A História da Filosofia no Brasil

 

  Aspectos Introdutórios

Custou para se desfazer a crença de que a gente brasileira seria infensa à meditação filosófica, limitando-se a informar-se sobre as doutrinas estrangeiras e a delas reproduzir conceitos e ideais. Chegou-se mesmo a proclamar, desconsoladamente, que a história da filosofia no Brasil não seria senão a história das influências recebidas, o que era afirmado por figuras das mais representativas de nossa intelectualidade.

Foi em meados deste século que se começou a reagir contra essa tendência, não no sentido do abandono do estudo das teorias universais, o que seria absurdo, mas, sim, para participarmos criadoramente do processo geral do pensamento filosófico, tal como já ocorria, não somente no plano literário, mas também em diversos campos das ciências.

Para tanto se tornou necessária uma mudança de atitude em face do problema, tendo contribuído de certa forma para essa nova tomada de posição, quer pregando a necessidade de uma revisão histórica, a partir da observação de que algo de próprio pode ser percebido no modo de ser influenciado, quer em razão do sentido que no País adquiriram as doutrinas alienígenas, em função de nossas específicas circunstâncias sociais.

Acolhida essa orientação, foi possível a vários estudiosos, de norte a sul do Brasil, revelar o valor real do pensamento, por exemplo, de Gonçalves Magalhães ou de Tobias Barreto, mostrando que o ecletismo espiritualista do primeiro se revestia de valores inspirados por sua condicionalidade histórica, contribuindo para a formação de nossa consciência nacional; assim como o kantismo do segundo vinha acompanhado de um sentido especial, ligado ao modo de ser da cultura do homem do Nordeste, onde, no dizer de José Américo de Almeida, a natureza é menos mãe do que madrasta.

Outra campanha em que me empenhei, ao lado de companheiros magníficos, como Vicente Ferreira da Silva Filho, Luis Washington Vita, Renato Cirell Czerna e Heraldo Barbuy, foi romper o cerco universitário que se constituíra em torno da filosofia, a fim de que esta passasse a ser um bem comum da coletividade, cultivado em seus valores existenciais, e não reduzido, o mais das vezes, à fria análise dos textos dos grandes pensadores, sem a ousadia de criar algo de pessoal, ainda que de reduzido ou provisório alcance.

Foi essa mudança radical de atitude em face do problema do conhecimento filosófico que permitiu a criação, em 1949, do Instituto Brasileiro de Filosofia, como uma organização cultural não universitária, capaz de reunir quantos no Brasil se interessassem pelas questões da Filosofia, com o resultado, aliás, de projetar as universidades no plano existencial das idéias na amplitude do território nacional. Dia virá em que alguém, com isenção e apuro crítico, há de fazer a história desse movimento cultural, reconhecendo que com ele é que se passou a falar, não apenas em "filosofia no Brasil", mas também em "filosofia brasileira".

É essa uma das questões mais delicadas e difíceis, a da "filosofia nacional", uma vez que a filosofia é por sua própria natureza universal, mas não há quem não distinga, em virtude de certos característicos ou pelo predomínio de determinadas tendências, a filosofia alemã da francesa, da anglo-americana, da italiana, etc. É que, por mais universal que seja a filosofia, não pode esta deixar de sofrer a influência de diretrizes dominantes na linha existencial dos povos ou das nações, o que já fora possível observar na passagem do mundo grego para o mundo romano.

Pois bem, o que quero salientar, no presente artigo, é que com o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) se completou a fecunda iniciativa da criação das faculdades de filosofia no Brasil, por sinal que, de início, devido à reticente influência positivista, ligadas às de letras e, sobretudo, às de ciências positivas.

É por esses motivos que, ocorrendo este ano o cinqüentenário do IBF, a sua diretoria julgou de bom alvitre promover o VI Congresso Brasileiro de Filosofia, contando com o patrocínio da benemérita Fundação Santista e o apoio da histórica Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em cujas dependências se realizará o certame, significativamente na Semana da Pátria.

Assim é que, no próximo dia 6 de setembro, às 9 horas, no salão nobre dessa faculdade, com entrada franca, será instalado o mencionado congresso, em sessão solene, na qual pensadores brasileiros e estrangeiros terão oportunidade de se manifestar sobre a situação atual da filosofia no Brasil e suas perspectivas no século que se inicia.

Como parte do congresso terá lugar o Colóquio Antero de Quental, com a presença de vários filósofos portugueses, tendo por objeto o debate das idéias de Delfim Santos, António Sérgio e Vicente Ferreira da Silva. Vale a pena aduzir algo sobre esse evento.

Ele é da responsabilidade do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, cuja denominação já diz tudo, pois nasceu de um entendimento feliz entre pensadores brasileiros e portugueses no sentido de uma indagação conjunta sobre nosso passado mental, visando ao estudo da filosofia da língua portuguesa, o que não deve causar estranheza, pois a língua, como tantas vezes o acentuou Heidegger, é o solo natural da cultura, não podendo deixar de influir sobre os modos ou estilos do filosofar. Essa meditação comum ao Brasil e a Portugal tem caráter permanente, realizando-se alternadamente colóquios que, neste lado do Atlântico, tomam o nome de Antero de Quental e, no outro, o de Tobias Barreto, figuras escolhidas como símbolos de uma forma de pensar que, sem perda de seu sentido de universalidade, reflete algo de nosso ser nacional ou de nosso idioma. 

A esta altura da vida, não podia ter tido oportunidade melhor do que esta de participar de um congresso que, em última análise, se destina a fazer o balanço do pensamento brasileiro, em busca de nossa identidade cultural, pois a filosofia, entendida na plenitude de seus valores existenciais, é o fulcro dessa identidade.

  Os Livros sobre o Assunto:

A Filosofia Contemporânea no Brasil de Antônio Joaquim Severino: Este livro nasceu de um olhar sobre a prática da filosofia no atual momento cultural brasileiro, buscando perceber as tendências, os temas, os autores e as abordagens que o discurso filosófico vem assumindo. O autor toma como base o sentido do próprio filosofar no contexto de uma cultura como a brasileira, atravessada por tantos desafios histórico-sociais e revela o dinamismo e a multiplicidade das formas de expressão que a filosofia desenvolveu no Brasil, nestes tempos contemporâneos.

FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL (A) - Conhecimento, política e educação       

 

História da Filosofia no Brasil de Jorge Jaime em 4 Volumes: Trata-se de uma coleção de quatro volumes, expondo com detalhes as correntes e os pensadores de filosofia na história brasileira. O objetivo da coleção é salvaguardar todo o cabedal filosófico brasileiro desde suas origens até hoje. Apresenta uma biobibliografia dos expoentes da área, em cada época, o conjunto de seu pensamento, as críticas que lhe foram dirigidas. Usa para isso trechos de jornais da época, de seus comentadores, dos próprios pensadores. Sua intenção não é tanto crítica, como narrativa.

Trata-se de uma coleção de quatro volumes, expondo com detalhes as correntes e os pensadores de filosofia na história brasileira. O objetivo da coleção é salvaguardar todo o cabedal filosófico brasileiro desde suas origens até hoje. Apresenta uma biobibliografia dos expoentes da área, em cada época, o conjunto de seu pensamento, as críticas que lhe foram dirigidas. Usa para isso trechos de jornais da época, de seus comentadores, dos próprios pensadores. Sua intenção não é tanto crítica, como narrativa.

Neste quarto e último volume, a História da filosofia no Brasil apresenta os mais recentes pensadores nacionais, nascidos a partir de 1925. São os que viveram, ou vivem, nos últimos três quartos do século 20. Para além do sucesso editorial que obteve esta obra, é irrefutável a oportunidade e a necessidade de tal pesquisa. As Avaliações e críticas surgidas após a publicação dos três primeiros volumes indicam a seriedade, amplitude e profundidade com este trabalho foi conduzido. Além do ensino de qualidade e do serviço direto á comunidade , a universidade, que deve insaciavelmente estar em estado de pesquisa, necessita da fundamentação filosófica para alicerçar suas buscas.

