O caipira e o índio
Irabuçu
Armelim
Guimarães
Primeira página do livro
Maurício" da edição de 1932,
impressa nas "officinas
graphicas do "Jornal do Brasil".
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Por ocasião de uma de suas viagens a
Congonhas, ocorre o seguinte episódio com Bernardo Guimarães, conforme relata
Antônio de Alcântara Machado (1901 -1935), em “O Fabuloso Bernardo Guimarães”,
cujo trecho foi publicado pelo “O Jornal”, Rio, 15 de maio de 1929:
“Três estudantes de São
Paulo, que iam passar as férias em Ouro Preto – conta Lúcio de Mendonça –
viram certa vez, em um racho de tropeiros, armado no lugar chamado Sarmenha, um
sujeito magro e barbudo, de esta ampla e olhar inteligente, porém mal vestido,
sem gravata. Acocorado num canto, a princípio como dormitando, depois fumando um
grande cigarro de palha que acendera ao isqueiro, o caboclo
começou a interromper uma discussão dos estudantes sobre literatura
francesa. Era Bernardo Guimarães. E é assim, sem gravata, mal vestido, sujo,
sonolento, fumando e bebendo que eu queria que o romancista se pusesse diante da
gente. Assim mesmo. E só deixando a vagabundagem caipira para figurar em grandes
pagodeiras. Mas, ainda nestas, calado e pensativo. Semeando tempestades, sem se
mexer. Apenas lá de vez em quando, um golinho de éter, para desmanchar o nós da
garganta, como ele falava”
A revista “Sesi”, de Belo
Horizonte, de julho de 1954, fantasiando um colóquio entre o escritor e os
estudantes, reproduz esse episódio de Saramenha, que me parece muito mal contado.
Alcântara Machado, e outros
cronistas do mesmo feitio, apanhavam no ar fatos que burlescamente adulteravam, a
seu talante, para fazer humorismo – não me refiro tão-somente a este caso --,
aproveitando para caricaturas bufas e encaixes de galhofas truanescas. O episódio
ocorrido com estudantes, segundo reza a tradição, assim aconteceu:
Numa paragem de tropeiros,
descansavam três cavaleiros, três moços acadêmicos que regressavam da Corte,
isto é, do Rio de Janeiro. Discutiam sobre uma frase latina, que um deles
atribuía a Cícero, e o contestador a Ovídio. A um canto, um caipira, de chapéu
de palha e barba desgrenhada, calado preparava o seu cigarro de palha, enquanto
ouvia os estudantes.
- Pois, olha, admiro-me de não
conheceres passagem tão sabida, de que até um catatuá como este que nos
assiste, seria capaz de dar notícias! – disse um deles como força de
expressão, para acentuar as suas convicções, supondo não ser entendido pelo
tabaréu.
-- Realmente, catatuá como este
que vos fala – retrucou o boêmio – sabe que essa frase não é nem de Cícero
nem de Ovídio, mas de Virgílio, de uma sabidíssima passagem da Eneida, que só
os jericos ignoram!
E retirou-se pachorrentamente o
poeta, declamando o trecho do poema em questão, no idioma original: Accipe nuc
insidias et crimine ab uno disce omnes”
Os moços entreolharam-se
atônitos. Só então reconheceram ser Bernardo Guimarães.
Já o romancista se sentia então
um velho alquebrado, porém, como dele disse Sílvio Romero, “nunca desmentiu
sua vocação”, embora batendo já às portas da velhice” – revelaria o
próprio Bernardo em “O Índio Afonso” – “a minha língua, quero dizer a
minha pena, é atormentada por um prurido invencível de contar histórias”.
Dando largas a esse “prurido de
contar histórias”, pôs-se o romancista a escrever como nunca, levado pela
inspiração que lhe não dava tréguas. Prefaciou o livro de versos de Aureliano
Lessa, então postumamente editado pelo irmão do vate diamantinense. Em seguida,
atira-se à composição de mais um movimentado romance.
