A História da Filosofia no Período Antigo

 

1.             OS PRÉ-SOCRÁTICOS

A passagem da consciência mítica e religiosa para a consciência racional e filosófica não foi feita de um salto. Esses dois tipos de consciência coexistiram na sociedade grega.

De acordo com a tradição histórica, a fase inaugural da filosofia grega é conhecida como período pré-socrático. Esse período abrange o conjunto das reflexões filosóficas desenvolvidas desde Tales de Mileto (623-546 a.C.) até Sócrates (468-399 a.C.).

Os filósofos anteriores à Sócrates se preocupavam em determinar o que é uma coisa. Os pré-socráticos ocuparam-se em explicar o universo e examinavam a procedência e o retorno das coisas. Os primeiros filósofos gregos tentaram responder à pergunta: Como é possível que todas as coisas mudem e desapareçam e a Natureza, apesar disto, continua sempre a mesma? Para tanto, procuraram um princípio a partir do qual se pudesse extrair explicações para os fenômenos da natureza. Um princípio único e fundamental que permanecesse estável junto ao sucessivo vir-a-ser. Tales vai dizer que o princípio de tudo é a água; Anaximandro, o infinito indeterminado, Anaxímenes, o ar; Heráclito, o fogo; Pitágoras, o número; Empédocles, os quatro elementos: terra, água, ar, fogo, em vez de uma substância única. Tales de Mileto, Anaximandro e Anaxímenes acreditavam que as coisas têm por trás de si um princípio físico, material, chamado arqué.

  

Tales de Mileto (625-558 a.C.)

Tales foi comerciante de sal e de azeite de oliva, e enriqueceu como proprietário de prensas de azeitona durante uma safra promissora. Sabe-se que Tales previu um eclipse ocorrido em 585 a.C.Sobre a vida de Tales pouco se sabe. De suas idéias quase nada é conhecido. Aristóteles o chama de fundador da filosofia, e lembra a sua doutrina de que a água é o elemento primordial de todas as coisas, e que para suportar as transformações e permanecer inalterada, a água deveria ser um elemento eterno. Atribui-se a Tales a afirmação de que "todas as coisas estão cheias de deuses", o que talvez pode ser associado à idéia de que o imã tem vida, porque move o ferro. Além disso, elaborou uma teoria para explicar as inundações do Nilo, e atribui-se a Tales a solução de diversos problemas geométricos. Tales foi um dos filósofos que acreditava que as coisas têm por trás de si um princípio físico, material, chamado arqué. Para Tales, o arqué seria a água. Tales observou que o calor necessita de água, que o morto resseca, que a natureza é úmida, que os germens são úmidos, que os alimentos contêm seiva, e concluiu que o princípio de tudo era a água.

  

Anaximandro de Mileto (610-546 a.C.)

Discípulo e sucessor de Tales. Anaximandro recusa-se a ver a origem do real em um elemento particular; todas as coisas são limitadas, e o limitado não pode ser, sem injustiça, a origem das coisas. Do ilimitado surgem inúmeros mundos, e estabelece-se a multiplicidade; a gênese das coisas a partir do ilimitado é explicada através da separação dos contrários em consequência do movimento eterno. Para Anaximandro o princípio das coisas - o arqué- não era algo visível; era uma substância etérea, infinita. Chamou a essa substância de ápeiron. Anaximandro tinha um argumento contra Tales: o ar é frio, a água é úmida, e o fogo é quente, e essas coisas são antagônicas entre si, portanto um o elemento primordial não poderia ser um dos elementos visíveis, teria que ser um elemento neutro, que está presente em tudo mas está invisível.

 

Anaxímenes de Mileto (588-525 a.C.)

O princípio de tudo, o arqué, seria o ar e as coisas da natureza seriam o ar condensado em vários graus. A rarefação e condensação do ar forma o mundo. A alma é ar, o fogo é ar rarefeito; quando acontece uma condensação, o ar se transforma em água, se condensa ainda mais e se transforma em terra, e por fim em pedra. Foi o primeiro a afirmar que a Lua recebe a sua luz do Sol.

 

Xenófanes de Cólofon (570-528 a.C.)

O elemento primordial para ele é a terra, através do elemento terra desenvolve sua cosmologia.Combate acirradamente a concepção antropomórfica dos deuses, e defende um Deus único, eterno, imóvel.

 

Heráclito de Éfeso (540-476 a.C.)

Cognominado de "obscuro". Afirmava que todas as coisas estão em movimento como um fluxo perpétuo. O escoamento contínuo dos seres em mudança perpétua, e que esse se processa através de contrários. A lei fundamental do Universo é o devir, que significa contínuas transformações. Tudo flui e nada fica como é. Coisa alguma é estável. Tudo segue seu curso. Para Heráclito o princípio das coisas é o fogo. O fogo transforma-se em água, sendo que uma metade retorna ao céu como vapor e a outra metade transforma-se em terra. Sucessivamente, a terra transforma-se em água e a água, em fogo. Todas as coisas mudam sem cessar, e o que temos diante de nós em dado momento é diferente do que foi há pouco e do que será depois. Afirmou: "Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez não somos os mesmos, e também o rio mudou." Outros filósofos pré-socráticos não acreditavam em um princípio material para a natureza. Pensavam haver um princípio lógico, como se a natureza fosse estabelecida por um pensamento.

 

Pitágoras de Samos

É dele a idéia de que o número é o princípio ordenador de todas as coisas. Para Pitágoras, aquele que compreende todas as relações numéricas chega à essência das coisas. Portanto, a substância das coisas é o número. Pitágoras interpretou a forma dualista da teoria dos opostos e a descoberta de ordem matemática, sobretudo do famoso teorema que lhe é atribuído.

 

Parmênides de Eléia (530-460 a.C.)

É a doutrina mais profunda de todo o pensamento socrático, mas tambem a mais difícil interpretação. O poema divide-se: o prólogo, o caminho da verdade e o caminho da opinião. Parmênides afirma que a única coisa eterna é o ser; as mudanças são ilusórias. Não haveria, por conseguinte, mudanças nas coisas. Para conhecer o conteúdo verdadeiro e objetivo das coisas é necessário pensar. Conhecer o ser é conhecer a verdade. Parmênides combateu Heráclito que diz que tudo flui. Para Parmênides é absurdo e impensável considerar que uma coisa pode ser e não ser ao mesmo tempo. Parmênides considera que o movimento existe apenas no mundo sensível, e no mundo inteligível o ser é imóvel.

 

Empédocles de Agrigento (490-435 a.C.)

O princípio gerador de todas as coisas não seria um único elemento, mas quatro elementos: terra, ar, água e fogo, que se misturam em diferentes proporções e formam as várias substâncias que encontramos no mundo. O que unia e desunia os quatro elementos eram dois princípios: o amor e a luta. Os quatro elementos e os dois princípios seriam eternos, mas as substâncias formadas por eles seriam pouco duradouras.

 

Anaxágoras de Clazomena (500-428 a.C.)

Haveria um número infinito de elementos que Anaxágoras chamou de homeomerias, ou sementes invisíveis, que diferiam entre si nas qualidades. Todas as coisas resultariam da combinação das diferentes homeomerias.

 

Demócrito de Abdera (460-370 a.C.)

Acha que tudo o que existe é composto de átomos. Os átomos, infinitos em número, combinam-se uns aos outros e formam todas as coisas. Os átomos são invisíveis porque são muito pequenos e também porque não possuem qualidades. No universo somente existiriam átomos e vácuo. Todas as qualidades das coisas como cor, cheiro, peso, som, beleza, vida e outras, nada mais são do que movimento e modos de ser diferentes dos agregados de átomos que formam a respectiva coisa.

  

Demócrito e suas Teorias

Demócrito fez uma tentativa bem independente de reconstrução. Como Sócrates, seu contemporâneo, defrontou-se com as dificuldades referentes ao conhecimento, levantadas pelo seu concidadão Protágoras e outros, e, da mesma forma que ele, deu grande atenção ao problema do comportamento, ao qual também os sofistas deram impulsos. Ao contrário de Sócrates, porém, ele era um autor volumoso, e nós ainda podemos constatar, através dos scus fragmentos, que era um dos maiores escritores da Antigüidade. Para nos, contudo, é como se não tivesse escrito quase nada; de fato, sabemos menos a seu respeito do que de Sócrates. Isto deve-se ao fato de ele ter escrito em Abdera, e as suas obras na realidade nunca foram bem conhecidas em Atenas, onde teriam tido a possibilidade de serem preservadas, como aquelas de Anaxágoras e outrem, na biblioteca da Academia. Não é certo que Platão haja conhecido alguma coisa sobre Demócrito, pois que as poucas passagens no Timeu e alhures, no qual parece que o reproduz, são facilmente explicadas pelas influências pitagóricas que afetaram a ambos. Aristóteles, por outro lado, conhece bem Demócrito, pois era também jônio do Norte.

É certo, não obstante, que as obras completas de Demócrito (que incluem as obras de Leucipo e outros, bem como as de Demócrito) continuaram a existir, porquanto a escola as conservou em Abdera e Teos ao longo dos tempos helenísticos. Por isso, foi possível para Trasilo, sob o reinado de Tibério, fazer uma edição das obras de Demócrito, organizada em tetralogias, exatamente como sua edição dos diálogos de Platão. Mesmo isso não foi suficiente para preservá-las. Os epicuristas, que tinham a obrigação de ter estudado o homem a quem deviam tanto, detestavam qualquer tipo de estudo, e provavelmente nem se preocuparam em multiplicar os exemplares de um escritor cujas obras teriam sido um testemunho permanente para a carência de originalidade que caracterizou o próprio sistema deles.

Sabemos extremamente pouco sobre a vida de Demócrito. Como Protágoras, era natural de Abdera na Trácia, uma cidade que nem mereceria a reputação proverbial de embotamento, considerando que pode dar origem a dois homens de tanta envergadura. Quanto à data do seu nascimento, temos apenas conjeturas para nos orientar. Em uma das principais obras, afirmou que elas foram escritas 730 anos após a queda de Tróia; não sabemos; porém, quando, segundo a suposição dele, isto ocorrera. Havia nessa época e posteriormente diversas eras em uso. Disse também algures que, quando Anaxágoras era velho, ele era jovem, e a partir dai concluiu-se que nasceu em 460 a.C. Parece, entretanto, cedo demais, visto estar baseado na hipótese de que tinha quarenta anos quando se encontrou com Anaxágoras, e a expressão "jovem" sugere menos que esta idade. Demais, cumpre-nos encontrar um espaço para Leucipo entre eles [Demócrito] e Zenão. Se Demócrito morreu, como se diz, com a idade de noventa ou cem anos, de qualquer maneira ainda vivia quando Platão fundara a Academia. Mesmo a partir de fundamentos meramente cronológicos, é falso classificar Demócrito entre os predecessores de Sócrates, e obscurece o fato de que, como Sócrates, ele tentou responder ao seu distinto concidadão Protágoras.

Demócrito foi discípulo de Leucipo, e temos uma prova contemporânea, a de Glauco de Régio, que também os pitagóricos foram seus mestres. Um membro posterior da escola, Apolodoro de Quizico, diz que tomou conhecimento por intermédio de Filolau, o que parece muito provável. Isto esclarece o seu conhecimento geométrico, bem como, outros aspectos do seu sistema. Sabemos, outrossim, que Demócrito falou nas obras das doutrinas de Parmênides e Zenão, que chegou a conhecê-las através de Leucipo. Fez menção a Anaxágoras, e parece ter dito que a sua teoria do sol e da lua não era original. Isto pode referir se à explicação dos eclipses, que geralmente fora atribuída em Atenas, e sem dúvida alguma na Jonia, a Anaxágoras, ainda que Demócrito naturalmente estivesse ciente de ser ela pitagórica.

Diz-se ter visitado o Egito, mas há uma certa razão para se acreditar que o fragmento onde isto é mencionado (fragmento 298 b) é apócrifo. Há um outro (fragmento 116) no qual ele diz: "Eu fui a Atenas e ninguém tomou conhecimento de mim". Se disse isto, sem dúvida deu a entender que não conseguira causar uma impressão tal como o fizera o seu mais brilhante concidadão Protágoras. Por outro lado, Demétrio de Falerão afirmou que Demócrito jamais visitou Atenas; então é possível que este fragmento também seja apócrifo. Seja como for, ele deve ter despendido a maior parte do seu tempo no estudo, ensinando e escrevendo em Abdera. Não era um sofista itinerante do tipo moderno, mas sim o cabeça de uma escola regular.

A verdadeira grandeza de Demócrito não está na teoria dos átomos e do vazio, que ele parece ter exposto bem conforme a tinha recebido de Leucipo. Menos ainda está no seu sistema cosmológico, que deriva mormente de Anaxágoras. Pertence inteiramente a uma outra geração que a desses homens, e não está preocupado de modo especial em encontrar uma resposta a Parmênides. A questão à qual tinha que se dedicar era a de sua própria época. A possibilidade de ciência havia sido negada, bem como todo o problema do conhecimento levantado por Protágoras, e era isto que exigia uma solução. Ademais, o problema do comportamento tornara-se premente. A originalidade de Demócrito, portanto, está precisamente na mesma linha que a de Sócrates.

 

Teoria do Conhecimento

Demócrito procedeu como Leucipo ao fazer uma avaliação puramente mecânica da sensação, e é provável que ele seja o autor da doutrina minuciosa dos átomos com respeito a este assunto. Uma vez que a alma se compõe de átomos como qualquer outra coisa, a sensação deve consistir no impacto dos átomos externos sobre os átomos da alma, e os órgãos dos sentidos devem ser simplesmente ''passagens" (póroi = poros) através das quais estes átomos se introduzem. Disto decorre que os objetos da visão não são estritamente as coisas que nós mesmos presumimos ver, mas as "imagens" (deíkela, eídola) que os corpos estão constantemente emitindo. A imagem na pupila do olho era considerada como a coisa essencial em visão. Não é, porém, uma semelhança exata do corpo do qual provém, pois está sujeita às distorções causadas pela interferência do ar. Este é o motivo por que vemos as coisas a distância de um modo embaraçado e indistinto, e por que, se a distância for grande, não podemos vê-las de modo algum. Se não houvesse ar, mas somente o vazio, entre nós e os objetos da visão, isto não seria assim; "poderíamos ver uma formiga rastejando no firmamento". As diferenças de cor devem-se à lisura ou aspereza das imagens ao tato. A audição explica-se de uma maneira similar. O som é uma torrente de átomos que jorram do corpo sonante e produzem movimento no ar entre ele [corpo] e o ouvido. Chegou, portanto, ao ouvido junto com aquelas porções do ar que se Ihe assemelham. As diferenças de paladar são devidas às diferenças nas figuras (eide, skhémata) dos átomos que entram em contato com os órgãos desse sentido; e o olfato explica-se semelhantemente, embora não com os mesmos detalhes. De modo idêntico, o tato, considerado como o sentido pelo qual sentimos o calor e o frio, o molhado e o seco e outros que tais, é afetado de acordo com a forma e o tamanho dos átomos chocando nele.

Aristóteles afirma que Demócrito reduziu todos os sentidos ao tato, e é realmente verdade se entendermos por tato o sentido que percebe qualidades, tais como forma, tamanho e peso. Este, todavia, deve ser cautelosamente distinguido do sentido próprio do tato, que acima foi descrito. Para compreender esta questão, temos que considerar a doutrina do conhecimento "legítimo" e "ilegítimo".

É aqui que Demócrito entra nitidamente em conflito com Protágoras, que asseverou serem todas as sensações igualmente verdadeiras para o objeto sensível. Demócrito, pelo contrário, considera falsas todas as sensações dos sentidos próprios, posto que elas não têm uma contrapartida real fora do objeto sensível. Nisto, naturalmente, está em conformidade com a tradição eleática onde repousa a teoria atômica. Parmênides afirmara claramente que o paladar, as cores, o som e outros semelhantes eram apenas "nomes" (onómata), e é bastante idêntico a Leucipo que disse algo de parecido, apesar de não haver razão de se acreditar que ele tenha elaborado uma teoria sobre o assunto. Seguindo o exemplo de Protágoras, Demócrito foi obrigado a ser explícito com referência à questão. Sua doutrina, felizmente, foi-nos preservada através de suas próprias palavras. "Por convenção (nómo)": disse ele (fragmento 125), "há o doce; por convenção há o amargo; por convenção há o quente e por convenção há o frio; por convenção há a cor." Porém, na realidade (etee), há os átomos e o vazio. Deveras, as nossas sensações não representam nada de externo, apesar de serem causadas por algo fora de nós, cuja verdadeira natureza não pode ser apreendida pelos sentidos próprios. Esta é a razão por que a mesma coisa às vezes dá a sensação de doce e às vezes de amargo. "Pelos sentidos", afirmou Demócrito (fragmento 9), "nós na verdade não conhecemos nada de certo, mas somente alguma coisa que muda de acordo com a disposição do corpo e das coisas que nele penetram ou Ihe opõem resistência." Não podemos conhecer a realidade deste modo, pois "a verdade jaz num abismo" (fragmento 117). Vê-se que esta doutrina tem muito em comum com a distinção moderna entre as qualidades primárias e secundárias da matéria.

Demócrito, pois, rejeita a sensação como fonte de conhecimento, exatamente como fizeram os pitagóricos e Sócrates; contudo, como eles, ressalva a possibilidade de ciência, afirmando que existe uma outra fonte de conhecimento que não a dos sentidos próprios. "Há", diz ele (fragmento 11), "duas formas de conhecimento (gnóme): o legítimo (gnesíe) e o ilegítimo (skotíe). Ao ilegítimo pertencem todos estes: a visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato. O legítimo, porém, está separado daquele." Esta é a resposta de Demócrito a Protágoras. Ele diz que o mel, por exemplo, é tanto amargo quanto doce, doce para mim e amargo para você. Na realidade, é "não mais tal do que tal" (oudèn mãllon toion è toion). Sexto Empírico e Plutarco afirmaram claramente que Demócrito argüiu contra Protágoras, e o fato, por conseguinte, está fora da discussão.

Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que Demócrito dera uma explicação puramente mecânica deste conhecimento legítimo, como o fizera do ilegítimo. Defendeu, com efeito, que os átomos fora de nós poderiam afetar diretamente os átomos da nossa alma sem a intervenção dos órgãos dos sentidos. Os átomos da alma não se restringem a algumas partes específicas do corpo, mas nele penetram em qualquer direção, e não há nada que os impeça de ter contato imediato com os átomos externos, chegando assim a conhecê-los como realmente são. O "conhecimento legítimo" é, afinal de contas, da mesma natureza do "ilegítimo", e Demócrito recusou-se, como Sócrates, a fazer uma separação absoluta entre os sentidos e o conhecimento. "Pobre Mente", imagina ele os sentidos dizerem (fragmento 125); "é por causa de nós que conseguiste as provas com as quais atiras contra nós. Teu tiro é uma capitulação." O conhecimento "legítimo" não é, apesar de tudo, pensamento, mas uma espécie de sentido interno, e seus objetos são como os "sensíveis comuns" de Aristóteles.

Como seria de esperar de um seguidor dos pitagóricos e de Zenão, Demócrito ocupou-se com o problema da continuidade. Em uma passagem digna de nota (fragmento 155), ele o confirma desta forma: "Se um cone fosse cortado por um plano em linha paralela à base, o que se deveria pensar das superfícies das duas partes cortadas? Seriam iguais ou desiguais? Se forem desiguais, farão irregular o cone, pois ele terá muitas incisões em forma de degraus e muitas asperezas. Se forem iguais, então as partes cortadas serão iguais, e o cone terá a aparência de um cilindro, que é composto de círculos iguais e não desiguais, o que é o maior absurdo". Segundo um comentário de Arquimedes, parece que Demócrito prosseguiu afirmando que o volume do cone era a terça parte do volume do cilindro sobre a mesma base e do mesmo peso, cujo teorema foi demonstrado primeiro por Eudoxo. É evidente, pois, que ele estava empenhado em problemas tais como aqueles que finalmente deram origem ao método infinitesimal do próprio Arquimedes. Vemos mais uma vez como foi importante a obra de Zenão como um fermento intelectual.

 

Teoria do Comportamento

As concepções de Demócrito sobre o comportamento seriam até mais interessantes do que a sua teoria do conhecimento, se pudéssemos restabelecê-las integralmente. É muito difícil, porém, ter certeza sobre quais dos preceitos morais a ele atribuídos são genuínos. Não há dúvida de que o tratado Sobre a Boa Disposição ou Bem-Estar (Perí Euthymíes) era seu. Foi utilizado livremente por Sêneca e Plutarco, e alguns fragmentos importantes do tratado sobreviveram.

[O tratado] partia (fragmento 4) do princípio de que o prazer e a dor (térpsis e aterpsíe) são o que determina a felicidade. Isto quer dizer fundamentalmente que a felicidade não deve ser procurada nos bens exteriores. "A felicidade não reside em rebanhos, nem em ouro; a alma é a moradia do daímon " (fragmento 171). Para compreender isto, devemos lembrar que a palavra daímon, que significava propriamente um espírito protetor do homem, tem sido usada no sentido equivalente de "boa sorte". É, como foi dito, o aspecto individual de týkhe, e a palavra grega que traduzimos por "felicidade" (eudaimonía) baseia-se neste uso. De um lado, pois, a doutrina da felicidade ensinada por Demócrito é intimamente afim com a de Sócrates, embora dê mais ênfase ao prazer e à dor. "O melhor para o homem é levar a vida com o máximo de alegria e o mínimo de aborrecimentos" (fragmento 189).

Isto não é, porém, hedonismo vulgar. Os prazeres dos sentidos são prazeres verdadeiros tão breves como as sensações são verdadeiro conhecimento. "O bom e o verdadeiro são a mesma coisa para todos os homens, mas o agradável é diferente para gente diferente" (fragmento 69). Além disso, os prazeres dos sentidos são de duração demasiado curta para preencher uma vida, e facilmente se transformam ao contrário. Nós somente podemos ter certeza de superar a dor pelo prazer se não procurarmos os nossos prazeres nas coisas "mortais" (fragmento 189).

O que devemos nos esforçar por conseguir é o "bem-estar" (euestó) ou a "alegria" (euthymíe), e este é um estado da alma. Para atingi-lo, devemos ser capazes de ponderar, julgar e discernir o valor dos diferentes prazeres. Demócrito afirmou, como Sócrates, que "a ignorância do melhor" (fragmento 83) é a causa do erro. Os homens puseram a culpa na sorte, mas esta é apenas uma "imagem" que inventaram para justificar a sua própria ignorância (fragmento 119). 0 grande principio que nos deve guiar é o da "simetria" ou "harmonia". Este é, sem dúvida, pitagórico. Se aplicarmos este critério aos prazeres, poderemos alcançar o sossego, o sossego do corpo, que é a saúde, e o sossego da alma, que é a alegria, cujo sossego se deve procurar principalmente nos bens da alma. "Quem escolhe os bens da alma, escolhe os mais divinos; quem escolhe os bens do 'tabernáculo' (isto é, o corpo), escolhe os humanos" (fragmento 37).