Partimos do pressuposto de que não existe em filosofia originalidade total. Os pensadores emergem do seio da milenária tradição filosófica ocidental,  pensando problemas que são específicos da sua época e do seu meio. A originalidade filosófica deve ser  procurada aí: nas peculiares condições histórico-culturais que influenciam na forma em que cada pensador reflete,  condicionado ele próprio pela carga de fatores subjetivos e subjetivo-objetivos presentes em todo ato humano:  valores, sensibilidade, experiências, vivências etc. Levando em consideração esta observação, será utilizado neste  trabalho o método de estudo da filosofia brasileira proposto por Miguel Reale (nasc. 1910) e Antônio Paim (nasc. 1927). Este método consiste em identificar o problema ou os problemas aos que pretende responder o pensador,  a fim de ver a sua peculiar contribuição no terreno da filosofia e poder traçar, posteriormente, um quadro dos elos  e derivações da sua meditação, em relação a outros autores e correntes [cf. Reale, 1951; Paim, 1979].  

 

Veja : O Fundador da Filosofia no Brasil

 

  A Filosofia no Brasil 

por Gilberto de Mello Kujawski (O Estado de São Paulo de 17 de Abril de 2003)

Há 40 anos, aide quem se aventurasse a falar em "filosofia brasileira". Correria o mesmo ridículo de quem mencionasse, por exemplo, a "arquitetura gótica no Sião", conforme ouvi então de um ilustre catedrático da USP. Faz parte da nossa baixa auto-estima a crença generalizada de que o brasileiro não tem bossa para a filosofia. Desmentindo essa convicção tão arraigada, três livros recém-publicados acusam um salto qualitativo impressionante da pesquisa filosófica entre nós, comprovando que ela sempre existiu, porquanto o exercício da filosofia não se improvisa de uma hora para outra.

Luiz Alberto Cerqueira, carioca, professor-adjunto no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, batiza o seu livro, precisamente, com o nome de Filosofia Brasileira (Vozes\Faperj, 2002). Reconhecendo a contribuição do Iseb na compreensão crítica da historiografia filosófica brasileira, Cerqueira acompanha Antonio Paim ao incluir em nossa história da filosofia o período colonial, mas atribui a Miguel Reale os louros pela revolução na historiografia filosófica brasileira. Reportando-se ao "conhece-te a ti mesmo" socrático e ao "cogito" cartesiano, Cerqueira liga o desenvolvimento da filosofia à evolução da "consciência de si". Num lance certeiro, descobre a germinação da consciência de si ainda na fase colonial, localizada na obra do padre Antônio Vieira, sob o aspecto da conversão religiosa. Segue-se Gonçalves de Magalhães, que substituiu a antiga conversão religiosa pelo "cogito" cartesiano, renovando o princípio da autoconsciência e inserindo o Brasil mental no século 19. Na seqüência surgem Tobias Barreto, o vulcânico pensador e poeta sergipano, "verdadeiro responsável pela definitiva superação do aristotelismo no Brasil", Farias Brito, o discípulo criativo de Bergson, e, finalmente, o próprio Miguel Reale, que, mais do que ninguém, insistiu na necessidade de vincular as idéias e doutrinas dos autores estrangeiros à "imanência de nossas circunstâncias".

Cerqueira atinge em cheio seu propósito, patenteando que a filosofia brasileira existe, sim, senhor, tem uma história que remonta aos tempos coloniais e inclui um projeto que consiste na modernização e no desenvolvimento da consciência de si. Maria Cristina Franco Ferraz desponta no panorama da filosofia brasileira como a intérprete ideal de Nietzsche. Não simples expositora ou comentadora, mas "intérprete" no sentido musical da palavra, sonorizando magistralmente a partitura filosófica do autor de Assim Falava Zaratustra em todo o vigor, a riqueza de matizes e recônditos segredos que encerra, sem esquecer seu relampejante senso de humor, em que poucos reparam.

Maria Cristina é também do Rio, professora da Universidade Federal Fluminense, e autora de Nietzsche, o Bufão dos Deuses. Publica agora Nove Variações sobre Temas Nietzschianos (Relume Dumará, 2002). Nenhum outro pensador é vítima de leitura tão apressada e superficial como Frederico Nietzsche. Em conseqüência, forjou-se dele uma figura torva de energúmeno cultural, perdendo-se de vista seu perfil filosófico de linhas clássicas e poderosa envergadura.

No primeiro ensaio do livro relembra a autora, precisamente, o questionamento de Nietzsche acerca da leitura, indagando que é "ler", tarefa que exige "dedos e olhos delicados", imersão demorada no texto, "ruminação" obstinada. Para quê? Não será para desvendar alguma "verdade" oculta no texto, nada disso. Não, a leitura ruminativa tem por finalidade entrar na "perspectiva" adotada pelo texto, adequar-se ao seu modo peculiar de ver as coisas. Nietzsche diverte-se com a dança variada das aparências em sua diversidade de matizes, ou, como dizia ele, emprestando a palavra da pintura, com seus diferentes "valeurs" (valores, tons mais ou menos escuros, mais ou menos saturados). Para Nietzsche, nada de dogmatismo e contraposições grosseiras (bem-mal, essência-aparência, verdadeiro-falso, etc.). Nada dessa fixação tosca do mundo em preto e branco, insensível à multiplicidade dos matizes.

Oportuna denúncia. É de perguntar se esta não constitui a melhor lição e a mais aguda advertência para nosso tempo maniqueísta, que desencadeia guerras do "bem" contra o "mal", só sabe falar em esquerda e direita, em id, ego e superego. Entretanto, dos três livros mencionados, a maior surpresa fica por conta do volume de 500 páginas Introdução à Filosofia da Razão Vital de Ortega y Gasset, (Ed. Cefil), da autoria de José Maurício de Carvalho. Mineiro de São João del Rei, o autor, que já publicou muitos títulos de filosofia, tem em comum com o mestre espanhol o dom da clareza, a limpidez coloquial da exposição, trazendo os grandes temas filosóficos ao alcance de qualquer leitor.

Que é a razão vital? Um ovo de Colombo. Para Ortega, viver já é entender.

Viver é, constantemente, ver-se vivendo. A vida humana ganha transparência consigo mesma nesse ver-se vivendo, de modo a dar conta da sucessão de seus passos e da direção que assumem. A transparência da vida consigo mesma a ilumina por dentro, e isso é entender. Entender uma coisa, na acepção mais primária e radical, significa ver como ela funciona dentro da minha vida em movimento. A razão vital é a vida mesma funcionando como razão. Pensamos com a vida. Esta é o órgão próprio do entendimento. E, à força de entender-se a cada passo, a vida constitui-se, necessariamente, em planejamento de si mesma. A vida humana é projeto, antecipação, futurição.

Se a razão constitui a forma e a função da vida, o irracionalismo fica desde logo descartado. Por outro lado, a razão vital ultrapassa de um golpe todo intelectualismo e todo racionalismo: a razão não se limita a conceber a realidade "sub specie aeternitatis", nem como a réplica das idéias claras e distintas. Identificada com a vida, a razão acompanha seu fluxo sinuoso, em sua temporalidade, historicidade e singularidade. Chama-se razão a "apreensão da realidade em sua conexão" (J. Marías). Razão não consiste só em lidar com equações matemáticas, mas também em descobrir de César e São Francisco a equação histórica constitutiva e rigorosa.

Como assim? A razão vital é razão histórica. Ela não induz nem deduz, não calcula nem mede. A razão histórica narra, é razão narrativa, encadeia as coisas em sua gênese e sucessão temporal, "vê como se faz o fato".

O livro de José Maurício de Carvalho representa verdadeira façanha intelectual. Mostra domínio completo do pensamento orteguiano, que é integrado e sistemático, mas totalmente fragmentário. A visão mais abrangente e esclarecedora das idéias orteguianas em língua portuguesa, e a melhor depois dos estudos de Julián Marías. 