Desta feita, a história contada
é a de “Maurício” ou “Os Paulistas em São João Del-Rei”. Esse romance,
editado por F. Brigiet em 1941 em volume de 444 páginas, e a “Rosaura, a
Enjeitada”, edição Garnier de 558 páginas,
são os dois mais volumosos trabalhos do prosador mineiro.
Maurício é o homem de
confiança do Capitão-Mor Digo Mendes, pai da bela Leonor. Como o fidalgo do
Fernando, sobrinho de Diogo Mendes, disputa a mesma moça, daí o romance.
A figura impressionante da
história é a do índio Irabuçu. Nem Victor Hugo imaginou criatura igual! E tão
fantástico quanto ele é a gruta labiríntica em que o bugre misterioso vivia.
Tal caverna, em seus múltiplos meandros, realmente existe, tal como pintou
Bernardo Guimarães. Os são-joanenses a conhecem por “Casa de Pedra”. O “Boletim”
nº 3 da Comissão Geográfica e Geológica do Estado de Minas faz descrição
técnica desse lugar de proporções mitológicas, num trabalho elaborado pelo Dr.
Álvaro da Silveira.
Também Lincoln de Sousa, na
revista “Carioca”, de 23 de setembro de 1941, publicou, com algumas boas
fotografias, uma reportagem sobre essa gruta, situada a nove quilômetros de São
João Del-Rei. Segundo esse cronista, lá estão gravados nomes de ilustres
visitantes, entre os quais o de D. Pedro II e do Conde d’Eu. Bilac, que também
a visitou, deixou escritas suas impressões sobre o local, de enormes salas e
infindos corredores e galerias, de sumidouros. Lá morava o Irabuçu,
de Bernardo.
Ariosto Espinheira, em “Viagens
Através do Brasil”, volume 4, nos oferece precisas linhas sobre a “Casa de
Pedra, na qual Bernardo Guimarães fez desenrolar as mais atraentes cenas do “Maurício”.
O enredo não tem epílogo nesse volume. O fim das façanhas o Irabuçu, de
Maurício e dos Destemidos são-joanenses, prometia-o Bernardo para um outro
romance, “O Bandido do Rio das Mortes”, obra que o autor deixou incompleta.
Anos depois de sua morte, completá-la-ia a viúva,
como se verá em outro capítulo.
E como já havia vendido, por 800
mil réis, os direitos autorais do “Maurício”, Bernardo apressou-se em
remeter os originais para o Rio de Janeiro. “Gastou cerca de quatro meses –
informa Basílio de Magalhães (1874-1957) – escrevendo-o numa fazenda de
sua sogra, D. Felicidade, sita no lugar denominado Rancharia, a cerca de duas
léguas de Ouro Preto; faltando-lhe ali papel em branco para terminá-lo,
serviu-se das margens de jornais velhos, o que avolumou consideravelmente o
original. Ante as reclamações do editor, meteu o manuscrito num saco de aniagem
e assim o despachou. Imagine-se o espanto do velho Garnier, quando recebeu o
tamanho volume!”
Segundo informa esse biógrafo de
Bernardo, a herdade da Rancharia ainda então pertencia a Dona Felicidade, sogra
do escritor. O que me parece pouco provável é que o “Maurício” tenha sido
escrito nessa fazenda.
Basílio de Magalhães divisou
semelhança entre o “Maurício ou Os Paulistas em São João Del-Rei”, de
Bernardo Guimarães, e o “Padre Belchior de Pontes”, de Júlio Ribeiro. Julgo
inteiramente desarrazoada tal comparação – uma outra é muito diferente da
outra.
“Maurício”, diz Sílvio
Romero (1874-1957), “é um belo livro, onde há muitas verdades, quer em cenas
da natureza, quer em cenas da vida humana. Daquelas é um exemplo o capítulo que
se intitula “A Gruta de Irabuçu”, e, destas, o capítulo “A Caçada”.
Mas o “prurido de contar
histórias” esfervilha.
