BG em São Paulo (1)
(de Ouro Preto para a
Paulicéia)
Armelim
Guimarães
Bernardo Guimarães estudou na Faculdade de São
Francisco, que aparece acima formando
um conjunto com a Ordem terceira e com o convento de São Francisco de Assis.
O convento foi reformado em 1884.A foto é do site
da faculdade.
Em janeiro de 1847, Bernardo
Guimarães despediu-se do seu pai, João Joaquim, este já então nos seus bem
vividos 70 anos de idade, para estudar em São Paulo, de cuja Faculdade de Direito
o irmão Joaquim Caetano já obtivera o "canudo" de bacharel.
Para companheiro do novo acadêmico, deu-lhe João Joaquim um prestimoso escravo,
o Ambrósio, crioulo ainda moço, sadio e espadaúdo, e de inteira confiança de
seu senhor.
Pela primeira vez saía Bernardo Guimarães de sua Província natal. A longa e
cansativa viagem empreendida de Ouro Preto a São Paulo, feita em lombo de burro,
ficaria indelevelmente gravada na sua lembrança. Os pousos pelo caminho, a visão
paradisíaca do alto da Mantiqueira, o planalto piratiningano...
O bardo mineiro acabava de sair do calor da religião e da sadia moral adquiridas
nos seminários e no lar para cair logo num tacho cheio do gelo do cepticismo,
para encarangar-se com o frio do materialismo demolidor, para engolfar-se nas
estroinices que trazem a algidez do espírito, para entregar-se à vagabundagem e
a viver algum tanto excêntrico. Que novo Bernardo sairia dali!?
Esse vazio desastroso em sua alma, essa derrocada mental sofrida com o novo
ambiente e as novas influências, ele os revelaria em versos em O
devanear do Céptico, em Ao
meu aniversário e em outras poesias.
Bernardo estreou logo as suas "filosóficas" gargalhadas na terra dos
bandeirantes ao deparar com o seu fadário, que vivia a pilheriar com ele,
perseguindo-o com a sombra do patíbulo. Em Ouro Preto residira numa casa junto ao
Largo da Forca, no alto lúgubre das Cabeças. Agora, ali em São Paulo, já lhe
haviam arranjado uma casa na Rua da Forca, que saía do largo do mesmo nome... Era
a penúltima casa, próxima do Largo da Cadeia, ao lado da Igreja dos Remédios.
Ao Largo de São Francisco estava a Academia de Direito.
Paulicéia patriarcal
A cidade renascia toda acadêmica. Era, segundo escreveu o próprio romancista no
livro "Rosaura,
a Enjeitada", "a Paulicéia antiga e patriarcal", "que
conservava ainda quentes as cinzas de Diogo Antônio Feijó, que ainda escutava os
ecos das vozes patrióticas e eloqüentes de Antônio Carlos e Martim Francisco, e
que ainda não pranteava sobre o túmulo de dois ilustres cidadãos, modelos
venerandos de patriotismo e virtudes cívicas -- Vergueiro e Paula Sousa.
"Ainda então a cidade de São Paulo conservava certos laivos de sua
primitiva simplicidade, e posto que fosse já, relativamente à época, uma cidade
assaz populosa, e o núcleo de um grande movimento intelectual, parecia
respirar-se ali ainda a aura tradicional dos tempos de Amador Bueno."
Naquela São Paulo que Bernardo
encontrou -- diz ele na mesma obra -- ainda o "remanso e o silêncio reinavam
por toda parte; a rua era um deserto". As extensas várzeas alagadiças
cortadas pelo Tamandateí separavam "a cidade propriamente dita do arrabalde
de São Brás. Essas várzeas, banhadas então por um brando luar, formavam outro
deserto, mais vasto e aprazível, e pelas janelas abertas os estudantes podiam
expandir as vistas e aspirar as auras frescas e balsâmicas que se elevavam dos
vargedos".
Aí está o painel da cidade de São Paulo, tal como a encontrou Bernardo
Guimarães nos meados do século XIX.
No seu "O Incrível Bernardo Guimarães", estampado na
"Gazeta-Magazine" de 23 de março de 1941, diz Antônio Constantino:
"Ao vir à Paulicéia, Bernardo, inexperiente, porém decidido, se achou no
ambiente de perspectivas desalentadoras. Desconhecia os segredos da cidade
acadêmica, tudo lhe parecia melancólico. À noite, aumentava a amargura. Quase
escuridão, ruas sonolentas dos lampiões agonizantes e retratada por Vieira Bueno
nas memórias de noventa anos. "Colocadas de longe em longe -- narra ele -- e
só nas ruas principais, a luz desses lampiões, alimentada com azeite de peixe,
difundia uma claridade mortiça, que só alumiava um pequeno espaço, projetando
longas sombras movediças quando o vento balouçava os lampiões". A cena de
recanto fúnebre devia ao final das contas agradar o temperamento de Bernardo
Guimarães."