Gilberto de Mello Kujawski, jornalista e escritor, é autor de O Ocidente e sua Sombra E-mail: [email protected]

O Panorama da Filosofia Brasileira por Ricardo Vélez Rodrigues

     1) A filosofia brasileira nos séculos XVII, XVIII e XIX  

 As mais importantes obras que estudaram o momento colonial e o desenvolvimento do pensamento filosófico  brasileiro ao longo do século XIX são: a História das idéias filosóficas no Brasil de Antônio Paim [1967];  Contribuição à história das idéias no Brasil, de João Cruz Costa [1956]; Panorama da filosofia no Brasil,  de Luís Washington Vita [1969]; Filosofia em São Paulo, de Miguel Reale [1976]; Antologia do pensamento  social e político no Brasil, de Luís Washington Vita [1968]; As idéias filosóficas no Brasil: séculos XVIII e  XIX, obra em colaboração organizada por Adolpho Crippa [1978a]; Achegas à história da filosofia, de Alcides  Bezerra [1936]; O humanismo brasileiro, de Vamireh Chacon [1980] e História da filosofia no Brasil, de  Jorge Jaime [1997]. Entre os estudos realizados por autores estrangeiros, merecem destaque as seguintes obras:  Filósofos brasileiros, do escritor boliviano Guillermo Francovich [1979]; Filosofia luso-brasileira, trabalho em  colaboração organizado por Ricardo Vélez Rodríguez [1983] e Pensamento luso-brasileiro, de Eduardo  Abranches de Soveral [1996]. No terreno do estudos bibliográficos, o mais importante é o de Antônio Paim  [1982], intitulado Bibliografia filosófica brasileira: 1808-1930 . 

 A meditação filosófica brasileira durante o período colonial caracteriza-se pela sua inspiração nos temas tratados  pela Segunda Escolástica portuguesa. O ponto central desta consistia na defesa da ortodoxia católica, a partir das  disposições adotadas no Concílio de Trento (1545-1563) como reação contra a reforma protestante. A máxima  expressão desse esforço foi a Ratio Studiorum, sistematizada definitivamente em 1599, e que consistia num  estrito regulamento que pautava as atividades acadêmicas da Companhia de Jesus em Portugal e na Espanha. Tal  regulamento disciplinou o ensino no Colégio das Artes de Coimbra, na Universidade de Evora e nas demais  escolas jesuíticas, que praticamente monopolizavam os estudos secundários em Portugal. 

 Dois aspectos típicos da Ratio Studiorum eram a subordinação do ensino superior à teologia e o dogmatismo,  que se alicerçava na procura de uma ortodoxia definida pelos próprios jesuítas e que conduzia a expurgar os  textos dos autores, inclusive os do próprio São Tomás de Aquino. Como acertadamente destacou Antônio José  Saraiva [1955: 229-230], "Não é necessário colocar em evidência o caráter dogmático desse ensino,  perfeitamente coerente com o sistema no qual se integra. O ensino da filosofia não visava a desenvolver a  capacidade crítica do aluno, mas a incutir nele uma determinada doutrina, a prevenir os possíveis desvios em  relação a ela e a prepará-lo para defendê-la".

 O ambiente cultural ensejado em Portugal pela Ratio Studiorum não favoreceu a abertura às filosofias modernas  formuladas na Europa durante os séculos XVI e XVII. Conseqüentemente, a meditação filosófica colonial  correspondeu, no Brasil, à corrente chamada por Luís Washington Vita de "saber de salvação", cujos principais  representantes foram Manuel da Nóbrega, Gomes Carneiro, Nuno Marques Pereira e Souza Nunes. Desse  conjunto destaca-se a obra de Marques Pereira (1652-1735) intitulada Compêndio narrativo do peregrino da  América [Pereira, 1939], que foi editada sucessivamente em 1728, 1731, 1752, 1760 e 1765. A obra respondia  à problemática típica da espiritualidade monástica, centrada na idéia de que o homem não foi criado por Deus  para esta vida, destacando-se, em conseqüência, o caráter negativo da corporeidade e das tarefas terrenas.

 Na segunda metade do século XVIII, consolidou-se em Portugal a corrente do empirismo mitigado, que se  caracterizava por uma forte crítica à Segunda Escolástica e ao papel monopolizador que exerciam os jesuítas no  ensino, bem como pela tentativa de formular uma noção de filosofia que se reduzisse à ciência aplicada. Duas  obras serviram de base a essa nova corrente: Instituições lógicas do italiano Antonio Genovesi (1713-1769)  [1937] e o Verdadeiro método de estudar, do sacerdote oratoriano português Luís Antônio Verney  (1713-1792) [1950]. O empirismo mitigado foi formulado e se desenvolveu no contexto mais amplo das  reformas educacionais do marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), que pretendiam  incorporar a ciência aplicada ao esforço de modernização despótica do Estado português. Contudo, ao  responder a uma problemática formulada a partir das necessidades do Estado patrimonial e não a partir de uma
 perspectiva que tivesse como centro o homem, o empirismo mitigado não conseguiu dar uma resposta  satisfatória aos problemas da consciência e da liberdade.

 O empirismo mitigado inspirou, no entanto, a importantes segmentos da intelligentsia brasileira, a partir da  mudança da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. A geração de homens públicos que organizou as  primeiras instituições de ensino superior era de formação cientificista-pombalina. Entre eles, cabe destacar a figura  de dom Rodrigo de Souza Coutinho (1755-1812), conde de Linhares, quem em 1810 organizou a Real  Academia Militar do Rio de Janeiro.

 O esforço em prol da superação do empirismo mitigado coube a Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846).  Inspirado na filosofia de Leibniz (1646-1716) e, de outro lado, na lógica aristotélica e no empirismo lockeano, o  pensador português, quem foi ministro da corte de dom João VI no Brasil, formulou um amplo sistema que  abarcava três partes: a teoria do discurso e da linguagem, o saber do homem e o sistema do mundo. A sua mais  importante contribuição ao pensamento brasileiro consistiu na tentativa de superação da filosofia até então vigente;  a sua proposta teórica foi sistematizada principalmente nas Preleções filosóficas [Ferreira, 1970] e na  formulação do liberalismo político e das bases do sistema representativo, no Manual do cidadão num governo  representativo [In: Ferreira, 1976]. Graças à sua valiosa colaboração teórica, o Império brasileiro conseguiu  superar os problemas do liberalismo radical e deitou as bases para a prática parlamentar. No entanto, a sua  meditação não conseguiu formular de maneira completa uma explicação filosófica para o problema da liberdade.

 Os temas da consciência e da liberdade ocuparam o foco do debate filosófico que se efetivou no Brasil ao longo  do século XIX. A partir das bases colocadas pela meditação de Silvestre Pinheiro Ferreira, os pensadores  ecléticos procuraram dar uma resposta de caráter espiritualista à problemática do homem. Sem dúvida que os  filósofos brasileiros deste período inspiraram-se no ecletismo espiritualista francês formulado por Maine de Biran  (1766-1824) e divulgado por Victor Cousin (1792-1867), que permitiu superar o extremado sensismo de  Condillac (1715-1780). Mas o pensamento dos primeiros reveste-se da originalidade que tinham as  circunstâncias históricas do Brasil no século XIX, relacionadas com o problema da construção do sentimento de  nação e com a organização do Estado.

 As duas figuras mais representativas do ecletismo brasileiro são Eduardo Ferreira França (1809-1857) e  Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882). A obra do primeiro caracteriza-se por buscar uma  fundamentação filosófica para o exercício da liberdade política. Apesar de ter formulado uma visão determinista  do homem nos seus primeiros escritos, o seu pensamento evolui até uma concepção espiritualista na obra  fundamental intitulada Investigações de psicologia [França, 1973], publicada em Paris em 1854. Sem abandonar  a perspectiva empirista que tinha adotado desde o início da sua meditação filosófica, Ferreira França, graças à  influência de Maine de Biran, consegue desenvolver o tema da introspeção, que lhe permitirá chegar, com o rigor  da observação empírica, à constatação da existência do espírito. Na sua meditação, Ferreira França dará especial  ênfase ao tema da vontade, a qual é concebida como o elemento capitalizador dos diversos poderes de que está  dotado o homem, cabendo-lhe a função primordial de constituí-lo como pessoa.

