Chico Xavier / Emmanuel
O neto de Loide trazia ao ex-rabino muitas
novidades confortadoras. Já havia instalado as duas senhoras
na cidade, era portador de alguns recursos e falou-lhe do
desenvolvimento da doutrina cristã, na velha capital da Acaia.
Uma notícia lhe foi, sobretudo, particularmente grata. É que
Timóteo mencionava o encontro com Áquila e Prisca. Aquelas
duas criaturas, que se lhe fizeram solidárias nas dificuldades
extremas do deserto, trabalhavam agora em Corinto pela glória
do Senhor. Alegrou-se íntima, profundamente. Além das muitas
razões pessoais que o chamavam a Acaia, isto é – às
recordações indeléveis de Jeziel e Abigail, o desejo de
abraçar o casal amigo foi também uma circunstância decisiva da
sua partida imediata.
O valoroso pregador saía de Atenas assaz abatido. O insucesso,
em face da cultura grega, compelia-lhe o espírito indagador
aos mais torturantes raciocínios. Começava a compreender a
razão por que o Mestre preferira a Galileia com os seus
cooperadores humildes e simples de coração; entendia melhor o
motivo da palavra franca do Cristo sobre a salvação, e
decifrava a sua predileção natural pelos desamparados da
sorte.
Timóteo notou-lhe a tristeza singular e debalde procurou
convencê-lo da conveniência de seguir por mar, em vista das
facilidades no Pireu. Ele fez questão de ir a pé, visitando os
sítios isolados no percurso.
— Mas, sinto-vos doente – objetava o discípulo, tentando
dissuadi-lo. – Não será mais razoável descansardes?
Lembrando os desalentos experimentados, o Apóstolo acentuava:
— Enquanto pudermos trabalhar, há que buscarmos no trabalho um
elixir para todos os males. Além do mais, é justo aproveitar o
tempo e a oportunidade.
— Julgo, entretanto – justificava o jovem amigo, – que
poderíeis adiar um pouco...
— Adiar por quê? – redarguiu o ex-rabino fazendo o possível
por desfazer as mágoas de Atenas. – Sempre tive a convicção de
que Deus tem pressa do serviço bem feito. Se isso constitui
uma característica de nossas mesquinhas atividades nas coisas
deste mundo, como adiar ou faltar com os deveres sagrados de
nossa alma, para com o Todo Poderoso?
O rapaz ponderou no acerto daquelas alegações e calou-se.
Assim venceram mais de sessenta quilômetros, com alguns dias
de marcha e intervalos de prédicas. Nessa tarefa entre gente
simples, Paulo de Tarso sentia-se mais feliz. Os homens do
campo receberam a Boa Nova com maior alegria e compreensão.
Pequenas igrejas domésticas foram fundadas, não longe do golfo
de Saron.
Enlevado pelas recordações cariciosas de Abigail, atravessou o
istmo e penetrou na cidade, movimentada e rumorosa. Abraçou
Loide e Eunice numa casinha do porto de Cencreia e logo
procurou avistar-se com os velhos amigos do “oásis de Dan”.
Os três abraçaram-se, tomados de infinito júbilo. Áquila e a
companheira falaram longamente dos serviços evangélicos, aos
quais haviam sido chamados pela misericórdia de Jesus. De
olhos brilhantes, como se houvessem vencido grande batalha,
contaram ao Apóstolo haverem realizado o ideal de permanecer
em Roma, algum tempo. Como tecelões humildes, habitaram um
velho casarão em ruínas, no Trastevere, fazendo as primeiras
pregações do Evangelho no ambiente mesmo das pompas
cesarianas. Os judeus haviam declarado guerra franca aos novos
princípios. Desde o primeiro rebate da Boa Nova, iniciaram-se
grandes tormentas no “gueto” do bairro pobre e desprotegido.
Prisca relatou como um grupo de israelitas apaixonados lhe
assaltara o aposento, à noite, com instrumentos de flagelação
e castigo. O marido demorava-se na oficina, e assim não pôde
ela esquivar-se aos impiedosos açoites. Só muito tarde, fora
socorrida por Áquila, que a encontrou banhada em sangue. O
Apóstolo tarsense exultava. Contou aos amigos, por sua vez, as
dores experimentadas em toda parte, pelo nome de Jesus Cristo.
Aqueles martírios em comum eram apresentados como favores de
Jesus, como títulos eternos da sua glória. Quem ama
inquieta-se por dar alguma coisa e os que amavam o Mestre
sentiam-se extremamente venturosos em sofrerem algo por
devotamento ao seu nome.
Desejoso de reintegrar-se na serenidade de suas realizações
ativas, olvidando a frieza ateniense, Paulo comentou o projeto
da fundação de uma igreja em Corinto, ao que Áquila e sua
mulher se prontificaram para todos os serviços. Aceitando-lhes
o oferecimento generoso, o ex-rabino passou a residir em sua
companhia, ocupando-se diariamente do seu oficio.
Corinto era uma sugestão permanente de lembranças queridas do
seu coração. Sem comunicar aos amigos as reminiscências que
lhe borbulhavam na alma sensível, procurou rever os sítios a
que Abigail se referia sempre com enlevo. Com extremo cuidado,
localizou a região onde deveria ter existido o pequeno sítio
do velho Jochedeb, agora incorporado ao imenso acervo de
propriedades dos herdeiros de Licínio Minúcio; contemplou a
velha prisão de onde a noiva pudera evadir-se para salvar-se
dos celerados que lhe haviam assassinado o pai e escravizado o
irmão; meditou no porto de Cencreia, de onde Abigail partira,
um dia, para conquistar-lhe o coração, sob os desígnios
superiores e imutáveis do Eterno.
Paulo entregou-se, de corpo e alma, ao serviço rude. O labor
ativo das mãos proporcionara-lhe brando esquecimento de
Atenas. Compreendendo a necessidade de um período de calma,
induzira Lucas a descansar em Trôade, já que Timóteo e Silas
haviam encontrado trabalho como caravaneiros.
Antes, porém, de retomar as pregações, começaram a chegar a
Corinto emissários de Tessalônica, de Bereia e outros pontos
da Macedônia, onde fundara suas bem-amadas igrejas.
As comunidades tinham assuntos urgentes, que requeriam
delicadas intervenções da sua parte. Sentindo-se em
dificuldades para tudo atender com a presteza devida, chamou
novamente Silas e Timóteo para a cooperação indispensável.
Ambos, valendo-se das oportunidades da profissão, poderiam
contribuir de maneira eficaz na solução dos problemas
imprevistos.
Confortado pelo concurso dos amigos, Paulo falou, pela
primeira vez, na sinagoga. Sua palavra vibrante logrou êxito
extraordinário. Judeus e gregos falaram de Jesus com
entusiasmo. O tecelão foi convidado a prosseguir nos
comentários religiosos, semanalmente.
Mas tão logo começou a abordar as relações existentes entre a
Lei e o Evangelho, repontaram os atritos. Os israelitas não
toleravam a superioridade de Jesus sobre Moisés, e, se
consideravam o Cristo como profeta da raça, não o suportavam
como Salvador. Paulo aceitou os desafios, mas não conseguiu
demover corações tão endurecidos; as discussões prolongaram-se
por vários sábados, seguidamente, até que, um dia, quando o
verbo inflamado e sincero do Apóstolo zurzia os erros
farisaicos com veemência, um dos chefes principais da sinagoga
intima-o com aspereza:
— Cala-te, palrador impudente (despudorado)! A sinagoga tem
tolerado teus embustes por verdadeiros prodígios de paciência;
mas, em nome da maioria, ordeno que te retires para sempre!
Não queremos saber do teu Salvador, exterminado como os cães
da cruz!
Ouvindo expressões tão desrespeitosas ao Cristo, o Apóstolo
sentiu os olhos úmidos. Refletiu maduramente na situação e
replicou:
— Até agora, em Corinto, procurei dizer a verdade ao povo
escolhido por Deus para o sagrado depósito da unidade divina,
mas, se não a aceitais desde hoje, procurarei os gentios!...
Caiam sobre vós mesmos as injustas maldições lançadas sobre o
nome de Jesus Cristo!...
Alguns israelitas mais exaltados quiseram agredi-lo,
provocando tumulto.
Mas um romano de nome Tito Justo, presente à assembleia, e
que, desde a primeira pregação, sentira-se fortemente atraído
pela poderosa personalidade do Apóstolo, aproximou-se e
estendeu-lhe os braços de amigo. Paulo pôde sair incólume do
recinto, encaminhando-se para a residência do benfeitor, que
pôs à sua disposição todos os elementos imprescindíveis à
organização de uma igreja ativa.
O tecelão estava jubiloso. Era a primeira conquista para uma
fundação definitiva.
Tito Justo, com auxílio de todos os simpatizantes do
Evangelho, adquiriu uma casa para início dos serviços
religiosos. Áquila e Prisca foram os principais colaboradores,
além de Loide e Eunice, para que se executassem os programas
traçados por Paulo, de acordo com a querida organização de
Antioquia.
