PAIDEIA - A educação para a virtude, um projeto urgente para o Brasil
A educação é uma função tão
natural e universal da comunidade humana e tão auto-evidente, que tem
exigido, por isso mesmo, muito tempo para ser plenamente compreendida,
tanto pelos que a recebem, quanto pelos que a praticam. Daí , com efeito,
a tardia literatura especifica e hoje a profusão de teorias, doutrinas e
achismos acerca do tema. Já nos antigos gregos o conceito arete
(cuja tradução para atualidade não é fácil) a virtude da tempera heróica,
ética e da nobreza que caracterizava a bravura guerreira dos cavaleiros,
eis talvez o primeiro conceito de educação, de formação do homem. O Homem
vulgar, assim, não tem arete. A arete é, então, um atributo
da excelência humana, a beleza de caráter que orienta a praxis (a
ação cotidiana) humana para o bem, é enfim a unidade suprema de todas as
excelências.
Em Homero (Ilíada e
Odisséia) vamos encontrar este conceito helênico de formação do homem
grego de então: “Hipóloco me gerou, a ele devo a minha origem. Quando
me enviou a Tróia, advertiu-me insistentemente que lutasse sem cessar por
alcançar o poder da mais alta virtude humana e sempre fosse, entre todos,
o primeiro.” Eis aí o mais belo sentimento pedagógico da arete
- o mais perfeito equilíbrio entre altivez e magnanimidade cujo troféu é a
honra. Outra poética e emblemática passagem de Ilíada acerca dos
fins da educação é quando o velho Fênix, educador do jovem Aquiles,
herói-protótipo dos gregos, recorda-o o fim para o qual foi educado: “proferir
palavras e realizar ações.” Como se vê, com razão Platão considerou
Homero o educador de toda a Grécia. A paideia - estruturação da
vida individual, assente em princípios de virtude absoluta, cultivo da
perfeição humana - é o meio para se alcançar a arete. Com efeito,
já houve tempo em que se considerava a paideia (mais ainda a
agoge espartana) o mais alto fim do Estado (polis). Tudo
na vida dos helênicos girava em torno do ideal da arete. As artes :
a arete da tragédia, da comédia, da poesia, da música (Homero,
Ésquilo, Sófocles, Simônides, Tirteu...); a filosofia, ou arete do
saber (Sócrates, Platão...); os esportes/ginástica (arete da força
física/ideal olímpico); a política (politeia=vida pública+vida
privada, em Péricles, politeuma).
É com os sofistas que o conceito
restrito de educação se amplia e se eleva até a mais alta arete
humana, superando o simples conceito de “criação dos meninos” (em Sete
contra Tebas, de Ésquilo) primeira referência ao conceito educação que
já agora abarca o conjunto de todas as exigências ideais, físicas e
espirituais que conduzem à formação humana mais ampla e consciente (humanitas,
em Cícero; Bildung em alemão, algo como cultura superior). É bem
expressivo, por outro lado, que Platão, Isócrates, Demóstenes, dentre
outros, considerem o defeito especifico da retórica - a arte maior dos
sofistas - o falar para agradar aos homens e não para atender o “bem
eterno”, é corrupção do discurso (crise da arete retórica, a
pseudo-paideia). Daí porque hoje, quando somos acometidos da
síndrome moderna da avalanche teórica (de opiniões, achismos, que em
certos casos não vão além do mero rebatizar de denominações) que sufoca a
todos, é curial o crivo da condenação reiterada de Platão aos sofistas
(inclusive Górgias de Leontini e Protágoras os
maiores dentre os muitos sofistas da antigüidade clássica) : porque
eles reduzem o conhecimento à opinião e o bem à utilidade, relativizando
valores e princípios absolutos para a vida humana, não ostentam mais que
“sapiência aparente” (isto foi depois, também, confirmado por
Aristóteles).