Para o nosso presente objetivo, não é necessário discutir detalhadamente a cosmologia de Demócrito. Ela é totalmente retrógrada e demonstra, se fosse preciso uma demonstração, que o seu real interesse está em outro sentido. Ele herdara a teoria dos átomos e do vazio de Leucipo, que foi um verdadeiro gênio neste campo, e, quanto ao resto, contentou-se em adotar a crua cosmologia dos jônios, como Leucipo houvera feito. Deve ter conhecido ainda o sistema mais cientifico de Filolau. A idéia da forma esférica da Terra era amplamente difundida na época de Demócrito, e Sócrates é descrito no Fédon tomando-a por certa. Para Demócrito, a Terra era ainda um disco. Ele também aderiu a Anaxágoras defendendo que a Terra era sustentada no ar "como a tampa de uma tina", cuja concepção Sócrates rejeita enfaticamente. Por outro lado, Demócrito parece ter contribuído valiosamente à ciência natural. Infelizmente, as nossas informações são extremamente escassas para possibilitar mesmo uma reconstrução aproximada do seu sistema. A perda da edição completa das suas obras feita por Trasilo é talvez a mais deplorável das muitas perdas desse tipo. É possível que tenham sido abandonadas à ruína porque Demócrito chegara a compartilhar do descrédito que o prendera aos epicureus. O que temos dele foi preservado principalmente porque ele foi um grande criador de frases notáveis, que foram dignas de constar nas antologias. Este, porém, não é o tipo de material que se requer para a interpretação de um sistema filosófico, e é muito duvidoso se de fato conhecemos as suas idéias mais profundas. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de reconhecer que é sobretudo pelo seu mérito literário que lamentamos a perda das obras. Tem-se a impressão de que ele se situa à parte da corrente principal da filosofia grega, e é a esta que devemos agora retornar. Do nosso ponto de vista, o único fato importante com referência a Demócrito é que ele também sentiu a necessidade de uma resposta a Protágoras.

 

Melisso de Samos

Filolau de Cróton

Arquitas de Tarento

Diógenes de Apolônia

Leucipo de Abdera.

 

2.             SÓCRATES

A Vida

Quem valorizou a descoberta do homem feita pelos sofistas, orientando-a para os valores universais, segundo a via real do pensamento grego, foi Sócrates. Nasceu Sócrates em 470 ou 469 a.C., em Atenas, filho de Sofrônico, escultor, e de Fenáreta, parteira. Aprendeu a arte paterna, mas dedicou-se inteiramente à meditação e ao ensino filosófico, sem recompensa alguma, não obstante sua pobreza. Desempenhou alguns cargos políticos e foi sempre modelo irrepreensível de bom cidadão. Combateu a Potidéia, onde salvou a vida de Alcebíades e em Delium, onde carregou aos ombros a Xenofonte, gravemente ferido. Formou a sua instrução sobretudo através da reflexão pessoal, na moldura da alta cultura ateniense da época, em contato com o que de mais ilustre houve na cidade de Péricles.

Inteiramente absorvido pela sua vocação, não se deixou distrair pelas preocupações domésticas nem pelos interesses políticos. Quanto à família, podemos dizer que Sócrates não teve, por certo, uma mulher ideal na quérula Xantipa; mas também ela não teve um marido ideal no filósofo, ocupado com outros cuidados que não os domésticos.

Quanto à política, foi ele valoroso soldado e rígido magistrado. Mas, em geral, conservou-se afastado da vida pública e da política contemporânea, que contrastavam com o seu temperamento crítico e com o seu reto juízo. Julgava que devia servir a pátria conforme suas atitudes, vivendo justamente e formando cidadãos sábios, honestos, temperados - diversamente dos sofistas, que agiam para o próprio proveito e formavam grandes egoístas, capazes unicamente de se acometerem uns contra os outros e escravizar o próximo.

Entretanto, a liberdade de seus discursos, a feição austera de seu caráter, a sua atitude crítica, irônica e a conseqüente educação por ele ministrada, criaram descontentamento geral, hostilidade popular, inimizades pessoais, apesar de sua probidade. Diante da tirania popular, bem como de certos elementos racionários, aparecia Sócrates como chefe de uma aristocracia intelectual. Esse estado de ânimo hostil a Sócrates concretizou-se, tomou forma jurídica, na acusação movida contra ele por Mileto, Anito e Licon: de corromper a mocidade e negar os deuses da pátria introduzindo outros. Sócrates desdenhou defender-se diante dos juizes e da justiça humana, humilhando-se e desculpando-se mais ou menos. Tinha ele diante dos olhos da alma não uma solução empírica para a vida terrena, e sim o juízo eterno da razão, para a imortalidade. E preferiu a morte. Declarado culpado por uma pequena minoria, assentou-se com indômita fortaleza de ânimo diante do tribunal, que o condenou à pena capital com o voto da maioria.

Tendo que esperar mais de um mês a morte no cárcere - pois uma lei vedava as execuções capitais durante a viagem votiva de um navio a Delos - o discípulo Criton preparou e propôs a fuga ao Mestre. Sócrates, porém, recusou, declarando não querer absolutamente desobedecer às leis da pátria. E passou o tempo preparando-se para o passo extremo em palestras espirituais com os amigos. Especialmente famoso é o diálogo sobre a imortalidade da alma - que se teria realizado pouco antes da morte e foi descrito por Platão no Fédon com arte incomparável. Suas últimas palavras dirigidas aos discípulos, depois de ter sorvido tranqüilamente a cicuta, foram: "Devemos um galo a Esculápio". É que o deus da medicina tinha-o livrado do mal da vida com o dom da morte. Morreu Sócrates em 399 a.C. com 71 anos de idade.

 

Método de Sócrates

É a parte polêmica. Insistindo no perpétuo fluxo das coisas e na variabilidade extrema das impressões sensitivas determinadas pelos indivíduos que de contínuo se transformam, concluíram os sofistas pela impossibilidade absoluta e objetiva do saber. Sócrates restabelece-lhe a possibilidade, determinando o verdadeiro objeto da ciência.

O objeto da ciência não é o sensível, o particular, o indivíduo que passa; é o inteligível, o conceito que se exprime pela definição. Este conceito ou idéia geral obtém-se por um processo dialético por ele chamado indução e que consiste em comparar vários indivíduos da mesma espécie, eliminar-lhes as diferenças individuais, as qualidades mutáveis e reter-lhes o elemento comum, estável, permanente, a natureza, a essência da coisa. Por onde se vê que a indução socrática não tem o caráter demonstrativo do moderno processo lógico, que vai do fenômeno à lei, mas é um meio de generalização, que remonta do indivíduo à noção universal.

Praticamente, na exposição polêmica e didática destas idéias, Sócrates adotava sempre o diálogo, que revestia uma dúplice forma, conforme se tratava de um adversário a confutar ou de um discípulo a instruir. No primeiro caso, assumia humildemente a atitude de quem aprende e ia multiplicando as perguntas até colher o adversário presunçoso em evidente contradição e constrangê-lo à confissão humilhante de sua ignorância. É a ironia socrática. No segundo caso, tratando-se de um discípulo (e era muitas vezes o próprio adversário vencido), multiplicava ainda as perguntas, dirigindo-as agora ao fim de obter, por indução dos casos particulares e concretos, um conceito, uma definição geral do objeto em questão. A este processo pedagógico, em memória da profissão materna, denominava ele maiêutica ou engenhosa obstetrícia do espírito, que facilitava a parturição das idéias.

  

Doutrinas Filosóficas

A introspecção é o característico da filosofia de Sócrates. E exprime-se no famoso lema conhece-te a ti mesmo - isto é, torna-te consciente de tua ignorância - como sendo o ápice da sabedoria, que é o desejo da ciência mediante a virtude. E alcançava em Sócrates intensidade e profundidade tais, que se concretizava, se personificava na voz interior divina do gênio ou demônio.

Como é sabido, Sócrates não deixou nada escrito. As notícias que temos de sua vida e de seu pensamento, devemo-las especialmente aos seus dois discípulos Xenofonte e Platão , de feição intelectual muito diferente. Xenofonte, autor de Anábase, em seus Ditos Memoráveis, legou-nos de preferência o aspecto prático e moral da doutrina do mestre. Xenofonte, de estilo simples e harmonioso, mas sem profundidade, não obstante a sua devoção para com o mestre e a exatidão das notícias, não entendeu o pensamento filosófico de Sócrates, sendo mais um homem de ação do que um pensador. Platão, pelo contrário, foi filósofo grande demais para nos dar o preciso retrato histórico de Sócrates; nem sempre é fácil discernir o fundo socrático das especulações acrescentadas por ele. Seja como for, cabe-lhe a glória e o privilégio de ter sido o grande historiador do pensamento de Sócrates, bem como o seu biógrafo genial. Com efeito, pode-se dizer que Sócrates é o protagonista de todas as obras platônicas embora Platão conhecesse Sócrates já com mais de sessenta anos de idade.

"Conhece-te a ti mesmo" - o lema em que Sócrates cifra toda a sua vida de sábio. O perfeito conhecimento do homem é o objetivo de todas as suas especulações e a moral, o centro para o qual convergem todas as partes da filosofia. A psicologia serve-lhe de preâmbulo, a teodicéia de estímulo à virtude e de natural complemento da ética.

Em psicologia, Sócrates professa a espiritualidade e imortalidade da alma, distingue as duas ordens de conhecimento, sensitivo e intelectual, mas não define o livre arbítrio, identificando a vontade com a inteligência.

Em teodicéia, estabelece a existência de Deus: a) com o argumento teológico, formulando claramente o princípio: tudo o que é adaptado a um fim é efeito de uma inteligência; b) com o argumento, apenas esboçado, da causa eficiente: se o homem é inteligente, também inteligente deve ser a causa que o produziu; c) com o argumento moral: a lei natural supõe um ser superior ao homem, um legislador, que a promulgou e sancionou. Deus não só existe, mas é também Providência, governa o mundo com sabedoria e o homem pode propiciá-lo com sacrifícios e orações. Apesar destas doutrinas elevadas, Sócrates aceita em muitos pontos os preconceitos da mitologia corrente que ele aspira reformar.

Moral. É a parte culminante da sua filosofia. Sócrates ensina a bem pensar para bem viver. O meio único de alcançar a felicidade ou semelhança com Deus, fim supremo do homem, é a prática da virtude. A virtude adquiri-se com a sabedoria ou, antes, com ela se identifica. Esta doutrina, uma das mais características da moral socrática, é conseqüência natural do erro psicológico de não distinguir a vontade da inteligência. Conclusão: grandeza moral e penetração especulativa, virtude e ciência, ignorância e vício são sinônimos. "Se músico é o que sabe música, pedreiro o que sabe edificar, justo será o que sabe a justiça".

Sócrates reconhece também, acima das leis mutáveis e escritas, a existência de uma lei natural - independente do arbítrio humano, universal, fonte primordial de todo direito positivo, expressão da vontade divina promulgada pela voz interna da consciência.

Sublime nos lineamentos gerais de sua ética, Sócrates, em prática, sugere quase sempre a utilidade como motivo e estímulo da virtude. Esta feição utilitarista empana-lhe a beleza moral do sistema.

  

Gnosiologia

O interesse filosófico de Sócrates volta-se para o mundo humano, espiritual, com finalidades práticas, morais. Como os sofistas, ele é cético a respeito da cosmologia e, em geral, a respeito da metafísica; trata-se, porém, de um ceticismo de fato, não de direito, dada a sua revalidação da ciência. A única ciência possível e útil é a ciência da prática, mas dirigida para os valores universais, não particulares. Vale dizer que o agir humano - bem como o conhecer humano - se baseia em normas objetivas e transcendentes à experiência. O fim da filosofia é a moral; no entanto, para realizar o próprio fim, é mister conhecê-lo; para construir uma ética é necessário uma teoria; no dizer de Sócrates, a gnosiologia deve preceder logicamente a moral. Mas, se o fim da filosofia é prático, o prático depende, por sua vez, totalmente, do teorético, no sentido de que o homem tanto opera quanto conhece: virtuoso é o sábio, malvado, o ignorante. O moralismo socrático é equilibrado pelo mais radical intelectualismo, racionalismo, que está contra todo voluntarismo, sentimentalismo, pragmatismo, ativismo.

A filosofia socrática, portanto, limita-se à gnosiologia e à ética, sem metafísica. A gnosiologia de Sócrates, que se concretizava no seu ensinamento dialógico, donde é preciso extraí-la, pode-se esquematicamente resumir nestes pontos fundamentais: ironia, maiêutica, introspecção, ignorância, indução, definição. Antes de tudo, cumpre desembaraçar o espírito dos conhecimentos errados, dos preconceitos, opiniões; este é o momento da ironia, isto é, da crítica. Sócrates, de par com os sofistas, ainda que com finalidade diversa, reivindica a independência da autoridade e da tradição, a favor da reflexão livre e da convicção racional. A seguir será possível realizar o conhecimento verdadeiro, a ciência, mediante a razão. Isto quer dizer que a instrução não deve consistir na imposição extrínseca de uma doutrina ao discente, mas o mestre deve tirá-la da mente do discípulo, pela razão imanente e constitutiva do espírito humano, a qual é um valor universal. É a famosa maiêutica de Sócrates, que declara auxiliar os partos do espírito, como sua mãe auxiliava os partos do corpo.

Esta interioridade do saber, esta intimidade da ciência - que não é absolutamente subjetivista, mas é a certeza objetiva da própria razão - patenteiam-se no famoso dito socrático "conhece-te a ti mesmo" que, no pensamento de Sócrates, significa precisamente consciência racional de si mesmo, para organizar racionalmente a própria vida. Entretanto, consciência de si mesmo quer dizer, antes de tudo, consciência da própria ignorância inicial e, portanto, necessidade de superá-la pela aquisição da ciência. Esta ignorância não é, por conseguinte, ceticismo sistemático, mas apenas metódico, um poderoso impulso para o saber, embora o pensamento socrático fique, de fato, no agnosticismo filosófico por falta de uma metafísica, pois, Sócrates achou apenas a forma conceptual da ciência, não o seu conteúdo.

O procedimento lógico para realizar o conhecimento verdadeiro, científico, conceptual é, antes de tudo, a indução: isto é, remontar do particular ao universal, da opinião à ciência, da experiência ao conceito. Este conceito é, depois, determinado precisamente mediante a definição, representando o ideal e a conclusão do processo gnosiológico socrático, e nos dá a essência da realidade.

  

A Moral

Como Sócrates é o fundador da ciência em geral, mediante a doutrina do conceito, assim é o fundador, em particular da ciência moral, mediante a doutrina de que eticidade significa racionalidade, ação racional. Virtude é inteligência, razão, ciência, não sentimento, rotina, costume, tradição, lei positiva, opinião comum. Tudo isto tem que ser criticado, superado, subindo até à razão, não descendo até à animalidade - como ensinavam os sofistas. É sabido que Sócrates levava a importância da razão para a ação moral até àquele intelectualismo que, identificando conhecimento e virtude - bem como ignorância e vício - tornava impossível o livre arbítrio. Entretanto, como a gnosiologia socrática carece de uma especificação lógica, precisa - afora a teoria geral de que a ciência está nos conceitos - assim a ética socrática carece de um conteúdo racional, pela ausência de uma metafísica. Se o fim do homem for o bem - realizando-se o bem mediante a virtude, e a virtude mediante o conhecimento - Sócrates não sabe, nem pode precisar este bem, esta felicidade, precisamente porque lhe falta uma metafísica. Traçou, todavia, o itinerário, que será percorrido por Platão e acabado, enfim, por Aristóteles. Estes dois filósofos, partindo dos pressupostos socráticos, desenvolverão uma gnosiologia acabada, uma grande metafísica e, logo, uma moral.

 

Escolas Socráticas Menores

A reforma socrática atingiu os alicerces da filosofia. A doutrina do conceito determina para sempre o verdadeiro objeto da ciência: a indução dialética reforma o método filosófico; a ética une pela primeira vez e com laços indissolúveis a ciência dos costumes à filosofia especulativa. Não é, pois, de admirar que um homem, já aureolado pela austera grandeza moral de sua vida, tenha, pela novidade de suas idéias, exercido sobre os contemporâneos tamanha influência. Entre os seus numerosos discípulos, além de simples amadores, como Alcibíades e Eurípedes, além dos vulgarizadores da sua moral (socratici viri), como Xenofonte, havia verdadeiros filósofos que se formaram com os seus ensinamentos. Dentre estes, alguns, saídos das escolas anteriores não lograram assimilar toda a doutrina do mestre; desenvolveram exageradamente algumas de suas partes com detrimento do conjunto.

Sócrates não elaborou um sistema filosófico acabado, nem deixou algo de escrito; no entanto, descobriu o método e fundou uma grande escola. Por isso, dele depende, direta ou indiretamente, toda a especulação grega que se seguiu, a qual, mediante o pensamento socrático, valoriza o pensamento dos pré-socráticos desenvolvendo-o em sistemas vários e originais. Isto aparece imediatamente nas escolas socráticas. Estas - mesmo diferenciando-se bastante entre si - concordam todas pelo menos na característica doutrina socrática de que o maior bem do homem é a sabedoria. A escola socrática maior é a platônica; representa o desenvolvimento lógico do elemento central do pensamento socrático - o conceito - juntamente com o elemento vital do pensamento precedente, e culmina em Aristóteles, o vértice e a conclusão da grande metafísica grega. Fora desta escola começa a decadência e desenvolver-se-ão as escolas socráticas menores.

São fundadores das escolas socráticas menores, das quais as mais conhecidas são:

1. A escola de Megara, fundada por Euclides (449-369), que tentou uma conciliação da nova ética com a metafísica dos eleatas e abusou dos processos dialéticos de Zenão.

2. A escola cínica, fundada por Antístenes (n. c. 445), que, exagerando a doutrina socrática do desapego das coisas exteriores, degenerou, por último, em verdadeiro desprezo das conveniências sociais. São bem conhecidas as excentricidades de Diógenes.

3. A escola cirenaica ou hedonista, fundada por Aristipo, (n. c. 425) que desenvolveu o utilitarismo do mestre em hedonismo ou moral do prazer. Estas escolas, que, durante o segundo período, dominado pelas altas especulações de Platão e Aristóteles , verdadeiros continuadores da tradição socrática, vegetaram na penumbra, mais tarde recresceram transformadas ou degeneradas em outras seitas filosóficas. Dentre os herdeiros de Sócrates, porém, o herdeiro genuíno de suas idéias, o seu mais ilustre continuador foi o sublime Platão.

Introdução à Apologia de Sócrates

De acordo com Diógenes Laércio, a acusação apresentada contra Sócrates, em janeiro de 399 a.C., foi a que segue:

"A seguinte acusação escreve e jura Meleto, filho de Meleto, do povoado de Piteo, contra Sócrates, filho de Sofronisco, do povoado de Alópece. Sócrates é culpado de não aceitar os deuses que são reconhecidos pelo Estado, de introduzir novos cultos, e, também, é culpado de corromper a juventude. Pena: a morte"

A cidade de Atenas não podia mover ações, mas um cidadão podia, assumindo, porém, total responsabilidade, se a acusação não fosse considerada procedente pelo júri. O acusador era Meleto, mas não só ele; também Ânito e Lícon, com os mesmos direitos à palavra no decorrer do processo. Meleto era o acusador oficial, porém nada exigia que o acusador oficial fosse o mais respeitável, hábil ou temível, mas somente aquele que assinava a acusação.

E, neste caso, a influência exercida por Ânito constituiu o elemento mais respeitável no desfecho do processo, que foi por ele zelosamente preparado nas reuniões dos diversos cidadãos, sustentando-o com a autoridade de seu nome.

No Eutífron, vemos que Sócrates, ao se aproximar do Pórtico do Rei, onde fora afixada a acusação por Meleto, ao ser inquirido pelo adivinho Eutífron a respeito de quem era aquele que o acusava, respondeu: "Sei bem pouco a respeito dele, talvez porque seja um homem jovem e desconhecido. Acredito chamar-se Meleto, do povoado de Piteo, de cabelos lisos, barba rala e nariz em forma de bico de pássaro".

A respeito de saber com exatidão quem era esse Meleto, existem muitas dúvidas, sendo uma delas se se tratava do personagem citado por Aristófanes. Mas não há elementos em que basear essa suposição, pois um jovem poeta de 399 a.C. pouco provavelmente chamaria a atenção de Aristófanes em 405 a.C., além de considerar que Sócrates insiste no fato de que Meleto é desconhecido.

Julgar tratar-se do Meleto que, em 399 a.C., chegou a tomar parte da acusação contra Andócides, no célebre processo por causa da mutilação da estátua de Hermes e da profanação dos Mistérios, seria muito conveniente, por haver sido essa também uma acusação de impiedade. Contudo, existe outro obstáculo, de acordo com a própria informação de Andócides: esse Meleto foi um dos que, em 404 a.C., por ordem dos Trinta Tiranos, se prestaram a deter Leon de Salamina. À parte o problema da mudança de lado - de partidário dos Trinta Tiranos tornar-se aliado de Ânito, que derrotara e expulsara esses mesmos Trinta Tiranos –, sobra a dificuldade de explicar por que motivo Sócrates, que conforme ele mesmo afirma na Apologia, juntamente com outros quatro homens recebera a ordem de deter a Leon de Salamina, tendo sido o único a recusar-se a obedecer, não disse que Meleto era um desses homens.

Exceto se reputarmos que essa defesa não seja de fato de Sócrates, e sim escrita por Platão, que se vale do nome de Meleto, já então tido como um fanático religioso, a fim de engrandecer o mestre desaparecido.

Desse modo, podemos considerar Meleto de Sócrates o mesmo Meleto de Andócides, assim solucionando o problema que tanta discussão tem provocado, embora, logicamente, fique apenas no campo da suposição, já que nada corrobora realmente esta pretensão.

O pouco que conhecemos ou podemos presumir a respeito de Lícon é que pouca importância e autoridade teve no decorrer do processo, com seu nome sendo citado sempre com evidente desapreço.

Ânito, o mais importante dos acusadores, é aquele que, não resta dúvida, dava a impressão de conhecer Sócrates, que a ele alude como se Meleto fosse seu subordinado, como se deste tivesse se originado a idéia da pena de morte para persuadir Sócrates a abandonar a cidade antes que o processo tivesse seguimento. Ânito era filho de Antemione, comerciante de couro, nascera por volta de – 150 a.C. e já havia exercido importantes cargos e magistraturas, sendo estratego em 410 a.C. Após ter sido enviado ao exílio pelos Trinta Tiranos, juntamente com Trasíbulo e outros, regressou de File com estes e tomou parte da expedição armada contra o governo dos tiranos. Depois da restauração do regime democrático, tornou-se um dos mais eminentes cidadãos de Atenas.

Ânito manteve relação com Sócrates, segundo comprova sua atuação no Mênon, onde manifesta uma ameaça velada a este: "Afigura-se-me, ó Sócrates, que com muita facilidade te dedicas à maledicência, e eu te aconselho, se quiseres me ouvir, que tenhas cuidado".

A opinião de Platão a esse respeito é bem clara: não foi por razões religiosas que Sócrates recebeu a condenação, mas sim por questões evidentemente políticas.

A bem da verdade, Sócrates dera, mediante palavras e atos, patente mostra de sua obstinada repulsa aos governos democráticos.

Portanto, nessa época de instalação do regime democrático, convinha afastar de Atenas o mestre de Crísias, o homem que sempre se recordava de haver sido discípulo de Arquesilau, o qual, por sua vez, fora discípulo de Anaxágoras, expulso de Atenas em decorrência de um processo parecido com o seu.

Mas é preciso frisar que o propósito, como o próprio Sócrates repete, não era matá-lo, e sim afastá-lo de Atenas, e se isso não ocorreu deveu-se à demasiada teimosia do próprio Sócrates, que em vez de escolher o exílio preferiu a proposta de uma multa irrisória, vindo a ser, por conseguinte, condenado.

No que concerne à condenação por motivos religiosos, da mesma maneira que se dá com condenações por motivos políticos, o texto da sentença preocupa-se muito mais em esconder do que apresentar as verdadeiras causas. Tanto isso é verdade que, em sua defesa, vemos o réu inverter a ordem das acusações e colocar em primeiro lugar a última imputação: corromper os jovens.

Desde a época de Sócrates, afirmara-se o culto patriarcal, em que Zeus era o deus-pai, o líder máximo. Se a acusação tivesse se dado em épocas mais antigas, poderíamos presumir que Sócrates teria adotado a defesa do culto da deusa, isto é, um movimento reacionário em termos de culto.

Coloquemos a questão com mais clareza: as lendas referem a revolta patriarcal contra o matriarcado.

A Tripla Deusa, venerada como Réia, esposa de Cronos, em seus três aspectos: lua crescente, lua cheia a lua minguante, era a suprema deusa e gerava uma vez por ano a Dionisos – Zagreus, seu filho, que era sempre devorado pelo tempo.

