Professor em Congonhas
do Campo e em Andaluz
Armelim
Guimarães
O presidente da Província, quando
menos se esperava, suprimiu a cadeira de Retórica, Filosofia e Poética do Liceu
Mineiro de Ouro Preto. Bernardo Guimarães ficou desempregado. De trabalhos
forenses, nem queria ouvir falar! Valia-o, a ele e à família, a farta mesa de D.
Felicidade. Que felicidade!
Em 1870, deram-lhe interinamente
as cadeiras de Filosofia e de Português do colégio de Congonhas do Campo [a
cidade passou a se chamar apenas Congonhas - nota do editor do site].Em 1873,
obteve o poeta a nomeação de professor de Latim, Francês e Filosofia do
Colégio de Queluz, cidade hoje chamada Conselheiro Lafaiete. Voltou para ele o
viver de cavalgante, às vezes sob chuva, por estradas lamacentas, e os pousos de
favor, em casas de velhos amigos – tinha-os por toda aquela redondeza – nas
quais permancia dois ou três dias. Aliás, a vida assim não lhe era nada de
dissabores.
Bernardo Guimarães amava os
passeios no lombo de cavalgaduras. Era um experiente marialva. Montava e dominava
animais xucros sem se lançar da sela, com habilidades e destreza de meter inveja
em muitos peões. “Tinha o gênio do boêmio e participava o delírio
ambulatório de judeu errante, caminhando sempre;mas a feição do desagrado não
aprece no seus versos”, disse de Bernardo o escritor Artur Motta, na “Revista
do Brasil” (1920).
Queluz, onde agora era professor,
fora um dos cenários da revolução liberal de 41, da qual, nos seus 17 anos, ele
participara como combatente das forças legalistas. E fora dali havia então
poucos anos, que partira um pelotão de cerca de 25 voluntários destemidos para
engrossar a primeira brigada mineira que partiria de Ouro Preto para a guerra com
o Paraguai. Era a cidade, pois, que estava na imaginação do poeta, carregando-a
de reminiscência, de saudade e de civismo.
E lá estavam, na lendária
Congonhas, as estátuas de pedra-sabão de Aleijadinho. O que o romancista
ajuizava a respeito dessas esculturas, sobre as imperfeições que lhe causaram
aquelas obras do imortal poeta, ele o fixaria numa das páginas de “O
Seminarista”. Bernardo não gostadas das obras do escultor, seu conterrâneo.
Pois foi durante esse novo
período de judeu errante que lhe nasceu o segundo filho, a 13 de janeiro de 1870.
Era o Horácio. Tinha de chamar-se assim, já que estava no Hamlet, ao lado de
outro Bernardo...
Se, porém, um berço lhe sorria,
um túmulo o magoava profundamente. Falecera, então, o mano padre Manuel Joaquim
da Silva Guimarães. No ano seguinte, outro sepulcro surgiria para entristece-lo:
desaparecia Flávio Farnese, al qual dedicou, à guisa de necrológico, um sentida
poesia, incluída que foi na “Novas Poesias”.
Embora pouco compensador o
magistério, Bernardo dele não se afastaria, nem em troca de atrativos da Corte e
dos engodos da magistratura. “O Sr. Bernardo Guimarães – observa José Carlos
Rodrigues na crítica às “Lendas e Romances”, publicada no “Novo Mundo”,
de 24-6-1872 – ufana-se muito em descrever os costumes de sua Província natal,
e, com toda a razão, prefere cultivar o belo, que há neles, a inspira-se na vida
de luvas e pelica de lenços almisacarados das rodas parisienses da nossa
sociedade”.
“Chamado para fazer parte do
corpo docente do Colégio de Congonhas do Campo – recorda-se disso Carlos José
dos Santos – deram-lhe a cadeira de Filosofia. Ficou contrariado com o
procedimento do Reitor do Colégio, a quem pedira a cadeira de Português e
Retórica. Na primeira aula, estavam todos de batina, e Bernardo começou
solenemente:
Vou pregar um sermão de São
Coelho
Com seu barrete vermelho.