Assim, toda e qualquer retórica
cientifica descomprometida com sua efetividade, livre da necessidade
probatória, nos leva a certo grau de desconfiança. A novidade superante é
sempre uma necessidade da jornada humana, mas a natureza não dá saltos, e
a imposição absoluta do novo só pela novidade é tolo desafio à natureza
dialética daquele evoluir humano. Da educação nas sociedades primitivas,
que visava apenas manter a imutabilidade sagrada das técnicas culturais,
embora não se desconhecesse que nenhuma sociedade humana sobrevive sem que
sua cultura seja transmitida de geração para geração - esta entrega (do
Latim tradere) de cultura é a tradição - passou-se para a nova
educação, nas sociedades ditas (mais) civilizada que incorporam, além
daquela transmissão cultural, o dado novo do aperfeiçoamento e correção da
tradição.
É que “todas as coisas mudam
sempre sobre uma base que não muda nunca” (Ruy/1910). Assim, por exemplo,
os conceitos de Direito (sempre o reto, o justo), de democracia (evoca
sempre povo), de pedagogia (paidagogia, evoca sempre a idéia de
condução, daí o escravo - o paidagogo - que conduzia pelas
mãos a criança à escola, ao saber). Mudam as palavras, mas as
coisas em si (ou seus conceitos) são as mesmas : educar é alterar a
natureza humana, é tornar os homens melhores, enfim alcançar a
arete é o propósito de nossa vida; a pedagogia sofista bem divisou
isto. Há a virtude cívica (arete política) que é o fundamento do
Estado; há a verdade como virtude essencial da ciência (episteme) e
diria mais: de toda educação; há a virtude do indivíduo que é múltipla: a
solidariedade, a eticidade, a justiça, além do
adestramento/instrução técnico-profissional (parte não essencial da
paideia autentica, que visa formar o homem na arete total). A
virtude em Platão se decompunha em: justiça, prudência, piedade e
valentia. |
Antes de ser ciência autônoma,
a pedagogia era parte integrante da ética ou da política e elaborada
unicamente em atenção aos fins propostos pela ética e pela política ao
homem, isto enquanto pensar filosófico
especificamente pedagógico.
Porém enquanto natureza prática/empírica a pedagogia referia-se ao
primeiro e mais elementar
adestramento da criança para a
vida (privada e pública). Eis aqui o ponto crucial desta especulação:
este viés prático/pragmático (hoje mais adestramento utilitarista) anulou
a razão de ser (a arete total, a formação virtuosa do educando,
adulto ou criança) da pedagogia e
consequentemente da educação.
Daí, as deformações nos quadros dirigentes da sociedade brasileira em
especial, porquanto se a sociedade
não
mais devota dedicação absoluta aos
valores/virtudes paradigmáticos (o bem por princípio e a vantagem por
decorrência/premial) seus
indivíduos só podem mesmo tolerar e pior, aspirar, também, pilhar o
interesse público. Por que será que tantas “autoridades” têm sido
ocasionalmente flagradas em desvirtudes, falhas e crimes infamantes ? A
resposta até pode ser: por
causa de arroubos de virtudes de algumas autoridades, cumulados com o
interesse
jornalístico/comercial da imprensa. Mas a resposta plena de verdade é que:
estes casos só representam a ponta do iceberg, ou seja, há fora das
vistas uma consciência permissiva cada vez maior no seio da sociedade.Já
se vê mesmo um Estado marginal dentro do Estado oficial. O que se dirá das
listas de homenageados, condecorados e premiados com os mais altos cargos
públicos, listas essas repletas de indignidades “politicamente corretas
(?!)”. Pesquisem-se tais listas e comprovar-se-à o quanto há de inversão
moral. A propósito é bem atual a advertência de Platão: importa mais
infundir à polis um ethos (o espírito ético) bom e não
dotá-la dum amontoado de leis...
Com efeito, o Direito tem forte
poder educativo. Por outro lado, a educação tem forte sabor jurídico (é
pobre, senão paupérrima a educação que só ensina o fazer, o ter e despreza
o ser : o ser justo, ser ético, o ser cidadão, o ser bom enfim).
Reconhecer isso passa longe de eventuais disputas ou hegemonia
profissionais, acadêmicas; eis é imperativo de sobrevivência e progresso
social de um povo. Ontem já era assim, hoje, no entanto, é cada vez mais
urgente tal compreensão estratégica.