 Gonçalves de Magalhães expôs o seu pensamento filosófico na obra intitulada Fatos do espírito humano  [Magalhães, 1865], publicada em Paris em 1859. O problema ao qual respondeu a filosofia do maior pensador  romântico do Brasil foi o da construção da idéia de nação. Isso fez com que a obra de Magalhães, como destaca  o seu mais importante estudioso, Roque Spencer Maciel de Barros [1973], se formulasse no contexto de uma  proposta pedagógica. Magalhães baseia a sua visão da liberdade e da moral numa análise filosófica inspirada em  Victor Cousin e parcialmente em Malebranche (1638-1715) e Berkeley (1685-1753); formula uma explicação do  homem em termos puramente espiritualistas, que negam qualquer valor substancial ao mundo material,   inclusive   ao  próprio corpo, já que o universo sensível só existe intelectualmente em Deus, como pensamentos seus. O homem, preso ao corpo, é livre por ser espírito e adquire a conotação de ente moral justamente em virtude dessa  "resistência do corpo". A moral de Magalhães, como a de Cousin, é uma moral do dever que valoriza a intenção  do autor e não o resultado do ato. A inspiração romântica dessa filosofia aparece na importância conferida por  Magalhães ao fator religioso como motor da nacionalidade, bem como no papel desempenhado pela poesia   enquanto educadora do povo (ele foi o mais importante representante do romantismo literário no Brasil). Dessa  forma, Magalhães desempenha, no contexto brasileiro, um papel semelhante ao representado em Portugal pelo  primeiro romântico luso, Alexandre Herculano (1810-1877).

 Outras figuras de menor imporância na corrente eclética brasileira foram Salustiano José Pedrosa (falecido em  1858) e Antônio Pedro de Figueiredo (1814-1859), quem traduziu ao português o Curso de história da  filosofia moderna de Victor Cousin. O ocaso da corrente eclética dá-se ao longo do período de 1880 a 1900,  em decorrência do fenômeno cultural denominado por Sílvio Romero (1851-1914) de "surto de idéias novas", e  que se caracterizou pela entrada, nos meios acadêmicos, de filosofias contrárias ao espiritualismo eclético, como o  darwinismo, o determinismo monista e o positivismo.

 Sem dúvida alguma que, entre as correntes filosóficas em ascensão nas últimas décadas do século XIX, o  positivismo foi a que mais repercussão teve no seio do pensamento brasileiro. A razão fundamental desse fato  radica na pré-existente tradição cientificista que se iniciou com as reformas pombalinas, à luz das quais  estruturou-se todo o sistema de ensino superior, em bases que privilegiavam a ciência aplicada e a instrução  estritamente profissional. Isso explica a tardia aparição da idéia de universidade (entendida como instância de  cultura superior e de pesquisa básica), no contexto cultural brasileiro. Efetivamente, só a partir da década de 1920  ganharia corpo a idéia de universidade, como reação contra o positivismo reinante.

 O positivismo teve no Brasil quatro manifestações diferentes: a ortodoxa, a ilustrada, a política e a militar. A  corrente ortodoxa teve como principais representantes Miguel Lemos (1854-1917) e Teixeira Mendes  (1855-1927), os quais fundaram, em 1881, a Igreja Positivista Brasileira, com o propósito de fomentar o culto da  "religião da humanidade", proposta por Comte (1798-1857), no seu Catecismo positivista.

 A corrente ilustrada teve como principais representantes Luís Pereira Barreto (1840-1923), Alberto Sales  (1857-1904), Pedro Lessa (1859-1921), Paulo Egydio (1842-1905) e Ivan Lins (1904-1975). Esta corrente  defendia o plano proposto por Comte na primeira parte da sua obra, até 1845, antes de formular a sua "religião  da humanidade", e que poderia ser sintetizado assim: o positivismo constitui a última etapa (científica) da evolução  do espírito humano, que já passou pelas etapas teológica e metafísica e que deve ser educado na ciência positiva,  a fim de que surja, a partir desse esforço pedagógico, a verdadeira ordem social, que foi alterada pelas  revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII.

 A corrente política do positivismo teve como maior expoente Júlio de Castilhos (1860-1903) [cf. Vélez, 1980],  quem em 1891 redigiu a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, que entrou em vigor nesse mesmo ano.  Segundo essa carta, as funções legislativas passavam às mãos do poder executivo, sendo os outros dois poderes  públicos (legislativo e judiciário) tributários do executivo hipertrofiado. Para Castilhos, deveria se inverter o  dogma comteano de que à educação moralizadora seguiria pacificamente a ordem social e política. O Estado forte  deveria, ao contrário, impor coercitivamente a ordem social e política, para depois educar compulsoriamente o  cidadão na nova mentalidade, ilustrada pela ciência positiva. Esta corrente ganhou maior repercussão do que as  outras três, devido a que obedeceu à tendência cientificista de que já se tinha impregnado o modelo modernizador  do Estado consolidado pelo marquês de Pombal. Assim, as reformas autoritárias de tipo modernizador que o  Brasil iria experimentar ao longo do século XX, deram continuidade à mentalidade castilhista do Estado forte e  tecnocrático. Este modelo consolidou-se na obra de um seguidor de Castilhos: Getúlio Vargas (1883-1954),  como será detalhado mais adiante. Aconteceu com o castilhismo algo semelhante ao ocorrido no México com o  porfirismo: ambas as doutrinas cooptaram a filosofia positivista como ideologia estatizante e reformista.

 A corrente militar positivista teve como principal representante Benjamin Constant Botelho de Magalhães  (1836-1891), professor da Academia Militar e um dos chefes do movimento castrense que derrubou a monarquia  em 1889. Esta corrente estruturou-se paralelamente à ilustrada, projetando ao longo das últimas décadas do  século XIX o ideário cientificista pombalino, conforme destacou Antônio Paim [1980: 259]: "A adesão às  doutrinas de Comte por parte dos líderes da Academia Militar, deu-se no estreito limite em que contribuiu para  desenvolver as premissas do ideário pombalino, quer dizer, a crença na possibilidade da moral e da política  científicas. Para comprová-lo, basta comparar as funções às que Comte destinava as forças armadas e o papel  que Benjamin Constant atribui ao Exército".

 A filosofia positivista foi vigorosamente criticada pela corrente denominada de "Escola do Recife" [cf. Paim,  1966]. O fundador e mais destacado representante dessa corrente de pensamento foi Tobias Barreto  (1839-1889). Outras figuras dignas de menção são Sílvio Romero (1851-1914), Clóvis Beviláqua (1859-1944),  Artur Orlando (1858-1916), Martins Júnior (1860-1909), Faelante da Câmara (1862-1904), Fausto Cardoso  (1864-1906), Tito Livio de Castro (1864-1890) e Graça Aranha (1868-1931).

 Os pensadores da "Escola do Recife" protagonizaram uma clara reação contra as duas formas de pensamento que  dominavam o panorama filosófico nacional nas últimas décadas do século XIX: o ecletismo espiritualista e o  positivismo. Apesar de que no início os seus principais expoentes tivessem tomado elementos do monismo de  Haeckel (1834-1919) e da própria filosofia comteana, muito cedo superaram esses limitados pontos de vista para  se abrirem às idéias que garantiriam a tematização da cultura, no contexto do neo-kantismo. Esse esforço teórico  foi iniciado por Tobias Barreto e coroado por Artur Orlando. Rosa Mendonça de Brito [1980: 33] sintetizou  assim a contribuição deste último: "A sua filosofia é uma meditação sobre as ciências e a crítica ou teoria do  conhecimento. Esta é a parte da filosofia que lhe dá um objeto próprio, capaz de justificar-lhe a existência,  representando, pois, o núcleo central do pensamento filosófico moderno e contemporâneo. A teoria do real e  do  ideal -- saber o que o nosso conhecimento possui de objetivo e de subjetivo -- é o seu problema fundamental".

 A "Escola do Recife" foi, no contexto do pensamento filosófico brasileiro do século XIX, a mais clara  manifestação da perspectiva transcendental kantiana, ao entender -- com Tobias Barreto e Artur Orlando -- a  filosofia como epistemologia. Esses pensadores, sem dúvida, deitaram as bases para o ingresso e a discussão, no  meio brasileiro, das idéias provenientes do neo-kantismo, nas primeiras décadas do século XX.  