Dessa maneira, as múltiplas facetas da deusa prevaleciam, constituindo as sacerdotisas os verdadeiros líderes das povoações e os homens, seus instrumentos de fertilização e prazer, executando os trabalhos mais necessários à sobrevivência e à defesa.

Numerosas revoltas começaram a eclodir com a chegada de contínuas levas de dórios, minianos e jônios, em cujas culturas o patriarcalismo era arraigado, que acabaram por fomentar a rebelião de Zagreus contra seu pai e mãe. Zagreus torna-se Zeus, o Deus-Agnes, ou o Agnos-Deus, que pode significar tanto o deus desconhecido quanto o deus-carneiro; Réia vem a ser adorada como Hera, e seus aspectos: marinho, lunar e noturno, como Anfitrite, Ártemis e Cérbero. Anfitrite é esposa de Posêidon, um dos aspectos de Zeus; Ártemis é filha de Zeus, e permanece virgem; quanto a Cérbero, representa Hécate, sendo fiel guardião dos domínios de Hades, outro aspecto de Zeus, seu culto tendo sido de novo extinto durante o período de estabelecimento do culto olímpico.

Nessa fase seria de fato correto crer que alguém sofresse um processo por questões religiosas, mas à época de Sócrates tudo isso já se encontrava devidamente solidificado, e a argumentação de Burnet, em seu comentário à Apologia, revela-se, portanto, bem pouco confiável, quando afirma "que esses novos deuses da cosmologia jônica eram uma antiga história e que poderia ser uma violação da anistia colocá-los de novo à luz do dia".

Portanto, considerando-se a anistia garantida até mesmo pelo próprio Ânito, que juntamente com Trasíbulo fora seu principal defensor, não era possível levar em conta as culpas passadas de Sócrates para condená-lo, isso presumindo que existisse alguma, e era necessário arranjar o pretexto para executá-lo.

Era todo o ensinamento socrático que se tornava perigoso, e não os novos fatos. O que significava aquela sabedoria, proclamada superior até mesmo pelo oráculo, que consistia em saber que não se sabe?

Qual a postura dos políticos diante disso? Que direitos seriam mais opostos aos da democracia do que aqueles originados da experiência e da competência, e a superioridade da inteligência sobre os direitos da assembléia popular e soberana?

É isso que causou a condenação de Sócrates, a exigência de que o piloto do barco conheça seu ofício, isto é, a superioridade do saber sobre a aclamação do povo.

Ademais, é necessário recordar que Sócrates manteve relações com os Trinta Tiranos: estes não Ihe teriam ordenado a prisão de Leon de Salamina se não o considerassem um deles; Crísias, o mais feroz dos Tiranos, havia sido seu discípulo, e também Alcebíades, que voltara a ser assunto pela recente inclusão de seu nome entre os envolvidos na profanação dos Mistérios. E mais: Sócrates menciona a seu favor sua participação no caso do exílio de Querofonte, porém, assim, insiste no fato de que, durante o mandato dos Trinta, Querofonte foi obrigado a se exilar, enquanto Sócrates pôde permanecer.

Some-se a isto que Sócrates jamais desejou exercer nenhuma magistratura, nem participar de alguma forma do governo de sua cidade, embora não seja verdade que permanecesse fora do âmbito do governo, pois com freqüência era visto discutindo em público; e não se pode afirmar, pelos testemunhos que possuímos, que fosse singularmente prudente ou diplomático em sua maneira de discutir.

As mais importantes orientações da vida eram subvertidas por seu orgulho de ter consciência da sua ignorância, e os jovens, de fato, iriam acabar desrespeitando qualquer autoridade que não se identificasse com a inteligência e a sabedoria, provocando ainda o desapreço por tudo que não buscasse a sabedoria, desprezando a economia doméstica e a riqueza.

 

Apologia de Sócrates

  

 Preâmbulo

Desconheço atenienses, que influência tiveram meus acusadores em vosso espírito; a mim próprio, quase me fizeram esquecer quem sou, tal o poder de persuasão de sua eloqüência. De verdades, porém, não disseram nenhuma. Uma, sobretudo, me espantou das muitas perfídias que proferiram: a recomendação de precaução para não vos deixardes seduzir pelo orador formidável que sou. Com efeito, não corarem de me haver eu de desmentir prontamente com os fatos, ao mostrar-me um orador nada formidável, eis o que me pareceu a maior de suas insolências, salvo se essa gente chama formidável a quem diz a verdade; se é o que entendem, eu admitiria que, em contraste com eles, sou um orador. Seja como for, repito-o, de verdades eles não disseram alguma; de mim, porém, vós ouvireis a verdade inteira. Mas não por Zeus, atenienses, não ouvireis discursos como os deles, aprimorados em substantivos e verbos, em estilo florido; serão expressões espontâneas, nos termos que me ocorrerem, porque deposito confiança na justiça do que digo; nem espere outra coisa qualquer um de vós. Verdadeiramente, senhores, não ficaria bem a um velho como eu vir diante de vós modelar seus discursos como um rapazinho. Faço-vos, contudo, um pedido, atenienses, uma súplica premente; se ouvirdes, na minha defesa, a mesma linguagem que habitualmente emprego na praça, junto das bancas, onde tantos dentre vós me haveis escutado, e em outros lugares, não a estranheis nem vos revolteis por isso. Acontece que venho ao tribunal pela primeira vez aos setenta anos de idade; sinto-me, assim, completamente estrangeiro à linguagem do local. Se eu fosse de fato um estrangeiro, sem dúvida me desculparíeis o sotaque e o linguajar de minha criação; peço-vos nesta oportunidade a mesma tolerância, que é de justiça a meu ver, para a minha linguagem, que poderia ser talvez pior, talvez melhor, e que examineis com atenção se o que digo é justo ou não. Nisso reside o mérito de um juiz; o de um orador, em dizer a verdade.

 

A Defesa de Sócrates

Primeira Parte - Enunciado — Diversidade Entre Duas Categorias de Acusadores: os Antigos e os Recentes

Em princípio, ó atenienses, é legítimo que eu me defenda das calúnias das primeiras acusações que me foram dirigidas e dos primeiros acusadores, e depois das mais recentes acusações e dos novos acusadores. Pois muitos que se encontram entre vós já me acusaram no passado, sempre faltando com a verdade, e esses me causam bem mais temor do que Ânito e seus amigos, embora estes sejam acusadores perigosos. Mas os primeiros são muito mais perigosos, ó cidadãos, aqueles que convivendo com a maior parte de vós, como crianças que deviam ser educadas, procuraram convencer-vos de acusações não menos caluniosas contra mim: que existe um certo Sócrates, homem de muita sabedoria, que especula a respeito das coisas do céu, que esquadrinha todos os segredos obscuros, que transforma as razões mais fracas nas mais consistentes. Estes, ó atenienses, que propalaram essas coisas acerca de mim, são os acusadores que mais receio, porque, ao ouvi-los, as pessoas acreditam que quem se dedica a tais investigações não admite a existência dos deuses. E esses acusadores são muito numerosos e me acusaram há bastante tempo, e, o que é mais grave, caluniaram-me quando vós tínheis aquela idade em que é bastante fácil – alguns de vós éreis crianças ou adolescentes – dar crédito às calúnias, e assim, em resumo, acusaram-me obstinadamente, sem que eu contasse com alguém para me defender. E o que é mais assombroso é que seus nomes não podem sequer ser citados, exceto o de um comediógrafo; porém os outros – os que, por inveja ou por vício em fazer falsas acusações, procuraram colocar-vos contra mim, ou os que pretenderam convencer os outros por estarem verdadeiramente convencidos e de boa fé –, esses todos não podem ser encontrados, nem se pode exigir que ao menos alguns deles venham até aqui, nem acusar ninguém por difamação, e, em verdade, a fim de me defender só posso lutar contra sombras, e acusar de mentiroso a quem não responde. Portanto, vós deveis vos certificar de que existem duas categorias de acusadores: de um lado, os que me acusam há pouco tempo, e de outro, os que já me acusam há bastante tempo e dos quais tenho falado a respeito, e então reconhecereis que devo defender-me destes em primeiro lugar. Ainda mais porque esses acusadores fizeram-se ouvir por vós antes e mais demoradamente do que aqueles que vieram depois.

Defender-me-ei, portanto, ó atenienses, e assim descobrirei se aquela calúnia, que martiriza meu coração há tanto tempo, possa ser extirpada, embora deva fazê-lo em tão curto prazo. E se eu for bem-sucedido, se conseguir acarretar-vos algum benefício com a minha defesa, será excelente para vós e para mim. Bem sei quanto isto é difícil e tenho plena consciência da enorme dificuldade que me espera. Que tudo se passe de acordo com a vontade do Deus, pois à lei é necessário obedecer e defender-se.

Defesa Contra os Antigos Acusadores — Calúnia a Respeito do Saber de Sócrates

Vamos começar desde o início e examinar que tipo de acusação motivou essa calúnia, na qual Meleto se baseou para redigir sua acusação neste processo. Que afirmavam meus detratores? Façamos de conta que se trate de uma acusação juramentada de acusadores reais e dos quais seja preciso ler o texto: "Sócrates é réu de haver-se ocupado de assuntos que não eram de sua alçada, e investigando o que existe embaixo da terra e no céu, procurando transformar a mentira em verdade e ensinando-a às pessoas". A acusação possui mais ou menos este teor. Assististes a alguma coisa semelhante na comédia de Aristófanes, na qual um certo Sócrates aparece andando de lá para cá, afirmando que caminha em cima das nuvens, e outro amontoado de tolices, que não consigo compreender nem um pouco. E não digo isso por julgar aquelas ciências coisas vis, se é mesmo verdade que haja cientistas de tais ciências. Não faltaria quem, acompanhando Meleto, fizesse contra mim uma acusação tão grave! Eu só vos asseguro, ó atenienses, que não me ocupo desses assuntos, e recorro à maioria de vós para que sirvam de testemunhas. Peço que revelem publicamente quantos de vós já me ouviram falar a respeito dessas coisas, e então compreendereis que tudo o mais que dizem sobre mim possui o mesmo valor.

Resumindo: nada existe em tudo isso que corresponda à verdade; e, mais ainda, se ouvistes alguém declarar que instruo os homens em troca de dinheiro, isto também não passa de mentira. Mesmo que, se alguém se propõe a instruir homens como fazem Górgias de Leontini, Pródico de Ceo e Hípias de Élida, se me afigure coisa em absoluto nada condenável. Esses valorosos homens percorrem as cidades com o propósito de instruir os jovens, aos quais seria mais fácil, e sem ter de gastar dinheiro, fazer-se instruir por um de seus concidadãos; e convencem esses jovens a preferir a sua companhia à dos seus, recebendo em troca dinheiro e ainda por cima gratidão. Ouvi também referências a outro homem, de Paros, que possui muita sabedoria e veio morar em Atenas, e o soube por intermédio de Cálias, filho de Hipônico, homem que gastou mais dinheiro com sofistas do que qualquer outro ateniense. Perguntei a ele:

Cálias, se teus dois filhos fossem dois potros ou duas vitelas, terias de contratar e pagar uma pessoa que tomasse conta deles, que tivesse a capacidade de Ihes ensinar as virtudes para serem acrescentadas à sua natureza, e eles se tomariam cavalariços ou agricultores; mas teus filhos são homens; que educação, então: tencionas proporcionar-lhes? Quem entende das virtudes que Ihes são necessárias, ou seja, das virtudes do homem e cidadão? Acredito que pensaste a respeito disso quando puseste os filhos no mundo. Existe alguém capaz de fazê-lo?

Claro que sim – respondeu-me.

E quem é ele? – indaguei-lhe. – de onde é e quanto cobra para ensinar?

Eveno de Paros. E seu preço é cinco minas – respondeu-me.

No íntimo, parabenizei esse tal de Eveno, se é de fato possuidor dessa doutrina e a ensina a tão baixo preço. Eu mesmo me orgulharia se fosse capaz de tal coisa, contudo eu não sei, ó atenienses.

 

O Que é o Saber de Sócrates — O Oráculo de Delfos

Algum de vós poderia questionar-me: "Ó Sócrates, o que fazes então? Que motivo originou essas calúnias? Com certeza, se muitos te acusaram, não se deveu ao fato de que nada fizeste fora do comum; tantas vozes não teriam se erguido se tivesses te comportado como todos se comportam Conte o que fizestes, pois não desejamos julgar-te irrefletidamente".

Procurarei esclarecer-vos a respeito da causa dessas calúnias contra mim. Escutai-me, portanto. É possível que alguns entre vós creiam que eu esteja brincando; não, estou falando sério. Ó atenienses, é verdade que adquiri renome por possuir certa sabedoria. E que tipo de sabedoria é essa? Possivelmente, uma sabedoria estritamente humana. E a respeito de ser sábio, receio possuir esta única sabedoria. Ao passo que esses, de quem vos falava há pouco, talvez sejam possuidores de uma sabedoria sobre-humana, mas afirmo que não a conheço, e quem diz o contrário mente, apenas com o intuito de caluniar-me. Peço-vos para não fazer algazarra, ó atenienses, embora possais ter a impressão de que eu esteja proferindo palavras por demais fortes; que não é meu depoimento, mas o de uma testemunha que merece toda a vossa confiança. De minha sabedoria, se de fato se trata de sabedoria, e de sua natureza, invocarei como testemunha, diante de vós, o próprio deus de Delfos. Todos vós conheceis Querefonte. Era meu amigo desde o tempo da juventude e pertencente ao vosso partido popular; partiu no último exílio em vossa companhia e regressou também em vossa companhia. Sabeis que tipo de homem era Querofonte e de como era determinado em suas resoluções Dirigiu-se em certa ocasião a Delfos e atreveu-se a perguntar ao oráculo se existia alguém mais sábio que eu. A pitonisa respondeu que não existia ninguém. Como testemunho deste fato se prestará o irmão de Querefonte, em virtude de este haver falecido.

 

Pesquisa Junto aos Políticos

Saberão agora o motivo pelo qual vos relato isso: meu intento é pôr-vos a par de onde se originou a calúnia contra mim. Após ter ouvido a resposta do oráculo, refleti da seguinte maneira: "Que pretende o deus dizer? Qual é o significado oculto do enigma? Tendo em vista que eu não me considero sábio, que quer dizer o deus ao afirmar que sou o mais sábio dos homens? Com certeza não mente, pois ele não pode mentir". E longamente me mantive nesta dúvida. Por fim, ao arrepio de minha vontade, comecei a investigar acerca disso. Fui ter com um daqueles que possuem reputação de sábios, julgando que somente assim poderia desmentir o oráculo e responder ao vaticínio: "Este é mais sábio que eu e afirmastes que era eu". Mas enquanto estava analisando este – o nome não é necessário que eu vos revele, ó cidadãos; basta dizer que era um de nossos políticos –, enfim, este com que, analisando e raciocinando em conjunto, fiz a experiência que irei descrever-vos, e este homem aparentava ser sábio, no entender de muitas pessoas e especialmente de si mesmo, mas talvez não o fosse de verdade. Procurei fazê-lo compreender que embora se julgasse sábio, não o era. Em vista disso, a partir daquele momento, não só ele passou a me odiar, como também muitos dos que se encontravam presentes. Afastei-me dali e cheguei à conclusão de que era mais sábio que aquele homem, neste sentido, que nós, eu e ele, podíamos não saber nada de bom, nem de belo, mas aquele acreditava saber e não sabia, enquanto eu, ao contrário, como não sabia, também não julgava saber, e tive a impressão de que, ao menos numa pequena coisa, fosse mais sábio que ele, ou seja, porque não sei, nem acredito sabê-lo. Aí procurei um outro, entre os que possuem reputação de serem mais sábios que aqueles, e me ocorreu exatamente a mesma coisa, e também este me dedicou ódio, juntamente com muitos outros.

 

Pesquisa Junto aos Poetas

Não obstante isso, continuei diligentemente com minha pesquisa, embora notando, com desagrado e assombro, que todos passaram a me odiar e que, contudo, afigurava-se-me impossível deixar de atentar para as palavras do deus. "Se almejas saber o que o oráculo quer dizer", dizia a mim mesmo, "deves visitar todos aqueles que possuem reputação de sabedoria." Por isso, ó atenienses, devo dizer-vos de novo a verdade; juro-vos que este foi o resultado da minha pesquisa: os que eram famosos por possuírem maior sabedoria, conforme minha pesquisa, conforme a palavra do deus, pareceram-me quase todos em maior erro. E outros, sem fama alguma, se me afiguraram melhores e mais sábios. Mas desejo terminar de relatar-vos minhas peregrinações e as fadigas que sofri para convencer-me de que a palavra do oráculo era incontestável.

Em seguida aos políticos, fui procurar os poetas, tanto os que escreviam ditirambos' e tragédias como os demais, convencido de que diante daqueles confirmaria minha ignorância e sua superioridade. Peguei suas melhores poesias, as que considerava mais bem construídas, e indaguei aos próprios poetas o que eles pretendiam dizer; porque dessa maneira aprenderia alguma coisa com eles. Estou com vergonha, ó atenienses, de contar-vos a verdade! Mas é obrigatório que eu a diga. Resumindo, todas as outras pessoas presentes discorriam melhor a respeito do que os poetas haviam escrito que os próprios autores; diante disto, descobri que não era por nenhum tipo de sabedoria que eles faziam versos, mas por uma propensão e inspiração natural que eu desconheço, como os adivinhos e vaticinadores, que dizem de fato muitas coisas belas, mas não conhecem nada do que dizem, e aproximadamente o mesmo, e isto eu percebi com clareza, é o que ocorre entre os poetas. E compreendi também que os poetas, pelo fato de fazerem poesias, julgavam-se os mais sábios dos homens até mesmo em outras coisas em que realmente não o eram. Então afastei-me deles, com a certeza de ser mais sábio que eles, pelo mesmo motivo que era mais que os políticos.

 

Pesquisa Junto aos Artesãos

No final, dirigi-me aos artesãos, que de sua arte tinha a consciência de não conhecer nada, e eles sabiam que eu os considerava conhecedores de numerosas e belas coisas. E não me equivoquei, eles conheciam coisas que eu não conhecia, e nisso eram mais sábios do que eu. Porém, ó atenienses, também os artesãos famosos apresentavam o mesmo defeito dos poetas: por conhecerem muito bem sua arte, cada um deles julgava-se extremamente sábio, até mesmo em outros assuntos de maior realce e dificuldade, e este importante defeito deslustrava toda sua sabedoria. De forma que eu, em nome do oráculo, indaguei a mim mesmo se deveria permanecer tal como era, nem sabedor de minha sabedoria nem ignorante de minha ignorância, ambas as coisas, como eles, e respondi a mim e ao oráculo que convinha continuar tal qual eu era.

 

O Verdadeiro Saber Consiste em Saber Que Não se Sabe

Em virtude desta pesquisa, fiz numerosas e perigosíssimas inimizades, e a partir destas inimizades surgiram muitas calúnias, e entre as calúnias, a fama de sábio, porque, toda vez que participava de uma discussão, as pessoas julgavam que eu fosse sábio naqueles assuntos em que somente punha a descoberto a ignorância dos demais. A verdade, porém, é outra, ó atenienses: quem sabe é apenas o deus, e ele quer dizer, por intermédio de seu oráculo, que muito pouco ou nada vale a sabedoria do homem, e, ao afirmar que Sócrates é sábio, náo se refere propriamente a mim, Sócrates, mas só usa meu nome como exemplo, como se tivesse dito: "Ó homens, é muito sábio entre vós aquele que, igualmente a Sócrates, tenha admitido que sua sabedoria nao possui valor algum". É por esta razao que ainda hoje procuro e investigo, de acordo com a palavra do deus, se existe alguém entre os atenienses ou estrangeiros que possa ser considerado sábio e, como acho que ninguém o seja, venho em ajuda ao deus provando que nao há sábio algum. E tomado como estou por esta ânsia de pesquisa, não me restou mais tempo para realizar alguma coisa de importante nem pela cidade nem pela minha casa, é levo uma existência miserável por conta deste meu serviço ao deus.

 

As Muitas Inimizades e a Acusação

Vós tendes conhecimento de que os jovens que dispõem de mais tempo que os outros, os filhos das famílias mais ricas, seguem-me de livre e espontânea vontade, e se regozijam em assistir a esta minha análise dos homens; inúmeras vezes procuram imitar-me e tentam, por sua própria conta, analisar alguma pessoa. Logicamente, deparam-se com numerosos homens que julgam saber alguma coisa e sabem pouco ou nada, e então, aqueles que são analisados por eles voltam-se contra mim e não contra quem os analisou, declarando que Sócrates é homem por demais infame e corruptor dos jovens. E se alguém indaga: "Afinal, o que faz e o que ensina este Sócrates para corromper os jovens?", nada respondem, porque o desconhecem, e, só para não evidenciar que estão confusos, dizem as coisas que comumente são ditas contra todos os filósofos, além de afirmar que ele especula sobre as coisas que se encontram no céu e as que ficam embaixo da terra, e que também ensina a não acreditar nos deuses e apresenta como melhores as piores razões. A verdade, porém, é que esses homens demonstraram ser pessoas que dão a impressão de saber tudo, porém, naturalmente, não querem dizer a verdade. Desta maneira, ambiciosos, dominados pela paixão e numerosos como são, e todos da mesma opinião nesta difamação a meu respeito e com argumentos que podem parecer também convincentes, sem escrúpulo algum encheram vossos ouvidos com suas calúnias. Este é o motivo pelo qual, finalmente, lançaram-se contra mim Meleto, Ânito e Lícon: Meleto profundamente irado por causa dos poetas, Ânito por causa dos artesãos e dos políticos, Lícon por causa dos oradores. Contudo, como vos disse desde o início, seria de fato um verdadeiro milagre se eu tivesse a capacidade de arrancar-vos do coração esta calúnia que possui raízes tão firmes e profundas. Esta é, ó cidadãos, a verdade, e eu a revelo por completo, sem ocultar-vos nada, nem mesmo esquivando-me dela, embora saiba que sou odiado por muitos exatamente por isso. Por sinal, é outra prova de que digo a verdade, e que esta é a calúnia contra mim e esta a causa. Indagai quanto quiserdes, agora ou depois, e recebereis sempre a mesma resposta.

 

Defesa Contra Meleto

No que diz respeito aos meus primeiros acusadores, isso é o bastante para a defesa das culpas a mim atribuídas; procurarei em seguida defender-me de Meleto, homem digno e patriota, como ele mesmo se define, e dos acusadores que virão depois. Vou começar desde o início e como se na verdade dissesse respeito a outra espécie de acusadores, analisemos também o ato de acusação deste. Declarou mais ou menos isto: "Sócrates é réu de corromper os jovens, de não crer nos deuses nos quais a cidade crê e também de praticar cultos religiosos extravagantes".

Analisemos esta acusação minuciosamente. Meleto afirma que corrompo a juventude, e eu digo, ó atenienses, que o réu é o próprio Meleto, porque aborda com leviandade assuntos sérios e tão inescrupulosamente leva homens diante do tribunal, com o intuito de fazer crer que se preocupa com coisas com as quais, na verdade, nunca se preocupou. E procurarei provar-vos que isso é a pura verdade.

   

Meleto Não Sabe o Que é Educar Nem Corromper

Meleto, mostra-te e responde. Não julgas de suprema importância que os jovens consigam se tornar os melhores possíveis?

MELETO: — Julgo.

SÓCRATES: — Dize, então, aos juizes o que os torna melhores. Com certeza o sabes, pois esta é uma preocupação tua e descobriste quem os corrompe, conforme afirmas, e por este motivo citaste-me diante do tribunal e me acusaste. Vamos, dize aos juizes o que os faz melhores. Vês, Meleto, como ficas calado, sem saber o que dizer? E isto não te se afigura vergonhoso, e prova suficiente do que afirmo: que nunca te preocupaste com estes assuntos? Vamos, ó excelente homem, responde: que os faz melhores?