Nos tempos da moura torta,
Viu-se um sapo de espadim
Que perguntava em latim
Pela casa da mosca-morta.
...............................................
Era a maio do bestialógico
que o levava a essas brincadeiras.
Nunca o escritor de Minas se
sentira tão atraído pela natureza como nessa quadra de sua vida. As viagens
semanais a Congonhas do Campo ou a Queluz avivaram-lhe o plectro e a imaginação.
Delineara dezenas de romances, dos quais poucos foram realmente escritos. As
ideais desfilavam apressadas em seu cérebro. Todas as suas histórias teriam por
cenário a natureza. Nada de salões e de grandes cidades! Tudo seria mesmo no
mato, no sertão, nas faisqueiras, nas fazendas.
Ali não esta “a própria
natureza – pergunta Machado de Assis – opulenta, fulgurante, vivaz, atraindo
os olhos dos poetas, e produzindo páginas como as de Porto Alegre e Bernardo
Guimarães?” (Críticas Literárias”, edição Jackson, página 75).
Dedicando-se agora mais à prosa
que ao verso, o romancista mineiro deitou, por uns tempos, a um canto, a sua
harpa, esquecendo-se das aguais de Hipocrente, para empunhar a paleta do pintor.
Notou-o Machado de Assis.
Foi a época em que Bernardo
escrevia sem parar, às vezes até mesmo a cavalo, fazendo de mesa o Atlas de
Géographie de Grosselin-Delamarche, que ele apoiava no santo-antônio d sela.
Distraía-se tanto nessas tarefas que, às vezes, segundo Sousa Ataíde, o animal
“ficava à deriva”, levando-o por outro caminho, e “quando o romancista
imaginava estar chegando a Congonhas ou a Ouro Preto, é que percebia estar em
outra localidade, na qual, no entanto, sempre havia amigos que lhe garantiam
hospedagem, de braços abertos e a qualquer hora”.
Em 1871, publicou três
histórias, enfeixadas em um só volume a que deu o título de “Lendas e
Romances”, lançamento de H. Garnier.
O primeiro destes trabalhos é
“Uma história de quilombolas”, sobre o qiaç asso, opina José Carlos
Rodrigues: “Este romance, como o “Garimpeiro”, é notável pelo vigor e
riqueza das cores, em que o autor pinta os seus quadros de vida do campo e da
roça, no Brasil”. (“Novo Mundo, de 24-6-1872).
Nesta obra, Jacques Raimundo
colheu vocábulos para o seu estudo “O Elemento Afro-Negro na Língua Portuguesa”.
Mateus Cobra e Anselmo gostam de uma mesma beldade, a Florinda, daí o drama de
aventuras e mil peripécias no quilombo do Zumbi Cassange. Parte desta obra foi
vertida para o francês por Victor Orban.
O segundo trabalho é a “Garganta
do Inferno”. baseado numa lenda corrente em Lavras Novas. É a história
sinistra de Lina. Segundo assevera Basílio de Magalhães, foi baseado nesse conto
que Otávio compôs o drama “Sonhos Funestos”, publicado em 1895, na “Revista
Brasileira” e editado em volume pela Casa Laemmert. A Lina de Bernardo é a
Luísa de Rodrigo Otávio; Gertrudes, a Mariana; Daniel, o Fernando. Frederico dos
Reys Coutinho inclui esse trabalho do vila-riquense entre os “Mais belos contos
de Amor”, edição de 1945, da Editora Vecchi.
A terceira parte de "Lendas e Romances" é um interessantíssimo conto
intitulado "A Dança dos Ossos". Cirino, o barqueiro do Paranaíba,
conta como foi a aparição do esqueleto de Joaquim Paulista, à beira do caminho.
Teria Bernardo Guimarães encontrao a inspiração na visão bíblica de Ezequiel?