A igreja de Corinto começou, então, a produzir os frutos mais
ricos de espiritualidade. A cidade era famosa por sua
devassidão, mas o Apóstolo costumava dizer que dos pântanos
nasciam, muitas vezes, os lírios mais belos; e como onde há
muito pecado há muito remorso e sofrimento, em identidade de
circunstâncias, a comunidade cresceu, dia a dia, reunindo os
crentes mais diversos, que chegavam ansiosos por abandonar
aquela Babilônia incendiada pelos vícios.
Com a presença de Paulo, a igreja de Corinto adquiria singular
importância e quase diariamente chegavam emissários das
regiões mais afastadas. Eram portadores da Galácia a pedirem
providências para as igrejas de Pisídia; companheiros de
Icônio, de Listra, de Tessalônica, de Chipre, de Jerusalém.
Em torno do Apóstolo formou-se um pequeno colégio de
seguidores, de companheiros permanentes, que com ele
cooperavam nos mínimos trabalhos.
Paulo, entretanto, preocupava-se intensamente. Os assuntos
eram urgentes quão variados. Não podia olvidar o trabalho de
sua manutenção; assumira compromissos pesados com os irmãos de
Corinto; devia estar atento à coleta destinada a Jerusalém;
não podia desprezar as comunidades anteriormente fundadas. Aos
poucos, compreendeu que não bastava enviar emissários. Os
pedidos choviam de todos os sítios por onde perambulara,
levando as alvíssaras da Boa Nova. Os irmãos, carinhosos e
confiantes, contavam com a sua sinceridade e dedicação,
compelindo-o a lutar intensamente.
Sentindo-se incapaz de atender a todas as necessidades ao
mesmo tempo, o abnegado discípulo do Evangelho, valendo-se, um
dia, do silêncio da noite, quando a igreja se encontrava
deserta, rogou a Jesus, com lágrimas nos olhos, não lhe
faltasse com os socorros necessários ao cumprimento integral
da tarefa.
Terminada a oração, sentiu-se envolvido em branda claridade.
Teve a impressão nítida de que recebia a visita do Senhor.
Genuflexo, experimentando indizível comoção, ouviu uma
advertência serena e carinhosa:
— Não temas – dizia a voz, – prossegue ensinando a verdade e
não te cales, porque estou contigo.
O Apóstolo deu curso às lágrimas que lhe fluíam do coração.
Aquele cuidado amoroso de Jesus, aquela exortação em resposta
ao seu apelo, penetravam-lhe a alma em ondas cariciosas. A
alegria do momento dava para compensar todas as dores e
padecimentos do caminho. Desejoso de aproveitar a sagrada
inspiração do momento que fugia, pensou nas dificuldades para
atender às várias igrejas fraternas. Tanto bastou para que a
voz dulcíssima continuasse:
— Não te atormentes com as necessidades do serviço. É natural
que não possas assistir pessoalmente a todos, ao mesmo tempo.
Mas é possível a todos satisfazeres, simultaneamente, pelos
poderes do espírito. Procurou atinar com o sentido justo da
frase, mas teve dificuldade íntima de consegui-lo.
Entretanto, a voz prosseguia com brandura:
— Poderás resolver o
problema escrevendo a todos os irmãos em meu nome; os de boa
vontade saberão compreender, porque o valor da tarefa não
está na presença pessoal do missionário, mas no conteúdo
espiritual do seu verbo, da sua exemplificação e da sua
vida.
Doravante, Estevão permanecerá mais aconchegado a ti,
transmitindo-te meus pensamentos, e o trabalho de
evangelização poderá ampliar-se em benefício dos sofrimentos
e das necessidades do mundo.
O dedicado amigo dos gentios viu que a luz se extinguira; o
silêncio voltara a reinar entre as paredes singelas da
igreja de Corinto; mas, como se houvera sorvido a água
divina das claridades eternas, conservava o Espírito
mergulhado em júbilo intraduzível. Recomeçaria o labor com
mais afinco, mandaria às comunidades mais distantes as
notícias do Cristo.
De fato, logo no dia seguinte, chegaram portadores de
Tessalônica com notícias desagradabilíssimas. Os judeus
haviam conseguido despertar, na igreja, novas e estranhas
dúvidas e contendas. Timóteo corroborava com observações
pessoais. Reclamavam a presença do Apóstolo com urgência,
mas este deliberou pôr em prática o alvitre do Mestre, e
recordando que Jesus lhe prometera associar Estevão à divina
tarefa, julgou não dever atuar por si só e chamou Timóteo e
Silas para redigir a primeira de suas famosas epístolas.
Assim começou o movimento dessas cartas imortais, cuja
essência espiritual provinha da esfera do Cristo, através da
contribuição amorosa de Estevão – companheiro abnegado e
fiel daquele que se havia arvorado, na mocidade, em primeiro
perseguidor do Cristianismo.
Percebendo o elevado espírito de cooperação de todas as
obras divinas, Paulo de Tarso nunca procurava escrever só;
buscava cercar-se, no momento, dos companheiros mais dignos,
socorria-se de suas inspirações, consciente de que o
mensageiro de Jesus, quando não encontrasse no seu tono
sentimental as possibilidades precisas para transmitir os
desejos do Senhor, teria nos amigos instrumentos adequados.
Desde então, as cartas amadas e célebres, tesouro de
vibrações de um mundo superior, eram copiadas e sentidas em
toda parte. E Paulo continuou a escrever sempre, ignorando,
contudo, que aqueles documentos sublimes, escritos muitas
vezes em hora de angústias extremas, não se destinavam a uma
igreja particular, mas à cristandade universal. As epístolas
lograram êxito rápido. Os irmãos as disputavam nos rincões
mais humildes, por seu conteúdo de consolações, e o próprio
Simão Pedro, recebendo as primeiras cópias, em Jerusalém,
reuniu a comunidade e, lendo-as, comovido, declarou que as
cartas do convertido de Damasco deviam ser interpretadas
como cartas do Cristo aos discípulos e seguidores,
afirmando, ainda, que elas assinalavam um novo período
luminoso na história do Evangelho.
Altamente confortado, o ex-doutor da Lei procurou enriquecer
a igreja de Corinto de todas as experiências que trazia da
instituição antioquense. Os cristãos da cidade viviam num
oceano de júbilos indefiníveis. A igreja possuía seu
departamento de assistência aos que necessitavam de pão, de
vestuário, de remédios. Venerandas velhinhas revezavam-se na
tarefa santa de atender aos mais desfavorecidos.
Diariamente, à noite, havia reuniões para comentar uma
passagem da vida do Cristo; em seguida à pregação central e
ao movimento das manifestações de cada um, todos entravam em
silêncio, a fim de ponderar o que recebiam do Céu através do
profetismo. Os não habituados ao dom das profecias possuíam
faculdades curadoras, que eram aproveitadas a favor dos
enfermos, em uma sala próxima. O mediunismo evangelizado,
dos tempos modernos, é o mesmo profetismo das igrejas
apostólicas.
Como acontecia, por vezes, em Antioquia, surgiam também ali
pequeninas discussões em torno de pontos mais difíceis de
interpretação, que Paulo se apressava a acalmar, sem
prejuízo da fraternidade edificadora.
Ao fim dos trabalhos de cada noite, uma prece carinhosa e
sincera assinalava o instante de repouso.
A instituição progredia a olhos vistos. Aliando-se à
generosidade de Tito Justo, outros romanos de fortuna
aproximaram-se do Evangelho, enriquecendo a organização de
possibilidades novas. Os israelitas pobres encontravam na
igreja um lar generoso, onde Deus se lhes manifestava em
demonstrações de bondade, ao contrário das sinagogas, em
cujo recinto, em vez de pão para a fome voraz, de bálsamo
para as chagas do corpo e da alma, encontravam apenas a
rispidez de preceitos tirânicos, nos lábios de sacerdotes
sem piedade.
Irritados com o êxito inexcedível do empreendimento de Paulo
de Tarso, que se demorava na cidade já por um ano e sei s
meses, tendo fundado um verdadeiro e perfeito abrigo para os
“filhos do Calvário”, os judeus de Corinto tramaram um
movimento terrível de perseguição ao Apóstolo. A sinagoga
esvaziava-se. Era necessário extinguir a causa do seu
desprestígio social. O ex-rabino de Jerusalém pagaria muito
caro a audácia da propaganda do Messias Nazareno em
detrimento de Moisés.
Era Procônsul da Acaia, com residência em Corinto, um romano
generoso e ilustre, que costumava agir sempre de acordo com
a justiça, em sua vida pública. Irmão de Sêneca, Júnio Gálio
era homem de grande bondade e fina educação. O processo
iniciado contra o ex-rabino foi às suas mãos, sem que Paulo
tivesse a mínima notícia e era tão grande a bagagem de
acusações levantadas pelos israelitas, que o administrador
foi compelido a determinar a prisão do Apóstolo para o
inquérito inicial. A sinagoga pediu, com particular empenho,
que lhe fosse delegada a tarefa de conduzir o acusado ao
tribunal.
