Vida e Obra de Bernardo Guimarães
  poeta e romancista brasileiro [1825-1884 - biografia]

 
HOME | ISAURA ROMANCES | POESIAS | DOWNLOADS | PREFÁCIOS | CARTAS
  LIVRO 'ROMANCISTA DA ABOLIÇÃO' | CAUSOS | BG DE CADA UM | BG DIVERSOS
  DESCENDENTES | GENEALOGIA |
CURIOSIDADES | CONTEMPORÂNEOS DE BG
  ICONOGRAFIA | BLOG | EXPEDIENTE |
DEU NA MÍDIA | E-MAIL | LINKS

   

 

Contos da Solidão
Prelúdio
Amor ideal
Esperança
Invocação
Primeiro sonho de amor
Hino à aurora
O Ermo
O Devanear de um céptico
O devanear de um céptico (em esp.)
A uma estrela
No meu aniversário
Desalento
O destino do vate
Visita à sepultura de meu irmão
À sepultura de um escravo

Inspirações da Tarde
Invocação à saudade
Recordação
Ilusão
O sabiá
Hino do prazer
Hino à Tarde

Poesias Diversas
O nariz perante os poetas
À saia balão
Ao charuto (Ode)
Ao meu aniversário
Sirius
Dilúvio de Papel
Minha rede
Galope infernal
Adeus -- a meu cavalo branco
Idílio
A Orgia dos Duendes
Olhos verdes
Uma filha do campo
Ilusão desfeita
Utinam -- imitado de Victor Hugo
Foge de mim
Que te darei
A fugitiva
O bandoleiro
Ao cigarro

Evocações
Sunt lacrimæ rerum
Prelúdio
Primeira evocação
Segunda evocação
Terceira evocação
Lembrança
Nostalgia
Saudade
Lembrar-me-ei de ti
A meus primeiros cabelos brancos
Cenas do sertão
A Baía de Botafogo

Novas Poesias
Elegia
O meu vale
O brigadeiro Andrade Neves
A cismadora
À morte de Teófilo B. Otôni
Nênia
Gentil Sofia -- Balada
A campanha do Paraguai
Barcarola
O adeus do voluntário
Cantiga
Se eu de ti me esquecer
A morte de Flávio Farnese
Aureliano Lessa
Adeus da musa do Itamonte
"A Bernardo Guimarães"
A poesia
Melodia
Estrofes (À Brigada de 1864)

Poemas obsenos
O Elixir do Pajé
A Origem do Mênstruo

Folhas de Outono
Ode
Estrofes
Poesia
Hino ao 3º Batalhão de Voluntários
Flor sem nome
O vôo angélico
Poesia
Dous anjos
Não queiras morre
A Camões
Camões
Décimas
Estrofes
Uma lágrima
Epitalâmio
Fagundes Varela
À morte da inocente Maria
A sereia e o pescador
No álbum de Bernardo Horta
Hino à lei de 28 de setembro de 1871
Hino a Tiradentes
Saudades do Sertão de Minas
Saudação ao  Imperador
Hino a S.M.I. o Sr. D. Pedro II
À moda
Hino à Preguiça
O Ipiranga e o 7 de Setembro

Dispersos
Morte de Gonçalves Dias
Endereço ao editor
Soneto (Eu vi dos pólos o gigante alado)
Mote estrambótico
Lembranças do nosso amor
Disparates rimados
Parecer (Madre-de-Deus-do-Angu)
Dedicatórias
Trabalho e luz
Tributos da saudade
À memória de Monsenhor Felicíssimo

Cenas do sertão
Fragmentos de uma epístola dirigida a um amigo da província de Goiás

CAÇADA DE VEADOS
COMBATE DE TOUROS

Nessas remotas solidões que habitas,
Entre essas broncas, virginais florestas,
Onde se ouve o rugir das cataratas,
Que em catadupas furiosas roncam,
Ou da tormenta o sopro impetuoso,
Que a grenha açouta aos seculares troncos,
Ou do selvagem caçador a grita,
Que as matilhas açula atrás da onça,
Do mateiro veloz, da anta membruda,
Nesses ermos saudosos, que contigo
Tantas vezes, amigo, hei percorrido,
Vai hoje visitar-te a minha musa.