MELETO: — As leis.

SÓCRATES: — Não se trata disto, meu amigo. Indago-te qual é o homem que, em primeiro lugar, deve ter conhecimento, conforme dizes, das leis.

MELETO: — Estes, ó Sócrates, os juizes.

SÓCRATES: — Afirmas, então, Meleto, que estes possuem a capacidade de educar os jovens e torná-los melhores?

MELETO: — Afirmo.

SÓCRATES: — Crês que todos, ou alguns sim e outros não?

MELETO: — Todos.

SÓCRATES: — Dizes bem, por Hera! E grande a quantidade de bons educadores! Também estes que estão nos ouvindo tornam os jovens melhores ou não?

MELETO: — Sim, também estes.

SÓCRATES: — E os senadores?

MELETO: — Também os senadores.

SÓCRATES: — Quer dizer, então, Meleto, que talvez aqueles das Assembléias Populares corrompam os jovens? Ou também aqueles os tornam melhores?

MELETO: — Também aqueles.

SÓCRATES: — Todos os atenienses que te ouvem tornam os jovens bons e belos, todos, exceto eu. Portanto, sou eu quem os corrompe. É isto que queres dizer?

MELETO: — Exatamente isto.

SÓCRATES: — Como sou infeliz! Mas responde-me a isto: também com os cavalos crês que seja assim? Que todos os homens os tornem melhores e somente um os mutile? Ou, ao contrário, que somente um os torne melhores, ou poucos, aqueles que são peritos em cavalos, e que os demais se sirvam dos cavalos e os mutilem? E não acontece assim, ó Meleto, com os cavalos e com todos os seres vivos? Com certeza é assim, digam Ânito e tu mesmo que sim ou não. Seria uma grande felicidade para os jovens se correspondesse à verdade que somente um Ihes causa danos e todos os outros os educam e melhoram. Mas, prossegue, Meleto, já que demonstrei a contento que tu nunca te preocupaste com os jovens. Mais ainda, demonstrei que nunca tiveste preocupação com as coisas pelas quais me trouxeste diante deste tribunal.

Agora dize-me, ó Meleto, o que mais convém, viver entre bons cidadãos ou entre maus cidadãos? Amigo, responde, não é difícil o que te pergunto. Os maus não prejudicam aqueles que Ihes são próximos? E os bons não Ihes fazem o bem?

MELETO: — Com toda a certeza.

SÓCRATES: — Pode existir alguém que esteja com eles e que prefira receber o mal em lugar do bem? Responde, excelente homem. Também a lei deseja que respondas. Pode existir alguém que prefira receber o mal?

MELETO: — Não, realmente.

SÓCRATES: — Então, trouxeste-me a este tribunal porque corrompo os jovens por querer è os torno maus, ou faço isto sem querer?

MELETO: — Afirmo que é por querer.

SÓCRATES: — Quer dizer, então, ó Meleto, tua sabedoria sendo maior que a minha, na tua idade, tendo eu os anos que tenho, que pensas conhecer melhor do que eu que os maus sempre causam algum mal, principalmente àqueles mais próximos deles, e que os bons façam o bem, e que eu ignore essas coisas a ponto de não saber que se se torna mau a um deles corre-se o risco de receber algo mau dele e que, no caso de saber disso, eu me empenhe em torná-los maus? Não me persuadirás disto, ó Meleto. Nem acredito que possas persuadir a ninguém. Ou seja, não corrompo os jovens, ou, se os corrompo, faço-o sem querer, de maneira que em ambos os casos mentes. Se eu os corrompo sem querer, por faltas involuntárias, não existe lei alguma que poisa me obrigar a vir até aqui, mas sim que faça com que seja afastado, a fim de advertir-me ou censurar-me, e é claro que, uma vez advertido, não mais farei o que fazia sem querer. Tens evitado encontrar-te comigo e advertir-me; não o quiseste fazer de forma alguma e me trazes aqui, embora as leis estabeleçam que aqui sejam trazidos somente os que devem ser castigados, e não censurados.

 

Meleto Acusa Sócrates de Ateísmo e se Contradiz

Neste momento, cidadãos de Atenas, é bastante evidente aquilo que eu afirmava: que Meleto nunca se preocupou com essas coisas. Apesar disso, dize-nos, Meleto, de que maneira, de acordo com tua opinião, eu corrompo a juventude? Não o faço, como afirma com clareza a acusação que apresentaste contra mim, ensinando-os a não acreditar nos deuses nos quais a cidade acredita, mas em outras divindades novas? Não é, conforme dizes, ensinando estas coisas que os corrompo?

MELETO: — Sim, eu digo exatamente isto.

SÓCRATES: — Em nome desses mesmos deuses a respeito dos quais agora falamos, explica-te com maior clareza, tanto para mim como para estes juizes, porque não consigo compreender a quais deuses eu ensino que os jovens devem acreditar, pois se naqueles que acredito são deuses, não sou ateu e, por conseguinte, não posso ser culpado disso, mesmo que não sejam os da cidade, e sim outros; é por causa disso que me trazes a este tribunal, por que são outros ou por que afirmas que não acredito de maneira alguma nos deuses e ensino isto aos jovens?

MELETO: — Eu afirmo que não acreditas de maneira alguma nos deuses.

SÓCRATES: — Ó excelente Meleto! Por que dizes que não acredito, da mesma maneira que os outros homens, que o sol e a lua sejam deuses?

MELETO: — Com certeza, ó juizes, pois afirma que o sol é uma pedra e a lua é feita de terra.

SÓCRATES: — Pensas, meu bom Meleto, em acusar também Anaxágoras? E tens em tão pouca estima e reputas tão ignorantes nas letras a estes juizes, a ponto de não saberem que os livros de Anaxágoras de Clazomena estão repletos destes ensinamentos? E por que motivo os jovens iriam aprender de mim estas coisas que por uma simples dracma podem comprar na ágora e zombarem de Sócrates, se este as apresentasse como suas, ainda mais sendo tão extravagantes? Por Zeus, pensas de fato que eu não acredite em deus algum?

MELETO: — Em nenhum, com certeza.

SÓCRATES: — Ninguém acredita em ti, ó Meleto, e naquilo que afirmas; creio que não consegues persuadir nem a ti mesmo. Na verdade, ó atenienses, tudo isto se me afigura desaforado e atrevido, e quem escreveu esta acusação foi desaforado e a escreveu por atrevimento e desrespeito juvenil. É como se alguém desejasse por-me à prova compondo uma espécie de enigma: "Dar-se-á conta Sócrates, aquele grande sábio, que o estou ridicularizando e me contradigo? Ou conseguirei enganá-lo e a todos aqueles que me ouvem?" Com efeito, parece-me que Meleto se contradiz na acusação, como se declarasse: "Sócrates é réu de não acreditar nos deuses, mas também de acreditar nos deuses". E isto significa desejo de se divertir.

Ó atenienses, analisai comigo de que maneira creio que ele se contradiz. Responde, ó Meleto. E vós, como já vos exortei no começo, recordai-vos de não me interromper se continuo a raciocinar à minha maneira.

Existe alguém, ó Meleto, que acredite na existência de fatos humanos e não em homens? Fazei com que responda, ó atenienses, e não criai tanta agitação por causa de uma palavra. Há quem não acredite na existência de cavalos, mas sim nas coisas relativas a cavalos? E que não acredite na existência de flautistas, mas sim que existam sons de flauta? Não ha ninguém, eu mesmo respondo, a ti e aos outros que aqui se encontram, se não queres responder. Mas responde ao menos à pergunta seguinte: existe quem possa acreditar em coisas demoníacas, mas não em demônios?

MELETO: — É completamente impossível.

SÓCRATES: — Quanta satisfação me proporcionou tua resposta, embora tenhas sido obrigado pelos juizes. Portanto, acusas-me de acreditar em coisas demoníacas e de ensiná-las; é isto que afirmas e que juraste no teu ato de acusação. Mas se acredito em coisas demoníacas, devo obrigatoriamente crer em demônios, não é assim? Com certeza é assim. Parece-me que aceitas, já que não contestas. E não consideramos estes demônios filhos dos deuses?

MELETO: — Logicamente.

SÓCRATES: — Ora, se afirmas que existem demônios, se estes demônios são deuses, é neste ponto que eu digo que fazes enigmas e brincadeiras, quando declaras que eu, embora não acreditando na existência dos deuses, afirmo a sua existência, uma vez que digo existirem demônios. De outra forma, se estes demônios são filhos dos deuses, são também filhos bastardos gerados por ninfas ou outras mães; então, quem poderá pensar que existam filhos de deuses e de deuses não? Seria disparate igual se pensasse que os mulos fossem filhos de jumentos e cavalos e que estes últimos não existissem. Por isso, Meleto, é impossível, exceto que haja sido para pôr-me à prova, que tenhas escrito contra mim uma acusação como esta, ou é necessário dizer que não sabias do que me acusar? Mas que consiga convencer quem quer que seja, mesmo se fraco de intelecto, que a mesma pessoa que acredita em coisas demoníacas possa não acreditar em coisas divinas e, de outra forma, que a mesma pessoa que acredita em coisas demoníacas possa não acreditar nem em demônios, nem em deuses, nem em heróis, isto é impossível.

  

A Missão Divina - Fazer o Que é Justo, Permanecer no Lugar Adequado, Obedecer ao Deus

Chega, ó atenienses, isto é o bastante para demonstrar que não sou culpado das acusações de Meleto, pois não se faz necessária uma defesa muito longa. O que eu vos disse, desde o início, que um profundo ódio ergueu-se contra mim, e vindo de muitas pessoas, é verdade, vós sabeis; e se algo me causará dano, não será nem Meleto nem Ânito, mas sim este ódio, esta calúnia e esta raiva das pessoas. Pessoas estas que já causaram a perda de tantos outros e valorosos homens, e, acredito, outros ainda irão perder, não havendo perigo que causem somente a minha perda.

Algum de vós poderia talvez altercar-me: "Sócrates, não te envergonhas de haveres exercido tal atividade, que agora coloca em risco tua vida?" Eu responderia a este: "Não falas bem se pensas que alguém, tendo a capacidade de fazer algum bem, mesmo sendo pequeno, deva calcular os riscos de vida ou de morte e não deva olhar o injusto e se pratica as ações de homem honesto e corajoso ou de infame e mau. Por outro lado, acompanhando este teu raciocínio, teriam sido néscios todos os heróis que morreram em Tróia, e o mais néscio de todos seria o filho de Tétis que, sem se envergonhar, tamanho desdém mostrou pelo perigo, quando sua mãe, uma deusa, estando ele ávido do sangue de Heitor, disse-lhe, se bem me lembro: 'Ó filho, se vingares a morte do teu companheiro Pátroclo e matares Heitor, também morrerás'. Ao ouvir tais palavras, Aquiles negligenciou o perigo e a morte, receando muito mais viver miseravelmente sem vingar o amigo, e declarou: 'Rapidamente eu morra, logo após ter castigado a quem matou, nem que para isso me torne objeto de desprezo'. Acreditas que Aquiles tenha pensado na morte e no perigo?"

É assim que deve ser, ó atenienses, que onde alguém se haja instalado, considerando ser aquele seu lugar mais honroso, ou onde tenha sido instalado por quem ordena, aí, creio, deve ficar e enfrentar os riscos e não pensar na morte, nem em outra desgraça qualquer, à exceção de na desonra e na vergonha.

Declaro-vos, ó cidadãos, que meu comportamento seria anormal e excêntrico se, ao passo que em Potidéia, Anfípolis e Délio, quando os comandantes que vós elegestes me designaram uma posição, lá fiquei, como qualquer outro, arriscando minha vida, aqui, ao contrário, ao receber ordens do deus, ao menos conforme pude ouvir e interpretar essa mesma ordem, pela qual deveria viver filosofando e dedicando-me a conhecer a mim mesmo e aos outros, que, digo, por temor à morte ou a outra desgraça semelhante, tivesse desertado do posto a mim designado pelo deus. Seria algo, repito, anormal e, de fato, existiriam então motivos para trazer-me aqui no tribunal como sendo um desumano que não cresse nos deuses, já que desobedece ao oráculo, receia a morte e julga ser sábio sem sê-lo. Com efeito, atenienses, recear a morte não passa de julgar ser sábio e não sê-lo, dado que significa pensar saber aquilo que não se sabe. E, em verdade, ninguém sabe se, por acaso, ela não seja o maior de todos os bens que podem ser dados ao homem e, contudo, receiam-na como se soubessem que ela é a maior das desgraças. E não é ignorância, a mais vergonhosa das ignorâncias, acreditar saber o que não se sabe? Ora, atenienses, acredito distinguir-me por este motivo e precisamente neste ponto da maior parte dos homens, e se me atrevesse a dizer que em alguma coisa sou mais sábio que os outros, somente por isto o diria, que como não sei nada de preciso a respeito das coisas do Hades, também nada penso saber a esse respeito. Mas ser injusto e desobedecer a quem é melhor que nós, seja deus, seja homem, isto bem sei que é coisa vergonhosa e indecente. Por isso, como ocorre diante dos males que sei que são nefastos, nunca acontecerá que eu fuja diante daqueles de que não sei se por acaso não são bens.

Portanto, mesmo que me concedesses a liberdade, contra a vontade de Ânito que, desde o começo, declarava não ser necessário que eu viesse até este tribunal, ou, uma vez aqui trazido, que era impossível não condenar-me à morte, porque, dizia, se consigo safar-me da condenação, daquele momento em diante, seus filhos prosseguindo a praticar os ensinamentos de Sócrates, estariam inapelavelmente perdidos e corrompidos; se, ao ouvir este raciocínio de Ânito, me dissésseis: "Ó Sócrates, não pretendemos dar, agora, atenção a Ânito e deixamos-te livre, desde que não empregues mais teu tempo nessas pesquisas, nem te ocupes mais de filosofia, e se fores surpreendido a praticar ainda estas coisas, morrerás"; se, como dizia, com esta condição me deixásseis em liberdade, eu vos responderia: "Ó atenienses, eu vos amo, mas obedecerei primeiro ao deus do que a vós, e enquanto tiver ânimo, e enquanto for capaz, não pararei de filosofar, não pararei de estimular-vos e censurar-vos; e a quem quer que eu encontrasse de vós, em qualquer ocasião, conversando da minha maneira habitual, assim diria: "E tu, que és o melhor dos homens; tu, ateniense, cidadão da maior cidade e mais célebre por sabedoria e poder, não te envergonhes de pensar em acumular o máximo de riquezas, fama e honras, sem te preocupar em cuidar da inteligência, da verdade e da tua alma, para que se tornem tão boas quanto possível?" E se algum de vós retrucasse que cuida de fato delas, não o deixaria afastar-se nem iria embora, mas o interrogaria, o analisaria, o impugnaria, e se me afigurasse que não possui virtude mas apenas afirma possuí-la, eu o envergonharia demonstrando-lhe que considera infames as coisas mais estimáveis e de valor, as infames. E agiria assim com qualquer um que eu quisesse: jovens ou velhos, atenienses ou estrangeiros, e também com vós, que me sois mais estritamente próximos. Isto, vós não desconheceis, é ordem do deus e estou convencido de que haja para vós maior bem na cidade do que esta minha obediência ao deus.

Em verdade, com este meu caminhar não faço outra coisa a não ser convencer-vos, jovens e velhos, de que não deveis vos preocupar nem com o corpo, nem com as riquezas, nem com qualquer outra coisa antes e mais que com a alma, a fim de que ela se torne excelente e muito virtuosa, e de que das riquezas não se origina a virtude, mas da virtude se originam as riquezas e todas as outras coisas que são venturas para os homens, tanto para os cidadãos individualmente como para o Estado. Se ao falar desta maneira corrompo os jovens, está certo, isto significará que minhas palavras são nocivas, mas se alguém afirma que falo diferentemente e não deste modo, então diz coisas insensatas. Por tudo isso, permiti que vos diga, ó cidadãos atenienses: ou dareis ouvidos a Ânito, ou não dareis, absolver-me-eis ou não, mas, de qualquer forma, tende a certeza de que nunca agirei de outra maneira que esta, mesmo que não só uma, mas muito mais vezes devesse morrer.

Não promoveis algazarra, ó cidadãos, lembrai-vos de meu pedido de que não causásseis balbúrdia diante do que eu dissesse, mas que vos limitásseis a ouvir. Ademais, creio que vos será útil escutar. Restam-me algumas outras coisas a dizer-vos, às quais, talvez, erguereis a voz. Não, não fazei assim. Convencei-vos: se me condenardes à morte, a mim que sou como vos disse, não me causareis maior dano que podeis causar a vós mesmos. A mim não causarão dano nem Meleto nem Ânito. E nem o poderiam. Não penso que seja possível que um homem de bem receba o mal de um malvado. Poderá sim, Ânito, condenar-me à morte, ou ao desterro, espoliar-me dos direitos civis; tudo em que este homem crer e outros crerem serão grandes males, não o creio eu; penso que seja um mal bem mais grave aquele que é cometido por esses que tentam condenar à morte um homem inocente. Logo, ó atenienses, de maneira alguma estou falando em minha defesa, como alguém poderia achar, mas falo por vós, que não necessitais pecar, condenando-me à morte, contra o dom do deus. Pois se me matardes, não encontrarão facilmente um outro igual a mim, que, não riam da comparação, tenha sido colocado de fato pelo deus aos flancos da cidade como aos flancos de um cavalo grande e de boa raça, mas pelo seu próprio tamanho, um pouco lerdo e necessitado de estímulo, um ferrão. Assim parece-me que o deus me colocou aos flancos da cidade; nunca paro de exortar-vos, de convencer-vos, de falar-vos, um por um, estando a vosso lado, em todo lugar. Afirmo, pois, que outro como eu não nascerá facilmente, ó atenienses, e se desejais me ouvir, me poreis a salvo. Mas se estais irritados comigo como o que está em vias de adormecer com quem o desperta, e golpeais como a matar um inseto inoportuno, condenar-me-eis à morte, por obediência a Ânito, e depois, no decorrer de todo o resto de vossa existência, dormireis tranqüilamente, se o deus não vos mandar algum outro para substituir-me. E se for eu mesmo a pessoa indicada pelo deus para presentear a cidade, podereis me reconhecer por isso: que não parece humano que haja descuidado todos os meus negócios e ainda agüentar por tantos anos que tenham sido descuidadas as coisas da minha casa, e sempre, ao contrário, cuidando das vossas, estando por perto como estaria um pai ou irmão mais velho, para convencer-vos a buscar a virtude. Que se desta vida tirasse algum proveito e se pelos conselhos que dou recebesse alguma compensação, aí sim haveria uma razão, mas vistes que meus detratores, que me acusaram tão despudoradamente de tantas outras culpas, desta não tiveram o despudor de me acusar, pondo-me frente a frente com uma testemunha, somente uma, que provasse ter eu recebido uma única vez compensação ou de havê-la solicitado. E a prova cabal de que é verdade o que vos declaro, eu dou: a minha pobreza.

 

Repugnância e Abstenção Socrática da Política Comum

É possível que pareça estranho eu me encontrar sempre próximo e me dar tanto ao trabalho de fornecer conselhos a este ou àquele em particular, se, ao se tratar de aconselhar a cidade e de ir à tribuna para falar ao povo, então me falte coragem. E o motivo disso me haveis ouvido dizer várias vezes e em vários lugares, que existe em mim não sei que espírito divino e demoníaco, a respeito do qual, também Meleto, com jeito de estar se divertindo, aponta no ato da acusação. É como uma voz que possuo dentro de mim desde criança, e que, toda vez que eu a ouço, sempre faz com que eu desista do que estou para fazer, e nunca me convence a realizar qualquer outra coisa. É essa voz que me impede de me ocupar das coisas do Estado, e parece-me que faz muito bem em agir dessa forma. Sabeis perfeitamente, ó cidadãos, que se eu tivesse, por algum tempo, me ocupado dos negócios de Estado, teria sido morto também num curto espaço de tempo e não teria realizado nada de útil, nem por vós nem por mim. E não me desprezei se falo assim, pois é a verdade. Não existe homem que possa se salvar ao opor-se com sinceridade, não digo a vós, mas a qualquer outra multidão, e tente impedir que muitas vezes se cometam injustiças as leis na cidade; e é também preciso que aquele que luta em defesa do que é justo, se de fato pretende escapar da morte, mesmo que por breve tempo, de viver de forma privada e não exercer funções públicas.

Daquilo que afirmo eu mesmo posso oferecer-vos provas cabais, e não palavras, mas do que mais necessitais: fatos. Escutai o que me sucedeu e vereis então que diante do que é justo não sou homem de ceder a ninguém por temor à morte; e que, além de não ceder, estou pronto a morrer. Falarei um pouco grosseiramente, como fazem alguns dos freqüentadores dos tribunais, mas com sinceridade. Tendes conhecimento, ó cidadãos, de que nunca exerci em nossa cidade magistratura alguma, exceto uma vez em que fiz parte do Conselho, justamente no dia em que era o vosso desejo julgar em conjunto, ao arrepio da lei, e em seguida acolhestes todos ao meu parecer, aqueles dez capitães que não haviam recolhidos os náufragos e os mortos depois da batalha naval das Arginusas.Então eu me opus, lutando para que nada fosse feito contra a lei, e votei contra. Os oradores habituais já estavam prontos para suspender-me da função e aprisionar-me, e vós a intigá-los e a gritar; julguei que era meu dver correr aquele risco mantendo-me ao lado do direito e do justo em vez de apoiar-vos e deliberar o injusto por temer a prisão e a morte. E isto ocorreu quando a cidade ainda era regida por uma democracia. Mais tarde, depois que surgiu a oligarquia, os Trinta mandaram-me chamar, e a mais outros quatros, levaram-nos à sala do Tolo e ordenaram que retirássemos de Salamina o Leon de Salamina, para que este viesse a morrer. E davam ordens semelhantes a vários outros homens, na tentativa de envolver em seus atos cruéis o maior número de pessoas possível. E naquela ocasião, não com palavras, e sim com fatos, demonstrei que a morte, se a palavra não soar por demais vulgar, não possui importância alguma para mim, mas de não cometer injustiças ou crueldades, isto sim me importa acima de qualquer coisa.E aquele governo, apesar de prepotente, não me atemorizou, não me obrigou a cometer um ato injusto, e, quando saímos do Tolo e os outros quatro se dirigiram para Salamina a fim de retirar Leon, deixei-os ir e voltei para casa. Acredito que só por causa disso, eu já teria morrido, se aquele governo não tivesse sido deposto logo em seguida. E disto que relatei possuo muitas testemunhas.

   

O Testemunho dos Discípulos, de seus Pais e Irmãos

Credes que eu teria vivido por tantos anos se houvesse me ocupado de assuntos públicos e, fazendo-o como homem de bem, tivesse lutado em defesa da justiça e tivesse considerado esta defesa, como é necessário, meu dever mais alto? Com certeza, atenienses, não existe homem que o tivesse conseguido! Em verdade, em toda minha existência, tanto em público, nas poucas vezes que me ocupei de coisas públicas, como privadamente, sempre fui o mesmo, um homem que diante do justo nunca cedeu a quem quer que fosse, a ninguém, e nem mesmo àqueles que os caluniadores chamam de meus discípulos. Nunca fui mestre de quem, quer que seja, principalmente se é uma pessoa que , quando falo ou atendo àquilo que acredito ser meu ofício, deseja escutar-me; seja jovem, seja velho, nunca me refutaram, e não é verdade que, se recebo dinheiro, eu falo e se não recebo, fico calado, porque estou da mesma maneira à disposição de todos, pobres e ricos, quem quer que me indague e deseje ouvir as minhas respostas. Por conseguinte, se entre os homens que me freqüentam, um se torne de boa formação moral ou não, não será justo que eu receba elogios ou impropérios, já que não prometi ensinamento algum a ninguém, nem nunca ensinei coisa alguma. E se há quem diga que aprendeu ou ouviu alguma coisa de mm, em particular, alguma coisa que todos os outros não tenham aprendido ou ouvido, tenhais a certeza de que este não diz a verdade.