Longe de conhecer o móvel do pedido, o Procônsul concedeu a
permissão necessária, determinando o comparecimento dos
interessados à audiência pública do dia seguinte.
De posse da ordem, os israelitas mais exaltados deliberaram
prender Paulo na véspera, num momento em que o fato pudesse
escandalizar toda a comunidade.
À noite, justamente quando o ex-rabino comentava o
Evangelho, tomado de profundas inspirações, o grupo armado
parou à porta, destacando-se alguns judeus mais eminentes
que se dirigiram ao interior.
Paulo ouviu a voz de prisão, com extrema serenidade. Outro
tanto, porém, não aconteceu com a assembleia. Houve grande
tumulto no recinto. Alguns moços mais exaltados apagaram as
tochas, mas o Apóstolo valoroso, num apelo solene-e
comovedor, bradou alto:
— Irmãos acaso quereis o Cristo sem testemunho?
A pergunta ressoou no ambiente, contendo todos os ânimos.
Sempre sereno, o ex-rabino ordenou que acendessem as luzes
e, estendendo os pulsos para os judeus admirados, disse com
acento inesquecível:
— Estou pronto!...
Um componente do grupo, despeitado com aquela superioridade
espiritual, avançou e deu-lhe com os açoites em pleno rosto.
Alguns cristãos protestaram, os portadores da ordem de Gálio
revidaram com aspereza, mas o prisioneiro, sem demonstrar a
mais leve revolta, clamou em voz mais alta:
— Irmãos, regozijemo-nos em Cristo Jesus. Estejamos
tranquilos e jubilosos porque o Senhor nos julgou dignos!...
Grande serenidade estabeleceu-se, então, na assembleia.
Várias mulheres soluçavam baixinho. Áquila e a esposa
dirigiram ao Apóstolo um inolvidável olhar e a pequena
caravana demandou o cárcere, na sombra da noite. Atirado ao
fundo de uma enxovia úmida, Paulo foi atado ao tronco do
suplício e houve de suportar a flagelação dos trinta e nove
açoites. Ele próprio estava surpreendido. Sublime paz
banhava-lhe o coração de brandos consolos. Não obstante
sentir-se sozinho, entre perseguidores cruéis, experimentava
nova confiança no Cristo. Nessas disposições, não lhe doíam
as vergastadas impiedosas; debalde os verdugos
espicaçavam-lhe o espírito ardente, com insultos e ironias.
Na prova rude e dolorosa, compreendeu, alegremente, que
havia atingido a região de paz divina, no mundo interior,
que Deus concede a seus filhos depois das lutas acerbas e
incessantes por eles mantidas na conquista de si mesmos. De
outras vezes, o amor pela justiça o conduzira a situações
apaixonadas, a desejos mal contidos, a polêmicas ríspidas;
mas ali, enfrentando os açoites que lhe caíam nos ombros
seminus, abrindo sulcos sangrentos, tinha uma lembrança mais
viva do Cristo, a impressão de estar chegando aos seus
braços misericordiosos, depois de caminhadas terríveis e
ásperas, desde a hora em que havia caído às portas de
Damasco, sob uma tempestade de lágrimas e trevas. Submerso
em pensamentos sublimes, Paulo de Tarso sentiu o seu
primeiro grande êxtase. Não mais ouviu os sarcasmos dos
algozes inflexíveis, sentiu que sua alma dilatava-se ao
infinito, experimentando sagradas emoções de indefinível
ventura. Brando sono lhe anestesiou o coração e, somente
pela madrugada, voltou a si do caricioso descanso, O sol
visitava-o alegre, através das grades. O valoroso discípulo
do Evangelho levantou-se bem disposto, recompôs as vestes e
esperou pacientemente.
Só depois do meio-dia, três soldados desceram ao cárcere das
disciplinas judaicas, retirando o prisioneiro para
conduzi-lo à presença do Procônsul.
Paulo compareceu à barra do tribunal, com imensa serenidade.
O recinto estava cheio de israelitas exaltados; mas o
Apóstolo, notou que a assembleia se compunha, na maioria, de
gregos de fisionomia simpática, muitos deles seus conhecidos
pessoais dos trabalhos de assistência da igreja.
Júnio Gálio, muito cioso do seu cargo, sentou-se sob o olhar
ansioso dos espectadores cheios de interesse.
O Procônsul, de conformidade com a praxe, teria de ouvir as
partes em litígio, antes de pronunciar qualquer julgamento,
apesar das queixas e acusações exaradas em pergaminho.
Pelos judeus falaria um dos maiores da sinagoga, de nome
Sóstenes; mas, como não aparecesse o representante da igreja
de Corinto para a defesa do Apóstolo, a autoridade reclamou
o cumprimento da medida sem perda de tempo. Paulo de Tarso,
muito surpreendido, rogava intimamente a Jesus fosse o
patrono de sua causa, quando se destacou um homem que se
prontificava a depor em nome da Igreja. Era Tito Justo, o
romano generoso, que não desprezava o ensejo do testemunho.
Verificou-se, então, um fato inesperado.
Os gregos da assembleia prorromperam em frenéticos aplausos.
Júnio Gálio determinou que os acusadores iniciassem as
declarações públicas necessárias.
Sóstenes entrou a falar com grande aprovação dos judeus
presentes.
Acusava Paulo de blasfemo, desertor da Lei, feiticeiro.
Referiu-se ao seu passado, acrimoniosamente. Contou que os
próprios parentes o haviam abandonado. O Procônsul ouvia
atento, mas não deixou de manter uma atitude curiosa. Com o
indicador da direita comprimia um ouvido, sem atender à
estupefação geral. O maioral da sinagoga, no entanto,
desconcertava-se com aquele gesto. Terminando o libelo
apaixonado quanto injusto, Sóstenes interrogou o
administrador da Acaia, relativamente à sua atitude, que
exigia um esclarecimento, a fim de não ser tomada por
desconsideração.
Gálio, porém, muito calmo, respondeu fazendo humorismo:
— Suponho não estar aqui para dar satisfação de meus atos
pessoais e sim para atender aos imperativos da justiça. Mas,
em obediência ao código da fraternidade humana, declaro que,
a meu ver, todo administrador ou juiz em causa alheia deverá
reservar um ouvido para a acusação e outro para a defesa.
Enquanto os judeus franziam o sobrecenho extremamente
confundidos, os coríntios riam gostosamente. O próprio Paulo
achou muita graça na confissão do Procônsul, sem poder
disfarçar o sorriso bom que lhe iluminou repentinamente a
fisionomia.
Passado o incidente humorístico, Tito Justo aproximou-se e
falou sucintamente da missão do Apóstolo. Suas palavras
obedeciam a largo sopro de inspiração e beleza espiritual.
Júnio Gálio, ouvindo a história do convertido de Damasco,
dos lábios de um compatrício, mostrou-se muito impressionado
e comovido. De quando em vez, os gregos prorrompiam em
exclamações de aplauso e contentamento. Os israelitas
compreenderam que perdiam terreno de momento a momento.
Ao fim dos trabalhos, o chefe político da Acaia tomou a
palavra para concluir que não via crime algum no discípulo
do Evangelho; que os judeus deviam, antes de qualquer
acusação injusta, examinar a obra generosa da igreja de
Corinto, porquanto, em sua opinião, não havia agravo dos
princípios israelitas; que a só controvérsia de palavras não
justificava violências, concluindo pela frivolidade das
acusações e declarando não desejar a função de juiz em
assunto daquela natureza.
Cada conclusão formulada era ruidosamente aplaudida pelos
coríntios.
Quando Júnio Gálio declarou que Paulo devia considerar-se em
plena liberdade, os aplausos atingiram ao delírio. A
autoridade recomendou que a retirada se fizesse em ordem;
mas os gregos aguardaram a descida de Sóstenes, e quando
surgiu a figura solene do “mestre” atacaram sem piedade.
Estabelecido enorme tumulto na escada longa que separava o
Tribunal da via pública, Tito Justo acercou-se aflito do
Procônsul e pediu que interviesse. Gálio, entretanto,
continuando a preparar-se para regressar a casa, dirigiu a
Paulo um olhar de simpatia e acrescentou, calmamente:
— Não nos preocupemos. Os judeus estão muito habituados a
esses tumultos. Se eu, como juiz, resguardei um ouvido,
parece-me que Sóstenes deveria resguardar o corpo inteiro,
na qualidade de acusador.
E demandou o interior do edifício em atitude impassível. Foi
então que Paulo, surgindo no topo da escada, bradou:
— Irmãos, apaziguai-vos por amor ao Cristo!...
A exortação caiu em cheio sobre a turba numerosa e
tumultuária. O efeito foi imediato. Cessaram os rumores e os
impropérios. Os últimos contendores paralisaram os braços
inquietos. O convertido de Damasco acorreu pressuroso em
socorrer Sóstenes, cujo rosto sangrava. O acusador
implacável do dia foi conduzido à sua residência pelos
cristãos de Corinto, por atenderem aos apelos de Paulo, com
extremos cuidados.