 De outro lado, ao buscar uma fundamentação de tipo transcendental não só para o conhecimento, mas também  para a ação humana, a "Escola do Recife", especialmente através da meditação dos dois autores mencionados  anteriormente, desaguou na concepção da cultura como dimensão específica do humano, que se contrapõe ao  mundo da natureza. Segundo o fundador da "Escola do Recife": "(...) a sociedade, que é o grande aparato da  cultura humana, deixa-se figurar através da imagem de um emaranhado imenso de relações sinérgicas; é um  sistema de regras, é uma rede de normas, que se não limitam ao mundo da ação, chegando até os domínios do  pensamento. Moral, direito, gramática, lógica, civilidade, cortesia, etiqueta, etc., são outros tantos corpos de  doutrina que têm de comum entre si o caráter normativo (...). E tudo isso é obra da cultura em luta com a  natureza (...), luta na qual o direito é o fio vermelho e a moral o fio de ouro, que atravessam todo o tecido das  relações sociais. Um direito natural possui tanto sentido quanto uma moral natural, uma gramática natural,  uma ortografia natural, uma civilidade natural, pois todas essas normas são efeitos, invenções culturais"  [Tobias Barreto, 1966: 331-332]. 

 A "Escola do Recife", ao mesmo tempo que permitiu fazer uma crítica de fundo ao determinismo positivista, que  ancorava na submissão naturista da liberdade e da consciência, reduzindo-as a efeitos da "física social", deitou  também as bases para a corrente de pensamento que no século XX revelar-se-ia mais vital no contexto da  meditação filosófica brasileira: o culturalismo.

 Apesar de que a "Escola do Recife" foi a mais importante herdeira do kantismo ao longo do século XIX, não  podemos ignorar o papel pioneiro que representaram os Cadernos de Filosofia [Feijó, 1967] do padre Diogo  Antônio Feijó (1784-1843), que sintetizam o magistério do regente do Império (1835-1837). Neles, encontramos  viva a presença de Kant (1724-1804), tanto no que se refere à forma em que Feijó entende a razão humana,  quanto no que diz relação ao exercício da liberdade. As seguintes palavras, que ilustram a idéia que o padre  paulista tinha acerca da meditação filosófica, partem do pressuposto da "revolução copernicana" do filósofo de  Königsberg, de enxergar a problemática do conhecimento sob uma perspectiva estritamente humana e  transcendental: "Sendo o homem -- afirma Feijó em seus Cadernos -- a única substância conhecida por ele, é  claro que toda ciência para ser verdadeira e não fenomenal, quer dizer, para ter um valor real em si, deve  fundamentar-se no mesmo homem. É nas suas leis onde residem os princípios originais e primitivos de toda a  ciência humana". 

 A meditação filosófica brasileira do século XIX não seria alheia à influência do krausismo. Miguel Reale destaca  que o pensamento de Krause (1781-1832), apesar de ter entrado indiretamente no panorama brasileiro por  intermédio do jurista português Vicente Ferrer Neto Paiva (1798-1886) e dos krausistas Ahrens (1808-1874) e  Tiberghien (1819-1901), teve ampla repercussão na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São  Paulo. Os principais representantes dessa tendência foram Galvão Bueno (1834-1883) e João Theodoro Xavier  (1820-1878), cuja obra Teoria transcendental do direito (1876), segundo Reale, "compendia os princípios  fundamentais do racionalismo harmônico de Krause, com freqüentes referências à doutrina de Kant". João  Theodoro tentou superar o individualismo da concepção kantiana do direito, numa visão que desse lugar essencial  ao papel social do mesmo, sendo assim um dos precursores do chamado "direito social", ou "direito trabalhista"  no Brasil.

 Uma corrente de filosofia política bastante cultuada durante o Império foi o denominado liberalismo doutrinário.  O pensamento de autores como François Guizot (1787-1874), Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830),  Royer-Collard (1763-1843), etc., exerceu bastante influência na consolidação do sistema representativo. Os  pensadores brasileiros que mais diretamente receberam essa influência foram Paulino Soares de Souza, visconde  de Uruguai (1807-1866) e o publicista Pimenta Bueno (1803-1878). A visão liberal-conservadora legada pelos  doutrinários sofreria, em terras brasileiras, uma análise crítica do ponto de vista do liberalismo democrático de  Alexis de Tocqueville (1805-1859). Tavares Bastos (1839-1875) e José de Alencar (1829-1877) foram os  pensadores que melhor realizaram essa revisão crítica, que serviu de bandeira ao Partido Liberal, notadamente ao  longo das décadas de 1860 e 1870 [cf. Vélez, 1997a e 1997b].

 Como reação ao pensamento liberal, o tradicionalismo teve bastante divulgação ao longo do século passado.  Podemos citar, como representantes importantes dessa tendência, dom Romualdo Seixas (1787-1860), quem foi  arcebispo de Salvador-Bahia e recebeu do Imperador o título de Marquês de Santa Cruz, e José Soriano de  Souza (1833-1895).

 Apesar de terem recebido a influência dos tradicionalistas franceses Joseph de Maistre (1753-1821) e Louis de  Bonald (1754-1840), os brasileiros mostraram-se muito mais tolerantes do que aqueles e do que os portugueses.  Ubiratan Macedo [1981: 19] sintetizou assim o núcleo da filosofia tradicionalista brasileira: "Pode-se afirmar que  os tradicionalistas brasileiros no século XIX tinham consciência clara de um conjunto de teses filosóficas,  religiosas e de caráter social, ao redor das quais desenvolveram ensaios de certa magnitude. Tais teses consistiam  no menosprezo pelo racionalismo e o liberalismo; na defesa da monarquia legítima; no empenho em prol da união  da Igreja e do Estado e em prol da proscrição do matrimônio civil; na luta em defesa da liberdade de imprensa e  de pensamento, em nome do direito à verdade. Passando ao nível político (...) e excetuando a preferência pela
 monarquia, não se observa maior claridade nas opções. A monarquia constitucional vigente era francamente  tolerada, assim como o regalismo (...).E quanto a ter uma atenção política estruturada, como pretendia Soriano de   Souza, esta  não chegou a ser considerada. O grupo, apesar de ativo, era francamente minoritário e nunca teve  maior proximidade com o poder".

         2) A filosofia brasileira no século XX

 As principais obras que têm estudado o desenvolvimento da filosofia brasileira ao longo do século XX, são: de  Antônio Paim, História das idéias filosóficas no Brasil [1967], Problemática do culturalismo [1977] e O  estudo do pensamento brasileiro [1979]; de João Cruz Costa, Contribuição à história das idéias no Brasil  [1956]; de Fernando Arruda Campos, Tomismo e neo-tomismo no Brasil [1968]; de Luis Washington Vita,  Panorama da filosofia no Brasil [1969b] e Filosofia contemporânea em São Paulo [1969a]; de Tarcísio  Padilha (organizador), Filosofia e realidade brasileira 1976]; de Adolpho Crippa (organizador), As idéias  filosóficas no Brasil: século XX [1978b]; de Stanislavs Ladusans, Rumos da filosofia atual no Brasil [1976];  de dom Odilão Moura, Idéias católicas no Brasil: direções do pensamento católico no Brasil no século XX  [1978]; de Antônio Carlos Villaça, O pensamento católico no Brasil [1975]; de Aquiles Côrtes Guimarães, O  tema da consciência na filosofia brasileira [1982]; de Tarcísio Padilha (organizador), Anais da VII Semana  Internacional de Filosofia [1993]; de Roque Spencer Maciel de Barros, Estudos brasileiros [1997] e de José  Maurício de Carvalho, Contribuição contemporânea à história da filosofia brasileira [1998]. No terreno dos  estudos bibliográficos devem ser destacados os de Antônio Paim, intitulados: Bibliografia filosófica brasileira:  período 1931-1980 [1987] e Bibliografia filosófica brasileira: período contemporâneo, 1981-1985 [1988].  É importante lembrar também a obra de Geraldo Pinheiro Machado (1918-1985) 1000 títulos de autores  brasileiros de filosofia [1983].

 A partir da queda do Império e da instauração da República em 1889, a preocupação com a busca de uma  sociedade racional tornou-se meta prioritária da elite intelectual brasileira. O século XX começa sob a inspiração  positivista, que deu ensejo às quatro correntes mencionadas anteriormente.

 A vertente castilhista, consolidada, como já foi frisado, na Constituição política do Estado do Rio Grande do  Sul, elaborada e promulgada por Castilhos em 1891, deu lugar à prática da "ditadura científica" no mencionado  Estado. As figuras de maior relevo do castilhismo não foram teóricos do positivismo, mas espíritos práticos que  legislaram e que modelaram uma forma autoritária de governo. Consolidado o castilhismo no Rio Grande do Sul,  a partir de 1930 converteu-se na doutrina predominante do autoritarismo republicano brasileiro.