Diante disso, como é possível que a alguns agrade estar comigo tanto tempo? Vós ouvistes, ó cidadãos, que eu disse toda a verdade: têm prazer de ouvir-me quando submeto à prova aqueles que pensam serem sábios e não o são. Com efeito, não é desagradável. Ao fazer isso, repito-vos, cumpro as ordens do deus, dadas por intermédios de vaticínios e sonhos, e por outros meios de que se serve a providência divina para ordenar ao homem que faça alguma coisa. E estas coisas, ó atenienses, são verdadeiras e demonstráveis. Se de fato eu corrompo os jovens, se já corrompi algum, seria ainda necessário que estes, ao envelhecerem, tomassem consciência de que quando eram jovens eu os aconselhei a praticar o mal, e que viessem à tribuna para acusar-me e para exigir minha punição, e, se não quisessem fazê-lo diretamente, que enviassem hoje para cá as pessoas de sua família, pais, irmãos, e outros, se os que lhe são caro sofreram algum mal por mim causado, e que me fizessem pagar por isso. Muitos destes estão presentes, eu os vejo. Ali está Críton, meu contemporâneo e conterrâneo com sei filho Critóbulo, e também Lisânias de Esfeto, com seu filho Ésquino,e ainda Antífon de Cefísia, pai de Epígeno, e ali estão outros, cujos irmãos viveram comigo familiarmente, Nicóstrato, , filho de Teozótides, irmão de Teódoto, e como Teódoto faleceu, não poderá falar com o irmão a meu favor, e aí está Parálio, filho de Demódoco,de quem era irmão Teages, e ali Adimanto, filho de Aríston, de quem ali se encontra o irmão Platão, e Aantodoro, de quem temos aqui o irmão Apolodoro. E poderia nomear muitos outros. E conseguiria indicar vários outros que Meleto poderia apresentar como testemunhas na sua acusação; se ele se esqueceu disso, que os apresente agora, cedo-lhe o lugar; se existe alguma testemunha deste tipo, que se manifeste.

Porém, atenienses, vereis que todos farão o contrário, todos falarão a favor do corruptor, em defesa daquele que causa o mal de seus familiares, como afirmam Meleto e Ânito. Talvez esses, os corrompidos, tenham alguma razão para me defender, mas aqueles que não foram corrompidos, que são agora anciãos, que outra razão podem ter para me defender exceto esta, que é verdadeira e justa: a certeza de que Meleto mente e eu digo a verdade?

 

Epílogo Sócrates não quer Misericórdia

Cidadãos, são estas, enfim, as razões que posso apresentar em minha defesa, e algumas mais, que, porém, são bem poucos diferentes destas. É possível que alguém entre vós, ao pensar em si mesmo, possa irritar-se comigo se, algum dia, ao ter de enfrentar um processo menos arriscado do que este, suplicou clemência aos juizes, e, além disso, trouxe ao tribunal os filhos e vários de seus parentes e amigos, ao passo que eu não me porto desta maneira, embora, ao que parece, esteja arriscando a vida .É possível que alguém, ao fazer intimamente esta comparação, se deixe influenciar pelo amor-próprio ferido e, desta forma, enraivecido com minha atitude, emita seu voto com raiva. A uma pessoa assim, que talvez esteja entre vós, não afirmo categoricamente que há, poderei responder da seguinte maneira: "Meu estimado amigo, eu também trouxe alguém da minha família, e aqui caberia aquele dito de Homero: 'Que não de carvalho, nem de pedra nasci, mas de criaturas humanas'.

Eu também possuo família, ó atenienses; tenho três filhos, um já crescido e dois ainda crianças, mas não os trouxe aqui para despertar vossa misericórdia e absolver-me". E não é por orgulho que me comporto assim, nem por desprezo, nem para provar que sou corajoso diante da mote, mas pela minha reputação, pela vossa e de toda a cidade, não me pareceu honroso agir dessa maneira, ainda mais na minha idade e com o meu nome, verdadeiro ou falso que seja, porque corre pela cidade que, em quaisquer aspectos, Sócrates se distingue da maioria dos homens. Ora, se aquele que entre vós possuem fama de se distinguirem pela sabedoria e coragem, ou por outra virtude qualquer, se procedessem dessa maneira, seria vergonhoso, e pessoas desse tipo, eu mesmo presenciei muitas vezes, quando eram réus em um processo, embora possuíssem alguma boa reputação, têm atitudes excepcionais, como se achassem que iriam sofrer sabe-se lá que tortura se devessem morrer e como se tornassem imortais se não fossem condenados à morte por vós. Estes, sim, envergonham a toda a cidade, tanto que qualquer forasteiro poderia imaginar que aqueles atenienses que se distinguem por sua virtude e que seus concidadãos elegem à magistratura e outras honras não são em nada melhores que as mulheres. Por isso, não nos portamos dessa maneira é o que compete a nós, que temos fama de sermos ainda alguma coisa. Nem vos conviria, se nos comportássemos assim, deixar-nos fazê-lo, mas sim mostrar a todos que julgais com maior rigor quem encena esses dramas lastimosos e cobre a cidade de ridículo do que quem suporta com serenidade o próprio destino.

Não considero justo, ó cidadãos, tentar influir nos juízes e, mediante súplicas, livrar-me da condenação, mas sim infomá-los e convencê-los.

Os juízes não se encontram aqui para favorecer o justo, mas para julgar o justo, nem juraram que favorecerão a quem lhes paga, mas que farão justiça de acordo com as leis. Portanto, não é necessário que vos habitueis a isso; não faremos coisas boas e piedosas, nem vos nem eu. Não iríeis querer então, ó atenienses, que eu cometesse diante de vós atos que reputo desonestos, injustos e vis, e eu menos ainda, eu que sou acusado por Meleto, aqui presente, de impiedade. Porque é evidente que se eu, por meio de súplicas procurasse convencer-vos e obrigar-vos a violar o juramento, eu vos ensinaria que, desta acusação, seria culpado de não crer nos deuses. E é justamente o contrário que sucede. Acredito nos deuses mais do que qualquer um dos meus acusadores, e deixo a vosso critério, e ao do deus, julgar o que será para vós e para mim o melhor.

 

Segunda Parte - A Pena — Do Esperado da Pena

Se eu não estou abalado, ó atenienses, com o que acaba de ocorrer, o de terem votado pela minha condenação, isso deve-se, entre outras razões, ao fato de não haver sido apanhado de surpresa. O que, no entanto, me causa mais estranheza é o grande número de votos favoráveis a mm , pois acreditava que seria condenado por muito mais votos, e não por tão poucos. Ao que me parece, com apenas mais trinta votos a meu favor teria sido absolvido. Portanto, penso haver escapado das mãos de Meleto, e não só haver escapado delas, mas, o que é bastante evidente, se Ânito e Lícon não tivessem vindo para me acusar, eu teria sido multado em mil dracmas por não haver conseguido um quinto dos votos.

Este homem, então, pensa que mereço a pena capital. E eu, que pena apresentarei em oposição à vossa, ó atenienses? Não é evidente que seja a mesma que me foi imposta? Qual será então? Que pena merecerei ou que multa, por não haver usufruído em paz, ao longo da minha existência, o que aprendi, e por ter desprezado aquilo que atrai a maioria; riquezas, interesses particulares, cargos militares e políticos e todas as outras magistraturas, e as agitações e conspirações que acontecem nas cidades, pois sempre me considerei por demais honesto para conseguir salvar-me se me dedicasse a tais coisas e convencido de que não teria sido útil nem para mm nem para vós, e porque sempre acudi rapidamente aonde quer que eu reputasse poder proporcionar o maior bem a cada um de vós em particular, tentando convencer-vos de que, antes de qualquer coisa e de vós mesmos, procurásseis ser os melhores e mais sensatos possível, e que vos esforçásseis ao máximo para trabalhar em prol da cidade. Que mereço por sempre haver agido desta forma? Algum grande bem, ó atenienses, se é que devo ser recompensado como mereço. Que será apropriado para um pobre benfeitor que precisa de tempo para aconselhar-vos nos vossos assuntos? O que mais seria conveniente a esse homem, atenienses não seria mantê-lo no Pritaneu com muito maior razão do que aqueles que, com cavalo, biga ou quadriga, tenham conseguido triunfos nos Jogos Olímpicos. Porque estes vos proporcionam felicidade, e também a mim, e não precisam ser sustentados como eu precioso. Se, então, devo pedir, de acordo com o direito, aquilo a que faço jus, peço se alimentado no Pritaneu.

Contudo, mesmo nestas minhas palavras de agora, talvez julgais notar quase o mesmo sentimento de ofensivo orgulho que acreditáveis ter percebido quando falava a respeito de suplicar e despertar comiseração. Não, não é isso, ó cidadãos, mas algo bastante diferente. Penso nunca haver prejudicado ninguém por querer, e mesmo assim não logrei convencer-vos; tivemos muito pouco tempo para nos entendermos. E acredito que se houvesse leis entre nós, como as que há entre outros povos, que proíbem que uma pena de morte seja aplicada em apenas um dia, e sim em mais, estaríeis convencidos, e, mesmo assim, não é fácil livrar-se em tão breve espaço de tempo de acusações tão graves. E também pensa em prejudicar a mm mesmo ao declarar que sou merecedor da pena e pedir que esta pena seja aplicada a mim. E por temer o que eu deveria agir dessa forma? Talvez por temer sofrer aquilo que Meleto exige para mim e que eu declaro não saber se é bom ou mau? E em troca desta pena devo escolher outra entre aquelas que eu sei serem más? Deverei solicitar a prisão? E por que motivo deverei viver preso, a serviço da eterna magistratura dos Onze? Uma pena em dinheiro e permanecer enjaulado enquanto não for paga? Mas é exatamente a mesma coisa que a anterior, porque não possuo dinheiro para pagá-la. Pedirei o exílio? Sim, talvez seja precisamente esta pena que desejastes para mim. Porém, em verdade, ó atenienses, eu teria de estar imbuído de uma bem ingênua vontade de viver se fosse assim tão irracional a ponto de não poder nem mesmo fazer este raciocínio, que enquanto vós, embora sendo meus concidadãos, não fostes capazes de agüentar minha companhia e os meus discursos, e mais, que minha companhia foi tão desagradável que procuras agora livrar-vos dela, que outros a agüentariam de bom grado? E ainda, atenienses, que excelente vida seria a minha, nesta idade, exilado, mudando sempre de país para país, perseguido em todos os lugares. Porque sei muito bem que aonde quer que eu vá, os jovens acorrerão a fim de me ouvir, como aqui, e, se eu os repelir, serão estes mesmos que me farão perseguir, convencendo os mais velhos; e se não os repelir, serei perseguido por seus pais e demais parentes.

Algum de vós talvez pudesse contestar-me: "Em silêncio e quieto, ó Sócrates, não poderias viver após ter saído de Atenas?" Isso seria simplesmente impossível. Porque, se vos dissesse que significaria desobedecer ao deus e que, por conseguinte, não seria possível que eu vivesse em silêncio, não acreditaríeis e pensaríeis que estivesse sendo sarcástico. Se vos dissesse que esse é o maior bem para o homem, meditar todos os dias sobre a virtude e acerca dos outros assuntos que me ouvistes discutindo e analisando a meu respeito e dos demais, e que uma vida desprovida de tais análises não é digna de ser vivida, se vos dissesse isto, acreditar-me-iam menos ainda. Contudo, é isto que vos digo, ó atenienses, porém é difícil convencer-vos. Por outro lado, não estou habituado a considerar-me merecedor de mal algum. Se eu possuísse dinheiro, poderia ter-me aplicado uma multa que conseguisse pagar, porque, assim, não teria me infligido mal algum. Mas não possuo dinheiro e não posso fazer isso, exceto se desejeis multar-me de uma quantia que eu tenha a possibilidade de pagar. Poderei pagar-vos apenas uma mina de prata. Portanto, multo-me em uma mina de prata.

Mas vedes, ó atenienses, que Platão, Críton, Critóbulo e Apolodoro querem que eu me multe em trinta minas, que eles mesmos garantirão. Multo-me então em trinta minas. E esses homens, dignos de crédito e confiança, serão garantes dessa quantia.

    

Terceira Parte - Após a Condenação — Aos que Votaram Contra

Por não haverdes aguardado mais um pouco, atenienses, aqueles que desejarem injuriar a cidade vos impingirão a fama e a acusação de terdes matado Sócrates, um sábio. Sim, chamar-me-ão de sábio, apesar de que eu não o seja, os que vos quiserem censurar. Se esperásseis mais algum tempo, a própria natureza satisfaria o vosso desejo. Bem sabeis a minha idade, já distante da vida e próxima da morte. Não dirijo essas palavras a todos vós, mas aos que votaram pela minha morte.

Para esses mesmos, adito o seguinte: talvez imagineis, senhores, que me perdi por falta de discursos com que vos poderia persuadir, se na minha opinião se devesse tudo fazer e dizer para escapar à justiça. Engano! Perdi-me por falta, não de discursos, mas de atrevimento e descaramento, por me recusar a proferir o que mais gostais de ouvir, lamentos e gemidos, fazendo e dizendo uma porção de coisas que declaro indignas de mm, tais como costumais ouvir dos outros. Ora, se antes achei que o perigo não justificava indignidade alguma, tampouco me pesa agora da maneira por que me defendi; ao contrário, muito mais folgo em morrer após a defesa que fiz, do que folgaria em viver após fazê-la daquele outro modo. Quer no tribunal, quer na guerra, não devo eu, não deve ninguém lançar mão de todo e qualquer recurso para escapar à morte. Com efeito, é evidente que, nas batalhas, muitas vezes se pode escapar à morte arrojando as armas e suplicando piedade aos perseguidores; em cada perigo, tem muitos outros meios de escapar à morte quem ousa tudo fazer e dizer. Não se tenha por difícil escapar à morte, porque muito mais difícil é escapar à maldade; ela corre mais ligeira que a morte. Neste momento, fomos apanhados, eu, que sou um velho vagaroso, pela mais lenta das duas, eu e os meus acusadores, ágeis e velozes, pela mais ligeira, a malvadez. Agora, vamos partir; eu, condenado por vós à morte; eles, condenados pela verdade a seu pecado e a seu crime. Eu aceito a pena imposta; eles igualmente. Por certo, tinha de ser assim e penso que não houve excessos.

Acerca do futuro, no entanto, quero fazer-vos um vaticínio, meus condenadores; de fato, eis-me chegado àquele momento em que os homens vaticinam melhor, quando estão para morrer. Eu vos afianço, homens que me mandais matar, que o castigo os vos alcançará logo após a minha morte e será, por Zeus, muito mais duro que a pena capital que me impusestes. Vós o fizestes supondo que vos livraríeis de dar boas contas de vossa vida; mas o resultado será inteiramente oposto, eu vo-lo asseguro. Serão mais numerosos os que vos pedirão contas; até agora eu os continha e vós não os percebíeis; eles serão tanto mais importunos quanto são mais jovens, e vossa irritação será maior. Se imaginais que, matando homens, evitareis que alguém vos repreenda a má vida, estais enganados; essa não é uma forma de libertação, enm é inteiramente eficaz nem honrosa; esta outra, sim, é a mais honrosa e mais fácil; em vez de tapar a boca dos outros, preparar-se para ser o melhor possível. Com este vaticínio, despeço-me de vós que me condenastes.

 

Aos que o Absolveram

Com os que votaram pela absolvição, gostaria de conversar com respeito ao que se acaba de suceder, enquanto os magistrados estão ocupados e antes de ir para onde devo morrer. Por conseguinte, senhores, ficai comigo mais um pouco; nada obsta que nos entretenhamos enquanto dispomos de tempo. Quero explicar-vos, como a amigos, o sentido exato de que me aconteceu agora.

O que me ocorreu senhores juízes, a vós é que chamo com tino de juízes, foi algo prodigioso. A usual inspiração, a da divindade, sempre foi rigorosamente assídua em opor-se a ações mínimas, quando eu ia cometer um erro; agora, porém, acaba de me ocorrer o que vós estais vendo, o que se poderia considerar, e há quem o faça, como o maior dos males; mas a advertência divina não se me opôs de manhã, ao sair de casa, nem enquanto subia aqui para o tribunal, nem quando ia dizer alguma coisa; no entanto, quantas vezes ela me conteve em meio de outros discursos! Mas hoje não se me opôs vez alguma no decorrer do julgamento, em nenhuma ação ou palavra. A que devo atribuir isso? Vou dizer-vos: é bem possível que seja um bem para mim o que aconteceu e não é forçoso acreditar que a morte seja um mal. Disso tenho agora uma boa prova, porque a usual advertência não poderia deixar de opor-se, se não fosse uma ação boa o que eu estava para praticar.

Façamos mais esta reflexão: há grande esperança de que isto seja um bem. Morrer é uma destas duas coisas: ou o morte é igual a nada, e não sente nenhuma sensação d coisa nenhuma; ou, então, como se costuma dizer, trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte!

Bem posso imaginar que, se devêssemos identificar uma noite em que estivéssemos dormindo tão profundamente que nem mesmo sonhássemos e, contrapondo a essa as demais noites e dias de nossa vida, pensar e dizer quantos dias e noites de nossa existência vivemos melhor e mais agradavelmente do que naquela noite, bem posso imaginar que, já não digo um homem comum, mas o próprio rei da Pérsia acharia fácil enumerar tal noite entre as outras noites e dias. Logo, se a morte é isso, digo que é uma vantagem, porque, assim sendo, toda a duração do tempo se apresenta como nada mais que uma noite. Se, do outro lado, a morte é como a mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes?

Se, ao chegar ao Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a gente vai encontrar os verdadeiros juízes que, segundo consta, lá distribuem a justiça, Minos,¹ Radamanto, Éaco, Triptólemo e outros semideuses que foram justiceiros em vida, não valeria a pena a viagem? Quanto não daria qualquer de vós para estar na companhia de Orfeu,² Museu, Hesíodo e Homero? Por mm, estou pronto a morrer muitas vezes, se isso é verdade; eu de modo especial acharia lá um entretenimento maravilhoso, quando encontrasse Palamedes, Ajax de Telamon e outros dos antigos, que tenham morrido por um sentença iníqua; não me seria desagradável comparar com os deles os meus sofrimentos e, o que é mais, passar o tempo examinando e interrogando os de lá como aos de cá, a ver quem deles é sábio e quem, não o sendo, cuida que é. Quanto não se daria, senhores juízes, para sujeitar a exame aquele que comandou a imensa expedição contra Tróia, ou Ulisses, ou Sísifo? Milhares de outros se poderiam nomear, homens e mulheres, com quem seria uma felicidade indizível estar junto, conversando com eles, sujeitando-os a exame! Os de lá absolutamente não matam por uma razão dessas! Os de lá são mais felizes que os de cá, entre outros motivos, por serem imortais pelo resto do tempo, se a tradição está certa.

Vós também, senhores juízes, deveis bem esperar da morte e considerar particularmente esta verdade: não há, para o homem bom, mal algum, quer na vida, quer na morte, e os deuses não descuidam de seu destino. O meu não é conseqüência do acaso; vejo claramente que era melhor para mim morrer agora e ficar livre de fadigas. Por isso é que a advertência nada me impediu. Não me insurjo absolutamente contra os que votaram contra mm ou me acusaram. Verdade é que não me acusaram e condenaram com esse modo de pensar, mas na suposição de que me causavam dano: nisso merecem censura. No entanto, só tenho um pedido a lhes fazer: quando meus filhos crescerem, castigai-os, atormentai-os com os mesmíssimos tormentos que eu vos infligi, se achardes que eles estejam cuidando mais da riqueza ou de outra coisa que da virtude; se estiverem supondo ter um valor que não tenham, repreendei-os, como vos fiz eu, por não cuidarem do que devem e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se vós assim agirdes, eu terei recebido de vós justiça; eu, e meus filhos também.

Bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor destino, se eu, se vós, é segredo para todos, exceto para a divindade.

 

3.             PLATÃO E A FILOSOFIA EM ATENAS

A Vida e as Obras

Diversamente de Sócrates , que era filho do povo, Platão nasceu em Atenas, em 428 ou 427 a.C., de pais aristocráticos e abastados, de antiga e nobre prosápia. Temperamento artístico e dialético - manifestação característica e suma do gênio grego - deu, na mocidade, livre curso ao seu talento poético, que o acompanhou durante a vida toda, manifestando-se na expressão estética de seus escritos; entretanto isto prejudicou sem dúvida a precisão e a ordem do seu pensamento, tanto assim que várias partes de suas obras não têm verdadeira importância e valor filosófico.

Aos vinte anos, Platão travou relação com Sócrates - mais velho do que ele quarenta anos - e gozou por oito anos do ensinamento e da amizade do mestre. Quando discípulo de Sócrates e ainda depois, Platão estudou também os maiores pré-socráticos. Depois da morte do mestre, Platão retirou-se com outros socráticos para junto de Euclides, em Mégara.

Daí deu início a suas viagens, e fez um vasto giro pelo mundo para se instruir (390-388). Visitou o Egito, de que admirou a veneranda antigüidade e estabilidade política; a Itália meridional, onde teve ocasião de travar relações com os pitagóricos (tal contato será fecundo para o desenvolvimento do seu pensamento); a Sicília, onde conheceu Dionísio o Antigo, tirano de Siracusa e travou amizade profunda com Dion, cunhado daquele. Caído, porém, na desgraça do tirano pela sua fraqueza, foi vendido como escravo. Libertado graças a um amigo, voltou a Atenas.

Em Atenas, pelo ano de 387, Platão fundava a sua célebre escola, que, dos jardins de Academo, onde surgiu, tomou o nome famoso de Academia. Adquiriu, perto de Colona, povoado da Ática, uma herdade, onde levantou um templo às Musas, que se tornou propriedade coletiva da escola e foi por ela conservada durante quase um milênio, até o tempo do imperador Justiniano (529 d.C.).

Platão, ao contrário de Sócrates, interessou-se vivamente pela política e pela filosofia política. Foi assim que o filósofo, após a morte de Dionísio o Antigo, voltou duas vezes - em 366 e em 361 - à Dion, esperando poder experimentar o seu ideal político e realizar a sua política utopista. Estas duas viagens políticas a Siracusa, porém, não tiveram melhor êxito do que a precedente: a primeira viagem terminou com desterro de Dion; na segunda, Platão foi preso por Dionísio, e foi libertado por Arquitas e pelos seus amigos, estando, então, Arquistas no governo do poderoso estado de Tarento.

Voltando para Atenas, Platão dedicou-se inteiramente à especulação metafísica, ao ensino filosófico e à redação de suas obras, atividade que não foi interrompida a não ser pela morte. Esta veio operar aquela libertação definitiva do cárcere do corpo, da qual a filosofia - como lemos no Fédon - não é senão uma assídua preparação e realização no tempo. Morreu o grande Platão em 348 ou 347 a.C., com oitenta anos de idade.

Platão é o primeiro filósofo antigo de quem possuímos as obras completas. Dos 35 diálogos, porém, que correm sob o seu nome, muitos são apócrifos, outros de autenticidade duvidosa.

A forma dos escritos platônicos é o diálogo, transição espontânea entre o ensinamento oral e fragmentário de Sócrates e o método estritamente didático de Aristóteles. No fundador da Academia, o mito e a poesia confundem-se muitas vezes com os elementos puramente racionais do sistema. Faltam-lhe ainda o rigor, a precisão, o método, a terminologia científica que tanto caracterizam os escritos do sábio estagirita.

A atividade literária de Platão abrange mais de cinqüenta anos da sua vida: desde a morte de Sócrates , até a sua morte. A parte mais importante da atividade literária de Platão é representada pelos diálogos - em três grupos principais, segundo certa ordem cronológica, lógica e formal, que representa a evolução do pensamento platônico, do socratismo ao aristotelismo .