Grandemente despeitados com o insucesso, os israelitas da
cidade maquinaram novas investidas, mas o Apóstolo, reunindo
a comunidade do Evangelho, declarou que desejava partir para
a Ásia, a fim de atender a insistentes chamados de João,
(João iniciou suas atividades na igreja mista de Éfeso,
muito cedo, embora não se desligasse de Jerusalém. Nota de
Emmanuel.) na fundação definitiva da igreja de Éfeso. Os
coríntios protestaram amistosamente, procurando retê-lo, mas
o ex-rabino expôs com firmeza a conveniência da viagem,
contando regressar muito breve. Todos os cooperadores da
igreja estavam desolados.
Principalmente Febe, notável colaboradora do seu esforço
apostólico em Corinto, não conseguia ocultar as lágrimas do
coração. O devotado discípulo de Jesus fez ver que a igreja
estava fundada, solicitando apenas a continuidade de atenção
e carinho dos companheiros. Não seria justo, a seu ver,
enfrentar novamente a ira dos israelitas, parecendo-lhe
razoável esperar o concurso do tempo para as realizações
necessárias.
Dentro de um mês, partiu em demanda de Éfeso, levando
consigo Áquila e a esposa, que se dispuseram a acompanhá-lo.
Despedindo-se da cidade, teve o pensamento voltado para o
pretérito, para as esperanças de ventura terrestre que os
anos haviam absorvido. Visitou os sítios onde Abigail e o
irmão havia brincado na infância, saturou-se de recordações
suaves e inesquecíveis e, no porto de Cencreia, lembrando a
partida da noiva bem-amada, raspou a cabeça, renovando os
votos de fidelidade eterna, consoante os costumes populares
da época.
Depois de viagem difícil, repleta de incidentes penosos,
Paulo e os companheiros chegaram ao ponto destinado.
A igreja de Éfeso enfrentava problemas torturantes. João
lutava seriamente para que o esforço evangélico não
degenerasse em polêmicas estéreis. Mas os tecelões chegados
de Corinto deram-lhe mão forte na cooperação imprescindível.
Em meio das acaloradas discussões que houve de manter com os
judeus, na sinagoga, o ex-rabino não olvidou certas
realizações sentimentais que almejava desde muito. Com
delicadeza extrema, visitou a Mãe de Jesus na sua casinha
singela, que dava para o mar. Impressionou-se fortemente com
a humildade daquela criatura simples e amorosa, que mais se
assemelhava a um anjo vestido de mulher. Paulo de Tarso
interessou-se pelas suas narrativas caridosas, a respeito da
noite do nascimento do Mestre, gravou no íntimo suas divinas
impressões e prometeu voltar na primeira oportunidade, a fim
de recolher os dados indispensáveis ao Evangelho que
pretendia escrever para os cristãos do futuro. Maria
colocou-se à sua disposição, com grande alegria.
O Apóstolo, entretanto, depois de cooperar algum tempo na
consolidação da igreja, considerando que Áquila e Prisca se
encontravam bem instalados e satisfeitos, resolveu partir,
buscando novos rumos. Debalde os irmãos procuraram
dissuadi-lo, rogando ficasse na cidade por mais tempo.
Prometendo regressar logo que as circunstâncias permitissem,
alegou que precisava ir a Jerusalém, levar a Simão Pedro o
fruto da coleta de anos consecutivos nos lugares que
percorrera. O filho de Zebedeu, que conhecia o projeto
antigo, deu-lhe razão para empreender a viagem sem mais
demora.
Como já se encontrassem novamente a seu lado, Silas e
Timóteo fizeram-lhe companhia nessa nova excursão.
Através de enormes dificuldades, mas pregando sempre a Boa
Nova com verdadeiro entusiasmo devocional, chegaram ao porto
de Cesareia, onde permaneceram alguns dias, instruindo os
interessados no conhecimento do Evangelho. Dali,
dirigiram-se a pé para Jerusalém, distribuindo consolações e
curas, ao longo dos caminhos. Chegados à capital do
judaísmo, o ex-pescador de Cafarnaum recebeu-os com júbilos
inexcedíveis. Simão Pedro apresentava grande abatimento
físico, em virtude das lutas terríveis e incessantes para
que a igreja suportasse, sem maiores abalos, as tempestades
primitivas; seus olhos, porém, guardavam a mesma serenidade
característica dos discípulos fiéis.
Paulo entregou-lhe, alegremente, a pequena fortuna, cuja
aplicação iria assegurar maior independência à instituição
de Jerusalém, para o desenvolvimento justo da obra do
Cristo.
Pedro agradeceu comovido e abraçou-o com lágrimas. Os
pobres, os órfãos, os velhos desamparados e os
convalescentes teriam doravante uma escola abençoada de
trabalho santificante.
Pedro notou que o ex-rabino também estava alquebrado de
corpo. Muito magro, muito pálido, cabelos já grisalhos, tudo
nele denunciava a intensidade das lutas empenhadas. As mãos
e o rosto estavam cheios de cicatrizes.
O ex-pescador, diante do que via, falou-lhe com entusiasmo
das suas epístolas, que se espalhavam por todas as igrejas,
lidas com avidez; profundamente experimentado em problemas
de ordem espiritual, alegou a convicção de que aquelas
cartas provinham de uma inspiração direta do Mestre Divino,
observação que Paulo de Tarso recebeu comovidíssimo, dada a
espontaneidade do companheiro. Além disso – acrescentava
Simão prazerosamente, – não podia haver elemento educativo
de tão elevado alcance quanto aquele. Conhecia cristãos da
Palestina que guardavam cópias numerosas da mensagem aos
tessalonicenses. As igrejas de Jope e Antipátris, por
exemplo, comentavam as epístolas, frase por frase.
O ex-rabino sentiu imenso conforto para prosseguir na luta
redentora.
Após alguns dias, demandou Antioquia, junto dos discípulos.
Descansou algum tempo junto dos companheiros bem-amados, mas
sua poderosa capacidade de trabalho não permitia maiores
intermitências de repouso.
Nessa época, não passava semana que não recebesse
representações de diversas igrejas, dos pontos mais
distantes. Antioquia de Pisídia sumariava dificuldades;
Icônio reclamava novas visitas; Bereia rogava providências.
Corinto carecia esclarecimentos. Colossas insistia por sua
presença breve.
Paulo de Tarso, valendo-se dos companheiros da ocasião,
enviava-lhes letras novas, a todos atendendo com o maior
carinho. Em tais circunstâncias, nunca mais o Apóstolo dos
gentios esteve só na tarefa evangelizadora. Sempre assistido
por discípulos numerosos, suas epístolas, que ficariam para
os cristãos do futuro, estão, em sua maioria, repletas de
referências pessoais, suaves e doces.
Terminando o estágio em Antioquia, voltou ao berço natal, aí
falando das verdades eternas e conseguindo despertar grande
número de tarsenses para as realidades do Evangelho.
Em seguida, internou-se de novo pelas alturas do Tauro,
visitou as comunidades de toda a Galácia e Frígia,
levantando o ânimo dos companheiros de fé, no que empregou
elevada percentagem de tempo. Nesse afã incansável e
incessante, conseguiu arregimentar novos discípulos para
Jesus, distribuindo grandes benefícios em todos os recantos
iluminados pela sua palavra edificante, porque também
ilustrada em fatos.
Em toda parte, lutas sem tréguas, alegrias e dores,
angústias e amarguras do mundo, que não chegavam a lhe
arrefecer as esperanças nas promessas de Jesus. De um lado,
eram os israelitas rigorosos, inimigos ferrenhos e
declarados do Salvador; do outro, os cristãos indecisos,
vacilando entre as conveniências pessoais e as falsas
interpretações, O missionário tarsense, no entanto,
conhecendo que o discípulo sincero terá de experimentar as
sensações da “porta estreita” todos os dias, nunca se deixou
empolgar pelo desânimo, renovando a cada hora o propósito de
tudo suportar, agir, fazer e edificar pelo Evangelho,
inteiramente entregue a Jesus Cristo.
Vencidas as lutas indefesas, deliberou regressar a Éfeso,
interessado na feitura do Evangelho decalcado nas
recordações de Maria.
Não mais encontrou Áquila e Prisca, retornados a Corinto em
companhia de um tal Apolo, que se notabilizara por sua
cultura, entre os recém-convertidos. Embora pretendesse
apenas manter algumas conversações mais longas com a filha
inesquecível de Nazaré, foi compelido a enfrentar a luta
séria com os cooperadores de João. A sinagoga conseguira
grande ascendente político sobre a igreja da cidade, que
ameaçava soçobrar. O ex-rabino percebeu o perigo e aceitou a
luta, sem reservas. Durante três meses discutiu na sinagoga,
em todas as reuniões. A cidade, que se mantinha em dúvidas
atrozes, parecia alcançar uma compreensão mais elevada e
mais rica de luzes. Multiplicando as curas maravilhosas,
Paulo, um dia, tendo imposto as mãos sobre alguns doentes,
foi rodeado por claridade indefinível do mundo espiritual.
