A cabeça de Tiradentes
Armelim
Guimarães
A Cabeça de
Tiradentes é uma das melhores crônicas de Bernardo Guimarães. Faz parte do
volume de “História Tradições da Província de Minas Gerais”. Está reproduzida na
Biblioteca Internacional de Obras Celebras, edição da Sociedade Internacional.
O prosador ouro-pretano pinta o
quadro lúgubre e revoltante, no Rio de Janeiro, em que aparece, erguida na ponta
de um poste, a cabeça do herói da Conjuração Mineira.
Imolado Tiradentes no patíbulo
carioca, foi esquartejado o seu corpo, tendo sido os pedaços enviados para
diversos cantos do país, para expiação. Um dos braços foi para Paraíba do Su,
outro para Barbacena, as pernas para outras localidades. A Ouro Preto, coube a
cabeça, enviada dentro de um barril, mergulhada em forte salmoura.
Posta, em praça pública, na
capital mineira, na ponta de um mastro a cabeça de Tiradentes, ficou ela guardada
noite e dia por um soldado com arcabuz engatilhado. Um admirador do mártir passou a espreitar durante a noite, para no momento oportuno roubar a
relíquia cívica. E numa madrugada, a sentinela dormiu.
“Um vulto todo rebuçado –conta
Bernardo Guimarães– surge por entre as trevas e se aproxima cautelosamente do
tremendo poste. Com uma comprida vara que trazia, fez saltar do poste a caveira,
apanha-a rapidamente e desaparece com o favor das trevas e do nevoeiro.”
No Hino que, em abril de 1882, em
Ouro Preto, o poeta compôs para exaltar a memória de Tiradentes (musicado pelo
maestro Emílio Soares de Gouveia Horta) introduziu estrofes rememorativas desse
episódio da história brasileira:
A tua cabeça heróica
Sobre vil poste hasteada
- Liberdade - Independência
Até hoje inda nos brada.
Do teu mutilado corpo
Os membros esquartejados
Foram ecos rugidores,
Aos quatro ventos lançados.
Pois esse crânio histórico,
segundo quer a tradição, foi sepultado na copa ou no quinta da casa na qual,
muito mais de meio século depois, morria Bernardo Guimarães, no Alto sinistro
das Cabeças.
O velho sobrado, construído no
século XVIII pelo padre Manuel da Silva Gato (em alguns lugares, Gatto, com dois
tt) para sua residência. Em 1928, o presidente estadual (hoje se diz governador)
Antônio Carlos adquiriu esse prédio, adjudicando-o ao patrimônio nacional. Por
muito tempo ele serviu de abrigo para velhinhos desamparados. [Nota do editor do
site: em 2006, o governo de Minas reformou o prédio e lá instalou uma oficina de
ofícios].
Em despacho de 30 de julho de
1933, do Secretário da Agricultura de Minas Gerais Dr. Carlos Luiz, foi
concedida, por autorização do governo de Minas, a verba de 25 contos e 804 mil
réis para reparar a histórica residência, que estava a reclamar consertos e
proteção contra um possível desabamento.
Essa velha mansão foi visitada
por Gastão Penalva, que assim nos conta:
“Lá em cima, no bairro das
Cabeças, onde a lenda pretende que também se encontre a cabeça de Tiradentes,
num daqueles excusos desvãos subterrâneos, a casa que foi de Bernardo Guimarães
desaba a cada dia que amanhece, num sinistro fragor de maldição. Estive dentro
dela, num grande risco de vida. Percorri-lhe de alto a baixo os espaçosos, frios
aposentos, recordando aquele berço de carinho e espírito onde nasceram “A
Escrava Isaura”, “O Índio Afonso”, “Maurício” “O Ermitão de Muquém”
e outros filhos do saudoso romântico. Habita-o agora uma família humilde, com
mulheres e crianças que todas as noites misturam nas suas orações uma súplica
choramingada para que a casa não lhes caia em cima. No entanto, era um solar
magnífico, à moda antiga, acolhedor e confortável, com sacadas amplas, cimalhas
de estilo, escadarias de pedra-sabão, lindos dourados nas paredes e nos tetos e
ganchos de ferro nas janelas, onde outrora se dependurava as luminárias de
regozijo litúrgico.” (“O Aleijadinho de Vila Rica”, Renascença Editora,
Rio de Janeiro, 1933).