Mal Bernardo chegara à Paulicéia, alguns bons companheiros, entre os quais
Ferreira do Vale, Bernardo Gavião, Paulo do Vale, Agostinho da Cama, João
Cardoso (Barão de Paranapiacaba), Cipriano Penelon e outros, se uniriam logo a
ele por sólidos laços de amizade.
E os estudantes formavam uma legião travessa a valer, divertida, que não temia
ninguém.
Escravos
E, para manter as esbórnias
acadêmicas de seus amos patuscos, os escravos desses estudantes tinham que,
muitas vezes, ir cavar dinheiro para eles, ajustando-se nas chácaras, alugando-se
em trabalho pesado ou fazendo outras sortes de serviços. O Ambrósio de Bernardo
ajudava o seu mui estimado "senhor" vendendo biscoitos de farinha de
milho ou de polvilho, sequilhos de araruta e outros quitutes, de era exímio
fabricante, nas escadarias da Misericórdia ou no largo da Igreja do Carmo.
"Não demorou para Bernardo arranjar-lhe, pouco depois, uma porta de aluguel
na rua das Sete Casas, improvisando-lhe uma tasca de guloseimas", informa
Luís Gomes de Sousa Ataíde em sua crônica "A Orgia dos Duendes".
Assim não sacrificaria tanto o seu dedicado companheiro africano, "de cujo
trabalho só se aproveitou, montando para o mesmo uma vendola, cujos lucros, não
considerável, ambos repartiam fraternalmente". (Basílio de Magalhães,
"Bernardo Guimarães", pág. 21).
Anos mais tarde, Bernardo Guimarães, na "Rosaura, a Enjeitada", daria
ele esta informação: "A classe acadêmica, harmonizando-se com o meio em
que vivia, passava vida simples, folgaz e descuidosa, ainda mais do que é
ordinário entre essa extravagante variedade de gênero humano. Divididos em
grupos, os estudantes se derramavam por todos os bairros da cidade, e chamavam-se repúblicas,
como até hoje, as casas ocupadas por esses grupos, e onde viviam na mais
admirável igualdade e fraternidade. Nessa época, havia entre os estudantes um
certo espírito de classe tão fortemente pronunciado que formavam deles uma
corporação não só respeitada como temida dos futricas, nome que se dava a todo
cidadão estranho ao corpo acadêmico."
São Paulo daquele tempo estava crivada de repúblicas. Na rua da Palha, na
dos Bambus, na da Constituição, na Glória, na São Brás só se viam repúblicas.
Bernardo acabava de instalar mais uma na rua da forca...
De Antônio Cândido (Aspectos Sociais da Literatura em São Paulo, em "O
Estado de S. Paulo", edição comemorativa do 4º Centenário, de 25-1-54,
pág. 78) colho o seguinte: "Estruturadas pelo princípio de origem comum
(taubateanos, mineiros, fluminenses) ou de comum interesse (troça, literatura,
estudo), elas (as repúblicas) eram a unidade básica da vida estudantil. Unidades
não apenas de pouso, mas de recreio e atividade intelectual. Nelas se originou
muito escrito, muito projeto literário. Pelos fins do decênio de 40 (1840),
nelas se reuniam para improvisar bestialógicos dm prosa e verso (gênero das mais
alta importância, cujas produções se dispersaram infelizmente quase todas)
João Cardoso de Menezes, Silveira de Souza, José Bonifácio, Aureliano Lessa,
Bernardo Guimarães, autor do estupendo soneto Eu
vi dos pólos o gigante alado. Das repúblicas, a sociabilidade literária se
expandia pelos grêmios, inaugurados pela "Filomática", o "Ensaio
Filosófico", 1850; o "Ateneu Paulistano", 1852..."
Arcadas de São Francisco
A Academia de Direito de São Paulo, no tempo de Bernardo Guimarães, era um velho
prédio, já bissecular. Construíra-o o Frei Francisco dos Santos em 1644. O
comprido edifício de dois pavimentos, que foi, em 1828, adaptado para a
Faculdade, era conjugado às igrejas de São Francisco e da Ordem Terceira dos
Franciscanos, no Largo de São Francisco.
"Detenhamo-nos um momento no Pátio das Arcadas; aqui reside a alma da
Academia. Eram os Gerais, assim chamados, à moda de Coimbra, porque no claustro
se reuniam indistintamente todos os alunos. Pelo correr do tempo, a contemplação
insistente do recinto, em sua amplitude arejada e na sua singeleza harmoniosa de
suas linhas, foi apagando a reminiscência coimbrã. Lúcio de Mendonça, em
escrito de 1885, já fala das arcadas do antigo convento como pormenor de
arquitetura. Depois, arcadas converteram-se em figura retórica, são todo o
edifício. Mais tarde reclamam inicial maiúscula, designam o conjunto material e
espiritual -- são a própria Faculdade de Direito de São Paulo." (Prof. A.