As vozes santificadas, que se manifestavam em Jerusalém e
Antioquia, falaram na praça pública.
Esse fato teve enorme repercussão e deu maior autoridade aos
argumentos do Apóstolo, em contradita aos judeus.
Em Éfeso não se falava de outra coisa. O ex-rabino fora
elevado ao apogeu da consideração, de um dia para outro. Os
israelitas perdiam terreno em toda a linha. O tecelão
valeu-se do ensejo para lançar raízes evangélicas mais
fundas nos corações. Secundando o esforço de João, procurou
instalar na igreja os serviços de assistência aos mais
desfavorecidos da fortuna. A instituição enriquecia-se de
valores espirituais. Compreendendo a importância da
organização de Éfeso para toda a Ásia, Paulo de Tarso
deliberou prolongar, ali, a sua permanência. Vieram
discípulos da Macedônia. Áquila e a esposa tinham regressado
de Corinto; Timóteo, Silas e Tito cooperavam ativamente
visitando as fundações cristãs já estabelecidas. Assim
vigorosamente auxiliado, o generoso Apóstolo multiplicava as
curas e os benefícios em nome do Senhor.
Trabalhando pela vitória dos princípios do Mestre, fez que
muitos abandonassem crendices e superstições perigosas, para
se entregarem aos braços amorosos do Cristo.
Esse ritmo de trabalho fecundo perdurava há mais de dois
anos, quando surgiu um acontecimento de vasta repercussão
entre os Efésios.
A cidade votava um culto especial à deusa Diana. Pequeninas
estátuas, imagens fragmentárias da divindade mitológica
surgiam em todos os cantos, bem como nos adornos da
população. A pregação de Paulo, entretanto, modificara as
preferências do povo. Quase ninguém se interessava mais pela
aquisição das imagens da deusa. Esse culto, porém, era tão
lucrativo que os ourives da época, chefiados por um artífice
de nome Demétrio, iniciaram veemente protesto perante as
autoridades competentes.
Os prejudicados alegavam que a campanha do Apóstolo
aniquilava as melhores tradições populares da cidade notável
e florescente. O culto a Diana vinha dos antepassados e
merecia mais respeito; além disso, toda uma classe de homens
válidos ficava sem trabalho.
Demétrio movimentou-se. Os ourives reuniram-se e pagaram
amotinadores. Sabiam que Paulo falaria no teatro, naquela
mesma noite que sucedeu às combinações definitivas. Pagos
pelos artífices, os maliciosos começaram a espalhar boatos
entre os mais crédulos.
Insinuavam que o ex-rabino preparava-se para arrombar o
templo de Diana, a fim de queimar os objetos do Culto.
Acrescentavam que a malta iconoclasta sairia do teatro para
executar o projeto Sinistro. Irritaram-se os ânimos. O plano
de Demétrio calava fundo na imaginação dos mais simplórios.
Ao entardecer, grande massa popular postou-se na vasta
praça, em atitude expectante. A noite fechou, a multidão
crescia sempre. Ao acenderem-se no teatro as primeiras
luzes, os ourives acreditaram que o Apóstolo lá estivesse.
Com imprecações e gestos ameaçadores, a multidão avançou em
furiosa grita, mas somente Gaio e Aristarco, irmãos da
Macedônia, ali se encontravam, preparando o ambiente das
pregações da noite. Ambos foram presos pelos exaltados.
Verificando a ausência do ex-rabino, a massa inconsciente
encaminhou-se para a tenda de Áquila e Prisca. Paulo, no
entanto, lá não estava.
A oficina singela do casal cristão foi totalmente
desmantelada a golpes impiedosos. Teares quebrados, peças de
couro atiradas à rua, furiosamente.
Por fim, o casal foi preso, sob os apupos da turba
exacerbada.
A notícia espalhou-se com extrema rapidez. A coluna
revolucionária arrebanhava aderentes em todas as ruas, dado
o seu caráter festivo. Debalde acorreram soldados para
conter a multidão. Os maiores esforços tornavam-se inúteis.
De vez em quando Demétrio assomava a uma tribuna improvisada
e dirigia-se ao povo envenenando os ânimos.
Recolhido à residência de um amigo, Paulo de Tarso
inteirou-se dos fatos graves que se desenrolavam por sua
causa. Seu primeiro impulso foi seguir logo ao encontro dos
companheiros capturados, para libertá-los, mas os irmãos
impediram-lhe a saída. Essa noite dolorosa ficaria
inesquecível em sua vida.
Ao longe, ouvia-se a gritaria estentórica: “Grande é a Diana
de Éfeso”! “Grande é a Diana de Éfeso!” Mas o Apóstolo,
constrangido à força, pelos companheiros, houve que desistir
de esclarecer a massa popular, na praça pública.
Só muito tarde, o escrivão da cidade conseguiu falar ao
povo, concitando-o a levar a causa a juízo, abandonando o
louco propósito de fazer justiça pelas próprias mãos.
A assembleia dispersou-se, pouco antes da meia-noite, mas só
atendeu à autoridade depois de ver Gaio, Aristarco e o casal
de tecelões trancafiados na enxovia.
No dia seguinte, o generoso Apóstolo dos gentios foi, em
companhia de João, observar os destroços da tenda de Áquila.
Tudo em frangalhos na via pública. Paulo refletiu com imensa
mágoa nos amigos presos e falou ao filho de Zebedeu, com os
olhos mareados de lágrimas.
— Como tudo isto me contrista! Áquila e Prisca têm sido meus
companheiros de luta, desde as primeiras horas da minha
conversão a Jesus.
Por eles devia eu sofrer tudo, pelo muito amor que lhes
devo; assim, não julgo razoável que sofram por minha causa.
— A causa é do Cristo! – Respondeu João com acerto.
O ex-rabino pareceu conformar-se com a observação e
sentenciou: – Sim, o Mestre nos consolará.
E, depois de concentrar-se longamente, murmurou:
— Estamos em lutas incessantes na Ásia, há mais de vinte
anos... Agora, preciso retirar-me da Jônia, sem demora. Os
golpes vieram de todos os lados.
Pelo bem que desejamos, fazem-nos todo o mal que podem. Ai
de nós se não trouxéssemos as marcas do Cristo Jesus!
O pregador valoroso, tão desassombrado e resistente,
chorava! João percebeu, contemplou-lhe os cabelos
prematuramente encanecidos e procurou desviar o assunto:
— Não te vás por enquanto – disse solícito, – ainda és
necessário aqui.
— Impossível – respondeu com tristeza, – a revolução dos
artífices continuaria. Todos os irmãos pagariam caro a minha
companhia.
— Mas não pretendes escrever o Evangelho, consoante as
recordações de Maria? – perguntou melifluamente o filho de
Zebedeu.
— É verdade – confirmou o ex-rabino com serenidade amarga, –
entretanto, é forçoso partir. Caso não mais volte, enviarei
um companheiro para colher as devidas anotações.
— Contudo, poderias ficar conosco.
O tecelão de Tarso fitou o companheiro com tranquilidade e
explicou, em atitude humilde:
— Talvez estejas enganado. Nasci para uma luta sem tréguas,
que deverá prevalecer até ao fim dos meus dias. Antes de
encontrar as luzes do Evangelho, errei criminosamente,
embora com o sincero desejo de servir a Deus. Fracassei,
muito cedo, na esperança de um lar.
Tornei-me odiado de todos, até que o Senhor se compadecesse
de minha situação miserável, chamando-me às portas de
Damasco. Então, estabeleceu-se um abismo entre minha alma e
o passado. Abandonado pelos amigos da infância, eu tive de
procurar o deserto e recomeçar a vida. Da tribuna do
Sinédrio, regressei ao tear pesado e rústico. Quando voltei
a Jerusalém, o judaísmo considerou-me doente e mentiroso. Em
Tarso experimentei o abandono dos parentes mais caros. Em
seguida, recomecei em Antioquia a tarefa que me conduzia ao
serviço de Deus. Desde então, trabalhei sem descanso, porque
muitos séculos de serviço não dariam para pagar quanto devo
ao Cristianismo.
E sai às pregações. Peregrinei por diversas cidades, visitei
centenas de aldeias, mas de nenhum lugar me retirei sem luta
áspera. Sempre saí pela porta do cárcere, pelo
apedrejamento, pelo golpe dos açoites. Nas viagens por mar,
já experimentei o naufrágio mais de uma vez; nem mesmo no
bojo estreito de uma embarcação, tenho podido evitar a luta.
Mas Jesus me tem ensinado a sabedoria da paz interior, em
perfeita comunhão de seu amor.
Essas palavras eram ditas em tom de humildade tão sincera
que o filho de Zebedeu não conseguia esconder sua admiração.
— És feliz, Paulo – disse ele convicto, – porque entendeste
o programa de Jesus a teu respeito. Não te doa a recordação
dos martírios sofridos, porque o Mestre foi compelido a
retirar-se do mundo pelos tormentos da cruz.