 

O Pensamento: A Gnosiologia

Como já em Sócrates, assim em Platão a filosofia tem um fim prático, moral; é a grande ciência que resolve o problema da vida. Este fim prático realiza-se, no entanto, intelectualmente, através da especulação, do conhecimento da ciência. Mas - diversamente de Sócrates, que limitava a pesquisa filosófica, conceptual, ao campo antropológico e moral - Platão estende tal indagação ao campo metafísico e cosmológico, isto é, a toda a realidade.

Este caráter íntimo, humano, religioso da filosofia, em Platão é tornado especialmente vivo, angustioso, pela viva sensibilidade do filósofo em face do universal vir-a-ser, nascer e perecer de todas as coisas; em face do mal, da desordem que se manifesta em especial no homem, onde o corpo é inimigo do espírito, o sentido se opõe ao intelecto, a paixão contrasta com a razão. Assim, considera Platão o espírito humano peregrino neste mundo e prisioneiro na caverna do corpo. Deve, pois, transpor este mundo e libertar-se do corpo para realizar o seu fim, isto é, chegar à contemplação do inteligível, para o qual é atraído por um amor nostálgico, pelo eros platônico.

Platão como Sócrates, parte do conhecimento empírico, sensível, da opinião do vulgo e dos sofistas, para chegar ao conhecimento intelectual, conceptual, universal e imutável. A gnosiologia platônica, porém, tem o caráter científico, filosófico, que falta a gnosiologia socrática, ainda que as conclusões sejam, mais ou menos, idênticas. O conhecimento sensível deve ser superado por um outro conhecimento, o conhecimento conceptual, porquanto no conhecimento humano, como efetivamente, apresentam-se elementos que não se podem explicar mediante a sensação. O conhecimento sensível, particular, mutável e relativo, não pode explicar o conhecimento intelectual, que tem por sua característica a universalidade, a imutabilidade, o absoluto (do conceito); e ainda menos pode o conhecimento sensível explicar o dever ser, os valores de beleza, verdade e bondade, que estão efetivamente presentes no espírito humano, e se distinguem diametralmente de seus opostos, fealdade, erro e mal-posição e distinção que o sentido não pode operar por si mesmo.

Segundo Platão, o conhecimento humano integral fica nitidamente dividido em dois graus: o conhecimento sensível, particular, mutável e relativo, e o conhecimento intelectual, universal, imutável, absoluto, que ilumina o primeiro conhecimento, mas que dele não se pode derivar. A diferença essencial entre o conhecimento sensível, a opinião verdadeira e o conhecimento intelectual, racional em geral, está nisto: o conhecimento sensível, embora verdadeiro, não sabe que o é, donde pode passar indiferentemente o conhecimento diverso, cair no erro sem o saber; ao passo que o segundo, além de ser um conhecimento verdadeiro, sabe que o é, não podendo de modo algum ser substituído por um conhecimento diverso, errôneo. Poder-se-ia também dizer que o primeiro sabe que as coisas estão assim, sem saber porque o estão, ao passo que o segundo sabe que as coisas devem estar necessariamente assim como estão, precisamente porque é ciência, isto é, conhecimento das coisas pelas causas.

Sócrates estava convencido, como também Platão, de que o saber intelectual transcende, no seu valor, o saber sensível, mas julgava, todavia, poder construir indutivamente o conceito da sensação, da opinião; Platão, ao contrário, não admite que da sensação - particular, mutável, relativa - se possa de algum modo tirar o conceito universal, imutável, absoluto. E, desenvolvendo, exagerando, exasperando a doutrina da maiêutica socrática, diz que os conceitos são a priori, inatos no espírito humano, donde têm de ser oportunamente tirados, e sustenta que as sensações correspondentes aos conceitos não lhes constituem a origem, e sim a ocasião para fazê-los reviver, relembrar conforme a lei da associação. 

Aqui devemos lembrar que Platão, diversamente de Sócrates, dá ao conhecimento racional, conceptual, científico, uma base real, um objeto próprio: as idéias eternas e universais, que são os conceitos, ou alguns conceitos da mente, personalizados. Do mesmo modo, dá ao conhecimento empírico, sensível, à opinião verdadeira, uma base e um fundamento reais, um objeto próprio: as coisas particulares e mutáveis, como as concebiam Heráclito e os sofistas . Deste mundo material e contigente, portanto, não há ciência, devido à sua natureza inferior, mas apenas é possível, no máximo, um conhecimento sensível verdadeiro - opinião verdadeira - que é precisamente o conhecimento adequado à sua natureza inferior. Pode haver conhecimento apenas do mundo imaterial e racional das idéias pela sua natureza superior. Este mundo ideal, racional - no dizer de Platão - transcende inteiramente o mundo empírico, material, em que vivemos.

 

Teoria das Idéias

Sócrates mostrara no conceito o verdadeiro objeto da ciência. Platão aprofunda-lhe a teoria e procura determinar a relação entre o conceito e a realidade fazendo deste problema o ponto de partida da sua filosofia.

A ciência é objetiva; ao conhecimento certo deve corresponder a realidade. Ora, de um lado, os nossos conceitos são universais, necessários, imutáveis e eternos (Sócrates), do outro, tudo no mundo é individual, contigente e transitório (Heráclito). Deve, logo, existir, além do fenomenal, um outro mundo de realidades, objetivamente dotadas dos mesmos atributos dos conceitos subjetivos que as representam. Estas realidades chamam-se Idéias. As idéias não são, pois, no sentido platônico, representações intelectuais, formas abstratas do pensamento, são realidades objetivas, modelos e arquétipos eternos de que as coisas visíveis são cópias imperfeitas e fugazes. Assim a idéia de homem é o homem abstrato perfeito e universal de que os indivíduos humanos são imitações transitórias e defeituosas.

Todas as idéias existem num mundo separado, o mundo dos inteligíveis, situado na esfera celeste. A certeza da sua existência funda-a Platão na necessidade de salvar o valor objetivo dos nossos conhecimentos e na importância de explicar os atributos do ente de Parmênides , sem, com ele, negar a existência do fieri. Tal a célebre teoria das idéias, alma de toda filosofia platônica, centro em torno do qual gravita todo o seu sistema.

 

A Metafísica - As Idéias

O sistema metafísico de Platão centraliza-se e culmina no mundo divino das idéias; e estas contrapõe-se a matéria obscura e incriada. Entre as idéias e a matéria estão o Demiurgo e as almas, através de que desce das idéias à matéria aquilo de racionalidade que nesta matéria aparece.

O divino platônico é representado pelo mundo das idéias e especialmente pela idéia do Bem, que está no vértice. A existência desse mundo ideal seria provada pela necessidade de estabelecer uma base ontológica, um objeto adequado ao conhecimento conceptual. Esse conhecimento, aliás, se impõe ao lado e acima do conhecimento sensível, para poder explicar verdadeiramente o conhecimento humano na sua efetiva realidade. E, em geral, o mundo ideal é provado pela necessidade de justificar os valores, o dever ser, de que este nosso mundo imperfeito participa e a que aspira.

Visto serem as idéias conceitos personalizados, transferidos da ordem lógica à ontológica, terão consequentemente as características dos próprios conceitos: transcenderão a experiência, serão universais, imutáveis. Além disso, as idéias terão aquela mesma ordem lógica dos conceitos, que se obtém mediante a divisão e a classificação, isto é, são ordenadas em sistema hierárquico, estando no vértice a idéia do Bem, que é papel da dialética (lógica real, ontológica) esclarecer. Como a multiplicidade dos indivíduos é unificada nas idéias respectivas, assim a multiplicidade das idéias é unificada na idéia do Bem. Logo, a idéia do Bem, no sistema platônico, é a realidade suprema, donde dependem todas as demais idéias, e todos os valores (éticos, lógicos e estéticos) que se manifestam no mundo sensível; é o ser sem o qual não se explica o vir-a-ser. Portanto, deveria representar o verdadeiro Deus platônico. No entanto, para ser verdadeiramente tal, falta-lhe a personalidade e a atividade criadora. Desta personalidade e atividade criadora - ou, melhor, ordenadora - é, pelo contrário, dotado o Demiurgo o qual, embora superior à matéria, é inferior às idéias, de cujo modelo se serve para ordenar a matéria e transformar o caos em cosmos.

 

As Almas

A alma, assim como o Demiurgo, desempenha papel de mediador entre as idéias e a matéria, à qual comunica o movimento e a vida, a ordem e a harmonia, em dependência de uma ação do Demiurgo sobre a alma. Assim, deveria ser, tanto no homem como nos outros seres, porquanto Platão é um pampsiquista, quer dizer, anima toda a realidade. Ele, todavia, dá à alma humana um lugar e um tratamento à parte, de superioridade, em vista dos seus impelentes interesses morais e ascéticos, religiosos e místicos. Assim é que considera ele a alma humana como um ser eterno (coeterno às idéias, ao Demiurgo e à matéria), de natureza espiritual, inteligível, caído no mundo material como que por uma espécie de queda original, de um mal radical. Deve portanto, a alma humana, libertar-se do corpo, como de um cárcere; esta libertação, durante a vida terrena, começa e progride mediante a filosofia, que é separação espiritual da alma do corpo, e se realiza com a morte, separando-se, então, na realidade, a alma do corpo.

A faculdade principal, essencial da alma é a de conhecer o mundo ideal, transcendental: contemplação em que se realiza a natureza humana, e da qual depende totalmente a ação moral. Entretanto, sendo que a alma racional é, de fato, unida a um corpo, dotado de atividade sensitiva e vegetativa, deve existir um princípio de uma e outra. Segundo Platão, tais funções seriam desempenhadas por outras duas almas - ou partes da alma: a irascível (ímpeto), que residiria no peito, e a concupiscível (apetite), que residiria no abdome - assim como a alma racional residiria na cabeça. Naturalmente a alma sensitiva e a vegetativa são subordinadas à alma racional.

Logo, segundo Platão, a união da alma espiritual com o corpo é extrínseca, até violenta. A alma não encontra no corpo o seu complemento, o seu instrumento adequado. Mas a alma está no corpo como num cárcere, o intelecto é impedido pelo sentido da visão das idéias, que devem ser trabalhosamente relembradas. E diga-se o mesmo da vontade a respeito das tendências. E, apenas mediante uma disciplina ascética do corpo, que o mortifica inteiramente, e mediante a morte libertadora, que desvencilha para sempre a alma do corpo, o homem realiza a sua verdadeira natureza: a contemplação intuitiva do mundo ideal.

 

O Mundo

O mundo material, o cosmos platônico, resulta da síntese de dois princípios opostos, as idéias e a matéria. O Demiurgo plasma o caos da matéria no modelo das idéias eternas, introduzindo no caos a alma, princípio de movimento e de ordem. O mundo, pois, está entre o ser (idéia) e o não-ser (matéria), e é o devir ordenado, como o adequado conhecimento sensível está entre o saber e o não-saber, e é a opinião verdadeira. Conforme a cosmologia pampsiquista platônica, haveria, antes de tudo, uma alma do mundo e, depois, partes da alma, dependentes e inferiores, a saber, as almas dos astros, dos homens, etc.

O dualismo dos elementos constitutivos do mundo material resulta do ser e do não-ser, da ordem e da desordem, do bem e do mal, que aparecem no mundo. Da idéia - ser, verdade, bondade, beleza - depende tudo quanto há de positivo, de racional no vir-a-ser da experiência. Da matéria - indeterminada, informe, mutável, irracional, passiva, espacial - depende, ao contrário, tudo que há de negativo na experiência.

Consoante a astronomia platônica, o mundo, o universo sensível, são esféricos. A terra está no centro, em forma de esfera e, ao redor, os astros, as estrelas e os planetas, cravados em esferas ou anéis rodantes, transparentes, explicando-se deste modo o movimento circular deles.

No seu conjunto, o mundo físico percorre uma grande evolução, um ciclo de dez mil anos, não no sentido do progresso, mas no da decadência, terminados os quais, chegado o grande ano do mundo, tudo recomeça de novo. É a clássica concepção grega do eterno retorno, conexa ao clássico dualismo grego, que domina também a grande concepção platônica.

 

Moral

Segundo a psicologia platônica, a natureza do homem é racional, e, por conseqüência, na razão realiza o homem a sua humanidade: a ação racional realiza o sumo bem, que é, ao mesmo tempo, felicidade e virtude. Entretanto, esta natureza racional do homem encontra no corpo não um instrumento, mas um obstáculo - que Platão explica mediante um dualismo filosófico-religioso de alma e de corpo: o intelecto encontra um obstáculo nos sentidos, a vontade no impulso, e assim por diante. Então a realização da natureza humana não consiste em uma disciplina racional da sensibilidade, mas na sua final supressão, na separação da alma do corpo, na morte. Agir moralmente é agir racionalmente, e agir racionalmente é filosofar, e filosofar é suprimir o sensível, morrer aos sentidos, ao corpo, ao mundo, para o espírito, o inteligível, a idéia.

Em todo caso, visto que a alma humana racional se acha, de fato, neste mundo, unida ao corpo e aos sentidos, deve principiar a sua vida moral sujeitando o corpo ao espírito, para impedir que o primeiro seja obstáculo ao segundo, à espera de que a morte solte definitivamente a alma dos laços corpóreos. Noutras palavras, para que se realize a sabedoria, a contemplação, a filosofia, a virtude suma, a única virtude verdadeiramente humana e racional, é necessário que a alma racional domine, antes de tudo, a alma concupiscível, derivando daí a virtude da temperança, e domine também a alma irascível, donde a virtude da fortaleza. Tal harmônica distribuição de atividade na alma conforme a razão constituiria, pois, a justiça, virtude fundamental, segundo Platão, juntamente com a sapiência, embora a esta naturalmente inferior. Temos, destarte, uma classificação, uma dedução das famosas quatro virtudes naturais, chamadas depois cardeais - prudência, fortaleza, temperança, justiça - sobre a base da metafísica platônica da alma.

Quanto ao destino das almas depois da morte, eis o pensamento de Platão: em geral, o destino da alma depende da sua filosofia, da razão; em especial, depende da religião, dos mistérios órfico-dionisíacos. Em geral, distingue ele três categorias de alma:

1. As que cometeram pecados inexpiáveis, condenadas eternamente;

2. As que cometeram pecados expiáveis;

3. As que viveram conforme à justiça. As almas destas últimas duas categorias nascem de novo, encarnam-se de novo, para receber a pena ou o prêmio merecidos. Segundo o pensamento que lemos no Fédon, seria mister acrescentar uma quarta categoria de almas, as dos filósofos, videntes de idéias, libertados da vida temporal para sempre.

 

A Política

Os escritos em que Platão trata especificamente do problema da política, são a República, o Político e as Leis. Na República, a obra fundamental de Platão sobre o assunto, traça o seu estado ideal, o reino do espírito, da razão, dos filósofos, em chocante contraste com os estados e a política deste mundo.

Qual é, pois, a justificação da sociedade e do estado? Platão acha-a na própria natureza humana, porquanto cada homem precisa do auxílio material e moral dos outros. Desta variedade de necessidades humanas origina-se a divisão do trabalho e, por conseqüência, a distinção em classes, em castas, que representam um desenvolvimento social e uma sistematização estável da divisão do trabalho no âmbito de um estado. A essência do estado seria então, não uma sociedade de indivíduos semelhantes e iguais, mas dessemelhantes e desiguais. Tal especificação e concretização da divisão do trabalho seria representada pela instituição da escravidão; tal instituição, consoante Platão, é necessária porquanto os trabalhos materiais, servis, são incompatíveis com a condição de um homem livre em geral.

Segundo Platão, o estado ideal deveria ser dividido em classes sociais. Três são, pois, estas classes: a dos filósofos, a dos guerreiros, a dos produtores, as quais, no organismo do estado, corresponderiam respectivamente às almas racional, irascível e concupiscível no organismo humano. À classe dos filósofos cabe dirigir a república. Com efeito, contemplam eles o mundo das idéias, conhecem a realidade das coisas, a ordem ideal do mundo e, por conseguinte, a ordem da sociedade humana, e estão, portanto, à altura de orientar racionalmente o homem e a sociedade para o fim verdadeiro. Tal atividade política constitui um dever para o filósofo, não, porém, o fim supremo, pois este fim supremo é unicamente a contemplação das idéias.

À classe dos guerreiros cabe a defesa interna e externa do estado, de conformidade com a ordem estabelecida pelos filósofos, dos quais e juntamente com os quais, os guerreiros receberam a educação. Os guerreiros representam a força a serviço do direito, representado pelos filósofos.

À classe dos produtores, enfim, - agricultores e artesãos - submetida às duas precedentes, cabe a conservação econômica do estado, e, consequentemente, também das outras duas classes, inteiramente entregues à conservação moral e física do estado. Na hierarquia das classes, a dos trabalhadores ocupa o ínfimo lugar, pelo desprezo com que era considerado por Platão - e pelos gregos em geral - o trabalho material.

Na concepção ideal, espiritual, ética, ascética do estado platônico, pode causar impressão, à primeira vista, o comunismo dos bens, das mulheres e dos filhos, que Platão propugna para as classes superiores. Entretanto, Platão foi levado a esta concepção política - tornada depois sinônimo de imanentismo, materialismo, ateísmo - não certamente por estes motivos, mas pela grande importância e função moral por ele atribuída ao estado, como veículo dos valores transcendentais da Idéia. Tinha ele compreendido bem que os interesses particulares, privados, econômicos e, especialmente, domésticos, estão efetivamente em contraste com os interesses coletivos, sociais, estatais, sendo estes naturalmente superiores àqueles - eticamente considerados. E não hesita em sacrificar totalmente os interesses inferiores aos superiores, a riqueza, a família, o indivíduo ao estado, porquanto representa precisamente - consoante seu pensamento - um altíssimo valor moral terreno, político-religioso, como única e total expressão da eticidade transcendente.

Se a natureza do estado é, essencialmente, a de organismo ético-transcendente, a sua finalidade primordial é pedagógico-espiritual; a educação deve, por isso, estar substancialmente nas mãos do estado. O estado deve, então, promover, antes de tudo, o bem espiritual dos cidadãos, educá-los para a virtude, e ocupar-se com o seu bem estar material apenas secundária e instrumentalmente. Platão tende a desvalorizar a grandeza militar e comercial, a dominação e a riqueza, idolatrando a grandeza moral. O grande, o verdadeiro político não é - diz Platão - o homem prático e empírico, mas o sábio, o pensador; não realiza tanto as obras exteriores, mas, sobretudo, se preocupa com espiritualizar os homens. Desta maneira é concebido o estado educador de homens virtuosos, segundo as virtudes que se referem a cada classe, respectivamente. Esta educação é dispensada essencialmente às classes superiores - especialmente aos filósofos, a quem cabem as virtudes mais elevadas, e, portanto, a direção da república. Ao contrário, o estado em nada se interessa - ao menos positivamente - pelo povo, pelo vulgo, pela plebe, cuja formação é inteiramente material e subordinada, consistindo sua virtude apenas na obediência, visto a alma concupiscível estar sujeita à alma racional.

A educação das classes superiores importa, fundamentalmente, música e ginástica. A música - abrangendo também a poesia, a história, etc., e, em geral, todas as atividades presididas pelas Musas - é, todavia, cultivada apenas para fins práticos e morais. Deveria ela equilibrar, com a sua natureza gentil e civilizadora, a ação oposta, fortificadora, da ginástica. Platão reconhece a importância da ginástica, mas não passa de uma importância instrumental e parcial, pois o prevalecer da cultura física do corpo torna os homens grosseiros e materiais. Daí a sua aversão ao culto idolátrico dos exercícios físicos, que foi um dos indícios da decadência grega.

 

A Religião e a Arte

A idéia do Bem seria o centro da religião platônica. Seu culto essencial é representado pela ciência e, portanto, pela virtude que deriva necessariamente da ciência. Ao lado, e subordinadas a esta espécie de Deus supremo, estão as demais idéias, denominadas por Platão, deuses eternos. Entretanto, este absoluto - o Bem e as idéias - embora transcendente, espiritual e ético, não pode tornar-se objeto de religião, nem sequer da religião assim chamada natural, dadas a sua impersonalidades e inatividade a respeito do mundo.

Quanto à avaliação da religião positiva, Platão hostiliza o antromorfismo, até querer banidos de seu estado ideal os poetas, inclusive Homero, pelos mitos fantásticos e imorais, narrados em torno dos deuses e dos heróis. Apesar de repelir os deuses da mitologia popular e poética, aceita francamente o politeísmo. É um politeísmo estranho, cujas divindades são os astros e o cosmo, animados e racionais, os assim chamados deuses visíveis, subordinados ao Demiurgo, bem como à idéia do Bem e às outras idéias. Platão pode, pois, conservar - reformada e purificada - a religião helênica, como religião do seu estado ideal.

As doutrinas estéticas de Platão são algo oscilantes entre uma valorização e uma desvalorização da arte. Em todo caso, no conjunto do seu pensamento, em oposição ao seu gênio e ao gênio artístico grego, prevalece a desvalorização por dois motivos, teorético um, prático outro. O motivo teorético é que a arte resultaria como cópia de uma cópia: cópia do mundo empírico, que é já uma cópia do mundo ideal; cópia não de essências, como a ciência, mas de fenômenos. Por conseqüência, a arte deveria ser, gnosiologicamente, inferior à ciência. O motivo prático é que a arte - dada esta sua inferior natureza teorética, impura fonte gnosiológica - torna-se outro tanto danosa no campo moral. Atuando cegamente sobre o sentimento, a arte nos atrai para o verdadeiro, como para o falso, para o bem como para o mal.

Seja como for, encontramos em Platão uma tentativa de valorização da arte em si, sendo considerada a arte como uma espécie de loucura divina, de mania, semelhante à religião e ao amor, ou seja, uma espécie de revelação superior. A arte, pois - como o amor, que tem por objeto a Beleza eterna e os graus que levam até ela - deveria ser um itinerário especial do espírito para o Absoluto e o inteligível, algo como que uma filosofia, porquanto deveria atingir intuitivamente, encarnada em formas sensíveis, aquele mesmo ideal inteligível que a filosofia atinge abstratamente, na sua pureza lógica, conceptual.

 

A Academia

A escola filosófica fundada por Platão, a Academia, sobreviveu-lhe por quase um milênio, até o VI século d.C. Costuma-se dividi-la - cronologicamente e logicamente - em antiga, média e nova. A antiga academia dura até o ano de 260 a.C., mais ou menos, isto é, quase um século. É governada por discípulos, reitores, sucessores de Platão. A ela pertencem homens insignes e de grande doutrina. Vai-se acentuando a importância da experiência, segundo os interesses do último Platão, como também uma tendência para uma sempre maior sistematização do pensamento platônico, provavelmente também pela influência de Aristóteles .

Segue-se na média academia, que toma uma orientação cética, sobretudo graças a Carnéades (213-128 a.C.). Finalmente, a nova academia volta ao antigo dogmatismo e, depois, orienta-se para o ecletismo, prevalecendo simpatias pitagóricas . Chegamos assim ao princípio da era vulgar. No entanto, a academia platônica sobreviverá ainda e tomará uma última forma e feição com o neoplatonismo. É este o último esforço grandioso do pensamento grego para resolver o problema filosófico, desenvolvendo o dualismo no panteísmo emanatista, e valorizando o elemento religioso positivo, que Platão já tinha valorizado no mito.

 

Para Entender Platão

Platão, nascido em 428 a.C., é o primeiro grande filósofo da tradição ocidental a deixar uma obra escrita considerável. Todavia, a obra de Platão só pode ser entendida em função de outros pensamentos, anteriores e contemporâneos - de saída, o pensamento de seu mestre Sócrates, como também o pensamento dos filósofos anteriores, precisamente denominados pré-socráticos.