Como causo do Cirino, vem o da vaca, na estrada, à noite, que deu a ilusão de
dois negros carregando um defunto numa rede. Já neste século, o primoroso
estilista Hugo de Carvalho Ramos, contista goiano. nas suas "Tropas e
Boiadas", reproduziria, sem cerimônias, sob o título de "À beira do
pouso", esse episódio imaginado por Bernardo Guimarães, aproveitando-lhe
integralmente todo o entrecho. Plágio indubitábel, não há dúvida.
Remetidos ao Garnier os originais de "Lendas e Romances", principia
imediatamente Bernardo uma outra novela. Agora é "O Garampeiro".
Aproveita o escritor os lugares que conhecia nas suas andanças pelas bandas de
Catalão. Elias é o novo herói, que se torna garimpeiro para merecer a mão de
Lúcia, a filha do orgulhoso Major.
Esse romance foi vertido para o
francês por Victor Orban. Para o teatro, adaptou-o Joaquim Costa Mattos, com o
título de "Artur e Leonor", representado pela primeira vez em 1896, na
cidade de Barbacena. "Além disso, "O Garimpeiro" já teve a honra
de ser posto em filme cinematográfico", observa Basílio de Magalhães.
Esse romance, no dizer de Sílvio Romero, "é uma narrativa local, é romance
de costumes. Tem boas páginas descritivas, regulares quadros de gênero. Deste
número é a 'cavalhada', que corre logo no segundo capítulo". Na Bagagem,
palco das cenas emocionantes do romance, e onde Simão colhiai os diamantes, foi,
realmente, naquela época, uma região muita rica de gemas. Lá se encontrou, em
1853, a célebre "Estrela do Sul", que deu nome ao lugar, bem como o
diamente de Dresden, dividido nas "custosas pedas que fulgem hoje dos
escrínios de um príncipes indiano", e ainda o valioso diamante de coroa de
Portugal, "maravilhosa luminosa, achada nas grupiaras da fabulosa região, e
o número nunca visto de pedas catadas nas margens" do "milionário
curso d'água" do lugar. (Waldir Costa, "Araxá", 1950, página
138).
Vê-se, pois, o cuidado de
Bernardo Guimarães em emprestar aos seus romances a realidade do cenário.
"A cidade de Patrocínio, no Oeste de Minas, situada no alto de um espigão,
ao pé da serra do Cruzeiro, donde se divisam, em todas as direções, os mais
deslumbrantes panoramas, mercê dessa riqueza de aspectos topográficos, já teve
a honra de ser descrita peo grande romancista mineiro Bernardo Guimarães, que ali
fez desenrolar parte do enredo de uma das suas histórias mais populares, "O
Garimpeiro". (Maria de Melo chaves, "Bandeirantes da fé",
capítulo 18).
Em
poder do escritor Moacir Andrade ficou uma carta de B. L. Garnier, dirigida a
Bernardo Guimarães, datada de 28 de março de 1872, na qual dá notícias sobre o
lançamento de “O Garimpeiro” e dos minguados pagamentos de direitos autorais.
Essa carta foi transcrita, na integra, no suplemento literário de “A Manha”,
de 14 de março de 1943.
Entre
as muitas edições de “O Garimpeiro”, inclui-se a lançada pela Editora
Brasil-América (Ebal) S/A, do Rio de Janeiro, em formato de revista, e “em
quadrinhos”, o que foi uma novidade.
Um
dos maiores estímulos para prosseguir, teve-o Bernardo Guimarães
com o prometedor sucesso de “Lendas e Romances”. Naquele tempo, uma
venda de dois mil exemplares constituía um best-seller. Animou-se o romancista a
remeter ao Garnier um outro volume da histórias
várias. De uma assentada escreve a novela “Jupira”, um dos melhores trabalhos
do prosador ouro-pretano, que ajuntou à crônica histórica “A Cabeça de
Tiradentes” e à novela “A Filha do Fazendeiro”, enfeixando tudo isso em um
outro volume, com o título de “Histórias e Tradições da Província de Minas
Gerais”, volume também aparecido em 1872.