José Afonso Mendonça Azevedo,
que residiu na rua das Cabeças, e que muito bem conheceu o casarão, fala da
copa, para a qual o padre Gato (ou Gatto), neto de Borba Gato, conduzira a cabeça
heróica:
“O velho solar de D. Felicidade
fora, antes, do padre Gato, quem sabe algum descendente do tenente-general Manuel
Borba Gato, gênero de Fernão Dias Paes e fundador de Sabará. A lenda é que a
um canto da praça, hoje Tiradentes, em Ouro Preto, fora erguida, à ponta de uma
haste, a caveira do Tiradentes, e cujos cabelos, já branqueados, não pelo tempo,
mas pelos sofrimentos, esvoaçavam à ventania, macabramente. Certa hora da noite,
quando mais intensa era a garoa e mais frias desciam as névoas da serra, o guarda
da cabeça de Joaquim José, fechando os olhos, vencidos pelo sono, alguém, o
padre Gato, nativista como o seu antepassado, célere arrebatara o horrendo
troféu e, sob a batina, o conduziria à rua das Cabeças, depusera-o naquela
copa, até que, no dia seguinte, com as devidas cautelas, pudesse lhe dar cova.
“No quinta da casa de Dona
Felicidade apontavam, a certa altura, uma pequena laje como sendo a lápide da
sepultura improvisada. Nunca pude averiguar esse fato, mas habent nomen fata sua:
à rua das Cabeças, tão freqüentemente transitada por Tiradentes, nas suas
viagens a esta capital, ou mesmo em visita a amigos hospedados numa estalagem que
ali havia, caberia o destino de colher a cabeça do mártir redivivo.” (“A
sogra de Bernardo Guimarães”, na revista “Sul Amperica”, de junho de 1946).
Luís Gomes de Sousa Ataíde teve
“irresistível curiosidade e tentação de remover ali a pedra e a terra para
desvendar o mistério”, mas não o fizeram. “Esse março de pedra lá está”,
confirma o “Minas Gerais”, suplemento nº 197, de 1925.
Registrou o historiador Basílio
de Magalhães:
“A casa da Família de Bernardo
Guimarães, em Ouro Preto, pertenceu a um padre acunhado de Gato, que ao novelista
confidenciou ter sido quem confessara, in articulo mortis, ao roubador da cabeça
do imortal alferes e que do mesmo a recebera, enterrando-a no quinta daquele
prédio. Não será difícil apurar, por escavação, a veracidade de tal
narração.”
Vicente Racioppi, diretor do
Instituto Histórico de Ouro Preto, em 1940, divulgou pela imprensa carioca uma
carta que lhe fora endereçada pelo filho mais moço do poeta, o professor Pedro
Bernardo Guimarães, meu pai, em que lhe dizia:
“Tenho aqui uma velha papelada
em que há documentação histórica da tradicional casa das Cabeças, onde morou
e morreu o meu pai. São antigas
escrituras registrando transmissões da propriedade, entre as quais a que se
refere ao padre Gato. Como você sabe, a cabeça de Tiradentes foi roubada do
poste infamante em que a colocaram na praça principal de Ouro Preto. Nasceu daí
a lenda de um ancião, idólatra da memória do protomártir, que, às escondidas,
para escapar às pesquisas dos esbirros, adorava-a a desoras, a portas fechadas,
em sua casa. Sentindo aproximar-se a morte, chamou o confessor para revelar em
segredo o roubo místico que praticara. Diz a tradição que o padre Gato,
atendendo a esse penitente, receoso da perseguição, e não podem quebrar o
sigilo do confessionário, recebe a histórica caveira, enterrando-a no quinta de
sua residência, que era então o sobrado que transferimos ao governo do Estado de
Minas. São essas antiguíssimas escrituras que, se você achar conveniente,
estão à sua disposição para o Instituto Histórico de Ouro Preto”.
A fantasia, porém, dos que
procuram romancear o drama cívico da Inconfidência Mineira tem recorrido a
caraminholas para criar outras histórias e outras tumbas para a veneranda
carcaça.
Segundo Gilberto de Alencar, no
Roma “Tal Dia é o Batizado”, a cabeça de Tiradentes teria sido roubada da
picota infamante por uma devota do mártir, o que fez com o auxílio de dois
homens, um dos quais o coveiro que teria dado sepultura ao crânio do herói no
cemitério de São Francisco de Paula.
Em “Confidência de um
Inconfidente”, romance de Marilusa Moreira Vasconcelos, segundo a professora de
História Valdhete Mariano de Faro, a cabeça de Tiradentes teria sido tirada do
poste da expiação pelos próprios soldados, todos maçons, sob a orientação de
Aleijadinho, e, no Alto da Cruz, teria sido guardada numa urna de pedra, num “altar
maçônico”, encimado por um barrete frígio”, “feito pelo mestre Lisboa,
com documentos a respeito, sendo depois coberto de terra”.
Teria sido a caveira “coberta
com ouro em pó, e lhe deram sepultura, que foi demarcada com um pequeno templo,
com sete degraus até a entrada e sete atrás. Para disfarce, converteram o altar
maçônico em reservatório d’água. Isto na casa do inconfidente Antônio
Vieira da Cruz”.