“Houve um dia – diz o
crítico Augusto de Lima (1859-1934) – em que a inspiração do romancista e
poeta do planalto central, cansada já de vagar pelas serras, pelos campos e pelas
matas, baixou à orla do Atlântico, e aí se foi abeberar na fonte pura das
lendas litorâneas.”
Assim nasceu “A Ilha Maldita ou
“A Filha das Ondas”. Ainda se estava na época dos subtítulos dramalhonescos.
É a tragédia dos irmãos Rodrigo, Roberto e Ricardo, que se apaixonaram pela
fatídica Regina. Como a rapariga, por amor, recusasse assassinar o último dos
irmãos, o sangue de Aleixo – marido de Regina, morto pelos três rapazes – da
cova da ilha reclama vingança. E é aí então que a ilha submerge, sepultando no
fundo do mar os dois desventurados amantes.
Junto ao volume de “A Ilha
Maldita”, lançado em 1879, enfeixou Bernardo Guimarães uma novelinha, a “O
pão de ouro”.
“O pão é o ouro” é um
longo conto, dividido em seis capítulos: “A Mãe do Ouro”, “Os Jardins de
Tupá”, “Os tatus Brancos”, “No interior da Furna” e o último, o sexto,
sem título. É uma fantasia baseada na lenda do Eldorado, local de intermináveis
riquezas, existente na América. Ali vivia a “Mãe do Ouro”, “fada
formosíssima, filha do Sol e de
Tupá, e irmão da Aurora”.
Morava numa gruta misteriosa,
onde abundava o ouro e pedras preciosas. Era muito feliz no seu reino de delícias
e de beleza, enquanto nenhum mortal a conhecesse. Mas um “jovem e formoso
cacique” um dia lá chegou e a conheceu. Tornaram-se amantes. Tupã, que era o
Sol, como castigo por esse amor, fez com que aqueles tesouros se derretessem sob
seu intenso calor e se entranhassem no seio da terra. Tupã, contudo, compadecido
do cacique, transformou-o numa árvore.
Os bandeirantes paulistas,
sabendo da existência do Eldorado, organizaram uma numerosa caravana para ir até
lá, comandada por Gaspar Nunes. Quando se aproximavam do local, uma índia
misteriosa – adivinha-se ser a “Mãe Ouro” – advertiu os paulistas do
risco a que se expunham. As riquezas eram ali valentemente guardadas pelos tatus
brancos, alvo como a neve, que não era bichos, mas seres fantásticos, de pequena
estatura porém ágeis e destemidos, e lá estavam aos milhares, vigilantes das
suas montanhas de ouro, no vale do “Pão de Ouro”.
A índia, contudo, os guiou até
lá. Após encarniçadas lutas, só ficou Gaspar Nunes, que foi protegido pela
índica. Depois de muitos riscos e fadigas, Gaspar conseguiu voltar a São Paulo.
Relatou a aventureiros todos os
acontecimentos de que foram testemunha. Nova e poderosa Bandeira foi mandada para
lá, mas a fada das riquezas, temendo ser novamente descoberto o seu reino,
mudou-o, com todas as riquezas, “para outros sítios sem sertões mais profundos
e remotos”. E nunca mais foi encontrado o vale do “Pão de Ouro”.
Em 1876, Bernardo Guimarães
ainda ia a Queluz, em cujo colégio ensinava Latim e Francês. Aquele velho
casaria, aqueles arredores da terra do Conselherio Lafayette – modernamente
Lafaiete – evocavam-lhe o cenário da
revolução liberal de 1842, da qual ele, Bernardo, fora, nos seus 17 anos, um dos
combatentes das forças legalistas. Esse quadro vivo da história, que tinha à
sua frente e em sua memória, incendiara-lhe o plectro patriótico, e nos dias em
que lá permaneceu retocou os poemas que havia escrito durante a guerra do
Paraguai, já publicados no jornal carioca “A Reforma”, e reuniu-os em
coletâneas que intitulou “Heróides Brasileiras”.