“A
Cabeça de Tiradentes”, que vem em primeiro lugar, narra a lúgubre aventura de
um ardoroso devota da Inconfidência que, a desoras, com um chuço,
derribou do poste de expiação a cabeça do mártir, para com ela correr e
sumir-se nas trevas. A história é verídica.
“A
Filha do Fazendeiro” é a bela Paulina, filha do Capitão Joaquim Ribeiro, da
Uberaba. Tudo aqui acaba em lamentável tragédia, com o suicídio de Roberto, a
morte de Paulina e o enlouquecimento de Eduardo. “Romance para comover, e
comover intensamente, “A Filha do Fazendeiro” é uma jóia literária de
apurado louvor”, opina Dilermando Cruz no seu “Bernardo Guimarães”.
Termina
o volume com a histórica de “Jupira”. Aqui o escritor rememora o cenário de
Campo Belo, no Triângulo Mineiro, que ele conheceu quando aluno dos padres
Lazaristas. É o local onde ora se encontra a cidade de Campina Verde. Baguari é
um índio real, pois já se disse que Bernardo conheceu de perto as malocas e as
ocaras, no convívio da Farinha Podre, sodalício ao vivo de que nenhum outro
romancista participou. “Jupira”, índia civilizada, liquida por ciúmes, ao
pobre do Carlito, que andava rodeando a Rosália.
“O
Seminarista”
Era
em Campo Belo que estava o seminário do Padre Leandro, que Bernardo freqüentou.
E nesse ambiente claustral se inspirou para compor outro romance, “O Seminarista”.
Bernardo
aqui retrata o ordinando sem a vocação para o sacerdócio, em malograda luta
contra a carne, atirando ao convento pela caturrice dos pais, um procedimento
encontradiço naqueles idos. Eugênio, seminarista, e Margarida amam-se, mas os
pais do moço exigem-lhe a ordenação sacerdotal. E fazem de tudo para que
Eugênio não se aproxime de Margarida, mas ele o faz às ocultas. Sabendo-o,
Francisco Antunes, o pai desnaturado, expulsa a humilde jovem de sua fazenda, e
manda ao seminário de Congonhas do Campo uma carta mentirosa, em que dizia que a
moça se casou com um fulano qualquer.
O
padre diretor comunicou a Eugênio a falsa notícia. Alucinado, abatido pelo
desespero, o moço aceitou a ordenação. Na véspera de sua primeira missa, em
Tamanduá, ele é chamado para atender em confissão uma agonizante. Era
Margarida! E é ela própria que lhe revela ter sido mentirosa a notícia de seu
casamento! No dia seguinte, antes de iniciar o ofício, o recém-ordenado tem de
encomendar um cadáver. É o de Margarida! Não suportando tão grande sofrimento,
o Padre Eugênio, desvairado, já nos degraus do altar, arranca do corpo os
parâmetros, atirando-os longe, e atravessa a multidão que, de joelhos, aguardava
o início da missa, sai correndo porta afora, transtornado pela demência, “louco
furioso”.
Grande
romance, uma das melhores obras do romancista de Ouro Preto. Se assinada fosse por
um Shakespeare, se extravasaria, atravessando todas as fronteiras da
intelectualidade universal, e hoje culminaria ao lado das maiores concepções da
arte literária que o mundo já viu. Mas Bernardo não escrevia em inglês, e seus
leitores não são os mesmo do lendário dramaturgo de Stratford On Avon.
Obra-prima, não só pela segurança de estilo e das observações, como pela
realidade e originalidade dos fatos. “Não estarei longe de acertar, asseverando
que “O Seminarista” é a obra-prima de Bernardo Guimarães, no gênero
novelístico”, assim ajuíza Basílio de Magalhães. “Este trabalho é bom,
sendo o mais bem acabado de Bernardo Guimarães”, opina João Alphonsus na “Revista
do Brasil”, de maio de 1941.
