Barão
sem baronato
Armelim
Guimarães
D. Pedro 2 |
Imperatriz Tereza Cristina |
Eis que um acontecimento novo e
extraordinário vinha quebrar, em 1881, a monotonia ouro-pretana. Dom Pedro II
assentou de visitar a mui tradicional capital das Alterosas, a lendária Vila Rica
de Albuquerque.
Um emissário do Paço Imperial,
dias antes, compareceu para anunciar ao Presidente da Província, então o Dr.
José Francisco Neto, futuro Barão de Coromandel, as intenções do soberano.
O mestre-de-cerimônias, em
pessoa, passou a ajudar o pessoal do chefe do governo provincial nos preparativos
da recepção. Requisitaram famosos cozinheiros, doceiras e licoreiras.
Procedeu-se, como nunca antes se
fez igual, à limpeza das fachadas dos edifícios públicos, das residências e
das igrejas, varreram-se, com desusada azáfama, as ruas e adros; as bandas de
música ensaiaram seus dobrados e hinos, e a orquestra e os corais preparam-se
para oferecerem umas horas de arte ao culto monarca.
O mulherio se preocupava com os
vestidos, as jóias e os perfumes. A cidade de Ouro Preto se engalanou
suntuosamente para as pompas e as homenagens que se idealizavam e programavam para
as augustas pessoas.
Em 30 de março de 1881, o
Imperador chegava à velha capital das Gerais, debaixo de fotos, salvas, arcos de
bambu enfeitados de flores pelas ruas, e muita música e repicar de sinos de todas
as igrejas. Não houve quem não saísse de casa para ir ver o Imperador do Brasil
e sua consorte, bem como toda a aparatosa famulagem e demais pessoas do numeroso
séquito.
Em toda Ouro Preto só havia uma
única pessoa que ignorava a presença do Imperador e de D. Teresa Cristina. Essa
única pessoa – nem seria preciso dizer – era Bernardo Guimarães.
Quando o emissário da Corte ali
estivera na faina dos preparativos, transmitira ao Barão de Coromandel o desejo
que Dom Pedro II trazia de se encontrar com o autor de “A Escrava Isaura”. Os
que bem conheciam o temperamento do escritor – e que eram todos os habitantes de
Ouro Preto – alvitraram logo a necessidade de se não avisar absolutamente nada
ao boêmio. Soubesse-o ele, por certo
desertaria da cidade.
Tomaram-se, pois, as precauções
mais aconselhadas, medidas estas que contaram com o concurso de D. Theresa
Guimarães, de D. Felicidade, dos filhos do escritor e dos criados da casa. O
homem era mesmo “inimigo das formalidades”, conforme bem observa Sílvio
Romero.
Enquanto
o augusto visitante ocupava festivamente o seu trono improvisado no Palácio dos
Governadores, Bernardo Guimarães, alheio a todas as pompas e galas, embalava-se,
no quintal das Cabeças, na rua rede sob a copada da velha jabuticabeira,
metrificando versos com o violão. Somente um único mortal ousou perturbar-lhe a
paz e a ventura gozada em companhia das Musas. Era Theresa, a delicadíssima
esposa, que lhe vinha dar esta enorme notícia:
-- Dr. Bernardo – era como ela
lhe chamava, nunca dispensando o “doutor” --
o Imperador está aqui em Ouro Preto, e deseja ver-te, hoje, no Palácio.
O poeta, estarrecido, deixou cair
das mãos o violão.
-- Quê!! Pedro II, aqui?!
-- Sim. Ele mesmo. E não há
como recusar-te, porque, em teu nome, mandei dizer a Sua Majestade que
comparecerias.
-- Theresa! Por que o fizeste!
-- Na sala esperam-te o Arieira,
o Horta, o Professor Carlos dos Santos, o Catta, o Chico Felicíssimo, o Gorceix,
o Dr. Ovídio... Querem instruir-te sobre o cerimonial programado. Já preparei
tua casaca.
Bernardo compareceu ao Palácio.
Que fazer? Quanto sacrifício para ele!
D. Pedro II, ao ver o poeta,
rompendo o cerimonial rotineiro, levantou-se e avançou para o seu lado,
abraçando-o, comovido. O monarca, que também fazia versos, externou-lhe a
profunda admiração que por ele tinha, e o desejo de possuir, tomadas das
próprias mãos do escritor, todas as obras já publicadas.
No dia 2 de abril, o Imperador e
a Imperatriz se ausentaram de Ouro Preto para uma visita a Sabará, a Santa Luzia,
a Caeté, a Cachoeira do Campo, a Casa Branca, a Rio das Pedras, a Congonhas do
Campo, a Mariana, ao Morro Velho, a Macaúba e ao celebérrimo Colégio do
Caraça, onde Sua Majestade teve o ensejo de mostrar sua erudição, sobre em
línguas, e onde teve um atrito em questões de Teologia com o Padre Chanavat.