 Duas gerações podemos identificar no castilhismo: a primeira, correspondente ao surgimento e consolidação  dessa tendência no Estado do Rio Grande do Sul, no período compreendido entre 1891 e 1930 e que teve, além  de Castilhos, os seguintes representantes: Borges de Medeiros (1864-1961), José Gomes Pinheiro Machado  (1851-1915) e Getúlio Vargas (1883-1954). A segunda geração castilhista foi integrada pela elite  sul-riograndense que acompanhou Getúlio Vargas na tomada do poder em 1930 e a sua influência projetou-se  diretamente no cenário nacional durante o longo período getuliano até 1945, voltando a exercer alguma influência  durante o  segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954). Os representantes mais destacados desta segunda   geração foram Lindolfo Collor (1891-1942), João Neves da Fontoura (1889-1963), Firmino Paim Filho  (1884-1971), João Batista Luzardo (1892-1982), Joaquim Maurício Cardoso (1888-1938) e outros.

 Os dois traços doutrinários centrais do castilhismo [cf. Vélez, 1980] são a idéia da tutela do Estado sobre os  cidadãos e a concentração de poderes no Executivo. Como doutrina regeneradora, o castilhismo revelou-se mais  autoritário do que a própria ditadura científica comteana. Enquanto o filósofo de Montpellier considerava que da  educação positiva dos vários agentes sociais emergiria a ordem social e política, os castilhistas, como já foi dito,  inverteram a equação: primeiro deveria se consolidar um Estado mais forte do que a sociedade (mediante os  expedientes do partido único e do terror policial que destruísse qualquer oposição) a fim de que, numa segunda  etapa, o Estado educasse compulsoriamente os cidadãos. Como pode-se observar, este modelo incorporou  muitos elementos do totalitarismo rousseauniano, particularmente a idéia de que ordem significa aniquilação de  qualquer dissenso.

 Em que pese o fato de os castilhistas da segunda geração (na qual se destacava a figura de Lindolfo Collor)
 tiverem elaborado uma plataforma modernizadora de governo que deitou os alicerces para a industrialização do
 Brasil, a sua proposta ensejou um modelo tecnocrático apto para funcionar unicamente num contexto autoritário.  Essa tendência fez com que o longo regime de Vargas terminasse evoluindo até uma ditadura uni-pessoal, com   alguns elementos emprestados do corporativismo fascista: o chamado Estado Novo (1937-1945).

 Os positivistas ilustrados (cujos nomes já foram mencionados no item anterior) foram caracterizados assim por  Antônio Paim [1967]: "(...) sendo partidários de Augusto Comte, no que se refere à possibilidade da organização  racional da sociedade, preferiam os procedimentos da democracia liberal, ao contrário do totalitarismo  castilhista". Especial menção deve ser feita a Ivan Lins, cuja obra principal História do positivismo no Brasil  [1964] tornou-se um dos clássicos para o estudo deste tema, justamente por fazer um balanço objetivo e  desapaixonado da contribuição das várias manifestações do comtismo na cultura brasileira.

 A vertente militar do positivismo teve um importante representante neste século: o marechal Cândido Mariano da  Silva Rondón (1865-1956), quem foi o principal discípulo do ideólogo do positivismo no meio militar, Benjamin   Constant Botelho de Magalhães. Inspirado no ideal positivista de incorporação do proletariado à sociedade,  Rondón sempre insistiu na assimilação do índio à cultura ocidental, respeitando as populações silvícolas nas suas  propriedades, nas suas pessoas e nas suas instituições políticas, sociais e religiosas. Essa atitude permitiu-lhe  realizar importante trabalho de penetração nos longínquos confins da Amazônia e do Mato Grosso. Convém  salientar que houve, no meio militar, um grupo de oficiais que seguiram o positivismo castilhista, entre os quais  cabe mencionar o general Pedro Aurélio de Góis Monteiro (1889-1956), quem teve papel destacado durante os  dois governos de Getúlio Vargas.

 Nas primeiras décadas do presente século a crítica ao positivismo foi realizada por Otto de Alencar (1874-1912)  e Amoroso Costa (1885-1928), ambos professores da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e precursores da  corrente neo-positivista. A crítica era simples: o comtismo não corresponde a uma autêntica filosofia da ciência  devido à sua índole dogmática, sendo necessária uma abertura à evolução do conhecimento científico nas suas  várias manifestações, especialmente no tocante à física-matemática. A finalidade essencial da filosofia seria a  formulação de uma teoria do conhecimento que buscasse fundamentar uma linguagem elaborada com o máximo  rigor  e que se inspirasse na matemática. Os esforços de Otto de Alencar e Amoroso Costa conduziram à criação  da Academia Brasileira de Ciências em 1916, que representou um espaço aberto ao pensamento científico, livre  por completo do dogmatismo comteano.

 Na atualidade, dois pensadores representam a tendência neo-positivista: Pontes de Miranda (1892-1979) e  Leônidas Hegenberg (nasc. 1925). O primeiro caracteriza-se por ter aplicado os princípios fundamentais dessa  corrente à ciência do direito, mas sem se restringir a ela, colocando-a num contexto mais amplo em que medita  sobre a criação humana como um todo. O segundo é considerado por Antônio Paim como "o principal artífice do  processo  contemporâneo de superação do conceito oitocentista de ciência e do triunfo sobre o positivismo  comteano por parte dos cultores das ciências exatas, interessados na correspondente problemática filosófica.

 A mais fecunda corrente de pensamento filosófico, ao longo do presente século, é a culturalista. Tal corrente  identifica-se como herdeira do neo-kantismo e da tradição surgida a partir da crítica ao positivismo, desenvolvida  pela "Escola do Recife", especialmente por Tobias Barreto. Os principais representantes do culturalismo brasileiro  são Luís Washington Vita (1921-1968), Miguel Reale, Djacir Menezes (1907-1996), Antônio Paim, Paulo  Mercadante (nasc. 1923) e Nelson Saldanha (nasc. 1931).

 As teses fundamentais sustentadas pelos culturalistas poderiam ser sintetizadas da seguinte forma, segundo  Antônio Paim [1977]: a) A filosofia implica multiplicidade de perspectivas, sendo que no interior destas existe a  possibilidade de que surjam pontos de vista diversos. A escolha de uma perspectiva determinada não obedece a  critérios uniformes. b) A ciência é a única forma de conhecimento capaz de efetivar um discurso com validez  universal, mas para isso são estabelecidos objetos limitados, evita-se a busca da totalidade e elimina-se o valor. c)  As ciências humanas experimentaram um processo de aproximação às ciências naturais, mas por outro lado  observa-se uma subordinação de todas elas a esquemas filosóficos. d) Contudo, a elucidação acerca das relações  entre ciência e filosofia, não chega a constituir objetivo primordial da corrente culturalista, que centra a atenção,  melhor, numa meditação de tipo ontológico. e) O ser do homem constitui o objeto próprio dos pensadores  culturalistas, que atendem sobretudo para o agir ou para as criações humanas. f) A criação humana, ou seja, a  cultura, é entendida como "conjunto de bens objetivados pelo espírito humano na realização de seus fins  específicos". g) É necessário atender, no terreno da cultura, ao âmbito da pura idealidade, que possui um  desenvolvimento autônomo, apesar de ser influenciado pelo conjunto da atividade cultural. h) A autonomia da  variável espiritual, no processo cultural, torna-se visível através da capacidade humana de refletir filosoficamente  acerca dos problemas. i) Os problemas filosóficos são constituídos por questões controvertidas no seio da  tradição cultural, desde o ponto de vista do sentido do ser e do agir humanos. j) Apesar de enfatizar a autonomia  e a criatividade do espírito, os culturalistas não deixam de reconhecer que a atividade humana é orientada pelo
 interesse e pela necessidade. k) Contudo, interesse e necessidade humanos são subjetivos, apesar de que na sua  concreção se refiram a um determinado contexto histórico e cultural. l) Os ideais convertem-se em forças  propulsoras da cultura humana, quando amadurecidos pelos valores morais. m) O curso histórico tomado na sua  totalidade está longe de ser um processo racional, constituindo, melhor, a esfera da violência e da força. n) A  filosofia política constitui uma espécie de tensa mediação entre as esferas da racionalidade e da violência. Esta  forma de reflexão filosófica alimenta-se de determinada concepção de pessoa humana, situada no seu contexto  histórico e aberta à problemática da moralidade.