Foi
essa obra editada em 1872 pelo Garnier. Dois
anos depois, isto é, em 1874, Hugo Leal publicaria um romance com o mesmo
título.
“O
livro deixa-se ler docemente; não é atordoador e cheio de convulsões; a ação
corre serena e vai direta ao seu fim. Tem muita verdade psicológica e muita
exatidão de tintas nas cenas locais. Não tem aquele aspecto doutrinário,
escavador, científico, técnico, que tem invadido o romance moderno, às vezes
levado a tal exagero que antes ler um
tratado de patologia, especialmente de moléstias do sistema nervoso e das
faculdades mentais, do que ler tais livros, que, afinal de contas, nem ciência
nem arte são. O nosso livro não tem aquele aspecto demonstrativo de uma
equação algébrica nem o tom realista de um processo-crime. O romance é vazado
nos velhos moldes. Mas tem verdade, dessa verdade que impunha a um homem que tinha
os olhos abertos, como Bernardo Guimarães, e sabia observar, ainda que o não
ostentasse”, assim escreve Sílvio Romero em sua “História da Literatura
Brasileira”.
Basílio
de Magalhães, que compara “O Seminarista” ao “Eurico”, de Herculano, faz
este comentário: “Os capítulos 11 e 12, concernentes ao mutirão e à
quatragem e que se assemelham aos do batuque e da briga do “Ermitão de Muquém”,
são admiráveis de fidelidade e de respeito à cor local”.
Bernardo
não fez, aqui, uma novela de simples ficção. A história, mais ou menos,
ouvira-a da tradição corrente na vila de Tamanduá, atualmente cidade do
Itapecerica. “Conheço – diz o mesmo biógrafo – o cenário apainelado com
cores reais por Bernardo Guimarães, e em Itapecerica mostraram-me a casa onde
residiu e faleceu Margarida. Era uma das mais antigas daquela cidade, e já foi
derribada e substituída por um prédio novo”.
Sousa Ataíde diz ter visto, “num canto do cemitério de Formiga, o
tumulo de terra, encimado por uma velha cruz de pau, já quebrada, abandonada e
apodrecida” que, segundo lhe informaram, era o de Eugênio.
Augusto
de Lima, e com eles outros intelectuais, crê que Bernardo Guimarães, em “O
Seminarista”, combate o celibato do clero. O próprio romancista faz crer isso,
quando põe esta exclamação na boca do desditoso padre:
--
“Ah, celibato!... Terrível celibato!... ninguém espere afrontar impunemente as
leis da natureza! Tarde ou cedo elas têm seu complemento indeclinável, e
vingam-se cruelmente do que pretendem subtrair-se ao seu império fatal!...”
A
verdade é que o escritor ouro-pretano jamais pensou em combater o celibato
clerical, e ninguém mais do que ele admirava e louvava o sacerdote de vocação.
Duas
foram as obras de Bernardo Guimarães que tiveram relevante alcance social e um
objetivo altruístico: “A Escrava Isaura”, obra de abolicionista destemido, e
“O Seminarista”. Sua nobreza de propósito não encontra outro exemplo, entre
os demais romancistas nacionais, que o possa igualar nessa feição de
penetração doutrinária e humanitária. Quem tem notícias do condenável
procedimento dos nossos avoengos, que supunham poder dominar e transformar a
natureza, o coração e o temperamento de seus próprios filhos, impondo-lhes a
sotaina, compreenderá e aplaudirá “O Seminarista”, sem lhe atribuir campanha
anticlerical ou de combate à castidade sacerdotal.
