças do coração.
Poupai-me, por Deus! Prometo conformar-me com esse pouco,
nunca mais reclamarei!
Entretanto, o legado impassível respondeu com frieza,
dirigindo-se a um soldado:
— Espártaco, para que esse judeu impertinente se afaste do
recinto, com as suas lamentações, dez bastonadas.
O preposto formalizou-se para cumprir imediatamente a ordem,
mas o juiz implacável acrescentou:
— Tenha cuidado em não lhe cortar o rosto, para que o sangue
não escandalize os transeuntes.
De joelhos, o pobre Jochedeb suportou o castigo e, terminada a
prova, levantou-se, cambaleante, alcançando a praça
ensolarada, sob as risotas disfarçadas de quantos haviam
presenciado o ignóbil espetáculo. Nunca, em sua vida,
experimentara tão intenso desespero como naquela hora.
Quereria chorar e tinha os olhos frios e secos, lamentar a
desdita imensa e os lábios estavam petrificados de revolta e
dor. Parecia um sonâmbulo vagando inconsciente entre as
viaturas e os transeuntes que se aglomeravam na praça enorme.
Contemplou com extrema e íntima repugnância o templo de Vênus.
Desejava ter voz estentórica e poderosa para humilhar todos os
circunstantes com a palavra da condenação.
Observando as cortesãs coroadas que o encontravam, as
armaduras dos tribunos romanos e a ociosa atitude dos
afortunados que passavam despercebidos do seu martírio,
molemente recostados nas liteiras vistosas da época, sentiu-se
como que mergulhado num dos pântanos mais odiosos do mundo,
entre os pecados que os profetas da sua raça jamais se
cansaram de profligar, com todas as veras do coração
consagrado ao Todo Poderoso.
Corinto, a seus olhos, era uma nova edição da Babilônia
condenada e desprezível.
De súbito, apesar dos tormentos que lhe perturbavam a alma
exausta, recordou novamente os filhos queridos, sentindo, por
antecipação, a profunda amargura que a notícia da sentença
lhes causaria ao espírito sensível e afetuoso. A lembrança da
ternura de Jeziel enternecia-lhe o peito galvanizado no
sofrimento. Teve a impressão de vê-lo ainda a seus pés,
suplicando desistisse de qualquer reclamação e, aos ouvidos,
ecoava-lhe agora, com mais intensidade, a exortação dos
Escritos: “Filho meu, não rejeites a repreensão do
Senhor!”
Mas, ao mesmo tempo, ideias destruidoras invadiam-lhe o
cérebro cansado e dolorido. A Lei sagrada estava cheia de
símbolos de justiça. E, para ele, impunha-se como dever
soberano providenciar a reparação que lhe parecia conveniente.
Agora, em desolação suprema, regressava ao lar, despojado de
tudo que possuía de mais humilde e mais simples, e já no fim
da vida! Como lhe viria o pão de amanhã? Sem elemento s de
trabalho e sem teto, via-se constrangido a peregrinar em
situação parasitária, ao lado da juventude dos filhos.
Inenarrável martírio moral sufocava-lhe o coração.
Dominado por acerbos pensamentos, aproximou-se do sítio
bem-amado, onde edificara o ninho familiar. O sol quente da
tarde fazia mais doce a sombra das árvores, de ramarias verdes
e abundantes. Jochedeb avançou no terreno, que era propriedade
sua, e, angustiado pela perspectiva de abandoná-lo para
sempre, deu ensejo a que terríveis tentações lhe desvairassem
a mente. As terras de Licínio não se limitavam com a chácara?
Afastando-se do caminho que o levava ao ambiente doméstico,
penetrou nos matagais próximos e, depois de alguns passos,
demorou o olhar na linha de demarcação, entre ele e o seu
verdugo. As pastagens do outro lado não pareciam bem cuidadas.
A falta de melhor distribuição da água comum, certa secura
geral fazia-se sentir asperamente. Apenas algumas árvores,
isoladas, amenizavam a paisagem com a sua sombra, refrescando
a região abandonada, entre espinheiros e parasitas que
sufocavam as ervas úteis.