Tratemos, inicialmente, de evocar Pitágoras de Samos, que viveu no século V antes de nossa era e que sabemos ter sido um ilustre matemático. Na realidade, sua matemática desemboca numa metafísica, já que Pitágoras acredita que os números são o princípio e a chave de todo o universo; assim como a natureza do som é função do comprimento da corda que vibra, as aparências coloridas do universo, infinitamente diversas, dissimulam relações numéricas que constituem o fundo das coisas: idéia capital, que não só reencontramos em Platão, mas que está na origem da ciência moderna. Pitágoras (que teria inventado a palavra filosofia, amor à sabedoria), também é um místico, fundador de sociedades iniciáticas que visam à salvação de seus membros. A doutrina pitagórica da salvação está muito próxima dos mistérios do orfismo. Os pitagóricos acreditam na metempsicose. A alma, como punição de faltas passadas, torna-se prisioneira de um corpo (soma = sema; corpo = túmulo). A encarnação é tão somente um encarceramento provisório para a alma. A morte anuncia o renascimento num outro corpo até que a alma, simultaneamente purificada pela virtude e pela prática de ritos iniciáticos, mereça ser finalmente libertada de toda materialização.

Muitas outras doutrinas dessa época tentam explicar o mundo. Empédocles vê na matéria quatro elementos (terra, água, ar e fogo), enquanto o ódio que dissocia e o amor que unifica seriam os princípios motores do universo. Anaxágoras, que foi professor de Péricles, acha que os elementos constitutivos do mundo são ordenados por uma Inteligência cósmica, o Nous.

Duas doutrinas se opõem radicalmente entre si. Para Heráclito de Éfeso, tudo muda infinitivamente. "Planta rei", tudo flui: a morte sucede à vida, a noite ao dia, a vigília ao sono. "Não nos banhamos duas vezes no mesmo rio". O fluxo que faz do universo uma torrente é constantemente produzido e destruído por um Fogo cósmico, segundo um ritmo regular. A esta filosofia da mobilidade universal se opõem Parmênides e seu discípulo Zenão de Eléia: para eles, a mobilidade não passa de uma ilusão que engana nossos sentidos; o real é o Ser único, imóvel, eterno. "O Ser é, o não-ser não é"; o não-ser é a mudança (mudar é deixar de ser o que se é para ser o que não se é). Demócrito tenta conciliar as duas doutrinas por intermédio de sua filosofia de átomos, elementos eternos, cujas combinações mutáveis são infinitas.

Diremos uma palavra sobre os sofistas, cujo ceticismo é engendrado pela multiplicidade de doutrinas contraditórias, pelo abuso da retórica (um orador hábil pode demonstrar o que quiser) e, de um modo geral, pelo incremento do individualismo e decadência dos costumes após Péricles.

Um dos mais célebres, Protágoras de Abdera, dizia, segundo o testemunho de Platão, que "o homem é a medida de todas as coisas". Em outras palavras: não existe verdade absoluta, mas tão somente opiniões relativas ao homem (este vinho, delicioso para o amador, é amargo para o enfermo).

Platão, no entanto, só reencontra a filosofia a partir de preocupações de caráter político. É um jovem aristocrata que une aos seus dons intelectuais e físicos (duas vezes coroado nos jogos atléticos nacionais, é belo e vigoroso: apelidam-no "Platão" em virtude de seus ombros largos), o nascimento mais prestigioso: sua mãe descendia de Sólon, seus ancestrais paternos, do último rei de Atenas. Estava destinado, portanto, a uma brilhante carreira política. Mas Atenas, que por ocasião do nascimento de Platão se encontra no apogeu - com inigualável poder marítimo - , esboroa-se na época em que Platão atinge a idade adulta. Platão tinha quatro anos quando começaram as guerras do Peloponeso e trinta e um quando eles terminaram, com a capitulação de Atenas. A destruição da frota, a peste, o arrasamento dos famosos muros (uniam a cidade ao Pireu) pelos esparciatas vencedores, assinalam a importância da catástrofe. Platão vai sonhar com a reconstrução de uma cidade, mas uma cidade cuja potência é antes moral e espiritual do que material, uma cidade que seja a encarnação da Justiça.

Para compreender isto, recordemos o acontecimento fundamental da juventude de Platão, seu encontro com Sócrates. Sócrates tem sessenta e três anos quando, em 407, Platão a ele se une. Alain falou a propósito desse "choque dos contrários": Platão, aristocrata jovem e belo, torna-se discípulo de um cidadão de origem modesta, velho e muito feio (seus olhos salientes e seu nariz achatado são célebres). E isto é significativo e simbólico. A verdade e a justiça (das quais Sócrates será o símbolo) não possuem bom aspecto, pertencem a um mundo que não o das aparências. Na Atenas vencida, o jovem Platão é convocado por parentes e amigos a participar do governo autoritário dos Trinta; ele se retrai, porém, e constata que os Trinta acumulam injustiças e violências. Devemos agora, portanto, caracterizar os grandes traços da filosofia de Sócrates:

1. Sócrates não pretende, como Empédocles ou Heráclito, elaborar uma cosmologia; segundo ele, deve-se deixar aos deuses o cuidado de se ocupar com o universo; devemos nos interessar, de preferência, por aquilo que nos concerne diretamente. "Conhece-te a ti mesmo". Esta máxima gravada no frontão do templo de Delfos, é a palavra-chave do humanismo socrático.

2. Sócrates, todavia, não pretende ensinar coisa alguma sobre a natureza humana; não quer nos comunicar um saber que não possuiríamos. Ajuda-nos tão somente a refletir, isto é, a tomar consciência dos nossos próprios pensamentos, dos problemas que eles colocam. Muitas vezes, ele se comparava à sua mãe, que era parteira. Nada ensinava e limitava-se a partejar os espíritos, ajudá-los a trazer à luz o que já trazem em si mesmos. Tal é a maiêutica socrática.

3. Ao mesmo tempo que convida o interlocutor a tomar consciência de seu próprio pensamento, Sócrates fá-lo compreender que, na verdade, ignora o que acreditava saber. Tal é a ironia, que, ao pé da letra, significa a arte de interrogar. Sócrates, de fato, faz perguntas e sempre dá a impressão de buscar uma lição no interlocutor. Aborda com humildade fingida os sofistas inflados de falso-saber. E as perguntas feitas por Sócrates levam o interlocutor a descobrir as contradições de seus pensamentos e a profundidade de sua ignorância.

4. Na realidade, se Sócrates é o primeiro a reconhecer sua própria ignorância, ele funda todas as suas esperanças na verdade tão somente. Seu método é, antes de tudo, um esforço de definição. Por exemplo: partindo dos aspectos os mais diversos da justiça, ele procura depreender o conceito de justiça, a idéia geral que contém os caracteres constitutivos da justiça. Sócrates possui tal confiança no saber e na verdade que está firmemente persuadido que os injustos e os maus não passam de ignorantes. Se conhecessem verdadeiramente a justiça, eles a praticariam, pois ninguém é "maus voluntariamente". Segundo sua perspectiva racionalista, só há salvação pelo saber. O verdadeiro ponto de partida da filosofia de Platão é a morte de Sócrates em 399 a.C. Acontecimento político: é o partido popular, de novo no poder, que, por iniciativa de um certo Anytos (filho de um rico empreiteiro e antigo amigo dos Trinta, aos quais traiu para assumir a liderança do outro partido), condena Sócrates a beber a cicuta como corruptor da juventude e adversário dos deuses da cidade. Condenação injusta e escandalosa que exprime uma incompatibilidade trágica entre o poder político e a sabedoria do filósofo. Daí as resoluções que Platão nos apresenta na sétima carta. "Reconheço que todos os Estados atuais, sem exceção, são mal governados...É somente pela filosofia que se pode discernir todas as formas de justiça política e individual". Talvez a solução seja a evasão do filósofo que "foge daqui debaixo" para se refugiar na meditação pura (tal é o filósofo cujo retrato nos é traçado no Teeteto; filósofo puramente contemplativo que nem sabe onde se reúne o Conselho e cujo corpo está apenas presente na Cidade). Mas uma outra solução seria o próprio filósofo encarregar-se do governo da cidade (a Justiça reinará, diz Platão, no dia em que os filósofos forem reis ou no dia em que os reis forem filósofos).

Tal é o sonho que Platão tentaria realizar em Siracusa. Encontrara aí um discípulo estusiasta na pessoa de Dion, cunhado do novo tirano, Dionísio I. Este último, todavia, não se revelou muito adequado para se tornar o rei filósofo que Platão quisera fazer dele. Dionísio I prendeu Platão e, na ilha de Egina, fê-lo expor no mercado de escravos para ser vendido. Resgatado por Anikeris de Cítera por vinte minas, Platão retornou a Atenas.

É então que ele funda, aos quarenta anos, uma escola de filosofia à portas da cidade, perto de Colona, nos jardins de Academos. Devemos representar a Academia como uma espécie de Universidade onde se ensina matemáticas (não entra aqui quem não for geômetra), filosofia e a arte de governar as cidades segundo a justiça. O ensino esotérico (isto é, secreto, reservado aos iniciados) dado por Platão a seus discípulos só nos é conhecido atualmente pelas críticas de Aristóteles; restam-nos, porém, a obra escrita de Platão, seus diálogos célebres tais como o Górgias, o Fedro, o Fédon, o Banquete, a República, o Teeteto, o Sofista, o Político, o Parmênides, o Timeu, as Leis. Esses trabalhos esotéricos de Platão constituem a mais pura jóia da filosofia de todos os tempos. Platão morre em 348 a.C.

Se quiséssemos resumir a filosofia de Platão em uma palavra, poderíamos dizer que ela é fundamentalmente um dualismo. Platão, de certo modo, reconcilia Parmênides e Heráclito ao admitir a existência de dois mundos: o mundo das idéias imutáveis, eternas, e o mundo das aparências sensíveis, perpetuamente mutáveis. Acrescenta-se que o mundo das Idéias é, no fundo, o único mundo verdadeiro. Platão concede ao mundo sensível uma certa realidade, mas ele só existe porque participa do mundo das idéias do qual é uma cópia ou, mais exatamente, uma sombra. Um belo efebo, por exemplo, só é belo porque participa da Beleza em si.

Podemos mostrar de duas maneiras que a intuição fundamental de Platão se prende ao ensinamento de Sócrates:

a) Recordemos o ensinamento socrático sobre a definição, sobre o conceito; para que haja, por exemplo, como Sócrates o estabeleceu, uma definição do homem em geral, uma essência universal do homem, é preciso que exista algo além dos homens particulares e diferentes entre si que nós reconhecemos, um outro mundo onde exista o Homem em si, a Justiça em si, isto é, as Idéias. Em suma, Platão dá realidade ao conceito socrático. A idéia platônica é uma promoção ontológica do conceito socrático.

b) Mas é sobretudo a vida e a morte de Sócrates que suscitam o idealismo platônico. Como diz muito bem André Bonnard, a cidade que condena Sócrates à morte, a cidade que vê triunfar a injustiça e a mentira é "um mundo ao inverso, um mundo de pernas para o ar". Desse modo, o idealismo platônico "traz a marca de um grave traumatismo. A morte de Sócrates feriu-o mortalmente. É no mundo invisível que a justiça e a verdade triunfam". E Sócrates, pela tranqüilidade quase contente de sua morte, atesta a existência desse mundo invisível, mostra que, para ele, as Idéias contam mais que a vida.

Os temas principais do platonismo podem ligar-se à distinção entre o mundo das Idéias eternas e o mundo das aparências mutáveis. A ascensão dialética, por exemplo, é o itinerário pelo qual nos levamos do mundo sensível ao mundo das Idéias: no mais baixo grau, as simples impressões sensíveis (eikasia), um pouco mais acima, as opiniões estabelecidas (pistis), em seguida, o pensamento discursivo (dianoia) que constrói o raciocínio partindo de figuras, como fazem os geômetras, e, finalmente, no mais alto grau, o pensamento intuitivo, a iluminação direta pela Idéia (noesis).

A teoria platônica da alma está ligada à doutrina das Idéias. As almas outrora contemplaram às Idéias à vontade. Depois, por punição de alguma falta, segundo a doutrina órfico-pitagórica, elas foram aprisionadas no corpo. Todavia, elas continuam capazes de reminiscência, uma vez que guardaram uma lembrança obscura - que, no entanto, pode ser redespertada - de seu antigo contato com as Idéias. Assim, o jovem escravo que Sócrates interroga no Mênon descobre propriedades geométricas quase sem ajuda. Platão pensa igualmente que a emoção amorosa, a emoção que rebata a alma diante da Beleza - de todas as idéias a mais fácil de reconhecer - é o meio de uma conversão dialética: o amor por um belo corpo, em seguida pelos belos corpos, depois pelas belas almas e pelas belas virtudes conduz à redescoberta do Belo em si (leia-se o Banquete).

À doutrina das Idéias também se correlaciona a esperança da imortalidade da alma, "esse belo risco a ser corrido". Uma vez que a alma é feita para as Idéias - visto que sua união com o corpo é acidental e monstruosa - por que não seria eterna como as Idéias que ela tem por vocação contemplar?

Do mesmo modo, uma vez que as Idéias constituem absolutos referenciais - não o homem, mas Deus é que é a medida de todas as coisas, objeta Platão a Protágoras - é preciso renunciar do oportunismo e à imoralidade dos sofistas. Platão sustenta contra Cálicles (no Górgias), contra Trasímaco e Gláucon (na República) o valor absoluto da Idéia de justiça. A justiça é a hierarquia harmônica das três partes da alma - a sensibilidade, a vontade e o espírito. Ela também se encontra em cada uma das virtudes particulares: a temperança nada mais é que uma sensibilidade regulamentada segundo a justiça; a coragem é a justiça da vontade e a sabedoria é a justiça do espírito.

A justiça política é uma harmonia semelhante à justiça do indivíduo, mas "escritas em caracteres mais fortes" na escala do Estado... A política de Platão distingue, à imagem de todas as sociedades indo-européias primitivas, três classes sociais: os artesãos dos quais a Justiça exige a temperança, os militares nos quais a Justiça será coragem, os chefes cuja Justiça é, antes de tudo, Sabedoria e que são filósofos longamente instruídos. Entre todas as formas de governo, Platão prefere a aristocracia e, nele, é preciso tomar a palavra em seu sentido etimológico: governo dos melhores.

Finalmente, podemos ligar à distinção dos dois mundos algumas observações sobre o mito platônico: 

a) O mito, procedimento pedagógico paradoxal, traduz uma espécie de narração poética legendária, isto é, numa linguagem de imagens uma verdade filosófica estranha ao mundo sensível! É o mundo das Idéias eternas transposto em imagens sensíveis, sugerido pelo mundo das imagens!

b) O mito é o único meio de exposição para os problemas de origem (acontecimentos sem testemunhos) e dos fins últimos (que ainda não existem!), pois a inteligência abstrata só compreende o eterno e não pode bastar para evocar o que pertence à história.

c) O mito indica que o pensamento filosófico vem se abeberar nas fontes das crenças religiosas tradicionais.

d) Finalmente, o mito ressalta as relações que, segundo Platão, existem entre a poesia e a verdade. A poesia mítica é uma mensagem metafísica, o belo não é senão o "esplendor do verdadeiro" e a arte está em segundo lugar em relação à filosofia.

 

Os Diálogos de Platão

 

Os diálogos escritos por Platão foram: Apologia a Sócrates (Transcrito acima), Critão (Os Personagens Sócrates e Critão, dois velhos e passa-se em uma cela, na prisão de Atenas.), Fedron (ocorre entre fedron e Equécrates), Filebo (Sócrates e Protarco), Górgias (acontece entre Sócrates, Querefonte e Cálicles), O Banquete (Entre Apolodoro e um companheiro), O Mito da Caverna (Escrito dentro do livro A República de Platão, procura figurar o estado da natureza humana, em relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer.), Parmênides (Entre Sócrates, Antifonte, Pitodoro, Zenão e Parmênides) e Teleto (Entre Euclides e Terpsião).

 

 

4.             OS SOFISTAS

Período Sistemático

O segundo período da história do pensamento grego é o chamado período sistemático. Com efeito, nesse período realiza-se a sua grande e lógica sistematização, culminando em Aristóteles, através de Sócrates e Platão , que fixam o conceito de ciência e de inteligível, e através também da precedente crise cética da sofística. O interesse dos filósofos gira, de preferência, não em torno da natureza, mas em torno do homem e do espírito; da metafísica passa-se à gnosiologia e à moral. Daí ser dado a esse segundo período do pensamento grego também o nome de antropológico, pela importância e o lugar central destinado ao homem e ao espírito no sistema do mundo, até então limitado à natureza exterior.

Esse período esplêndido do pensamento grego - depois do qual começa a decadência - teve duração bastante curta. Abraça, substancialmente, o século IV a.C., e compreende um número relativamente pequeno de grandes pensadores: os sofistas e Sócrates, daí derivando as chamadas escolhas socráticas menores, sendo principais a cínica e a cirenaica, precursoras, respectivamente, do estoicismo e do epicurismo do período seguinte; Platão e Aristóteles, deles procedendo a Academia e o Liceu , que sobreviverão também no período seguinte e além ainda, especialmente a Academia por motivos éticos e religiosos, e em seus desenvolvimentos neoplatônicos em especial - apesar de o aristotelismo ter superado logicamente o platonismo.

 

A Sofística

Após as grandes vitórias gregas, atenienses, contra o império persa, houve um triunfo político da democracia, como acontece todas as vezes que o povo sente, de repente, a sua força. E visto que o domínio pessoal, em tal regime, depende da capacidade de conquistar o povo pela persuasão, compreende-se a importância que, em situação semelhante, devia ter a oratória e, por conseguinte, os mestres de eloqüência. Os sofistas, sequiosos de conquistar fama e riqueza no mundo, tornaram-se mestres de eloqüência, de retórica, ensinando aos homens ávidos de poder político a maneira de consegui-lo. Diversamente dos filósofos gregos em geral, o ensinamento dos sofistas não era ideal, desinteressado, mas sobejamente retribuído. O conteúdo desse ensino abraçava todo o saber, a cultura, uma enciclopédia, não para si mesma, mas como meio para fins práticos e empíricos e, portanto, superficial.

A época de ouro da sofística foi - pode-se dizer - a segunda metade do século V a.C. O centro foi Atenas, a Atenas de Péricles, capital democrática de um grande império marítimo e cultural. Os sofistas maiores foram quatro. Os menores foram uma plêiade, continuando até depois de Sócrates, embora sem importância filosófica. Protágoras foi o maior de todos, chefe de escola e teórico da sofística.

 

Moral, Direito e Religião

Em coerência com o ceticismo teórico, destruidor da ciência, a sofística sustenta o relativismo prático, destruidor da moral. Como é verdadeiro o que tal ao sentido, assim é bem o que satisfaz ao sentimento, ao impulso, à paixão de cada um em cada momento. Ao sensualismo, ao empirismo gnosiológicos correspondem o hedonismo e o utilitarismo ético: o único bem é o prazer, a única regra de conduta é o interesse particular. Górgias declara plena indiferença para com todo moralismo: ensina ele a seus discípulos unicamente a arte de vencer os adversários; que a causa seja justa ou não, não lhe interessa. A moral, portanto, - como norma universal de conduta - é concebida pelos sofistas não como lei racional do agir humano, isto é, como a lei que potencia profundamente a natureza humana, mas como um empecilho que incomoda o homem.

Desta maneira, os sofistas estabelecem uma oposição especial entre natureza e lei, quer política, quer moral, considerando a lei como fruto arbitrário, interessado, mortificador, uma pura convenção, e entendendo por natureza, não a natureza humana racional, mas a natureza humana sensível, animal, instintiva. E tentam criticar a vaidade desta lei, na verdade tão mutável conforme os tempos e os lugares, bem como a sua utilidade comumente celebrada: não é verdade - dizem - que a submissão à lei torne os homens felizes, pois grandes malvados, mediante graves crimes, têm freqüentemente conseguido grande êxito no mundo e, aliás, a experiência ensina que para triunfar no mundo, não é mister justiça e retidão, mas prudência e habilidade.

Então a realização da humanidade perfeita, segundo o ideal dos sofistas, não está na ação ética e ascética, no domínio de si mesmo, na justiça para com os outros, mas no engrandecimento ilimitado da própria personalidade, no prazer e no domínio violento dos homens. Esse domínio violento é necessário para possuir e gozar os bens terrenos, visto estes bens serem limitados e ambicionados por outros homens. É esta, aliás, a única forma de vida social possível num mundo em que estão em jogo unicamente forças brutas, materiais. Seria, portanto, um prejuízo a igualdade moral entre os fortes e os fracos, pois a verdadeira justiça conforme à natureza material, exige que o forte, o poderoso, oprima o fraco em seu proveito.

Quanto ao direito e à religião, a posição da sofística é extremista também, naturalmente, como na gnosiologia e na moral. A sofística move uma justa crítica, contra o direito positivo, muitas vezes arbitrário, contingente, tirânico, em nome do direito natural. Mas este direito natural - bem como a moral natural - segundo os sofistas, não é o direito fundado sobre a natureza racional do homem, e sim sobre a sua natureza animal, instintiva, passional. Então, o direito natural é o direito do mais poderoso, pois em uma sociedade em que estão em jogo apenas forças brutas, a força e a violência podem ser o único elemento organizador, o único sistema jurídico admissível.

A respeito da religião e da divindade, os sofistas não só trilham a mesma senda dos filósofos racionalistas gregos do período precedente e posterior, mas - de harmonia com o ceticismo deles - chegam até o extremo, até o ateísmo, pelo menos praticamente. Os sofistas, pois, servem-se da injustiça e do muito mal que existe no mundo, para negar que o mundo seja governado por uma providência divina.

 

Protágoras de Abdera

Protágoras nasceu em Abdera - pátria de Demócrito , cuja escola conheceu - pelo ano 480. Viajou por toda a Grécia, ensinando na sua cidade natal, na Magna Grécia, e especialmente em Atenas, onde teve grande êxito, sobretudo entre os jovens, e foi honrado e procurado por Péricles e Eurípedes. Acusado de ateísmo, teve de fugir de Atenas, onde foi processado e condenado por impiedade, e a sua obra sobre os deuses foi queimada em praça pública. Refugiou-se então na Sicília, onde morreu com setenta anos (410 a.C.), dos quais, quarenta dedicados à sua profissão. Dos princípios de Heráclito e das variações da sensação, conforme as disposições subjetivas dos órgãos, inferiu Protágoras a relatividade do conhecimento. Esta doutrina enunciou-a com a célebre fórmula; o homem é a medida de todas as coisas. Esta máxima significava mais exatamente que de cada homem individualmente considerado dependem as coisas, não na sua realidade física, mas na sua forma conhecida. Subjetivismo, relativismo e sensualismo são as notas características do seu sistema de ceticismo parcial. Platão deu o nome de Protágoras a um dos seus diálogos, e a um outro o de Górgias.

  

Górgias de Leôncio

Górgias nasceu em Abdera, na Sicília, em 480-375 a.C - correlacionado com Empédocles - representa a maior expressão prática da sofística, mediante o ensinamento da retórica; teoricamente, porém, foi um filósofo ocasional, exagerador dos artifícios da dialética eleática. Em 427 foi embaixador de sua pátria em Atenas, para pedir auxílio contra os siracusanos. Ensinou na Sicília, em Atenas, em outras cidades da Grécia, até estabelecer-se em Larissa na Tessália, onde teria morrido com 109 anos de idade. Menos profundo, porém, mais eloqüente que Protágoras, partiu dos princípios da escola eleata e concluiu também pela absoluta impossibilidade do saber. É autor duma obra intitulada "Do não ser", na qual desenvolve as três teses: Nada existe; se alguma coisa existisse não a poderíamos conhecer; se a conhecêssemos não a poderíamos manifestar aos outros. A prova de cada uma destas proposições e um enredo de sofismas, sutis uns, outros pueris.

No Górgias de Platão, Górgias declara que a sua arte produz a persuasão que nos move a crer sem saber, e não a persuasão que nos instrui sobre as razões intrínsecas do objeto em questão. Em suma, é mais ou menos o que acontece com o jornalismo moderno. Para remediar este extremo individualismo, negador dos valores teoréticos e morais, Protágoras recorre à convenção estatal, social, que deveria estabelecer o que é verdadeiro e o que é bem!