Aos
seus amigos de Ouro Preto, o escritor não escondeu o seu verdadeiro intento com a
publicação do romance, com o qual se opunha a uma distorção familiar da
época. Vivia-se numa era patriarcal de muita devoção e piedade cristã. Havia,
então, pais que, para alcançar uma graça, um favor do céu, um milagre, uma
bênção do Senhor, faziam a Deus ou a um santo a promessa da dar um filho para o
ministério do Altar, às vezes até mesmo antes de o filho nascer, e isso sem
atentarem para a vocação, carisma ou chamamento do Alto. E para que esse voto
fosse cumprido, exigiam severamente do moço a ordenação sacerdotal, tivesse ou
não tendência para o culto divino, e empregavam, para tanto, se preciso, até a
violência ou perfídia, para não verem frustrado o compromisso assumido com
Deus. Pois era precisamente essa incompreensão e essa imposição desumana
daqueles pais de outrora que Bernardo desejou combater, e não o celibato para o
sacerdote de vocação.
Hernani
de Irajá, em “O Sensualismo na arte” procura descobrir tintas de lascívia
nesse romance nem sempre
compreendido, do qual transcreve uma trecho em que divisa a luxúria ilustrativa
do tema de sua obra. “Bernardo Guimarães – diz ele --
menos pormenorizador (que Júlio Ribeiro), mas, no entanto, igualmente
forte na maneira de tratar os assuntos, tem em “O Seminarista”, que destacamos
particularmente de seus outros romances, ´páginas em que pinta bem ao vivo as
fraquezas da carne.”
Contrariando
o habitual recato do romancista mineiro ao tratar de entrechos eróticos em suas
novelas, e criando, ao seu talante, uma cena de cabritismo, o cinema, em
obediência à preferência hodierna, acrescentou
ao “O Seminarista” um forte quadro de voluptuosidade, com vistas na
bilheteria.
Índio
Afonso
Em
seguida, escreveu B.G. “O Índio Afonso”.
Para
vingar a irmã Caluta, Afonso pratica as mais atrozes crueldades com Toruna, o
cabra que tentou violentá-la. é uma história de banditismo, vivida nos sertões
goianos. No prefácio, elucida o autor que Afonso “é personagem real e vivo
ainda”. E, por isso, não revelaria o fim de seu bandido. Encontramo-lo, contudo
em Almeida Nogueira:
“Na
comarca de Bagagem teve (João Correia de Morais) de afrontar os mais graves
perigos na repressão ao banditismo que infestava aquela zona. Houve ocasião de
travar verdadeiros combates com os facínoras, organizados em bandos armados e sob
as ordens do célebre índio Afonso, de legendária e romanesca memória. O herói
de Bernardo Guimarães perece na primeira dessas expedições, resistindo com as
armas não mãos às ordens legais do juízo para a prisão dele e de seus
companheiros. Esses fatos, cujo eco chegou ao Parlamento, causaram grande emoção
em toda a comarca de Bagagem e circunvizinhanças, cuja população vivia aterrada
pela fama e feitos atrozes dos bandidos”. (“Tradições e Reminiscências”)
João
Correia de Morais, que assim deu cabo do índio Afonso, era sogro do escritor
Waldomiro Silveira.
O
jornal “Reforma” noticiou as façanhas do temido sicário, referindo-se a ele
como o “herói de um dos contos de Bernardo Guimarães”, slogan, aliás,
encontrado em todos os periódicos da época. Mas o escritor, em resposta, nega a
identificação do famoso jagunço com o seu personagem, pois, conforme ele
declara no prefácio da novela, apenas se inspirara no célebre faquista.
“Tal
índio, personagem tirado da realidade, deu ao romancista certa dor de cabeça,
num incidente que serve para mostrar a sua honestidade literária, a sua maneira
de colher o material e de romanceá-lo, a sua preocupação de exatidão com as
paisagens. É que Afonso, depois de posto no conto, viera a cometer um atentado
horroroso, acompanhado das circunstâncias mais atrozes e revoltantes”, escreve
João Alphonsus.
Que
o índio Afonso realmente existiu, confirma-o Cornélio Ramos em “Catalão de
Ontem e de Hoje”.
