No álbum de B. Horta
Estrofes dedicadas a meus jovens amigos os
Bernardo Horta de Araújo e Pedro de Moura Estévão
Oh! é já tempo de depor a lira
A um canto pendurada,
Como esfriada cinza de uma pira
Que jaz quase apagada,
Ou como flor sem viço e sem perfume,
Que cai no pó, e murcha e se consume.
Sim, é já tempo - Do zenith
brilhante
De ardente inspiração
Vai declinando o astro fecundante
Que em mágica ilusão
Me inundava de luz e de harmonia
A juvenil, ardente fantasia.
Assim pensei, e a voz do desalento
Em minha alma ecoava,
E ao peso de tão triste pensamento
A fronte me vergava;
Em vil marasmo eu ia adormecer,
E assim viver... viver até morrer.
Viver?! - Oh! não, isso não era
vida,
Só era vegetar;
Isso era ver minha alma apodrecida
Sem crer e sem amar.
Melhor é dar o corpo à sepultura
Do que deixar a mente em treva escura.
E entretanto ao mórbido marasmo
O coração cedia;
A esperança, a crença, o entusiasmo,
De mim longe fugia;
E eu me julgava como estéril tronco,
Que o vendaval prostou em sítio bronco.
Mas ei que uma briosa mocidade
Em generoso empenho
Vem despertar da triste ociosidade
O meu inerte engenho,
Que em taciturna, lânguida apatia
Do mundo e de si mesmo se esquecia.
Vós, meus amigos, despertar viestes
A chama quase morta
Da inspiração, e entre clarões celestes
Me franqueais a porta
Por onde entra arrojada a fantasia
Nos alcáceres da mágica poesia.
Sã não são para mim da juventude
Os risos e os folguedos,
Pelas cordas de erótico alaúde
Não mais brincam meus dedos;
Ao declinar do sol cantos mais graves
Ensina o céu até às próprias aves.
Mas se as meigas visões, os ledos
sonhos
Da quadra juvenil
Já não me enfeitam de clarões risonhos
Um céu de puro anil,
Se as cordas de minha harpa emudeceram
Para as rosas de amor, que emurcheceram,
Acima disso eu vejo no horizonte
O mundo, a humanidade;
Acima disso sobre a minha fronte
Há Deus e a imensidade;
Do universo o espetáculo solene
E de alta inspiração fonte perene.
Inda em meu peito não rompeu-se a
fibra
Do amor e da amizade,
E em minha lira ao menos inda vibra
A corda da saudade;
Do passado me resta uma lembrança
E ainda fulge além uma esperança.
Quando na azul abóbada cintilam
As lúcidas estrelas,
Ainda para mim ledas rutilam,
Ainda posso vê-las,
E a ebúrnea lua, e os páramos etéreos
Falam comigo a língua dos mistérios.
Lá onde freme a viração sonora
Na trêmula folhagem,
Onde ao clarão de resplendente aurora
Inflama-se a paisagem,
Onde à tardinha o sabiá suspira
Saudoso adeus ao sol, que se retira;
Onde por baixo de vergel sombrio
Sereno serpenteia,
E mal murmura cristalino rio
Lambendo a branca areia,
E entre os ramos ledos passarinhos
Tecem cantando seus mimosos ninhos;
Lá está minha alma; lá ouço tranqüilo
Da natureza o hino;
E no suave, perfumoso asilo
Da lira os sons afino
Para cantar os céus e a imensidade,
E os enlevos do amor, ou da amizade.
Vede Castilho, o lusitano bardo,
Do Tejo cisne ingente;
Nem a cegueira, nem da idade o fardo
Lhe apaga o engenho ardente,
E a musa que o embalou na meninice
Só à margem da campa - adeus lhe
disse.
Milton, que deixa na posteridade
Um nome enobrecido,
Milton já cego, ao declinar da idade
Decanta o Éden perdido,
Deplorando na lira harmoniosa
Do par primeiro a queda lamentosa.
Ainda vive Hugo octogenário
Sem ter quebrado a lira,
E a pujança de um gênio extraordinário
No seu cantar respira;
É grave a voz, mas é voz de poeta,
Sente-se ainda o músculo do atleta.
Assim tamém no meio da jornada
Não devo esmorecer,
No chão deixando a lira desmontada
Sem glória adormecer;
Devo seguir na começada senda,
Até que a morte me desmanche a tenda.
De vosso aplauso ao tépido bafejo
A lira adormecida
Acorda e ergue com modesto arpejo
A voz agradecida
Para saudar-vos, nobre mocidade,
Da pátria em nome, e em nome da
amizade.
Assim, quando no bosque sopra a aragem
Da fresca primavera,
Mais vivo esmalte e nítida folhagem
O tronco recupera,
E meneando o tope seu sombrio
Derrama em torno brando murmurio.
O prover vos pertence; em vossa fronte
Fulgura a inteligência;
À viva luz de esplêndido horizonte
O templo da ciência
Vos franqueia recônditos tesouros,
E vos acena com virentes louros.
Bem feliz serei eu, se com meus hinos
Puder vos saudar,
Quando vos vir em prósperos destinos
Na paz de vosso lar
De tão nobres esforços e labores
Colhendo à farta frutos entre flores.
Ouro Preto, 20 de agosto de 1881 |