Obcecado pela ideia de reparação e vingança, o velho israelita
deliberou incendiar as pastagens próximas. Não consultaria os
filhos, que, possivelmente, dobrariam o seu espírito,
inclinados à tolerância e à benignidade. Jochedeb recuou
alguns passos e, recorrendo ao material de serviço ali
guardado nas proximidades, fez o fogo com que acendeu um feixe
de ervas ressequidas. O rastilho comunicou-se, célere, e em
rápidos minutos o incêndio das pastagens propagava-se com a
velocidade do relâmpago.
Terminada a tarefa, sob a penosa impressão dos ossos
doloridos, regressou cambaleante ao lar, onde Abigail o
inquiriu, inutilmente, dos motivos de tão profundo abatimento.
Jochedeb deitou-se à espera do filho; mas, dentro em pouco, um
ruído ensurdecedor ecoava-lhe aos ouvidos. Não longe da
chácara, o fogo destruía árvores amigas e frondes robustas,
reduzindo pastos verdes a punhados de cinzas. Grande área
ardia, irremediavelmente, escutando-se os gritos lamentosos
das aves que fugiam espavoridas.
Pequenas benfeitorias do questor, inclusive algumas termas
pitorescas de sua predileção, construídas entre as árvores,
ardiam igualmente, convertendo-se em negros escombros. Aqui e
acolá, o alarido dos trabalhadores do campo, em espantosa
correria por salvar da destruição a residência campestre do
poderoso patrício, ou procurando insular a serpente de fogo
que lambia a terra em todas as direções, aproximando-se dos
pomares vizinhos.
Algumas horas de ansiedade espalharam as mais angustiosas
expectativas; mas, ao fim da tarde, o incêndio fora dominado,
depois de ingentes esforços.
Debalde o velho judeu enviara mensagens à procura do filho,
dentro dos círculos de serviço da sua pequena herdade.
Desejava falar a Jeziel das suas necessidades e da situação
tormentosa em que se encontravam novamente, ansioso por
descansar a mente atormentada nas palavras dulcificantes da
sua ternura filial. Entretanto, somente à noite, com as vestes
chamuscadas e as mãos ligeiramente feridas, o jovem entrou em
casa, deixando entrever no cansaço da fisionomia a laboriosa
tarefa a que se impusera. Abigail não se surpreendeu com o seu
aspecto, entendendo que o irmão não deixara de auxiliar os
companheiros de trabalho da vizinhança, nas ocorrências da
tarde, preparando-lhe aos pés cansados e às mãos doloridas o
banho de água aromatizada; mas, tão logo o viu e notou as mãos
feridas, foi com espanto que Jochedeb exclamou:
— Onde estiveste, filho meu?
Jeziel falou da cooperação espontânea no salvamento da
propriedade vizinha e, à medida que relatava os tristes
sucessos do dia, o pai deixava trair a própria angústia nas
fácies sombrias, em que se estereotipavam os traços rudes da
revolta que lhe devorava o coração. Ao cabo de alguns minutos,
erguendo a voz desalentada, falou com profunda emoção:
— Meus filhos, custa dizer-lhes, mas fomos espoliados na
derradeira migalha que nos resta. Reprovando minha reclamação
sincera e justa, o legado de César determinou o sequestro do
nosso próprio lar. A iníqua sentença é o passaporte da nossa
ruína total. Pelas suas disposições, somos obrigados a
abandonar a chácara em três dias!
E, elevando os olhos para o Alto, como a insistir junto à
divina misericórdia, exclamava com o olhar em baciado de
lágrimas:
— Tudo perdido! Por que fui assim desamparado, meu Deus? Onde
a liberdade do vosso povo fiel, se, em toda parte, nos
exterminam e perseguem sem piedade?
Grossas lágrimas escorriam-lhe pelas faces, enquanto com a voz
trêmula narrava aos filhos os pesados tormentos de que fora
vítima. Abigail osculava-lhe as mãos enternecidamente, e
Jeziel, sem qualquer alusão à rebeldia paterna, abraçava-o
depois da sua dolorosa exposição, consolando-o com amor: Meu
pai, por que vos atemorizardes? Deus nunca é avaro de
misericórdia.
Os Escritos Sagrados nos ensinam que Ele, antes de tudo, é o
Pai desvelado de todos os vencidos da Terra! Essas derrotas
chegam e passam. Tendes os meus braços e o cuidado afetuoso de
Abigail. Por que lastimar, se amanhã mesmo, com o socorro
divino, poderemos sair desta casa, para buscar outra em
qualquer parte, a fim de nos consagrarmos ao trabalho honesto?