Então faz-se urgente conciliar o amor
pelo eu subjetivo (antítese do eu comunitário) com a totalidade do mundo
circundante. O culto da alma individualizada com a consciência viva da
comunidade, da cidade/estado, com a virtude cívica genérica de cada eu. Em
suma trata-se de harmonizar os interesses privados/individuais com os
interesses públicos/cívicos.Até porque são realidades de alta
reciprocidade de interferência: um bom estado exige um bom cidadão e
vice-versa, ou seja, um cidadão que saiba mandar e obedecer orientado pelo
fundamento da justiça. Tudo isto é função da educação autentica,
instrumentalizada pelo ensino
das virtudes (ou melhor da virtude que é única, mas que apresenta porções
ideais). Com efeito, foi a cultura ática a primeira a equilibrar as duas
forças: o impulso criador do indivíduo e a energia unificadora da
comunidade política. Nem o benfazejo apogeu da alma individualizada, do
ente individual/pessoa humana
que surge com o cristianismo, nem a radicalização individualista do
liberalismo (e pior ainda do neoliberalismo) devem tolher a vocação,
conquanto essencial hoje bastante minimizada, da educação enquanto ensino
ético-político, verdadeiro eixo de sustentação da formação integral do
homem contemporâneo, máxime do brasileiro. A formação ética e
política são, assim, parte essencial da verdadeira paideia, da
educação autentica. Daí porque Tucídedes disse: “chamo à nossa cidade a
alta escola da cultura da
Hélade”. Como se vê, o Estado é, ou deveria ser, a mais alta escola da
cultura plena e a vida privada a propaideia (base/preparatória da
paideia) da vida pública (da paideia política).
A formação do caráter, na
perspectiva da arrete total, da perfeição humana, deve ser levada a
efeito desde cedo, como uma hodierna propaideia; educar a todos
para serem dignos do trono real. Já que temos de viver
inexoravelmente em sociedade e
organizada minimamente, é então indispensável, que desenvolvamos
as virtudes
públicas/cívicas (civita/polis=Estado),
o “estado dentro de nós”, como pregava Platão (Rep.).Todavia a
sementeira desta paideia
contemporânea só pode frutificar em regime de tempo integral e desde a
primeira infância até o último suspiro, eis que a educação plena jamais se
completa, senão a vida. A perfeição humana, a educação total (arete
total) é sempre, uma fórmula de eterna procura, tal como a justiça,
a democracia, objetos de desejo jamais alcançáveis enquanto resultado
absolutamente conclusivo ou terminativo.
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Ensinar pressupõe a crença de que mudanças são possíveis, de que o discurso da acomodação não melhora as dores do mundo; daí porque o ato de ensinar é constante exercício da faculdade humana de criticar. É preciso criticar, discutir, mudar, enfim não parar de buscar a razão de ser de nossa ação educativa, este é o problema fundamental de toda educação: o educando na perspectiva do estadista e este na perspectiva do pedagogo; vale dizer: a meta-exemplo e o projeto consciente de seu melhor fim. É educação em sentido mais alto, mais que mero adestramento para o fazer, ou para o ter. É, pois, educação no sentido ético, como supremo bem e suma felicidade humana, o bom e o belo a serviço da formação do homem. Segue-se que uma escola, sobretudo a universitária, muda e passiva, já não merece tal denominação, senão a de túmulo do progresso humano. Como nossa atual educação (em todos os níveis da sedimentação educativa) tem reagido ao patético quadro social (interferente no individual, é claro) que nos envolve ? Ou na base do “salve-se quem puder” (bem ou mal dissimulado: p. ex. “não nos envolvemos em política/cuidamos apenas de formar profissionais”); ou “fazemos o que é possível” (p.ex. trouxemos um político/um filme p/discussão, temos uma disciplina especifica...). Ora, o Brasil dos excluídos, da violência e corrupção generalizada, da dissolução cultural..., mais do que episódicas preocupações ou campanhas pontuais, esta a exigir de nossa educação em geral um constante exercício da reflexão ético-social perpassando todos os momentos da vida e na perspectiva da educação total e permanente, cuja iniciação se dá na escola que é, nada mais nada menos, o espaço inicialmente mais propício nesta paideia total. O grande educador Paulo Freire educa-nos ao proclamar: “estou convencido da natureza ética da prática educativa”; mas, por certo, da ética universal, não da “ética do mercado”. (Out.1999). |
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