Diga-me cá, meu compadre,
Se na sagrada escritura
Já encontrou, porventura,
Um Deus que tivesse madre?
Não pode ser o Deus-Padre,
Nem tão pouco o Filho-Deus;
Só se é o Espírito Santo
De que falam tais judeus.
Mas esse mesmo, entretanto,
De que agora assim se zomba,
Deve ser pombo, e não pomba,
Segundo os cálculos meus.
Para haver um Deus com madre,
Era preciso um Deus fêmea;
Mas isto é forte blasfêmia;
Que horroriza mesmo a um padre.
Por mais que a heresia ladre,
Esse dogma tão cru,
— De um Deus de madre de angu, —
Não é obra de cristão,
E não passa de invenção
Dos filhos de Belzebu.
E, se há um Deus do Angu,
Pergunto: — Por que razão
Não há um Deus do Feijão,
Seja ele cozido ou cru?
De feijão se faz tutu,
Que não é mau bocadinho;
Mas não se seja mesquinho:
Como o feijão sem gordura
É coisa que não se atura
Deve haver Deus do Toicinho.
Desta tríplice aliança
Nascerá uma trindade,
Com que toda a humanidade
Há de sempre encher a pança;
Porém, para segurança,
Como o angu é dura massa,
E o feijão nunca tem graça
Regado com água fria,
Venha para a companhia
Também um Deus da Cachaça.
Mas segundo a opinião
De uma minha comadre,
Nunca houve um Deus de madre,
Nem de angu, nem de feijão.
Tem ela toda a razão.
Pelos raciocínios seus,
Que são conforme aos meus,
Isto é questão de panela,
E Deus não deve entrar nela,
E nem ela entrar em Deus.
E, portanto, aqui vai uma emenda,
Que tudo remenda:
Vai aqui oferecida
Uma emenda supressiva:
Suprime a madre, que é viva,
Fica o angu, que é comida.
A Comissão — convencida
Pelos conselhos de um padre,
Que conversou com a comadre —
Propõe que, desde este dia,
Chame-se a tal freguesia
A do Angu de Deus, sem Madre.
Nota 1: Angu — Massa consistente
de farinha de milho (fubá), de mandioca ou de arroz, com água e sal, escaldada
ao fogo. [Cf. polenta.] (Dicionário Aurélio)
Tutu — Feijão que, uma vez cozido e refogado, é engrossado com farinha
de mandioca ou de milho, tomando consistência de pirão; tutu de feijão, ungui,
ungüi. (Dicionário Aurélio)
Nota 2: Por causa da
Madre-de-Deus-do-Angu - escrita em 1865 e publicada só em 1883 -, B.G. foi
criticado por autoridades da Igreja Católica e fiéis que acusaram o poema de
cometer heresias. Não gostaram, por exemplo, de "Para haver um Deus com
madre/Era preciso Deus femea/Mas isso é forte blasfêmia/Que horroriza mesmo um
padre". E como horrorizou! (FG) Antiga
freguesia hoje se chama Angustura
Trecho do livro Bernardo
Guimarães, Romancista da Abolição, de Armelim Guimarães: "Sobre
o poema Parecer da Comissão Estatística a respeito da Freguesia da
Madre-de-Deus-do Angu, escreveu Basílio de Magalhães: "Houve em
1883 acalorado debate na Assembléia Provincial de Minas a propósito da
mudança da denominação da freguesia de Madre de Deus do Angu. Não se
conteve Bernardo Guimarães ante a esquisitice de tal topônimo e o
pinturesco da discussão, e a sua irreverente musa imediatamente lhe fez
fluir dos bicos da pena uma das suas melhores composições, senão a
melhor, do gênero jogralesco. Ao "Colombo", de Campanha, que
a obtivera de um amigo do poeta ouro-pretano, coube publicá-la em sua
edição de 30 de setembro de 1883". J.M.
Vaz Pinto Coelho dizia possuir os originais desse poema, informando ter
sido ele escrito em 1865. É para estranhar, pois a mudança do
topônimo da referida freguesia ocorreu exatamente em 1883, tal como
informa Basílio. Madre de Deus de Angu é a denominação antiga de um
distrito que já pertenceu ao município de Leopoldina, agora anexado ao
de Além Paraíba, da Zona da Mata, de Minas Gerais. Em
18 de outubro de 1883 teve a sua denominação mudada para Madre de Deus
de Angustura, reduzida depois para Angustura. O
novo topônimo é uma referência histórica. Foi dali, do antigo
arraial do Angu, que partiu o maior contingente de voluntários para a
guerra do Paraguai, e forma esses homens, sob o comando de Mena Barreto,
conseguiram a memorável rendição de Angustura, no cerco decisivo de
30 de dezembro de 1868."
PS.: Angustura
significa "Passagem estreita entre montanhas" (Dicionário
Aurélio).
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