Deus não guiou o nosso povo expulso do lar, através do oceano
e do deserto? Por que negaria, então, seu apoio a nós que
tanto o amamos neste mundo? Ele é a nossa bússola e a nossa
casa.
Os olhos de Jeziel fixavam o velho genitor numa atitude de
súplica profundamente cariciosa. Suas palavras revelavam o
mais doce enternecimento no coração. Jochedeb não era
insensível àquelas formosas manifestações de carinho; mas,
ante a revelação de tanta confiança no poder divino, sentia-se
envergonhado, depois do ato extremo que praticara.
Descansando na ternura que a presença dos filhos lhe oferecia
ao espírito desolado, dava curso às lágrimas dolorosas que lhe
fluíam da alma pungida por acerbas desilusões. Entretanto,
Jeziel continuava:
— Não choreis meu pai, contai conosco! Amanhã, eu próprio
providenciarei a nossa retirada, como se faz preciso.
Foi nesse instante que a voz paternal se ergueu soturna e
acentuou:
— Mas não é tudo, meu filho!
E, pausadamente, Jochedeb pintou o quadro de suas angústias
reprimidas, da sua cólera justa, que culminara com a decisão
de atear fogo à propriedade do verdugo execrando. Os filhos
ouviam-no espantados, entremostrando a dor sincera que a
conduta paterna lhes causava. Depois de um olhar de infinito
amor e funda preocupação, o jovem abraçou-o, murmurando:
— Meu pai, meu pai, por que levantastes o braço vingador? Por
que não esperastes a ação da justiça divina?
Embora perturbado pelas afetuosas admoestações, o interpelado
esclarecia:
— Está escrito nos mandamentos: “não furtarás”; e, fazendo o
que fiz, procurei retificar um desvio da Lei, porquanto fomos
espoliados de tudo que constituía o nosso humilde patrimônio.
— Acima de todas as determinações, porém, meu pai, acentuou
Jeziel sem irritação, Deus mandou gravar o ensinamento do
amor, recomendando que o amássemos sobre todas as coisas, de
todo o coração e todo o entendimento.
— Amo o Altíssimo, mas não posso amar o romano cruel, suspirou
Jochedeb, amargurado.
— Mas, como revelarmos dedicação ao Todo Poderoso que está nos
Céus, continuou o jovem compadecido, destruindo suas obras? No
caso do incêndio, não temos só a considerar o nosso testemunho
de desconfiança para com a justiça de Deus, mas os campos que
nos fornecem agasalho e pão sofreram com a nossa atitude e os
dois melhores servos de Licínio Minucio, Caio e Rufílio, foram
feridos de morte quando tentavam salvar as termas prediletas
do amo, numa luta inútil para livrá-las do fogo que as
destruiu; ambos, apesar de escravos, têm sido nossos melhores
amigos. As árvores frutíferas e os canteiros de legumes de
nossa propriedade devem quase tudo a eles, não só no
concernente às sementes vindas de Roma, mas também no esforço
e cooperação com o meu trabalho. Não seria justo honrarmos sua
amizade, dedicada e diligente, evitando-lhes a punição e os
sofrimentos injustos?
Jochedeb pareceu meditar profundamente nas observações
filiais, ditas em tom carinhoso. Enquanto Abigail chorava em
silêncio, o moço acrescentava:
— Nós que estávamos em paz, nas derrotas do mundo, porque
trazíamos a consciência pura, precisamos resolver, agora, em
face do que nos advirá em represálias. Quando dava o meu
esforço contra o fogo, observei que muitos afeiçoados de
Minucio me contemplavam com indisfarçável desconfiança. A esta
hora, já ele terá regressado dos serviços da Corte Provincial.
Precisamos encomendar-nos ao amor e à complacência de Deus,
pois não ignoramos os tormentos reservados pelos romanos a
todos os que lhes desrespeitam as determinações.
Penosa nuvem de tristeza mergulhara os três em sombrias
preocupações.
No velho observava-se uma ansiedade terrível, que se misturava
à dor do remorso pungente e, em ambos os jovens, notava-se, no
olhar, inexcedível amargura, angustiosa e intraduzível.
Jeziel tomou de sobre a mesa os velhos pergaminhos sagrados e
disse à irmã, com triste acento:
— Abigail, vamos recitar o Salmo que nos foi ensinado pela
mamãe para as horas difíceis.
