Aureliano Lessa
[O poeta mineiro Lessa
(1828-1861) foi amigo de B.G.
Ambos estudaram na Faculdade de Direito São Francisco.]
Ei-los, os belos, encantados sítios,
O céu puro e risonho,
Que o viram nascer, e que o embalaram
Em seu primeiro sonho.
- Foram estes os campos, que na infância
Os olhos lhe enlevaram;
Estes os céus, que os vividos fulgores
Na mente lhe entornaram.
- Aqui nutriu a fantasia ardente
De imagens fulgurantes
Ao murmúrio do córrego, que rola
Rubins e diamantes.
Entre rolos de nuvens refulgentes,
Deslizar eu a vi meio envolvida
Num véu subtil de névoas transparentes.
Na áspera avenida,
Co'a fronte circundada de esplendores
Não parecia andar, porém sustida
Sobre coxim de lúcidos vapores
Parecia ir de leve resvalando
Nas bravas penedias,
Os arrojados píncaros galgando.
Na destra ela sustinha a doce lira,
Por quem o eco destas serranias
Lembrando as glórias dos antigos dias
Inda hoje em vão suspira.
- Da bronca serra na empinada crista,
Vizinha à região das tempestades,
Tendo a seus pés quase a perder de vista
Montanhas, rios, selvas e cidades,
Sobre a grimpa altaneira
Alçou-se a ninfa ao mundo sobranceira;
E em torno do vastíssimo horizonte
Pairando um triste e derradeiro olhar
Trava da lira, e assim lá do Itamonte
Começa de cantar:
- "Adeus, montanha minha, adeus, ó fonte,
Que eu tanto tenho amado;
Vou deixar-vos;... mas levo de saudades
O peito repassado.
- "Fui rainha dos montes da Harmonia;
Brindei com liras de ouro
Poetas imortais, e em nobres frontes
Cingi sagrado louro.
- "Mas já se foram tão formosos dias,
E hoje de saudade
Suspiro em vão pelas brilhantes glórias
De tão feliz idade.
"Meus viçosos vergéis emurcheceram,
Não têm folhas, nem flores;
Ai de mim! não me resta um só abrigo
Do sol contra os rigores!
"Estes ecos, que outrora repetiam
Meus cantos maviosos,
Não me ouvem mais, e nas sombrias grutas
Dormem silenciosos.
"Crescem espinhos e bravios matos
Na gruta deleitosa,
Onde outrora morei; dentro se aninha
Serpente venenosa.
"E tu, ó clara fonte, que golfavas
Sonora entre os penedos,
E meiga a meus ouvidos murmuravas
Melódicos segredos.
"Hoje turva, rolando lodo imundo,
Na voragem sombria
Não refletes o céu no azul regaço,
Não tens mais harmonia.
"A garça não vem mais as níveas plumas
Banhar em teu licor,
Nem se ouve o sabiá aos teus murmúrios
Casar hinos de amor.
- "Não tem asas a musa; a lira e o louro
Jazem de pó cobertos,
Vãos emblemas de um túmulo esquecido
Em meio dos desertos.
- "O canto do inspirado em vão soara
Entre as turbas descridas;
Em vão; no sono vil da indiferença
As acha adormecidas.
"Passara, como a brisa, que nas selvas
Sem rumores soprou
Entre despidos troncos, cuja coma
O incêndio devorou.
"Respiram por aí corrutas auras
De ambição e avareza,
E os monótonos dias conta o vulgo
Imerso em vil tristeza.
"Silêncio pois, ó musa; não profanes!
Da lira o dom sagrado;
Deixa este monte, que empestado sopro
O tem contaminado.
"Adeus, montanha minha, adeus, ó fonte,
Que eu tanto tenho amado;
Eu vos deixo, mas levo de saudades
O peito repassado.
- "Eu parto, mas enquanto este penedo
Aqui erguer a fronte.
Há de soar nas cordas desta lira
O nome do Itamonte".
***
Cessou seu canto a virgem da montanha,
E o eco entristecido,
Que das vizinhas grutas a escutava,
Daquele adeus sentido
As derradeiras notas murmurava.
Eis pressuroso pelos ares rompe
De ouro e de nácar plaustro primoroso,
Que na lúcida esfera vem tirando
Um de alvíssimos cisnes par formoso.
Em torno dela o adejo serenando
Ao som de suavíssimos gorjeios
O etéreo carro um círculo descreve,
E em vórtice abatendo os seus rodeios
Aos pés da ninfa vem pousar de leve.
Sobre a concha mimosa
Ela em leito de flores se reclina;
Fulge-lhe a fronte imersa em luz divina
Tão pura e tão formosa,
Que se não fosse então do ocaso a hora,
Cuidáreis ver no monte a linda aurora.
Em tímidos queixumes
Dizem-lhe adeus as fontes suspirosas;
Vertendo mil perfumes
Brandas auras em torno lhe perpassam
Brincando buliçosas
Co'as luzidias tranças, que esvoaçam.
E ela olhos saudosos,
Em que o pranto os fulgores desmaiava,
Pela suprema vez triste pousava
Pelos cerúleos topes alterosos
Desses montes, que as doces melodias
Tinham-lhe ouvido em mais ditosos dias.
Em manso adejo os páramos varando
Da solidão dos ares,
Batem asas os cisnes gorjeando
Dulcíssonos cantares,
E longe, longe, no horizonte infindo
Engolfados no azul se vão sumindo.
|