Nessa demorada incursão pelo
interior de Minas, onde o monarca visitou colégios, educandários, trabalhos de
mineração e de algumas indústrias, obras de arte em esculturas e arquitetura, e
locais históricos, contou a comitiva real, com um dos seus componentes e
orientadores, com o cientista Henrique Gorceix, casado com uma sobrinha de
Bernardo Guimarães, filha de Joaquim Caetano.
Enquanto o soberano fazia essa
excursão, na qual demorou muitos dias, Bernardo mandou uma pessoa ao Rio de
Janeiro, às pressas, a todo galope, para trazer uma coleção encadernada de sua
sobras, no que foi prontamente atendido pelo editor Garnier. Só lhe faltavam
publicar então as “Folhas do Outono”, “Rosaura, a Enjeitada”, e o “Bandido
do Rio das Mortes” (este último romance seria publicado postumamente, terminado
que seria pela viúva do escritor).
Regressando o monarca a Ouro
Preto, Bernardo Guimarães apresentou-se novamente a ele, agora com suas duas
filhas, Isabel e Constança, que levavam, em bandejas os volumes até então
publicados pelo bardo e prosador mineiro. Era 20 de abril de 1881.
Tomando os livros, perguntou Dom
Pedro II:
-- São só estas as suas obras,
Dr. Bernardo?
-- E mais estas duas, Majestade,
que são as que mais aprecio – respondeu prontamente o poeta, apontando suas
duas filhas.
Comovido, e depois de afirmar,
mais uma vez, sua admiração pelo bardo mineiro, comunicou o Imperador a Bernardo
o seu propósito de torna-lo barão. Ponderou-lhe o escritor:
-- Sou, Majestade, um homem
pobre. Onde já se viu um barão sem baronato?
E recusou terminantemente a
honraria, alegando a pequenez de sua pessoa.
“Dispersivo”, observa Milton
Pedrosa. “Dispersivo e desinteressado. Um desinteressado que chegou ao ponto de
recusar várias vezes o título de barão que lhe o oferecia o Imperador. Barão
sem baronato...” (“Vamos Ler!” de 27 de abril de 1944).
“Era um acérrimo inimigo de
honrarias”, comenta Carlos José dos Santos.
Rejeitou o boêmio tamanha
glória, o título de barão que, no dizer de José de Alencar, era “a
canonização dos bem-aventurados neste reino do paraíso terrestre”. (“Sonhos
de Ouro”, página 6)
Ao jornalista do “Jornal do
Comércio”, José Tinoco, que acompanhou Sua Majestade a Ouro Preto, dedicou
Bernardo Guimarães as “Estrofes”, que incluiu nas “Folhas de Outono”:
Viajor, que visitas nossas plagas
Alpestres e sombrias,
E do Itacolomi nas duras fragas
Vens pousar alguns dias,
Eu te saúdo; tua mão aperto,
E às expansões achas um peito aberto
É um poema de 14 estrofes
regulares, versos metrificados e rimados, no qual, depois de saudar o jornalista
nessa primeira estância, passa a apresentar-lhe a cidade cercada de montanhas,
com o ouro de seu solo, com a opulência de seus prédios venerandos, com o
civismo de Tiradentes e a lira de Gonzaga, berço da liberdade e da História. É
uma primorosa composição sobre Ouro Preto, datada de julho de 1881. Esse José
Tinoco, que presenciou o episódio da entrega dos livros ao monarca, assim
documentou em carta:
“Arraial do Ouro Branco, 21 de
abril.
Na carta que escrevi de Ouro
Preto não disse, por ser tarde, que tendo S.M. o Imperador declarado ao Dr.
Bernardo Guimarães que desejava possuir uma coleção completa de suas obras,
ontem à noite em Palácio aquele estimado escritor e poeta levou-lhas, mas sendo
intérprete perante Sua Majestade a menina Constança da Silva Guimarães, filha
do referido poeta, a qual pronunciou as seguintes palavras:
‘Senhor, à presença de
V.M. Imperial temos a honra de apresentar-nos, eu e minha irmã Isabel, que aqui
se acha a meu lado, a fim de ofertar a V.M. Imperial, em nome de nosso pai, o Dr.
Bernardo Guimarães, estes volumes de suas produções literárias.
Ele pede desculpa a V.M.
Imperial pela insignificância da oferta, e quis que fosse apresentada por nossas
mãos a fim de significar por este modo a pureza e sinceridade da fraca homenagem
de amor e respeito que hoje depomos nas augustas mãos de V.M. Imperial.’
(De Alphonsus de Guimaraens
Filho, “Poesias Completas de Bernardo Guimarães”, páginas 501/502). O “Jornal
do Comércio” de 25 de abril de 1881 publicou essa notícia.
Quanto às obras que o escritor
mineiro “mais apreciava”, que eram suas filhas, Isabel casar-se-ia e seria
mãe de oito filhos e Constancinha, a musa inspiradora de seu primo Alphonsus de
Guimaraens, morreria solteira, aos 17 anos.