Almeida, A Faculdade de Direito e a Cidade, em "O Estado de S. Paulo",
edição comemorativa de 4º centenário, de 25-1-1954).
Quando Bernardo Guimarães lá chegou, o diretor da Academia era o 2º Visconde de
Goiana, que nunca tomou posse. Mau exemplo. Aliás, também tinha o nome de
Bernardo -- Conselheiro Bernardo José da Gama. Quem estava interinamente
respondendo pela direção era o português Dr. José Maria de Avelar Brotero. E
com Brotero estaria a Faculdade durante todo o qüinqüênio de estudos do moço
de Ouro Preto, às vezes revezando com Manuel Joaquim do Amaral Gurgel.
Brotero que foi a figura que mais gostosamente ficaria gravada na memória
do escritor ouro-pretano, pelo resto da vida. Nos últimos anos de sua
existência, o velho diretor e professor ainda seria a mola impulsiva de suas mais
felizes gargalhadas. Numa carta a Saldanha Moreira lembrar-se-ia Bernardo do
venerando Brotero, depois de cometer, pilheriando, algumas broteradas.
O que havia de realmente gozado no mestre era o descuido que sempre cometia,
sobretudo no auge da eloqüência, de trocar as palavras da frase ou fazer
desastrosas inversões de sílabas. Tais trocas ficaram com a designação de
broteradas.
"Tornou-se célebre pelo trocados e sinalefas; suas distrações eram
pasmosas. Não havia estudante que em canhenho não tivesse anotado dezenas delas.
Quando o Imperador esteve em São Paulo e foi visitar a Academia, Brotero trouxe
pela mão um bedel velhíssimo e caduco, e, chegando-se ao Imperador, disse com
profunda reverência:
-- Senhor bedel, tenho a honra de apresentar a V.M. o Imperador mais antigo desta
Academia". (Vicente de Paulo de Azevedo, "Álvares de Azevedo",
edição promovida pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, em comemoração do
centenário de nascimento de Álvares de Azevedo, São Paulo, 1931).
São muitos os exemplos, citados pelos alunos contemporâneos do ilustre
trapalhão: "Gado saltitando pelas árvores, passarinhos pastando no
campo", "navios de pavilhões acesos e morrões desfraldados..."
(Vicente de Paulo Azevedo, op. cit., pág. 198).
[Nota do editor do site: Brotero foi o primeiro professor -- então chamado de
lente -- da São Francisco. Ele deu a aula inaugural da escola, em 1º de março
de 1828, às 16 horas.]
Quando o poeta ouro-pretano chegou a São Paulo, já tinha feito, em sua terra,
todos os preparatórios. Os exigidos para a matrícula no 1º ano do curso
jurídico eram, então, os de latim, Retórica, Filosofia, Francês, Geometria e
mais Inglês e História, acrescentados pela reforma de 1834. Havia alunos que
tiravam esses preparatórios na própria Paulicéia, à sombra das Arcadas. Entre
os professores dessas "aulas menores" estava o mestre de Retórica o
Cônego Fidélis Alves Sigmaringa de Moraes. Residia no Largo da Cadeia. Vizinho
de Bernardo, tornou-se figura popular, não só pelo físico, como também pela
intransigências exageradas e pela impiedade para com os examinandos de
preparatórios. Causava pavor nos aspirantes ao colégio de Têmis. Era "um
padre gordo, já então um pouco idoso, toutiçudos, de cor avermelhada, e que
era, de mais disso, dotado de uma grande penca de beiços, dos quais de baixo era
muito caído". Quem nos dá esse retrato é Ferreira de Resende, nas
"Minhas Recordações", 1944.
Bernardo Guimarães, que não perdia de vista nenhum tipo caricaturável, fez do
cônego Fidélis o alvo de uns seus versinhos humorísticos e satíricos,
decorados pelos colegas e até por alguns futricas. "São rimas extremamente
jocosas", diz Luís Gomes de Sousa Ataíde. Sabedor dessas quadrinhas
provocadoras com que o bardo de Vila Rica, com chiste, lhe pintara as beiçolas e
a carantonha, o sacerdote nada mais fez senão, certa tarde, no Largo da Matriz,
brandir ameaçadoramente a bengala ao vate que, cautelosamente, passava à
distância.
(Igreja dos Remédios (em reprodução do século
XVIII), perto da qual
ficava a casa onde Bernardo Guimarães morou em São Paulo.
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