Além, -- não ouves? o leão da
guerra
Ruge, e sacode a ensangüentada juba;
Se o fragor das batalhas não te aterra,
Se podes tanto, emboca a heróica tuba
E em valentes, altíssonos clangores
Da guerra canta as glórias e os horrores.
................................................................
Que nomes imortais!... Riachuelo,
Sepultura da armada paraguaia;
Humaitá, o horrível pesadelo,
Perante o qual todo o valor desmaia;
Cuevas, Itapiru,
E as alagadas, pérfidas campinas,
Que cingem Curuzu,
Itororó e Lomas Valentinas,
São páginas de luz em nossa história,
São brilhantes fanais,
Em que resplendem da brasília glória
Reflexos imortais.
São estes alguns dos versos da
“Invocação”, a primeira e longa composição das “Heróides”. Segue-se
“Lopes e Humanitá”, com mais de trinta estrofes. O 3º poema é dedicado a
“Osório e a passagem do Passo da Pátria”, com mais de vinte estrofes.
Seguem-se “Riachuel e Barroso” (quase quarenta estrofes), “Porto Alegre”
(mais de vinte estrofes dedicadas ao militar Manuel Marques de Sousa, Conde de
Porto Alegre, que já se vinha destacando nas pelejas de Pando e Manga, de Lãs
Piedras, de Passo do Rosário, que também já havia combatido na Revolução
Farroupilha, nas campanhas contra Oribe e Rosas e na vitória de Monte Caseros, e
que na Guerra do Paraguai comandou o cerco de Uruguaiana, se bateu em Curuzu e
Crurupaiti, e ao qual se deve a vitória na segunda batalha de Tuitui), “Assalto
a Curuzu” (quase quarenta estrofes), “O Adeus do Voluntário” (nove estrofes
uniformes).
(Íntegra
da Campanha do Paraguai - Heróides Brasileiras)
À coletânea das “Heróides
Brasileiras” – poemas em que o poeta não emprega versos brancos nem soltos,
mas perfeitamente metrificados e rimados, seleta esta que deveria ser lida nos
quartéis – ajuntou o bardo de Ouro Preto diversos outros trabalhos, e que
foram:
Elegia
(dedicada ao seu sobrinho Dr. Gabriel Caetano Guimarães Alvim),
O Meu Vale
(dedicado ao seu amigo Ovídio João Paulo e Andrade),
O Brigadeiro
Andrade Neves, Barão do Triunfo (ode que deveria pertencer à coleção das
Heróides Brasileiras),
À morte de
Teófilo Ottoni (poema necrológico a seu amigo, mineiro do Serro),
Nênia
(poema oferecido a D. Maria da Conceição Soares Ferreira, viúva do Capitão
Soares, morto em Lomas Valentinas, bonita composição esta que também deveria
estar reunida às Heróides),
Gentil Sofia
(balada em eco, outra inovação poeta de Bernardo Guimarães, um dos mais longos
poemas do vila-riquense, ocupando 13 páginas do volume da primeira edição),
Cantiga
(outra primorosa composição de amor, que Adolfo Morales de los Rios Filho, em
“O Rio de Janeiro Imperial”, página 307, transcreve e informa ter sido uma
das poesias declamadas, nos tempos do Império, nos salões cariocas),
Se eu de
ti me esquecer (de apenas seis estrofes, poema posto em música e muito
cantado em Minas, no século 19, e que Frederico dos Reys Coutinho incluiu em “As
mais velas Poesias Brasileiras de Amor”, em 1946),
A Morte de
Flávio Farnese (dedicado à memória do amigo da Paulicéia e colega de
redação da “Atualidade”, do Rio de Janeiro),
Aureliano
Lessa (poema ao qual o autor ajunta essa informação: “Versos escritos no
álbum do meu amigo João Raimundo Duarte junto a uma paisagem de Diamantina”),
Adeus da
Musa do Itamonte (Alphonsus de Guimaraens Filho, em “Poesias Completas de
Bernardo Guimarães”, página 477, assim elucida: “Itamonte. É o nome com que
o ilustre poema Cláudio Manuel da
Costa crismou o Itacolomi, pico alteroso das montanhas de Ouro Preto”,
A Bernardo
Guimarães (poema composto por Pedro Fernandes, em 1868),
A poesia
(resposta do poeta a Pedro Fernandes),
Estrofes
(versos dedicados à Brigada Mineira que partiu de Ouro Preto em 1864, sob o
comando do Brigadeiro José Antônio da Fonseca Brandão, para a Guerra do
Paraguai; é esta outra composição que deveria pertencer às Heróides), e
finalmente,
Melodia
(dedicada a D. Joana Perpétua de Oliveira Santos, extensa composição escrita em
24 de dezembro de 1870).