Regozijemo-nos com as prisões e sofrimentos.
Se o Cristo partiu sangrando em feridas tão dolorosas, não
temos o direito de acompanhá-lo sem cicatrizes...
O Apóstolo dos gentios prestou enorme atenção a essas
palavras consoladoras e murmurou:
— É verdade!...
— Além do mais – acrescentou o companheiro emocionado, –
devemos contar com calvários numerosos. Se o Cordeiro
Imaculado padeceu na cruz da ignomínia, de quantas cruzes
necessitaremos para atingir a redenção? Jesus veio ao mundo
por imensa misericórdia. Acenou-nos brandamente,
convocando-nos a uma vida melhor... Agora, meu amigo, como
os antepassados de Israel, que saíram do cativeiro do Egito
à custa de sacrifícios extremos, precisamos fugir da
escravidão dos pecados, violentando-nos a nós mesmos,
disciplinando o espírito , a fim de nos juntarmos ao Mestre,
correspondendo à sua imensa bondade.
Paulo meneou a cabeça, pensativo, e acentuou:
— Desde que o Senhor se dignou convocar-me ao serviço do
Evangelho, não tenho meditado noutra coisa.
Nesse ritmo cordial conversaram muito tempo, até que o
Apóstolo dos gentios concluiu mais confortado:
— O que de tudo concluo é que minha tarefa no Oriente está
terminada. O espírito de serviço exige que me vá além...
Tenho a esperança de pregar o Evangelho do Reino, em Roma,
na Espanha e entre os povos menos conhecidos...
Seu olhar estava cheio de visões gloriosas e João murmurou
humildemente:
— Deus abençoará os teus caminhos.
Demorou-se ainda em Éfeso, movimentando os melhores empenhos
a favor dos prisioneiros. Conseguida a liberdade dos
detentos, resolveu deixar a Jônia dentro do menor prazo
possível. Estava, porém, profundamente abatido.
Dir-se-ia que as últimas lutas haviam cooperado no
desmantelo de suas melhores energias. Acompanhado de alguns
amigos dirigiu-se para Trôade, onde se demorou alguns dias,
edificando os irmãos na fé. A fadiga, entretanto,
acentuava-se cada vez mais. As preocupações enervaram-no.
Experimentava no íntimo profunda desolação, que a insônia
agravava dia a dia. Paulo, que nunca esquecera a ternura dos
irmãos de Filipes, deliberou, então, procurar ali um abrigo,
ansioso de repousar alguns momentos. O Apóstolo foi acolhido
com inequívocas provas de carinho e consideração. As
crianças da instituição desdobraram-se em demonstrações de
afetuosa ternura. Outra agradável surpresa ali o esperava:
Lucas encontrava-se acidentalmente na cidade e foi
abraçá-lo. Esse encontro reanimou-lhe o ânimo abatido.
Avistando-se com o amigo, o médico alarmou-se. Paulo
pareceu-lhe extremamente debilitado, triste, não obstante a
fé inabalável que lhe nutria o coração e transbordava dos
lábios. Explicou que estivera doente, que muito sofrera nas
últimas pregações de Éfeso, que estava sozinho em Filipes,
depois do regresso de alguns amigos que o haviam
acompanhado, que os colaboradores mais fiéis haviam partido
para Corinto, onde o aguardavam.
Muito surpreendido, Lucas tudo ouviu silencioso e perguntou:
— Quando partirás?
— Pretendo aqui ficar duas semanas.
E depois de vaguear os olhos na paisagem, concluiu em tom
quase amargo:
— Aliás, meu caro Lucas, eu julgo ser esta a última vez que
descanso em Filipes...
— Mas, por quê? Não há motivos para pressentimentos tão
tristes.
Paulo notou a preocupação do amigo e apressou-se a
desfazer-lhe as primeiras impressões:
— Suponho que terei de partir para o Ocidente – esclareceu
com um sorriso.
— Muito bem! – respondeu Lucas reanimado. – Vou ultimar os
assuntos que aqui me trouxeram e irei contigo a Corinto.
O Apóstolo alegrou-se. Rejubilava-se com a presença de um
companheiro dos mais dedicados. Lucas também estava
satisfeito com a possibilidade de assisti-lo na viagem. Com
grande esforço procurava dissimular a penosa impressão que a
saúde do Apóstolo lhe causara. Magríssimo, rosto pálido,
olhos encovados, o ex-rabino dava a impressão de profunda
miséria orgânica. O médico, no entanto, fez o possível por
ocultar suas dolorosas conjeturas.
Como de hábito, Paulo de Tarso, durante a viagem até
Corinto, falou do projeto de chegar a Roma, para levar à
capital do Império a mensagem do amor do Cristo Jesus. A
companhia de Lucas, a mudança das paisagens revigoravam-lhe
as forças físicas. O próprio médico estava surpreendido com
a reação natural daquele homem de vontade poderosa.
Pelo caminho, através das pregações ocasionais de um longo
itinerário, juntaram-se-lhes alguns companheiros mais
devotados.
Novamente em Corinto, o ex-rabino ratificou as suas
epístolas, reorganizou amorosamente os quadros de serviços
da igreja e, no círculo dos mais íntimos, não falava de
outra coisa senão do grandioso projeto de visitar Roma, no
intuito de auxiliar os cristãos, já existentes na cidade dos
Césares, a estabelecerem instituições semelhantes às de
Jerusalém, de Antioquia, de Corinto e outros pontos mais
importantes do Oriente. Nesse meio tempo, readquiriu as
energias latentes do organismo debilitado. Desdobrava-se no
plano, coordenando ideias e mais ideias do programa
colimado, na imperial metrópole. Aventou numerosas
providências. Pensou em preparar sua chegada, fazendo-a
preceder de carta na qual recapitulasse a doutrina
consoladora do Evangelho e nomeasse, com saudações
afetuosas, todos os irmãos do seu conhecimento no ambiente
romano. Áquila e Prisca tinham voltado de Éfeso para a
capital do Império, no intuito de recomeçar a vida. Seriam
auxiliares diletos. Para esse fim, Paulo empregou alguns
dias na redação do célebre documento, concluindo-o com uma
carga de saudações particulares e extensas. Foi aí que se
verificou um episódio escassamente conhecido pelos
seguidores do Cristianismo. Considerando que todos os irmãos
e pregadores eram criaturas excessivamente ocupadas nos mais
variados misteres e que Paulo custaria a encontrar portador
para a missiva famosa, a irmã de nome Febe, grande
cooperadora do Apóstolo dos gentios, no porto de Cencreia,
comunicou-lhe que teria de ir a Roma, em visita a parentes,
e se oferecia, de bom grado, a levar o documento destinado a
iluminar a cristandade póstera.
Paulo exultou de contentamento, aliás, extensivo a toda a
confraria. A epístola foi terminada com enorme entusiasmo e
júbilo. Tão logo partiu a emissária heroica, o ex-rabino
reuniu a pequena comunidade dos discípulos diletos para
assentar as bases definitivas da grande excursão. Começou
explicando que o inverno estava a começar, mas, tão depressa
voltasse o tempo de navegação, embarcaria para Roma. Depois
de justificar a excelência do plano, visto já estar
implantado o Evangelho nas regiões mais importantes do
Oriente, pediu aos amigos íntimos lhe dissessem como e até
que ponto lhes seria possível secundá-lo.
Timóteo alegou que Eunice não podia, no momento, dispensar
seus cuidados, dado o falecimento da veneranda Loide.
Segundo expôs, precisava regressar a Tessalônica e Aristarco
o secundou nesse parecer. Sópatro falou de suas dificuldades
em Bereia. Gaio pretendia partir para Derbe no dia seguinte.
Tíquico e Trófimo alegaram a necessidade urgente de irem a
Éfeso, de onde pretendiam mudar para Antioquia, berço natal
de ambos.
Quase todos os demais estavam impossibilitados de participar
da excursão. Apenas Silas afirmou que poderia fazê-lo, fosse
como fosse.
Chegada, porém, a vez de Lucas, que se mantivera até então
calado, disse ele estar pronto e resolvido a compartilhar
dos trabalhos e alegrias da missão de Roma. De toda a
assembleia, dois apenas poderiam acompanhá-lo.
Paulo, todavia, mostrou-se conformado e satisfeitíssimo.
Bastavam-lhe Silas e Lucas, habituados aos seus métodos de
propaganda e com os mais belos títulos de trabalho e
dedicação à causa de Jesus.
Tudo corria às maravilhas, o plano combinado auspiciava
grandes esperanças, quando, no dia imediato, um peregrino,
pobre e triste, surgia em Corinto, desembarcado de uma das
últimas embarcações chegadas ao Peloponeso para a ancoragem
longa do inverno. Vinha de Jerusalém, bateu às portas da
igreja e procurou instantemente por Paulo, a fim de
entregar-lhe uma carta confidencial. Defrontando o singular
mensageiro, o Após tolo surpreendeu-se.