Vai ela só... E pena que eu não possa
No aprazível passeio acompanhá-la;
Eu de bom grado aos ermos a seguira.
Mas não sei que destino aqui me prende
Entre um montão de lúgubres papéis,
Que como enxame de importunas vespas
Em torno me esvoaçam de contínuo,
Folhas chamadas, não as verdes folhas,
Que a fronte adornam das viçosas selvas,
E vertendo ao cansado viandante
Com brando rumorejo alma frescura
Dão vida ao coração, repouso à mente.

São folhas secas, áridas, tristonhas,
Que por todos os cantos me farfalham,
Como baratas chocalhando as asas
Entre as fendas de velho pardieiro.
Dizem no entanto os homens entendidos
Que essas tristes folhas são as asas
Com que voa o progresso pelo mundo...
Vivo portanto aqui imóvel, quedo,
Como droga, embrulhado em papelada.
Vai pois a pobre musa, e vai sozinha
Por essas feias matas, sem ter medo
De onças, sucuris ou jararacas,
No teu fundo retiro procurar-te.
Não vai c'roada de apolíneo louro,
Nem cinge aos pés o clássico coturno,
E nem tão pouco empunha ebúrnea lira
De cordas de ouro e ornada de guirlandas.
Vai, coitadinha! de chapéu de palha,
De xale sobraçado; os pés lhe amparam
Sandálias de romeira, - aos ombros leva
Um velho violão, e nos cabelos
Singelas flores, que apanhou no campo.

.................................................................
...................................................................

E tu, a quem a pródiga natura
Criou para cantar as maravilhas
Desse torrão feliz em que nasceste,
A quem o sol esplêndido dos trópicos
N'alma ateou da inspiração a chama,
Que fazes nesses teus ignotos ermos,
Que o sonoroso canto não desprendes
Celebrando os encantos e as riquezas
Que a mãe de Deus com profusão criara
Nesses donosos páramos infindos?...
Do lar paterno nos umbrais sentado
Contemplas mudo os vastos horizontes,
As cenas grandiosas, os prodígios,
Que em torno a natureza te desdobra,
As estranhas usanças, os costumes
Semi-selvagens desse povo inculto,
Que vagueia nas ribas nemorosas
Do Parnaíba undoso e turbulento,
E de tua alma nem um eco escapa,
Nem um só canto casas aos rumores
De teus palmares, ao murmúrio eterno,
Com que te embalam selvas seculares?...

Eia, amigo, desprende a lira tua
Do ramo em que ociosa balanceia
Das solidões, ao vento reboando,
E canta-nos da terra, em que nasceste,
O puro céu de nuvens esmaltado,
Que em graciosos flocos se enovelam
De cambiantes cores irisadas;
Os cristalinos córregos saltando
Pelo vargedo entre floridas moutas,
Dos campos seus o eterno e vivo esmalte,
As selvas majestosas, as torrentes,
Que nas profundas furnas despenhadas
O leito cavam por penedos broncos,
Os ondulosos plainos de verdura,
Onde dispersas vagam as manadas
De truculentos bois, nédias novilhas,
De variadas cores marchetando
A viçosa esmeralda das campinas.

Conta-nos como o caçador valente
No fragueiro exercício endurecido
Lança no mato as trelas adestradas
Dos raivosos lebréus impacientes,
Que de um salto se atiram pelas brenhas,
Latindo, uivando, a demandar a pista
Da descuidada vítima inocente.
Ergue as orelhas o veloz mateiro,
Que na oculta guarida estremecendo
Escuta ao longe o rábido alarido
De seus infatigáveis inimigos.
Veloz como o tufão, ei-lo que aos saltos
Rompe do bosque a emaranhada grenha,
Furnas transpõe, valados e tranqueiras
De tombados madeiros; - como a péla,
Que cada vez mais alto salta e voa,
A pulos vence os alcantis agudos,
Galga barrancos, sotopõe fraguedos,
Até que de fadiga extenuado
Pelas narinas, pela aberta boca

Os ardentes arquejos exalando
Os fumegantes flancos lhe latejam...
Porém julgando já longe o perigo
Estafado e arquejante um pouco pára,
Por um momento inquieto o ouvido aplica
A consultar os ecos da floresta; -
Mas ai! - inda não longe lhe ressoam
Os contínuos latidos da matilha,
Que encarniçada lhe não deixa a pista.
Escuta ainda; - além murmura o rio,
Que o largo veio manso desdobrando
A salvação e a vida lhe oferecem,
Que as selvas suas amparar não podem.

...........................................................