“Era
Bernardo Guimarães um bom nadador, nos seus tempos de solteiro, juiz de direito
em Catalão, na fronteira de Minas com Goiás, estivesse o Paranaíba calmo ou
revolto, atravessava-o a nado para participar de pagodes roceiros do lado de Minas
Gerais, onde afirmam teria ele uma
namorada que o trazia apaixonado.
“Índio
Afonso”
“O
romancista não tinha preconceito social; com a mesma facilidade com que se
relacionava com pessoas respeitáveis, misturava-se e convivia com toda espécie
de gente: boêmios, bêbados, pobres, roceiros injustiçados e sofridos, jagunços
perigosos e mulheres da vida. Talvez para melhor conhecer a alma humana. Certa vez
passou um mês inteiro nas margens do rio Paranaíba pescando, caçando e bebendo
cachça ao lado do famoso sicário João Afonso e seus comparsas, ouvido suas
aventuras, anotando suas histórias e narrativas de seus crimes, após o que
voltou-se para o temido aventureiro e exclamou:
--
Afonso, tu não és um criminoso, és um herói!
“Desse
colóquio nascia mais um livro: “O Índio Afonso”, tendo como cenário o
município de Catalão e que em repetidas edições levou o nome de nossa cidade a
todos os recantos do Brasil.
“Outro
livro notável do popular romancista, que teve como cenário o Estado de Goiás,
“O Ermitão de Muquém”. de temática indianista como o anterior e cujo
principal personagem, de nome Gonçalo, é tido como o fundador da famosa Romaria
de Muquém, no norte do Goiás.
“É
em Bernardo Guimarães que se encontra o germe do regionalismo em nossa
literatura. Ponto de partida de uma modalidade literária que evoluiria do
simplismo bucólico até o seu atual e complicado feitio, quando os problemas
políticos e sociais tomaram conta dos tempos regionais.”
Monteiro
Lobato, porém, que sopeava com desdenhativa ironia e humorismo a paleta do
Bernardo Guimarães, na qual só via tintas cediças e terra-a-terra, assim dizia
numa carta a Godofredo Rangel, em 1911:
“O
livro que você planeja sobre bandidos do sertão, capangas etc., também é
necessário. O assunto foi tocado pelo velho Bernardo Guimarães e outros –
gente de pouco realismo – e romantismo em dose maior que o quantum satis. O
folião está virtualmente virgem. Uma das vantagens do romancista brasileiro é
poder lidar só com virgindades. Nenhum tema nosso tem barriga suja. A literatura
faz pendant com a lavoura: ambas só lidam com matas virgens, terras virgens. Tudo
está por fazer. Aqui em São Paulo, quanto elemento de primeira ordem à espera
dos Balzacs e Zolas, pedreiros que saibam assentar tijolos!” (“A Barca de
Gleyre”, Companhia Editora Nacional, 1944, página 213).
O
grande Lobato, inexcedível estilista, a pena mais original e precisa de nossas
letras, como crítico, porém, foi um “pedreiro” muito hábil. Seus tijolos
nem sempre eram colocados em benefício do humorismo. Esquecia que, nos tempos do
prosador de Ouro Preto, cá neste nosso Pindorama ainda se vivia na era do sapé e
do pau-a-pique, do pau-a-pique da
literatura, sem tijolos. Parece-me que o admirável autor de “Urupês” não
leu “O Índio Afonso”. Pois aqui, quanto ao cangaço, Bernardo foi um
garanhão!
Afonso,
bandoleiro realmente existente, foi o precursor de Antônio Silvino, de Lampião.
Bernardo Guimarães foi, pois, o primeiro escritor brasileiro a levar para o
romance a figura de um autêntico cangaceiro. Desde então, o assunto atinente a
banditismo já não é mais uma “donzela” para as letras – para não fugir
à comparação gaiata de Lobato.
Antes
da edição Garnier, que surgiu em 1873, “O Índio Afonso” foi publicado no
folhetim do jornal carioca “Reforma”, nos números de 23 a 31 de janeiro de
1872.
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