Esta coleção de versos do
Bernardo Guimarães recebeu o título de Novas Poesias, e foi lançada pelo
Garnier em 1876. Esse volume, bem como os demais editados pelo mesmo livreiro,
eram, infelizmente, compostos e impressos na França, em Paris ou no Havre
(Imprensa A Lémale Ainé), razão de alguns e lamentáveis erros tipográficos.
O contrato firmado com B.L.
Garnier assim rezava:
“Entre os abaixo assinado, o
sr. Dr. Bernardo Joaquim da Silva Guimarães, morador em Queluz de Minas, como
autor; e B. L. Garnier, estabelecido no Rio de Janeiro, como editor, foi
convencionado o contrato seguinte:
I – O Sr. Dr. Bernardo
Joaquim da Silva Guimarães vende a B.L. Garnier a propriedade, com todos os seus
direitos literários, de sua edição de poesias intituladas Novas Poesias, pela
quantia de trezentos mil réis, que serão pagos ao primeiro pedido do autor.
II – Em fé do que passaram
dois contratos de igual teor, por cujos cumprimentos se obrigam; por si e seus
bens como por seus herdeiros e sucessores, cujos contratos entre si trocaram
depois de assinados.
Rio de Janeiro, 3 de abril de
1875
Bernardo Joaquim da Silva
Guimarães
B.L. Garnier”
Em fins de 1876, ainda estava
Bernardo em Queluz, não propriamente de residência, mas de permanência no
lugar, onde exercia o cargo de professor. É de lá a carta enviada ao seu grande
amigo Carlos José dos Santos:
“Carlos.
Queluz, 14 de dezembro de 1876
Muita atrapalhação, alguns afazeres, alguma
moléstia e alguma preguiça, não pouca, não me permitiram prontificar o drama
Os Inconfidentes, como eu pretendia, e tínhamos conversado, para a Sociedade
Dramática de São Miguel de Piracicaba, dá-lo a 2 de dezembro do corrente. O
trabalho, aliás, não era insignificante.
Relendo esse drama, achei-o soberbamente
defeituoso e carecendo de ser refundido completamente. E não podia sair coisa
muito boa. Melhor do que ninguém, sabes com que pressa, e em que circunstâncias
manipulei semelhante droga. Agora desejo saber se em qualquer outro tempo, serve.
Se servir, porei mãos à obra e lá para janeiro estará pronto; assim como
também poderei fornecer, para o mesmo Teatro, A Cativa Isaura, que está
prontinho, ou outra qualquer composição dramática, que me sair da cachola.
Conversa, pois, com os interessados a esse
respeito (parece-me que são os Velosos) e manda-me resposta com a brevidade que
puderes. Agora, outro assunto:
Quando estiveres com o nosso bom vizinho, o meu
amigo e confessor, o piedoso anacoreta D. Frei Sebastião de Santa Perpétua,
queira apresentar-lhe os meus respeitos e pedir-lhe sua santa bênção para este
seu humilde irmão e servo no Senhor assegurando-lhe que nunca dele me esqueço em
minhas orações e práticas devotas, e de jejum e abstinência.