Tratava-se do irmão Abdias, a quem Tiago incumbira de
entregar a carta ao ex-rabino. Este, tomou-a e desdobrou-a
um tanto nervoso.
À medida que ia lendo, mais pálido se fazia.
Tratava-se de um documento particular, da mais alta
importância. O filho de Alfeu comunicava ao ex-doutor da Lei
os dolorosos acontecimentos que se desenrolavam em
Jerusalém. Tiago avisava que a igreja sofria nova e
violentíssima perseguição do Sinédrio. Os rabinos haviam
decidido reatar o fio das torturas infligidas aos cristãos.
Simão Pedro fora banido da cidade. Grande número de
confrades eram alvo de novas perseguições e martírios.
A igreja fora assaltada por fariseus sem consciência e só
não sofrera depredações de maior vulto em virtude do
respeito que o povo lhe consagrava.
Dentro de suas atitudes conciliatórias, conseguira aplacar
os ânimos mais exaltados, mas o Sinédrio alegava a
necessidade de um entendimento com Paulo, a fim de conceder
tréguas. A ação do Apóstolo dos gentios, incessante e ativa,
conseguira lançar as sementes de Jesus em toda parte. De
todos os lados, o Sinédrio recebia consultas, reclamações,
notícias alarmantes. As sinagogas iam ficando desertas. Tal
situação requeria esclarecimentos.
Baseado nesses pretextos, o maior Tribunal dos Israelitas
desfechara tremendos ataques contra a organização cristã em
Jerusalém. Tiago relatava os acontecimentos com grande
serenidade e rogava a Paulo de Tarso não abandonasse a
igreja naquela hora de lutas acerbas. Ele, Tiago, estava
envelhecido e cansado. Sem a colaboração de Pedro, temia
sucumbir. Pedia, então, ao convertido de Damasco fosse a
Jerusalém, afrontasse as perseguições por amor a Jesus, para
que os doutores do Sinédrio e do Templo ficassem
suficientemente esclarecidos. Acreditava que lhe não poderia
advir nenhum mal, porquanto o ex-rabino saberia melhor
dirigir-se às autoridades religiosas para que a causa
lograsse justo êxito. A viagem a Jerusalém teria somente um
objetivo: esclarecer o Sinédrio, como se fazia
indispensável.
Depois disso, que Tiago considerava de suma importância para
salvar a igreja da capital do judaísmo, Paulo voltaria
tranquilo e feliz para onde lhe aprouvesse.
A mensagem estava crivada de exclamações amargas e de apelos
veementes.
Paulo de Tarso terminou a leitura e lembrou o passado. Com
que direito lhe fazia o Apóstolo Galileu semelhante pedido?
Tiago sempre se colocara em posição antagônica. Em que
pesasse à sua índole impetuosa, franca, inquebrantável, não
podia odiá-lo; entretanto, não se sentia perfeitamente afim
com o filho de Alfeu, a ponto de se tornar seu companheiro
adequado em lance tão difícil. Procurou um recanto solitário
da igreja, sentou e meditou.
Experimentando certas relutâncias íntimas em renunciar à
partida para Roma, não obstante o projeto formulado em Éfeso
nas vésperas da revolução dos ourives, de só visitar a
capital do Império depois de nova excursão a Jerusalém,
procurou consultar o Evangelho, por desfazer tão grande
perplexidade. Desenrolou os pergaminhos e, abrindo-os ao
acaso, leu a advertência das anotações de Levi: —
“Concilia-te depressa com o teu adversário”. (Mateus,
capítulo 5, versículo 25. Nota de Emmanuel.)
Diante dessas palavras judiciosas, não dissimulou o
assombro, recebendo-as como um alvitre divino para que não
desprezasse a oportunidade de estabelecer com o Apóstolo
Galileu os laços sacrossantos da mais pura fraternidade. Não
era justo alimentar caprichos pessoais na obra do Cristo. No
feito em perspectiva, não era Tiago o interessado na sua
presença em Jerusalém: era a igreja, era a sagrada
instituição que se tornara tutora dos pobres e dos
infelizes. Provocar as iras farisaicas sobre ela, não seria
lançar uma tempestade de imprevisíveis consequências para os
necessitados e desfavorecidos do mundo? Recordou a juventude
e a longa perseguição que chegara a mover contra os
discípulos do Crucificado.
Teve a nítida recordação do dia em que efetuara a prisão de
Pedro entre os aleijados e os enfermos que o cercavam,
soluçantes.
Lembrou que Jesus o chamara para o divino serviço, às portas
de Damasco; que, desde então, sofrera e pregara,
sacrificando-se a si mesmo e ensinando as verdades eternas,
organizando igrejas amorosas e acolhedoras, onde os “filhos
do Calvário” tivessem consolo e abrigo, de conformidade com
as exortações de Abigail; e assim chegou à conclusão de que
devia aos sofredores de Jerusalém alguma coisa que era
preciso restituir. Em outros tempos, fomentara a confusão,
privara-os da assistência carinhosa de Estevão, iniciara
banimentos impiedosos. Muitos doentes foram obrigados
renegar o Cristo em sua presença, na cidade dos rabinos. Não
seria aquela a ocasião adequada para resgatar a dívida
enorme? Paulo de Tarso iluminado agora pelas mais santas
experiências da vida, com o Mestre Amado, levantou-se e a
passos resolutos dirigiu-se ao portador que o esperava em
atitude humilde:
— Amigo, vem descansar, que bem precisas. Levarás a resposta
em breves dias.
— Ireis a Jerusalém? – interrogou Abdias com certa
ansiedade, como se conhecesse a importância do assunto.
— Sim – respondeu o Apóstolo.
O emissário foi tratado com todo o carinho. Paulo procurou
ouvir-lhe as impressões pessoais sobre a perseguição
novamente desfechada contra os discípulos do Cristo; buscou
firmar ideias sobre o que competia fazer, mas, não conseguia
furtar-se a certas preocupações imperiosas e aparentemente
insolúveis. Como proceder em Jerusalém? Que espécie de
esclarecimentos deveria prestar aos rabinos do Sinédrio?
Qual o testemunho que competia dar?
Grandemente apreensivo, adormeceu aquela noite, depois de
pensamentos torturantes e exaustivos. Sonhou, porém, que se
encontrava em longa e clara estrada tonalizada de
maravilhosos clarões opalinos. Não dera muitos passos,
quando foi abraçado por duas entidades carinhosas e amigas.
Eram Jeziel e Abigail, que o enlaçavam com indizível
carinho. Extasiado, não pôde murmurar uma palavra. Abigail
agradeceu-lhe a ternura das lembranças comovidas, em
Corinto, falou-lhe dos júbilos do seu coração e rematou com
alegria:
— Não te inquietes, Paulo. É preciso ir a Jerusalém para o
testemunho imprescindível.
No íntimo, o Apóstolo reconsiderava o plano de excursão a
Roma, no seu nobre intuito de ensinar as verdades cristãs na
sede do Império. Bastou pensá-lo, para que a voz querida se
fizesse ouvir novamente, em timbre familiar:
Tranquiliza-te, porque irás a Roma cumprir um sublime dever;
não, porém, como queres, mas de acordo com os desígnios do
Altíssimo...
E logo esboçando angelical sorriso:
— Depois, então, será a nossa união eternal em Jesus Cristo,
para a divina tarefa do amor e da verdade à luz do
Evangelho.
Aquelas palavras caíram-lhe na alma com a força de uma
profunda revelação. O Apóstolo dos gentios não saberia
explicar o que se passou no âmago do seu Espírito. Sentia,
simultaneamente, dor e prazer, preocupação e esperança. A
surpresa pareceu impedir o seguimento da visão inesquecível.
Jeziel e a irmã, endereçando-lhe gestos amorosos, pareciam
desaparecer numa faixa de névoas transparentes. Acordou em
sobressalto e concluiu, desde logo, que devia preparar-se
para os derradeiros testemunhos.
No dia seguinte, convocou uma reunião dos amigos e
companheiros de Corinto. Mandou que Abdias explicasse, de
viva voz, a situação de Jerusalém e expôs o plano de passar
pela capital do judaísmo antes de seguir para Roma.
Todos compreenderam os sagrados imperativos da nova
resolução. Lucas, todavia, adiantou-se e perguntou:
— De acordo com a modificação do projeto, quando pretendes
partir?
— Dentro de poucos dias – respondeu resoluto.
— Impossível, – respondeu o médico, – não poderemos
concordar com a tua viagem, a pé, a Jerusalém; além de tudo,
precisas descansar alguns dias depois de tantas lutas.
O ex-rabino refletiu um momento e concordou:
— Tens razão. Ficarei em Corinto algumas semanas; no
entanto, pretendo fazer a viagem por etapas, no intuito de
visitar as comunidades cristãs, pois tenho a intuição de
minha partida breve, para Roma, e de que não mais verei as
igrejas amadas, em corpo mortal...