Ambos se ajoelharam e suas vozes comovidas, como a de pássaros
torturados, cantavam baixinho uma das formosas orações de
David, que haviam aprendido no colo maternal:
“O Senhor é o meu Pastor,
Nada me faltará.
Deitar-me faz em verdes pastos,
Guia-me mansamente
A águas mui tranquilas,
Refrigera minha alma,
Guia-me nas veredas da justiça
Por amor do seu nome.
Ainda que eu andasse
Pelo vale das sombras da morte,
Não temeria mal algum,
Porque Tu estás comigo…
A Tua vara e o Teu cajado me consolam.
Prepara-me o banquete do amor
Na presença dos meus inimigos,
Unges de perfume a minha cabeça,
O meu cálice transborda de júbilo!…
Certamente,
A bondade e a misericórdia
Seguirão todos os dias de minha vida
E habitarei na Casa do Senhor
Por longos dias… (Salmo 23 — (Nota de Emmanuel.)
O velho Jochedeb acompanhava o cântico dolorido, sentindo-se
opresso de amargosas emoções. Começava a compreender que todos
os sofrimentos enviados por Deus são proveitosos e justos, e
que todos os males procurados pelas mãos do homem trazem,
invariavelmente, torturas infernais à consciência invigilante
O cântico abafado dos filhos enchia-lhe o coração de tristezas
pungentes. Lembrava, agora, a companheira querida que Deus
havia chamado à vida espiritual. Quantas vezes, acalentava-lhe
ela o espírito atormentado com aqueles versos inesquecíveis do
profeta? Bastava que sua observação amiga e fiel se fizesse
ouvir para que o sentido da obediência e da justiça lhe
falasse mais alto ao coração.
Ao ritmo da harmonia cariciosa e triste, que apresentava
acento singular na voz dos filhos idolatrados, Jochedeb chorou
longamente. Da pequenina janela aberta no aposento humilde,
seus olhos buscaram ansiosamente o céu azul, que se enchera de
sombras tranquilas. A noite abraçara a Natureza e, muito
longe, no alto, começavam a luzir as primeiras estrelas.
Identificando-se com as sugestões grandiosas do firmamento,
experimentou intensas comoções na alma ansiosa. Profundo
enternecimento fê-lo levantar-se e, sedento de revelar aos
filhinhos quanto os amava e quanto deles esperava naquela hora
culminante da sua vida, inclinou-se de braços abertos, com
significativa expressão de carinho e, quando as últimas notas
se desprendiam do cântico dos jovens enlaçados e genuflexos,
abraçou-os em pranto, murmurando:
— Meus filhos! Meus queridos filhos!...
Mas, nesse instante abriu-se a porta e um pequenino servidor
das vizinhanças anunciou com grande assombro a lhe
transparecer nos olhos:
—Senhores, o soldado Zenas e mais alguns companheiros
chamam-vos à porta.
O velho colou a destra ao peito opresso, enquanto Jeziel
parecia meditar um instante; todavia, revelando a firmeza do
seu espírito resoluto, o jovem exclamou:
— Deus nos protegerá.
Daí a instantes, o mensageiro que chefiava a pequena escolta
leu o mandado de prisão de toda a família. A ordem era
categórica e irrevogável. Os acusados deveriam ser recolhidos
imediatamente ao cárcere, a fim de que se lhes esclarecesse a
situação no dia seguinte.
Abraçado aos dois filhos, o pobre israelita marchou à frente
da escolta, que os observava sem piedade.
Jochedeb contemplou os canteiros de flores e as árvores
bem-amadas junto da casinha singela onde tecera todos os
sonhos e esperanças da sua vida. Singular emoção dominou-lhe o
espírito cansado. Uma torrente de lágrimas fluía-lhe dos olhos
e, transpondo a cancela florida, falou em voz alta, olhando o
céu claro, agora recamado pelos astros da noite:
— Senhor! compadece-te do nosso amargurado destino!
Jeziel apertou-lhe docemente a mão encarquilhada, como a lhe
pedir resignação e calma, e o grupo marchou silenciosamente à
luz das estrelas.
Kardec e amigos
Jesus Cristo
Chico Xavier
..."Recordemos que o
Espiritismo nos solicita uma espécie permanente de caridade:
a caridade de sua própria divulgação" Emmanuel
Abigail, doente
Emmanuel e Chico Xavier
Aparição de Jesus