Comunica-lhe também a notícia de que este seu
humilde fâmulo está compondo uma jaculatória mui devota e pede sua benévola
autorização para que este fraco produto lhe seja dedicado, e debaixo de seu
apostólico patrocínio possa correr mundo.
Adeus, Carlos, goza saúde e prosperidade, e
aceita os protestos de sincera estima e afeição do teu amigo velho.
Bernardo Guimarães"
Como já ficou dito, Bernardo deu o título de "A Catita Isaura" ao
drama para diferenciar de “A
Escrava Isaura”, o romance que, então, já havia mais de um ano estava sendo
lido e aplaudido por todo o Brasil.
O próprio Carlos José dos
Santos, que, no seu opúsculo “Bernardo Guimarães Na Intimidade”, transcreve
a carta acima, esclarece que o Frei Sebastião de Santa Perpétua, aqui objeto de
íntima brincadeira, tratava-se do Capitão Augusto Pinto, oficial da Secretaria
da Instrução Pública, outro grande amigo de Bernardo.
A carta a Carlos dos Santos
contém duas informações interessantes para a biografia de BG. Sabe-se, por ela,
que o próprio Bernardo não gostou do drama “Os Inconfidentes”, de sua
autoria, que classificou de “droga”, e que se dispunha a melhora-lo. Sabe-se,
porém, que ele próprio adaptou para o palco o romance
“A Escrava Isaura”. Ainda aqui era a pena do abolicionista que assim o
exigia.
Bernardo Guimarães viveu sempre
bem-humorado, sempre disposto a brincadeiras. Dois anos antes de sua morte ainda
estava bem viva sua veia galhofeira, conforme se pode ver nesta outra carta, na
qual participava o nascimento do Bernardo Guimarães Filho, seu penúltimo filho:
"Meu prezadíssimo Compadre e Amº.
O. Preto, 15 de 7bro. de 1882.
Tenho o prazer de participar-lhe que sua
Comadre, no dia 5 do corrente, deu à luz da publicidade mais um volume de carne e
osso, do sexo masculino, nítida e solidamente encadernado. Não lhe comuniquei
há mais tempo este esplêndido e glorioso sucesso, porque o resguardo não me
permitiu. É mais uma verba para o orçamento da despesa, mas como as câmaras
ainda estão abertas, vou pedir-lhes que votem a competente quota.
"Desculpe este modo de participar, tão
fora dos estilos oficiais, e aceitem o Compadre e Comadre muitas saudades de todos
desta casa.
Seu amº. e compadre Bernardo
Guimarães"
O manuscrito original dessa carta se acha
reproduzido em fac-símile na “Revista do Brasil”, nº 35, terceira fase, de
maio de 1941.
Além de livros, muita coisa escreveu o
ouro-pretano nessa quadra, poesias, crônicas, contos e críticas literárias, que
se acham publicadas em jornais de sua cidade natal, no ”Jornal do Comércio” e
na “Reforma”, do Rio de Janeiro.
Bernardo já se sentia sem ânimo para freqüentes
viagens a cavalo, como antes fazia. A velhice já se aproximava, a galope. Não
pretendia fixar residência em Queluz, onde ainda lecionava, e deixar o seu
sobrado do alto das Cabeças, o lar em que contava com as atenções e o carinho
da extremosa sogra. Não abandonaria sua barroca Ouro Preto,
sua tradicionalíssima Vila Rica de Albuquerque. Porém, alquebrado e
doente como já se achava, decidiu, finalmente, já nos últimos anos de
magistério, levar Teresa e os filhos para Queluz, onde permaneceria enquanto ali
fosse professor, poupando-lhe, desse modo, as penosas e longas viagens semanais em
lombo de cavalgaduras.
E foi em Queluz que lhe nasceu o quinto filho, o
Afonso, futuro contista e membro da Academia Mineira de Letras. Bernardo sentia-se
atraído por esse nome: Afonso foi um de seus índios; Afonso foi um dos
personagens do “Maurício”; Afonso era agora um de seus filhos.
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