 Raimundo de Farias Brito (1862-1917) é o  mais importante pensador de tendência espiritualista no Brasil.  Discípulo da "Escola do Recife", combateu o positivismo não a partir do neo-kantismo, como Tobias Barreto,  mas a partir do espiritualismo, que estava em ascensão na Europa graças à meditação de Henri Bergson  (1859-1941). A influência de Farias Brito se fez sentir no pensamento do seu mais importante discípulo, Jackson  de Figueiredo (1891-1928) quem, apesar de não ter formulado uma rigorosa proposta filosófica como seu  mestre, teve o mérito de elaborar uma doutrina conservadora centrada nas idéias de ordem e de autoridade, que  serviu de base teórica aos católicos para assimilar as instituições republicanas e estabelecer um diálogo fecundo  com outras concepções políticas, superando destarte o dogmatismo ultramontano, no qual a Igreja Católica tinha  ancorado desde a proclamação da República em 1889.

 O mais destacado representante desta última posição foi o padre Leonel Franca (1896-1948), da Companhia de  Jesus, quem partiu do ponto de vista de defesa intransigente do catolicismo para uma classificação apologética  dos filósofos. Outros pensadores de inspiração católica têm desenvolvido perspectivas mais abertas. Dentre os  que receberam a influência de Jacques Maritain (1882-1973) cabe mencionar a Alceu Amoroso Lima  (pseudônimo Tristão de Athayde) (1893-1983) e Leonardo van Acker (1896-1986). Amoroso Lima  sistematizou na sua obra os princípios do que ele denominou de "humanismo cristão", contraposto ao marxismo e  ao existencialismo. Alicerçado nessa concepção, formulou críticas a filósofos contemporâneos e lutou no Brasil  pela defesa dos direitos humanos. Van Acker, belga de nascimento, adotou um ponto de vista neo-tomista para  avaliar as filosofias contemporâneas e formulou uma concepção moderna do que seria o papel dessa corrente de  pensamento no mundo de hoje, no sentido de que deveria se abrir à análise, sem preconceitos, de todas as  tendências. Continuador desta esclarecida opção é hoje monsenhor Urbano Zilles (nasc. 1937).

 Outros pensadores de inspiração católica são: Tarcísio Meireles Padilha (nasc. 1928) quem, inspirado na  meditação de Louis Lavelle (1883-1951), formula uma "filosofia da esperança"; Geraldo Pinheiro Machado quem  se destacou como historiador das idéias filosóficas no Brasil; Ubiratan Macedo (nasc. 1937) e Gilberto de Mello  Kujawski (nasc. 1925), os quais elaboraram a sua obra inspirando-se no pensador espanhol José Ortega y  Gasset (1883-1955); Fernando Arruda Campos, reconhecido estudioso do neo-tomismo brasileiro e o padre  Stanislavs Ladusans (1912-1993), da Companhia de Jesus, autor da obra, já citada, Rumos da filosofia atual  no Brasil.

 Tentando dar uma resposta concreta ao problema da pobreza e das desigualdades sociais que afetam ao Brasil,  alguns pensadores de formação cristã têm desenvolvido, ao longo das últimas décadas, o que poderia ser  denominado de projeto imanentista de libertação, que acolhe elementos conceituais provindos das teologias católica e protestante, bem como do hegelianismo, dos messianismos políticos rousseauniano e saint-simoniano,  do personalismo de Emmanuel Mounier (1905-1950) e do marxismo. As principais contribuições neste terreno  pertencem ao padre jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz (nasc. 1921), inspirador do movimento chamado  Ação Popular (que posteriormente converter-se-ia na Ação Popular Marxista-Leninista); a Hugo Assmann,  destacado professor universitário; ao padre Leonardo Boff, autor de numerosa bibliografia nos terrenos teológico,  político, filosófico e ecológico; e ao pedagogo Paulo Freire.

 É importante destacar que, ao longo da última década, têm aparecido estudos que analisam a problemática da  pobreza de outros ângulos, como por exemplo a partir da perspectiva liberal. A mais significativa contribuição  nesse sentido é a obra de José Osvaldo de Meira Penna (nasc. 1917), intitulada Opção preferencial pela  riqueza [Penna, 1991].No terreno do pensamento tradicionalista sobressaem: José Pedro Galvão de Souza  (1912-1993), quem profundizou na análise da teoria da representação (fato que o aproxima curiosamente do  liberalismo lockeano); Alexandre Correia (1890-1984), quem realizou a tradução íntegra ao português da Suma  Teológica de São Tomás de Aquino (1225-1274) e Gustavo Corção (1896-1978). 

 Os pensadores de inspiração marxista têm desenvolvido no Brasil amplo trabalho de análise, abordando  especialmente os aspectos sócio-econômicos. Destaca-se nesse terreno Caio Prado Júnior (1907-1990), para  quem seria infantil a pretensão comteana, adotada pela maior parte dos marxistas brasileiros, de enquadrar a  explicação científica acerca da evolução social nos estreitos parâmetros de leis gerais e eternas. "Tal pré-fixação  de etapas", escreve Prado Júnior [1966: 23], "através das quais evoluem ou devem evoluir as sociedades  humanas, faz rir". Apesar da advertência crítica deste autor, a tendência que veio a prevalecer no chamado  "marxismo acadêmico" brasileiro, foi a comteana ou cientificista. Os principais representantes desta vertente (que  possui como preocupação fundamental a implantação da sociedade racional, em bases marxistas), foram  Leônidas de Rezend (1899-1950), Hermes Lima (1902-1978), Edgardo de Castro Rebelo (1884-1970), João  Cruz Costa (1904-1978), Alvaro Vieira Pinto (nasc. 1909) e Roland Corbisier (nasc. 1914).

 Vale a pena destacar os nomes de alguns autores de inspiração marxista, desvinculados da opção comteana: Luiz  Pinto Ferreira (nasc. 1918) e Gláucio Veiga (nasc. 1923), os quais fazem uma avaliação da problemática herdada  da "Escola do Recife", notadamente no terreno do direito. Recentemente Leandro Konder (nasc. 1936) tem  desenvolvido uma crítica sistemática à opção comteana seguida pelo marxismo brasileiro. Se apoiando em bases  que remontam a Hegel (1770-1831) e a Marx (1818-1883), este autor atribui a "derrota da dialética", sofrida  pelo marxismo brasileiro, à versão positivista já anotada [Konder, 1988]. Leandro Konder situa-se, assim, nos  dias atuais, como o continuador da atitude crítica anteriormente sustentada por Caio Prado Júnior.

 No que tange à fenomenologia, a trajetória do pensamento brasileiro é bastante rica. Ao longo das décadas de  cinqüenta e sessenta, a filosofia de Edmund Husserl (1859-1938) foi divulgada por Evaldo Pauli (nasc. 1924) e  Luís Washington Vita. Interpretações da obra husserliana projetada sobre a meditação brasileira foram realizadas  por Miguel Reale no seu livro Experiência e cultura [1977], por Antônio Luiz Machado Neto (1930-1977) na  sua obra Para uma eidética sociológica [1977] e pelo já mencionado pensador católico Leonardo van Acker,  no seu livro A filosofia contemporânea [1981].

 Especial contribuição, no terreno dos estudos fenomenológicos, tem sido dada por Creusa Capalbo (nasc. 1934),  para quem a meditação husserliana, longe de constituir um sistema, é mais um método que não se pode reduzir a  uma teoria intuitiva do conhecimento, mas que se desenvolve no seio de uma hermenêutica e de uma dialética.  Sobressaem ainda no terreno dos estudos fenomenológicos, Aquilles Côrtes Guimarães, quem aplica a  perspectiva husserliana à historiografia da filosofia brasileira e Beneval de Oliveira (1916-1986), quem realiza um  balanço da evolução desta corrente na sua obra A fenomenologia no Brasil [1983]. Alguns estudiosos utilizam   fenomenologia como método de pesquisa no terreno das epistemologias regionais. Tal é o caso, por exemplo, de  Nilton Campos (1898-1963), Isaias Paim e João Alberto Leivas Job. 