Nas águas ofegante se arremessa
E afouto fende as ondas alterosas
Em demanda da oposta ribanceira.
Pobre animal! - já na sabida espera
Em ligeira canoa bordejando
O caçador o aguarda apercebido.
Não troa um tiro, que a veloz piroga
Por vigorosos braços impelida
Nas águas resvalando corre ao encalce
Da fatigada vítima indefesa,
Que pelos galhos súbito agarrada
Por mãos possantes, sente nas entranhas
Buído ferro penetrar rangendo,
E da existencia as fontes lacerar-lhe.
Num extremo balido o alento exala,
E com seu quente sangue tinge as águas,
Onde imprudente a salvação buscava.

..........................................................
..........................................................
..........................................................
..........................................................
..........................................................
..........................................................

Tranqüilo pasce o touro corpulento,
Das manadas senhor, a relva tenra
Dos verdes chapadões. - Sultão temido,
Em meio do cornígero serralho
Ninguém lhe turba a paz, nem contrasta
O poderio que de há largos anos
Ao longe estende nas planícies vastas.
Em mil combates já vitorioso
Para longe espancou rivais temíveis,
Que em campo aberto disputar-lhe ousaram
De sua nédia grei a posse e o mando.

Porém um dia, como o velho chefe
Os flancos molemente reclinando
Em mimoso capim junto da fonte,
Tranqüilamente ruminando as ervas
Ao sol de manhã pura se aquecia
A contemplar a numerosa tribo,
Que em torno vaga, - súbito uns bramidos
Longínquos aos ouvidos descuídosos
Vêm ressoar-lhe. - Por alguns instantes
Atento escuta; - após lesto se erguendo,
E sacudindo os retorcidos cornos,
Ergue a cabeça, e com torvados olhos
Percorre ao largo os chapadões imensos.

É hora de combate. - Muito ao longe
Todo envolvido em turbilhões de terra,
Que com as unhas, com as rijas pontas
Cava no chão, e arroja pelos ares,
Campeia o inimigo, e denodado
Avançando e rugindo, pouco e pouco
Do rival temeroso se avizinha.
De seu acampamento o velho chefe
Não se arreda; porém calado e quedo
Por um momento o seu rival escuta,
E quase acreditar inda não pode,
Que haja em torno atrevido aventureiro
Que se abalance a disputar-lhe a posse
Dos campos seus, de seu gentil rebanho.

Esse inimigo audaz, que o procurava,
E a combate o chamava em campo aberto,
Era um touro novel, guapo novilho,
Que nascera e cresceu no mesmo campo,
E inda há pouco do chefe entre a manada
Pascia os mesmos prados, e bebia
Da mesma fonte. Mas sua presença
Já inquietava ao carrancudo déspota,
Que suspeitoso espreita-lhe as passadas.
Já na beleza e no vigor crescendo
O galhardo novilho se arriscava,
Se bem que a medo, a acompanhar nos bosques,
Amorosos mugidos exalando,
Do rebanho as novilhas mais formosas.
Bem o pressente o ciumento velho,
Que em partilhar de modo algum consente
Com mais ninguém delícias de um serralho,
Que conquistou co'a ponta de seus cornos.
Ardendo em zelos, de furor raivando,
Corre a punir o temerário amante,
Que ousa a seus olhos requestar-lhe as vacas.
Quer este resistir; - mas inda novo,
Inda não traquejado nas pelejas,
Dos campos seus natais afugentado,
Espancado e ferido, foi ao longe
Chorar no seio das profundas brenhas
Seu infortúnio e meditar vingança.
Longo tempo vagou pelas florestas
Errante, sem rebanho e sem amores,
Com bramidos de dor e desespero
Das solidões amedrontando os ecos.
Nos rijos troncos, nos cupins anosos
Exerce e aguça as formidáveis pontas,
E nos alheios campos penetrando
Os cornos cruza em luta encarniçada
Dos arredores com os mais fortes chefes;
A uns soterra, e para longe exila
Dos campos seus vencidos e humilhados;
A outros rasga as tépidas entranhas;
Outros nos tremedais deixa atolados,
Ou precipita em boqueirões profundos,
Aonde encontram morte e sepultura.
Ei-lo já lidador robusto e fero,
De troféus e vitórias carregado,
Terror e assombro em torno derramando,
Para vingar não esquecida afronta
Nas campinas natais ufano surge.

Assim César, a quem de Roma arreda
De ambiciosos emulos a inveja,
Depois que longo tempo confinado
Nas Gálias, entre aspérrimos trabalhos
Cem batalhas venceu, domou cem povos,
À Itália volta, o Rubicon transpõe,
O orgulhoso Pompeu enxota e vence,
E toma posse da cidade eterna.