Outra fantasia é de que a
cabeça, subtraída do poder da Justiça, por seis cavaleiros encapuzados, fora
escondida na base de um chafariz.
No livro “Memória de um
Itacolomita” (Tip. de A Encadernadora, Rio de Janeiro, 1931), de João R.
Duarte, há as seguintes referências:
“... a cabeça de Tiradentes
havia desaparecido do poste! Fato tão grave não podia deixar de ser levado ao
conhecimento do Marquês de Barbacena, e este, no auge da cólera, expediu ordens
severas para a procura da cabeça e, principalmente, do executor de tão grande
delito.
“Boatos não faltaram; uns
diziam que ela havia sido levada pela enxurrada das chuvas copiosas; outros, que
um frade ou monge dela se havia apoderado durante a noite etc. Diziam uns que esse
frade era um ente sobrenatural, um lobisomem, que havia sido visto, por uns, na
Cruz das Almas, por outros, no Alto das Cabeças, e finalmente por outros, no
Morro da Força, sempre à meia-noite em ponto!
“A cabeça de Tiradentes não
foi procurada com empenho só no período colonial: em nossos dias, em 1862, houve
um presidente do 2º Império que teve a petulância de, arrostando o perigo do
lápis vermelho com que S.M. o Imperador assinalava os que incorriam em seu
desagrado, pretendeu erguer um modesto monumento na praça de Ouro Preto, em
homenagem à memória dos Inconfidentes. Esse presidente, Saldanha Marinho, levou
a Minas, como seu secretário, o dr. Henrique César Muzio, a quem contou haver
guardado, com extremo cuidado, um crânio em um velho casarão do tempo colonial.
“Será a cabeça de Tiradentes?
“Houve diligências, as quais
deram com o velho crânio no palácio do governo onde residia César Muzio. A boa
vontade faz prodígios! Examinando cuidadosamente o velho crânio, há havia sido
nele encontrados vestígios da perfuração da estaca em que estivera espetado,
quando um tabelião, Paula Malaquias, apresentou-se em palácio levando o
testamento de um original do padre Gato, que deixara seus bens a seus herdeiros,
com a condição de guardarem seus restos mortais na capela de sua casa, onde
dizia suas missas.
“Terminaram-se também as
diligências do Marquês de Barbacena sem nenhum resultado, mesmo sendo apregoado
em um bando de rufos de caixas e pregão, oferecendo cem oitavas de ouro em pó a
quem conseguisse capturar o criminoso.”
Mas será mesmo verdade que
também o padre Gato foram enterrado na casa que seria de Bernardo Guimarães,
conforme os documentos apresentados pelo tabelião Paula Malaquias? Assim sendo
lá devem ser encontrados dois crânios, o de Tiradentes, e o do padre, com um
esqueleto completo. E se isso é
verdade, conclui-se que Dona Felicidade Gomes de Lima não comprou o sobrado
diretamente do padre, mas dos herdeiros dele, pois a velha sogra do poeta e
romancista nunca revelou ter conhecimento dessas inumações em sua casa.
Em “O Jornal”, edição de 16
de outubro de 1969, em Algumas “Manchetes”, Vinícus de Moraes publicou esta
informação: “Por falar em Minas: li há pouco que um velho documento que
indica que a cabeça de Tiradentes foi enterrado no quinta da casa do padre Gato,
que ver a ser hoje a antiga casa do poeta Bernardo Guimarães, tombada pelo
Patrimônio. Segundo se informa, há até um marco de pedra sindicado o lugar, no
quintal, onde está a cabeça do mártir”.
Também Joaquim Norberto,
historiador e romancista carioca, dedicou um poema, denominado “A Cabeça do
Mártir”, no qual exalta o episódio do furto do crânio histórico, chuchado
habilmente do poste da expiação por um devoto do memorável apóstolo da
Independência. A informação é de Sílvio Romero (“História da Literatura
Brasileira”, H. Garnier, 1903).
Tais registros demonstram
que a tradição quer é que a cabeça de Joaquim José da Silva Xavier esteja
mesmo sepultada na copa ou no quinta da casa em que residiu Bernardo Guimarães.
Só com picareta, pá e orientação criteriosa se poderá chegar à verdade.
Porem, e o crânio guardado por Henrique César Muzio? Era de Tiradentes ou do
sacerdote? Ou não era de nenhum deles? Ou
o “Memórias de um Itacolomita”, de João Duarte, não merecem credibilidade?
Seja como for, tudo é dúvida e mistério. O único fato mesmo é que a cabeça
de Tiradentes desapareceu da ponta do poste.
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