 A filosofia existencialista, no sentir de Antônio Paim [1967], teve dois momentos no período contemporâneo. O  primeiro corresponde à entrada das idéias de Jean-Paul Sartre (1905-1982) no panorama cultural brasileiro,  imediatamente depois da Segunda Guerra Mundial. O segundo corresponde à influência deixada pelo pensamento  de Martin Heidegger (1889-1976), a partir da década de sessenta.

 As idéias de Sartre foram divulgadas inicialmente por Roland Corbisier e Alvaro Vieira Pinto. A influência do  filósofo francês no meio brasileiro consolidou-se com a série de conferências que Sartre pronunciou no Rio de  Janeiro em 1961. A entrada do existencialismo sartreano produziu uma forte reação dos pensadores católicos,  que passaram a criticar especialmente o ateísmo do pensador francês. O autor que mais definidamente sofreu a  influência de Sartre foi Otávio de Mello Alvarenga [cf. Mourão, 1986]. À luz do existencialismo sartreano foram  discutidas questões sociais relativas ao desenvolvimento, ao colonialismo e outras, no Instituto Superior de  Estudos Brasileiros (ISEB).

 Pelo fato de se ajustar melhor à tradição espiritualista brasileira, a filosofia hedeggeriana contou com mais  seguidores. Dentre os pensadores que sofreram a influência de Heidegger podem ser mencionados os nomes de  Vicente Ferreira da Silva (1916-1963), Emmanuel Carneiro Leão, Gerd Bornheim (nasc. 1929), Ernildo Stein,  Wilson Chagas (nasc. 1921), Eduardo Portella e Benedito Nunes.

 No seio dos existencialistas brasileiros mencionados, deve ser destacada a figura de Vicente Ferreira da Silva,  cujas Obras completas [1964] abrem um caminho profundamente rico e original, que une a problemática  existencialista à melhor tradição do espiritualismo de origem portuguesa. Referindo-se à peculiaríssima  contribuição de Ferreira da Silva, Miguel Reale [in: Silva, 1964: I, 13] afirmou: "A sua preocupação pelas origens  e pelo valor do infra-estrutural, já na raiz da personalidade (...), já no evoluir das idéias, como revela a sua nota  sobre Heráclito ou o estudo sobre a origem religiosa da cultura, tem, efetivamente, o alcance de uma  historicidade transcendente, de um regresso às origens, para dar início a um ciclo diverso da história, diferente  deste em que o homem estaria divorciado da natureza e das fontes do divino; para um retorno, em suma, ao  ponto original onde emergem todas as possibilidades naturais espontâneas, liberadas das crostas opacas do  experimentalismo tecnológico, bem como das objetivações extrínsecas platônico-cristãs".

 Adolpho Crippa (nasc. 1929) desenvolveu a vertente espiritualista trabalhada por Ferreira da Silva, aprofundando  no tema do mito como gerador da cultura. Uma perspectiva de análise semelhante foi desenvolvida pelo filósofo  português Eudoro de Sousa (1911-1989), quem criou na Universidade de Brasília o Centro de Estudos  Clássicos.

 Vale a pena mencionar os nomes de alguns autores não filiados a correntes dete rminadas e que se têm  caracterizado pela sua ativa participação no debate filosófico, se aproximando, em alguns aspectos, da corrente  culturalista. Tal é o caso, por exemplo, de Vamireh Chacon (nasc. 1934), Renato Cirell Czerna (nasc. 1922),  Silvio de Macedo ( nasc. 1920), Roque Spencer Maciel de Barros (nasc. 1927) Evaristo de Moraes Filho (nasc.  1914), Alcântara Nogueira (nasc. 1918), Jessy Santos (nasc. 1901) e Tércio Sampaio Ferraz (nasc. 1941). O  mais importante representante do espiritualismo no momento atual é João de Scantimburgo (nasc. 1915), quem se  inspira no pensamento de Maurice Blondel (1861-1949).

 A cultura filosófica brasileira no século XX tem sido canalizada por um número crescente de pensadores, em  direção a um estudo sistemático dos principais autores e correntes, a partir de determinadas instituições não  universitárias. As mais destacadas entidades são: o Centro dom Vital (criado em 1922, no Rio de Janeiro, por  Jackson de Figueiredo); o Instituto Brasileiro de Filosofia (criado em 1949, em São Paulo, por Miguel Reale); a  Sociedade Brasileira de Cultura Convívio (criada em 1962 em São Paulo, por Adolpho Crippa); o Conjunto de  Pesquisa Filosófica (organizado em 1967 em São Paulo pelo padre Stanislavs Ladusans); a Sociedade Brasileira  de Filósofos Católicos (com sede no Rio de Janeiro e presidida desde 1973 por Tarcísio Padilha); o Centro de  Documentação do Pensamento Brasileiro (organizado em Salvador-Bahia em 1983 por Antônio Paim e que  possui, hoje, o mais importante acervo na área do pensamento brasileiro); a sociedade Tocqueville (criada no Rio  de Janeiro, em 1986, por José Osvaldo de Meira Penna e um grupo de intelectuais liberais); o Centro de Estudos  Luso-Brasileiros (criado em 1986, no Rio de Janeiro, por Anna Maria Moog Rodrigues, Italo Joia e Gisela  Bandeira Pereira); o Instituto de Humanidades (com sede em Londrina, Paraná, e criado em 1987 por Leonardo  Prota, Antônio Paim e Ricardo Vélez Rodríguez); a Academia Brasileira de Filosofia (criada em 1989 no Rio de  Janeiro por iniciaitiva de Jorge Jaime, e presidida atualmente por João Ricardo Moderno); o Centro de Estudos  Filosóficos de Londrina (criado em 1988 por Leonardo Prota); o Centro de Estudos Filosóficos de Juiz de Fora  (criado em 1991 pelos ex-alunos do Curso de Mestrado em Pensamento Brasileiro da Universidade Federal  local), etc.

 Nas últimas décadas também têm surgido em várias universidades programas de pós-graduação orientados ao  estudo da história das idéias filosóficas no Brasil. As principais iniciativas têm sido tomadas pela Pontifícia  Universidade Católica do Rio de Janeiro, pela Universidade Gama Filho (do Rio de Janeiro), pela Universidade  Estadual de Londrina e pela Universidade Federal de Juiz de Fora. De outro lado, em aproximadamente 25  universidades é ensinada regularmente a disciplina "filosofia brasileira". Esse crescente interesse pelo estudo do  pensamento brasileiro levou o Centro de Estudos Filosóficos de Londrina a realizar a cada dois anos (a partir de  1989) os Encontros Nacionais de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira.  

 No terreno documental, sobressai a iniciativa do Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro de  Salvador-Bahia, que sob a orientação de Antônio Paim publica, desde 1983, bibliografias e estudos críticos  acerca de pensadores e publicações periódicas. A nível internacional, é digno de menção o Anuario del  Pensamiento Ibero e Iberoamericano, que a Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, publica desde  1989 sob a direção de José Luis Gómez-Martínez, com uma seção dedicada ao estudo do pensamento brasileiro.  Esta publicação constitui, na atualidade, o mais completo instrumento bibliográfico no seu gênero, a nível mundial, somente comparável ao Handbook of Latin-American Studies, que é publicado, sob a coordenação de Juan  Carlos Torchia Estrada, pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.

 Por último, cabe mencionar o importante trabalho de difusão da filosofia brasileira que Luiz Antônio Barreto  realiza em Aracajú (Sergipe), a partir da Fundação Augusto Franco. As suas duas mais recentes contribuições  são a edição das Obras Completas de Tobias Barreto [1991] e a promoção anual, a partir de 1989, dos  Colóquios Luso-Brasileiros de Filosofia, que são realizados alternadamente em Portugal e no Brasil, com a  colaboração do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, com sede em Lisboa, (sob a presidência de José Esteves  Pereira). O fruto mais importante da cooperação luso-brasileira é a Enciclopédia Lógos, que desde 1989 publica  em Lisboa a Editorial Verbo, sob a direção de Francisco da Gama Caeiro (1928-1993), Antônio Paim e outros,  com o patrocínio da Universidade Católica Portuguesa.

        

 A presença da filosofia francesa é, destarte, marcante em momentos significativos do pensamento brasileiro.

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