O novel lidador avança intrépido,
Rasgando a terra, os troncos escarchando
Co'as pontas furibundas, e de estragos
Ao largo alastra os sítios em que passa.
Sem do campo arredar-se o chefe o aguarda
Junto a um velho cupim, que impaciente
Qual se fosse o inimigo ataca e rompe,
E em mil pedaços pelos ares lança,
Ou com as unhas cava fundo a terra,
Como quem ao rival, que dá por morto,
De antemão vai abrindo a sepultura.
A terra treme aos urros furibundos
Dos ferozes, cornígeros atletas,
Que com solene lentidão sinistra
Pouco a pouco bramindo se aproximam.
Chegados frente a frente quedos param
Quase sem respirar, e fito a fito,
Mudos, torvados, de revés se encaram.
De horror transida a grei muda contempla
Esse solene e pavoroso instante,
Em que os dous ferozes contendores
Parece que um ao outro se devoram
Com torvo olhar sanguíneo. -

Mas de chofre
Cruzam-se os cornos com fracasso horrendo,
Que pelas brenhas muito ao longe troa.
Está travada a luta; - o chão retreme
Ao tropear das truculentas patas;
As gramas das campinas arrancadas
No revolto brigar aos ares voam,
E em breve o campo ao largo se converte
Em terra nua e solta, qual se enxada
Ali passasse revolvendo o solo.
O rouco som dos cornos, que abalroam,
O estrugido dos cascos, que retumbam
Do solo as profundezas abalando,
E esses surdos gemidos, que se exalam
Da luta ardente no arquejar raivoso,
Medonha orquestra formam, que de susto
Mesmo as panteras recuar fariam.
Consternado o rebanho em torno corre,
Lastimosos bramidos exalando,
E como que com rogos vãos procura
Dos combatentes acalmar a sanha.

O dia inteiro, com bem curtas tréguas
- Só para retomar um pouco o alento -
Na renhida peleja se sustentam
Sem as buídas aspas descruzarem.
Para esgotar de seu contrário as forças,
O novel campeão manhoso e arteiro
Deixa impelir-se, e cede cauteloso
De seu rival aos empurrões tremendos,
Que o leva de rondão pelas campinas,
Num brejo o atola, o esbarra pelos troncos,
E da vitória já quase seguro
De um golpe extremo decidir intenta
A porfiosa, tétrica peleja;
Recua um pouco destravando os cornos,
E as pontas abaixando se arremessa
Ao ventre do inimigo; - mas debalde
No desigual terreno em que lutavam
Por barranceiras ambos se despenham,
E a travar-se de novo se levantam.

Já desce a noite, e as sombras, que descaem,
Estão pedindo ou tréguas ou vitória.
O novel lidador reúne as forças,
Que até então de indústria sopeara,
E com vigor insólito esbarrando
O estafado rival de encontro o leva
A um rijo tronco, e enovelado o tomba.
O caído porém presto levanta-se
E de novo o combate recomeça.
Mas ai! que já suster não pode os ímpetos
Com que o atropela seu rival possante.
Eis que de novo aos recuões levado
Se perde, se embaraça, e ressupino
Aos pés do vencedor de novo rola.
Do irado vencedor as córneas pontas
Ei-lo já sente a retalhar-lhe as carnes;
Então soltando um lúgubre bramido
A custo se ergue, e rápida carreira
Fugindo estende pelos campos vastos.
O vencedor porém vai-lhe no encalce,
E por espaço largo o segue e punge
Até transpor as últimas colinas,
E longe o exila desses campos, onde
Inda há pouco no meio de manadas
Seu poderio alardeava ufano.

Ai do vencido! - pelas fundas brenhas
A mugir e a chorar ei-lo se entranha
Lascando troncos, escarvando a terra,
Como se espedaçar tentasse as armas,
Que não lhe podem mais dar a vitória.

O tempo enfim vem acalmar-lhe a fúria,
E o pobre do animal, tornado eunuco,
De combates e amores esquecido,
Tranqüilamente pasce entre as manadas,
E do bom lavrador jungido ao carro
Mais utilmente sua força emprega,
Até que um dia para sempre larga
Nas mãos do carniceiro o couro e a carne.
.................................................................

Se lhes mudais os nomes, caro amigo,
Quer já bovinos, quer humanos sejam,
É esta sempre a história dos serralhos.

Rio de Janeiro, 1864.

 

 
Hosted by www.Geocities.ws

1