Essas palavras eram pronunciadas em tom melancólico. Lucas e
os demais companheiros ficaram silenciosos e o Apóstolo
continuou:
— Aproveitarei o tempo instruindo Apolo sobre os trabalhos
indispensáveis do Evangelho, nas diversas regiões da Acaia.
Em seguida, desfazendo a impressão de suas afirmativas menos
animadoras, no tocante à viagem a Roma, incutiu novo alento
ao auditório, emitindo conceitos otimistas e esperançosos.
Traçou vasto programa para os discípulos, recomendando
atividades à maioria, entre as comunidades de toda a
Macedônia, a fim de que todos os irmãos estivessem a postos
para as suas despedidas; outros foram despachados para a
Ásia com idênticas instruções.
Decorridos três meses de permanência em Corinto, novas
perseguições dos judeus foram desfechadas contra a
instituição. A sinagoga principal da Acaia havia recebido
secretas notificações de Jerusalém. Nada menos que a
eliminação do Apóstolo, a qualquer preço.
Paulo percebeu a insídia e despediu-se prudentemente dos
coríntios, partindo em companhia de Lucas e Silas, a pé,
para visitar as igrejas de Macedônia.
Por toda a parte pregou a palavra do Evangelho, convencido
de que era a última vez que fixava aquelas paisagens.
Despedia-se, comovido, dos velhos amigos de outros tempos.
Fazia recomendações, no tom de quem ia partir para sempre.
Mulheres reconhecidas, anciães e crianças acorriam a
beijar-lhe as mãos com enternecimento. Chegando a Filipes,
cuja comunidade fraternal lhe falava mais intimamente ao
coração, sua palavra suscitou torrentes de lágrimas. A
igreja amorosa, que vicejava para Jesus à margem do Gangas,
consagrava ao Apóstolo dos gentios singular afeição. Lídia e
seus numerosos auxiliares, num impulso muito humano, queriam
retê-lo em sua companhia, insistiam para que não
prosseguisse, receosos das perseguições do farisaísmo. E o
Apóstolo, sereno e confiante, acentuava:
— Não choreis, irmãos. Convicto estou do que me compete
fazer e não devo esperar flores e dias felizes. Cumpre-me
aguardar o fim, na paz do Senhor Jesus. A existência humana
é de trabalho incessante e os derradeiros sofrimentos são a
coroa do testemunho.
Eram exortações cheias de esperanças e alegrias, por
confortar os mais tímidos e renovar a fé nos corações fracos
e sofredores.
Dando por terminada a tarefa nas zonas de Filipes. Paulo e
os companheiros navegaram com destino a Trôade. Nesta
cidade, o Apóstolo fez, com inexcedível êxito, a derradeira
pregação na sétima noite de sua chegada, verificando-se o
célebre incidente com o jovem Éutico, que caiu de uma janela
do terceiro andar do prédio em que se realizavam as práticas
evangélicas, sendo imediatamente socorrido pelo ex-rabino,
que o colheu semimorto e devolveu-lhe a vida em nome de
Jesus.
Em Trôade, outros confrades se reuniram à pequena caravana.
Atentos à recomendação de Paulo, partiram com Lucas e Silas
para Assôs, a fim de contratar a preço módico algum velho
barco de pescadores, porquanto o Apóstolo preferia viajar
desse modo entre as ilhas e portos numerosos, para
despedir-se dos amigos e irmãos que por ali mourejavam.
Assim aconteceu; e, enquanto os colaboradores tomavam
embarcação confortável, o ex-rabino palmilhou mais de vinte
quilômetros de estrada, só pelo prazer de abraçar os
continuadores humildes da sua grandiosa faina apostólica.
Adquirindo em seguida um barco muito ordinário, Paulo e os
discípulos prosseguiram a viagem para Jerusalém,
distribuindo consolações e socorros espirituais às
comunidades humildes e obscuras.
Em todas as praias eram gestos comovedores, adeuses
amargurosos. Em Éfeso, porém, a cena foi muito mais triste,
porque o Apóstolo solicitara o comparecimento dos anciães e
dos amigos, para falar-lhes particularmente ao coração. Não
desejava desembarcar, no intuito de prevenir novos conflitos
que lhe retardassem a marcha; mas, em testemunho de amor e
reconhecimento, a comunidade em peso lhe foi ao encontro,
sensibilizando-lhe a alma afetuosa.
A própria Maria, avançada em anos, acorrera de longe em
companhia de João e outros discípulos, para levar uma
palavra de amor ao paladino intimorato do Evangelho de seu
Filho. Os anciães receberam-no com ardorosas demonstrações
de amizade, as crianças ofereciam-lhe merendas e flores.
Extremamente comovido, Paulo de Tarso prelecionou em
despedida e, quando afirmou o pressentimento de que não mais
ali voltaria em corpo mortal, houve grandes explosões de
amargura entre os Efésios.
Como que tocados pela grandeza espiritual daquele momento,
quase todos se ajoelharam no tapete branco da praia e
pediram a Deus protegesse o devotado batalhador do Cristo.
Recebendo tão belas manifestações de carinho, o ex-rabino
abraçou, um por um, de olhos molhados. A maioria
atirava-se-lhe nos braços amorosos, soluçando, beijando-lhe
as mãos calosas e rudes. Abraçando, por último, à Mãe
Santíssima, Paulo tomou-lhe a destra e nela depôs um beijo
de ternura filial.
A viagem continuou com as mesmas características. Rodes,
Pátara, Tiro, Ptolemaida e, finalmente, Cesareia. Nesta
cidade, hospedaram-se em casa de Filipe, que ali fixara
residência desde muito tempo. O velho companheiro de lutas
informou Paulo dos fatos mínimos de Jerusalém, onde muito
esperavam do seu esforço pessoal para continuação da igreja.
Muito velhinho, o generoso Galileu falou da paisagem
espiritual da cidade dos rabinos, sem disfarçar os receios
que a situação lhe causava. Não somente isso constrangeu os
missionários. Ágabo, já conhecido de Paulo em Antioquia,
viera da Judeia e, em transe mediúnico na primeira reunião
íntima em casa de Filipe, formulou os mais dolorosos
vaticínios. As perspectivas eram tão sombrias que o próprio
Lucas chorou. Os amigos rogaram a Paulo de Tarso que não
partisse. Seria preferível a liberdade e a vida a benefício
da causa.
Ele, porém, sempre disposto e resoluto, referiu-se ao
Evangelho, comentou a passagem em que o Mestre profetizava
os martírios que o aguardavam na cruz e concluía
arrebatadamente:
— Por que chorarmos magoando o coração? Os seguidores do
Cristo devem estar prontos para tudo. Por mim, estou
disposto a dar testemunho, ainda que tenha de morrer em
Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus!
A impressão dos vaticínios de Ágabo ainda não havia
desaparecido, quando a casa de Filipe recebeu nova surpresa,
no dia imediato. Os cristãos de Cesárea levaram à presença
do ex-rabino um emissário de Tiago, de nome Mnason. O
Apóstolo Galileu soubera da chegada do convertido de Damasco
ao porto palestinense e dera-se pressa em se comunicar com
ele, mediante um portador devotado à causa comum. Mnason
explicou ao ex-rabino o motivo de sua presença, advertindo-o
dos perigos que arrostaria em Jerusalém, onde o ódio
sectarista esfervilhava e atingia as mais atrozes
perseguições. Dadas a exaltação e a vigilância do judaísmo,
Paulo não deveria procurar imediatamente a igreja, mas,
hospedar -se em casa dele, mensageiro, onde Tiago iria
falar-lhe em particular e assim resolverem o que melhor
conviesse aos sagrados interesses do Cristianismo. Isto
posto, o Apóstolo dos gentios seria recebido na instituição
de Jerusalém, para discutir com os atuais diretores os
destinos da casa.
Paulo achou muito razoáveis os cuidados e sugestões de
Tiago, mas preferiu seguir os alvitres verbais do portador.
Angustiosas sombras pairavam no espírito dos companheiros do
grande Apóstolo, quando a caravana, seguida de Mnason, se
deslocou de Cesareia para a capital do judaísmo. Como
sempre, Paulo de Tarso anunciou a Boa Nova nos Burgos mais
humildes.
Após alguns dias de marcha vagarosa, para que todos os
trabalhos apostólicos fossem suficientemente atendidos, os
discípulos do Evangelho transpuseram as portas da cidade dos
rabinos, assomados de graves preocupações.
Envelhecido e alquebrado, o Apóstolo dos gentios contemplou
os edifícios de Jerusalém, demorando o olhar na paisagem
árida e triste que lhe recordava os anos da mocidade
tumultuosa e morta para sempre. Elevou o pensamento a Jesus
e pediu-lhe que o inspirasse no cumprimento do sagrado
ministério.
Kardec e amigos
Jesus Cristo
Chico Xavier
..."Recordemos que o
Espiritismo nos solicita uma espécie permanente de
caridade:
a caridade de sua própria divulgação" Emmanuel
Abigail, doente
Emmanuel e Chico Xavier
Aparição de Jesus