O jornalista José Tinoco, do “Jornal
do Comércio” do Rio de Janeiro, testemunha que foi de todos aqueles
acontecimentos, fez amizade com Bernardo Guimarães, a ponto de ser agraciado pelo
vate ouro-pretano com o poema a que já me referi, inserto que seria nas “Folhas
do Outono”. Desse jornalista é a seguinte informação, estampada na folha que
ele representava:
“Por falar em poesia, fui aqui
visitado pelo Dr. Bernardo Guimarães, poeta de tanta nomeada no Brasil. Estando
no meu quarto, contou-me que fora a Palácio cumprimentar o Imperador, e
procurando o chapéu para sair não achou o seu e sim um velho e imprestável.
Parou de falar e fitando-me muito sério começou a dizer os seguintes versos:
Hoje a casaca enverguei,
Coisa que muito me custa
Para ver a face augusta
do rei que sempre estimei
Como aconteceu, não sei,
Pois que, estando em Palácio,
Sucedeu-me um labéu:
Julgando ir para o céu,
Fiquei como um pascácio
De casaca e sem chapéu!”
O poeta compôs o Hino
a S.M.I. o Sr. D. Pedro II, que foi cantado pelas alunas da Escola Normal de
Ouro Preto, perante o soberano e sua consorte, composição esta que seria
incluída nas “Folhas do Outono”, como 14 estrofes.
Compôs também duas Saudações
em versos, uma dirigia ao monarca, outra à augusta esposa.
À primeira Saudação fez o
poeta preceder de uns versos do próprio Pedro II, seguidos de outros de autoria
de João Joaquim da Silva Guimarães, pai de Bernardo. Essas duas saudações
estão incluídas no volume “Folhas do Outono”.
Por sugestão de D. Pedro II, o
Barão de Coromandel, pouco antes de deixar o governo provincial, incumbiu a
Bernardo Guimarães de escrever uma história de Minas Gerais, para o que poderá
contar o escritor com todos os arquivos da Província.
O romancista anuiu de boa vontade
ao pedido, não o podendo, entretanto, realizá-lo, pois a morte o colheria três
anos depois, quando ainda principiava as primeiras diligências para o exame de
documentos e alfarrábios, das fontes principais da projetada obra, da qual já
havia esboçado o “esqueleto”.
Havia muito que Dom Pedro II
desejara conhecer o já famoso aedo e prosador mineiro, e com ele palestrar, e por
duas vezes mandara-lhe convite para comparece a Palácio, quando ele, Bernardo,
ainda estava no Rio de Janeiro. O boêmio, de índole avessa a encontros solenes,
sempre encontrou evasivas para não aceder aos rogos do monarca. Desta feita,
contudo, não houve como se esquivar.
Escrito de inestimável valor
documentário para os biógrafos de Bernardo Guimarães é a reportagem de Timon,
publicada no jornal “O Oriente”, de Paraíso, Minas, no seu número de 12 de
junho de 1881, longo escrito este transcrito na íntegra por Dilermando Cruz no
seu “Bernardo Guimarães”.
Conta Timon que também a
Imperatriz muito se interessou em conhecer a Bernardo Guimarães, e que os
soberanos, durante a viagem, com muita consideração se referiam ao poeta.
Informa esse repórter pormenores
sobre o baile, as músicas executadas pela orquestra e por solistas, e o apuro por
que passou o escritor para encontrar a melhor oportunidade para entrar na sala do
trono, atrapalhado com sua timidez e modéstia, e como foi que, afinal, lograra o
boêmio o segundo encontro com S. Majestade, graças às diligências do
engenheiro Francisco de Lemos, que o levou para frente, quase no arrastão.
“O Imperador”, dizia a
reportagem de Timon, “em pequena distância da porta, avistou logo a Bernardo
Guimarães, as meninas e os livros; e mesmo sem estar prevenido, adivinhou o que o
poeta dele pretendia; e levantou-se e marchou para o lado da porta. Todos
supuseram, a princípio, que o Imperador ia retirar-se e toda aquela assembléia
se pôs de pé. Mas quando o poeta, aos primeiros passos apareceu, notou-se um
sussurro que denotava a impressão que ele causara em todos que ali se achavam.
Ele estava todo trajado de preto e as meninas traziam vestidos brancos curtos.
Nem uma condecoração se via em seu peito, nem uma flor no cabelo das
meninas, nem uma fita em seus vestidinhos.
“Como marchassem um para o
outro, o Imperador tomou com as suas mãos as mãos do poeta e apertou-as com
força e visível efusão. Todos ficaram comovidos e muita gente derramou
lágrimas. O Imperador conversou por alguns instantes com Bernardo Guimarães,
tomou as meninas pelas mãos e as apresentou à Imperatriz, que também se tinha
levantado. Depois o Imperador e a Imperatriz sentaram-se no meio do mais profundo
silêncio. A Imperatriz acariciou as meninas pelas quais tanto se tinha
interessado antes de as ter visto, e o Imperador mandou que tomasse nota de seus
nomes.”
Isabel Guimarães
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