 

5.             ARISTÓTELES

A Vida e as Obras

Este grande filósofo grego, filho de Nicômaco, médico de Amintas, rei da Macedônia, nasceu em Estagira, colônia grega da Trácia, no litoral setentrional do mar Egeu, em 384 a.C. Aos dezoito anos, em 367, foi para Atenas e ingressou na academia platônica, onde ficou por vinte anos, até à morte do Mestre. Nesse período estudou também os filósofos pré-platônicos, que lhe foram úteis na construção do seu grande sistema.

Em 343 foi convidado pelo Rei Filipe para a corte de Macedônia, como preceptor do Príncipe Alexandre, então jovem de treze anos. Aí ficou três anos, até à famosa expedição asiática, conseguindo um êxito na sua missão educativo-política, que Platão não conseguiu, por certo, em Siracusa. De volta a Atenas, em 335, treze anos depois da morte de Platão, Aristóteles fundava, perto do templo de Apolo Lício, a sua escola. Daí o nome de Liceu dado à sua escola, também chamada peripatética devido ao costume de dar lições, em amena palestra, passeando nos umbrosos caminhos do ginásio de Apolo. Esta escola seria a grande rival e a verdadeira herdeira da velha e gloriosa academia platônica. Morto Alexandre em 323, desfez-se politicamente o seu grande império e despertaram-se em Atenas os desejos de independência, estourando uma reação nacional, chefiada por Demóstenes. Aristóteles, malvisto pelos atenienses, foi acusado de ateísmo. Preveniu ele a condenação, retirando-se voluntariamente para Eubéia, Aristóteles faleceu, após enfermidade, no ano seguinte, no verão de 322. Tinha pouco mais de 60 anos de idade. A respeito do caráter de Aristóteles, inteiramente recolhido na elaboração crítica do seu sistema filosófico, sem se deixar distrair por motivos práticos ou sentimentais, temos naturalmente muito menos a revelar do que em torno do caráter de Platão, em que, ao contrário, os motivos políticos, éticos, estéticos e místicos tiveram grande influência. Do diferente caráter dos dois filósofos, dependem também as vicissitudes exteriores das duas vidas, mais uniforme e linear a de Aristóteles, variada e romanesca a de Platão. Aristóteles foi essencialmente um homem de cultura, de estudo, de pesquisas, de pensamento, que se foi isolando da vida prática, social e política, para se dedicar à investigação científica. A atividade literária de Aristóteles foi vasta e intensa, como a sua cultura e seu gênio universal. "Assimilou Aristóteles escreve magistralmente Leonel Franca todos os conhecimentos anteriores e acrescentou-lhes o trabalho próprio, fruto de muita observação e de profundas meditações. Escreveu sobre todas as ciências, constituindo algumas desde os primeiros fundamentos, organizando outras em corpo coerente de doutrinas e sobre todas espalhando as luzes de sua admirável inteligência. Não lhe faltou nenhum dos dotes e requisitos que constituem o verdadeiro filósofo: profundidade e firmeza de inteligência, agudeza de penetração, vigor de raciocínio, poder admirável de síntese, faculdade de criação e invenção aliados a uma vasta erudição histórica e universalidade de conhecimentos científicos. O grande estagirita explorou o mundo do pensamento em todas as suas direções. Pelo elenco dos principais escritos que dele ainda nos restam, poder-se-á avaliar a sua prodigiosa atividade literária". A primeira edição completa das obras de Aristóteles é a de Andronico de Rodes pela metade do último século a.C. substancialmente autêntica, salvo uns apócrifos e umas interpolações. Aqui classificamos as obras doutrinais de Aristóteles do modo seguinte, tendo presente a edição de Andronico de Rodes.

I. Escritos lógicos: cujo conjunto foi denominado Órganon mais tarde, não por Aristóteles. O nome, entretanto, corresponde muito bem à intenção do autor, que considerava a lógica instrumento da ciência.

II. Escritos sobre a física: abrangendo a hodierna cosmologia e a antropologia, e pertencentes à filosofia teorética, juntamente com a metafísica.

III. Escritos metafísicos: a Metafísica famosa, em catorze livros. É uma compilação feita depois da morte de Aristóteles mediante seus apontamentos manuscritos, referentes à metafísica geral e à teologia. O nome de metafísica é devido ao lugar que ela ocupa na coleção de Andrônico, que a colocou depois da física.

IV. Escritos morais e políticos: a Ética a Nicômaco, em dez livros, provavelmente publicada por Nicômaco, seu filho, ao qual é dedicada; a Ética a Eudemo, inacabada, refazimento da ética de Aristóteles, devido a Eudemo; a Grande Ética, compêndio das duas precedentes, em especial da segunda; a Política, em oito livros, incompleta.

V. Escritos retóricos e poéticos: a Retórica, em três livros; a Poética, em dois livros, que, no seu estado atual, é apenas uma parte da obra de Aristóteles. As obras de Aristóteles as doutrinas que nos restam - manifestam um grande rigor científico, sem enfeites míticos ou poéticos, exposição e expressão breve e aguda, clara e ordenada, perfeição maravilhosa da terminologia filosófica, de que foi ele o criador.

 

O Pensamento: A Gnosiologia

Segundo Aristóteles, a filosofia é essencialmente teorética: deve decifrar o enigma do universo, em face do qual a atitude inicial do espírito é o assombro do mistério. O seu problema fundamental é o problema do ser, não o problema da vida. O objeto próprio da filosofia, em que está a solução do seu problema, são as essências imutáveis e a razão última das coisas, isto é, o universal e o necessário, as formas e suas relações. Entretanto, as formas são imanentes na experiência, nos indivíduos, de que constituem a essência. A filosofia aristotélica é, portanto, conceptual como a de Platão mas parte da experiência; é dedutiva, mas o ponto de partida da dedução é tirado - mediante o intelecto da experiência. A filosofia, pois, segundo Aristóteles, dividir-se-ia em teorética, prática e poética, abrangendo, destarte, todo o saber humano, racional. A teorética, por sua vez, divide-se em física, matemática e filosofia primeira (metafísica e teologia); a filosofia prática divide-se em ética e política; a poética em estética e técnica. Aristóteles é o criador da lógica, como ciência especial, sobre a base socrático-platônica; é denominada por ele analítica e representa a metodologia científica. Trata Aristóteles os problemas lógicos e gnosiológicos no conjunto daqueles escritos que tomaram mais tarde o nome de Órganon. Limitar-nos-emos mais especialmente aos problemas gerais da lógica de Aristóteles, porque aí está a sua gnosiologia. Foi dito que, em geral, a ciência, a filosofia - conforme Aristóteles, bem como segundo Platão - tem como objeto o universal e o necessário; pois não pode haver ciência em torno do individual e do contingente, conhecidos sensivelmente. Sob o ponto de vista metafísico, o objeto da ciência aristotélica é a forma, como idéia era o objeto da ciência platônica. A ciência platônica e aristotélica são, portanto, ambas objetivas, realistas: tudo que se pode aprender precede a sensação e é independente dela. No sentido estrito, a filosofia aristotélica é dedução do particular pelo universal, explicação do condicionado mediante a condição, porquanto o primeiro elemento depende do segundo. Também aqui se segue a ordem da realidade, onde o fenômeno particular depende da lei universal e o efeito da causa. Objeto essencial da lógica aristotélica é precisamente este processo de derivação ideal, que corresponde a uma derivação real. A lógica aristotélica, portanto, bem como a platônica, é essencialmente dedutiva, demonstrativa, apodíctica. O seu processo característico, clássico, é o silogismo. Os elementos primeiros, os princípios supremos, as verdades evidentes, consoante Platão, são fruto de uma visão imediata, intuição intelectual, em relação com a sua doutrina do contato imediato da alma com as idéias - reminiscência. Segundo Aristóteles, entretanto, de cujo sistema é banida toda forma de inatismo, também os elementos primeiros do conhecimento - conceito e juízos - devem ser, de um modo e de outro, tirados da experiência, da representação sensível, cuja verdade imediata ele defende, porquanto os sentidos por si nunca nos enganam. O erro começa de uma falsa elaboração dos dados dos sentidos: a sensação, como o conceito, é sempre verdadeira. Por certo, metafisicamente, ontologicamente, o universal, o necessário, o inteligível, é anterior ao particular, ao contigente, ao sensível: mas, gnosiologicamente, psicologicamente existe primeiro o particular, o contigente, o sensível, que constituem precisamente o objeto próprio do nosso conhecimento sensível, que é o nosso primeiro conhecimento. Assim sendo, compreende-se que Aristóteles, ao lado e em conseqüência da doutrina de dedução, seja constrangido a elaborar, na lógica, uma doutrina da indução. Por certo, ela não está efetivamente acabada, mas pode-se integrar logicamente segundo o espírito profundo da sua filosofia. Quanto aos elementos primeiros do conhecimento racional, a saber, os conceitos, a coisa parece simples: a indução nada mais é que a abstração do conceito, do inteligível, da representação sensível, isto é, a "desindividualização" do universal do particular, em que o universal é imanente. A formação do conceito é, a posteriori, tirada da experiência. Quanto ao juízo, entretanto, em que unicamente temos ou não temos a verdade, e que é o elemento constitutivo da ciência, a coisa parece mais complicada. Como é que se formam os princípios da demonstração, os juízos imediatamente evidentes, donde temos a ciência? Aristóteles reconhece que é impossível uma indução completa, isto é, uma resenha de todos os casos os fenômenos particulares para poder tirar com certeza absoluta leis universais abrangendo todas as essências. Então só resta possível uma indução incompleta, mas certíssima, no sentido de que os elementos do juízo os conceitos são tirados da experiência, a posteriori, seu nexo, porém, é a priori, analítico, colhido imediatamente pelo intelecto humano mediante a sua evidência, necessidade objetiva.

 

Filosofia de Aristóteles

Partindo como Platão do mesmo problema acerca do valor objetivo dos conceitos, mas abandonando a solução do mestre, Aristóteles constrói um sistema inteiramente original. Os caracteres desta grande síntese são:

1. Observação fiel da natureza - Platão, idealista, rejeitara a experiência como fonte de conhecimento certo. Aristóteles, mais positivo, toma sempre o fato como ponto de partida de suas teorias, buscando na realidade um apoio sólido às suas mais elevadas especulações metafísicas.

2. Rigor no método - Depois de estudas as leis do pensamento, o processo dedutivo e indutivo aplica-os, com rara habilidade, em todas as suas obras, substituindo à linguagem imaginosa e figurada de Platão, em estilo lapidar e conciso e criando uma terminologia filosófica de precisão admirável. Pode considerar-se como o autor da metodologia e tecnologia científicas. Geralmente, no estudo de uma questão, Aristóteles procede por partes: a) começa a definir-lhe o objeto; b) passa a enumerar-lhes as soluções históricas; c) propõe depois as dúvidas; d) indica, em seguida, a própria solução; e) refuta, por último, as sentenças contrárias.

3. Unidade do conjunto - Sua vasta obra filosófica constitui um verdadeiro sistema, uma verdadeira síntese. Todas as partes se compõem, se correspondem, se confirmam.

 

A Teologia

Objeto próprio da teologia é o primeiro motor imóvel, ato puro, o pensamento do pensamento, isto é, Deus, a quem Aristóteles chega através de uma sólida demonstração, baseada sobre a imediata experiência, indiscutível, realidade do vir-a-ser, da passagem da potência ao ato. Este vir-a-ser, passagem da potência ao ato, requer finalmente um não-vir-a-ser, motor imóvel, um motor já em ato, um ato puro enfim, pois, de outra forma teria que ser movido por sua vez. A necessidade deste primeiro motor imóvel não é absolutamente excluída pela eternidade do vir-a-ser, do movimento, do mundo. Com efeito, mesmo admitindo que o mundo seja eterno, isto é, que não tem princípio e fim no tempo, enquanto é vir-a-ser, passagem da potência ao ato, fica eternamente inexplicável, contraditório, sem um primeiro motor imóvel, origem extra-temporal, causa absoluta, razão metafísica de todo devir. Deus, o real puro, é aquilo que move sem ser movido; a matéria, o possível puro, é aquilo que é movido, sem se mover a si mesmo.Da análise do conceito de Deus, concebido como primeiro motor imóvel, conquistado através do precedente raciocínio, Aristóteles, pode deduzir logicamente a natureza essencial de Deus, concebido, antes de tudo, como ato puro, e, consequentemente, como pensamento de si mesmo. Deus é unicamente pensamento, atividade teorética, no dizer de Aristóteles, enquanto qualquer outra atividade teria fim extrínseco, incompatível com o ser perfeito, auto-suficiente. Se o agir, o querer têm objeto diverso do sujeito agente e "querente", Deus não pode agir e querer, mas unicamente conhecer e pensar, conhecer a si próprio e pensar em si mesmo. Deus é, portanto, pensamento de pensamento, pensamento de si, que é pensamento puro. E nesta autocontemplação imutável e ativa, está a beatitude divina.

Se Deus é mera atividade teorética, tendo como objeto unicamente a própria perfeição, não conhece o mundo imperfeito, e menos ainda opera sobre ele. Deus não atua sobre o mundo, voltando-se para ele, com o pensamento e a vontade; mas unicamente como o fim último, atraente, isto é, como causa final, e, por conseqüência, e só assim, como causa eficiente e formal

(exemplar). De Deus depende a ordem, a vida, a racionalidade do mundo; ele, porém, não é criador, nem providência do mundo. Em Aristóteles o pensamento grego conquista logicamente a transcendência de Deus; mas, no mesmo tempo, permanece o dualismo, que vem anular aquele mesmo Absoluto a que logicamente chegara, para dar uma explicação filosófica da relatividade do mundo pondo ao seu lado esta realidade independente dele.

 

A Moral

Aristóteles trata da moral em três Éticas, de que se falou quando das obras dele. Consoante sua doutrina metafísica fundamental, todo ser tende necessariamente à realização da sua natureza, à atualização plena da sua forma: e nisto está o seu fim, o seu bem, a sua felicidade, e, por conseqüência, a sua lei. Visto ser a razão a essência característica do homem, realiza ele a sua natureza vivendo racionalmente e senso disto consciente. E assim consegue ele a felicidade e a virtude, isto é, consegue a felicidade mediante a virtude, que é precisamente uma atividade conforme à razão, isto é, uma atividade que pressupõe o conhecimento racional. Logo, o fim do homem é a felicidade, a que é necessária à virtude, e a esta é necessária a razão. A característica fundamental da moral aristotélica é, portanto, o racionalismo, visto ser a virtude ação consciente segundo a razão, que exige o conhecimento absoluto, metafísico, da natureza e do universo, natureza segundo a qual e na qual o homem deve operar.

As virtudes éticas, morais, não são mera atividade racional, como as virtudes intelectuais, teoréticas; mas implicam, por natureza, um elemento sentimental, afetivo, passional, que deve ser governado pela razão, e não pode, todavia, ser completamente resolvido na razão. A razão aristotélica governa, domina as paixões, não as aniquila e destrói, como queria o ascetismo platônico. A virtude ética não é, pois, razão pura, mas uma aplicação da razão; não é unicamente ciência, mas uma ação com ciência.

Uma doutrina aristotélica a respeito da virtude doutrina que teve muita doutrina prática, popular, embora se apresente especulativamente assaz discutível é aquela pela qual a virtude é precisamente concebida como um justo meio entre dois extremos, isto é, entre duas paixões opostas: porquanto o sentido poderia esmagar a razão ou não lhe dar forças suficientes. Naturalmente, este justo meio, na ação de um homem, não é abstrato, igual para todos e sempre; mas concreto, relativo a cada qual, e variável conforme as circunstâncias, as diversas paixões predominantes dos vários indivíduos. Pelo que diz respeito à virtude, tem, ao contrário, certamente, maior valor uma outra doutrina aristotélica: precisamente a da virtude concebida como hábito racional. Se a virtude é, fundamentalmente, uma atividade segundo a razão, mais precisamente é ela um hábito segundo a razão, um costume moral, uma disposição constante, reta, da vontade, isto é, a virtude não é inata, como não é inata a ciência; mas adquiri-se mediante a ação, a prática, o exercício e, uma vez adquirida, estabiliza-se, mecaniza-se; torna-se quase uma segunda natureza e, logo, torna-se de fácil execução - como o vício.

Como já foi mencionado, Aristóteles distingue duas categorias fundamentais de virtudes: as éticas, que constituem propriamente o objeto da moral, e as dianoéticas, que a transcendem. É uma distinção e uma hierarquia, que têm uma importância essencial em relação a toda a filosofia e especialmente à moral. As virtudes intelectuais, teoréticas, contemplativas, são superiores às virtudes éticas, práticas, ativas. Noutras palavras, Aristóteles sustenta o primado do conhecimento, do intelecto, da filosofia, sobre a ação, a vontade, a política.

 

A Política

A política aristotélica é essencialmente unida à moral, porque o fim último do estado é a virtude, isto é, a formação moral dos cidadãos e o conjunto dos meios necessários para isso. O estado é um organismo moral, condição e complemento da atividade moral individual, e fundamento primeiro da suprema atividade contemplativa. A política, contudo, é distinta da moral, porquanto esta tem como objetivo o indivíduo, aquela a coletividade. A ética é a doutrina moral individual, a política é a doutrina moral social. Desta ciência trata Aristóteles precisamente na Política, de que acima se falou.

O estado, então, é superior ao indivíduo, porquanto a coletividade é superior ao indivíduo, o bem comum superior ao bem particular. Unicamente no estado efetua-se a satisfação de todas as necessidades, pois o homem, sendo naturalmente animal social, político, não pode realizar a sua perfeição sem a sociedade do estado.

Visto que o estado se compõe de uma comunidade de famílias, assim como estas se compõem de muitos indivíduos, antes de tratar propriamente do estado será mister falar da família, que precede cronologicamente o estado, como as partes precedem o todo. Segundo Aristóteles, a família compõe-se de quatro elementos: os filhos, a mulher, os bens, os escravos; além, naturalmente, do chefe a que pertence a direção da família. Deve ele guiar os filhos e as mulheres, em razão da imperfeição destes. Deve fazer frutificar seus bens, porquanto a família, além de um fim educativo, tem também um fim econômico. E, como ao estado, é-lhe essencial a propriedade, pois os homens têm necessidades materiais. No entanto, para que a propriedade seja produtora, são necessários instrumentos inanimados e animados; estes últimos seriam os escravos.

Aristóteles não nega a natureza humana ao escravo; mas constata que na sociedade são necessários também os trabalhos materiais, que exigem indivíduos particulares, a que fica assim tirada fatalmente a possibilidade de providenciar a cultura da alma, visto ser necessário, para tanto, tempo e liberdade, bem como aptas qualidades espirituais, excluídas pelas próprias características qualidades materiais de tais indivíduos. Daí a escravidão.

Vejamos, agora, o estado em particular. O estado surge, pelo fato de ser o homem um animal naturalmente social, político. O estado provê, inicialmente, a satisfação daquelas necessidades materiais, negativas e positivas, defesa e segurança, conservação e engrandecimento, de outro modo irrealizáveis. Mas o seu fim essencial é espiritual, isto é, deve promover a virtude e, consequentemente, a felicidade dos súditos mediante a ciência.

Compreende-se, então, como seja tarefa essencial do estado a educação, que deve desenvolver harmônica e hierarquicamente todas as faculdades: antes de tudo as espirituais, intelectuais e, subordinadamente, as materiais, físicas. O fim da educação é formar homens mediante as artes liberais, importantíssimas a poesia e a música, e não máquinas, mediante um treinamento profissional. Eis porque Aristóteles, como Platão, condena o estado que, ao invés de se preocupar com uma pacífica educação científica e moral, visa a conquista e a guerra. E critica, dessa forma, a educação militar de Esparta, que faz da guerra a tarefa precípua do estado, e põe a conquista acima da virtude, enquanto a guerra, como o trabalho, são apenas meios para a paz e o lazer sapiente.

Não obstante a sua concepção ética do estado, Aristóteles, diversamente de Platão, salva o direito privado, a propriedade particular e a família. O comunismo como resolução total dos indivíduos e dos valores no estado é fantástico e irrealizável. O estado não é uma unidade substancial, e sim

uma síntese de indivíduos substancialmente distintos. Se quiser a unidade absoluta, será mister reduzir o estado à família e a família ao indivíduo; só este último possui aquela unidade substancial que falta aos dois precedentes. Reconhece Aristóteles a divisão platônica das castas, e, precisamente, duas classes reconhece: a dos homens livres, possuidores, isto é, a dos cidadãos e a dos escravos, dos trabalhadores, sem direitos políticos.

Quanto à forma exterior do estado, Aristóteles distingue três principais: a monarquia, que é o governo de um só, cujo caráter e valor estão na unidade, e cuja degeneração é a tirania; a aristocracia, que é o governo de poucos, cujo caráter e valor estão na qualidade, e cuja degeneração é a oligarquia; a democracia, que é o governo de muitos, cujo caráter e valor estão na liberdade, e cuja degeneração é a demagogia. As preferências de Aristóteles vão para uma forma de república democrático-intelectual, a forma de governo clássica da Grécia, particularmente de Atenas. No entanto, com o seu profundo realismo, reconhece Aristóteles que a melhor forma de governo não é abstrata, e sim concreta: deve ser relativa, acomodada às situações históricas, às circunstâncias de um determinado povo. De qualquer maneira a condição indispensável para uma boa constituição, é que o fim da atividade estatal deve ser o bem comum e não a vantagem de quem governa despoticamente.

 

A Religião e a Arte

Com Aristóteles afirma-se o teísmo do ato puro. No entanto, este Deus, pelo seu efetivo isolamento do mundo, que ele não conhece, não cria, não governa, não está em condições de se tornar objeto de religião, mais do que as transcendentes idéias platônicas. E não fica nenhum outro objeto religioso. Também Aristóteles, como Platão, se exclui filosoficamente o antropomorfismo, não exclui uma espécie de politeísmo, e admite, ao lado do Ato Puro e a ele subordinado, os deuses astrais, isto é, admite que os corpos celestes são animados por espíritos racionais. Entretanto, esses seres divinos não parecem e não podem ter função religiosa e sem física.

Não obstante esta concepção filosófica da divindade, Aristóteles admite a religião positiva do povo, até sem correção alguma. Explica e justifica a religião positiva, tradicional, mítica, como obra política para moralizar o povo, e como fruto da tendência humana para as representações antropomórficas; e não diz que ela teria um fundamento racional na verdade filosófica da existência da divindade, a que o homem se teria facilmente elevado através do espetáculo da ordem celeste.

Aristóteles como Platão considera a arte como imitação, de conformidade com o fundamental realismo grego. Não, porém, imitação de uma imitação, como é o fenômeno, o sensível, platônicos; e sim imitação direta da própria idéia, do inteligível imanente no sensível, imitação da forma imanente na matéria. Na arte, esse inteligível, universal é encarnado, concretizado num sensível, num particular e, destarte, tornando intuitivo, graças ao artista. Por isso, Aristóteles considera a arte a poesia de Homero que tem por conteúdo o universal, o imutável, ainda que encarnado fantasticamente num particular, como superior à história e mais filosófica do que a história de Heródoto que tem como objeto o particular, o mutável, seja embora real. O objeto da arte não é o que aconteceu uma vez como é o caso da história , mas o que por natureza deve, necessária e universalmente, acontecer. Deste seu conteúdo inteligível, universal, depende a eficácia espiritual pedagógica, purificadora da arte.

Se bem que a arte seja imitação da realidade no seu elemento essencial, a forma, o inteligível, este inteligível recebe como que uma nova vida através da fantasia criadora do artista, isto precisamente porque o inteligível, o universal, deve ser encarnado, concretizado pelo artista num sensível, num particular. As leis da obra de arte serão, portanto, além de imitação do universal verossimilhança e necessidade coerência interior dos elementos da representação artística, íntimo sentimento do conteúdo, evidência e vivacidade de expressão. A arte é, pois, produção mediante a imitação; e a diferença entre as várias artes é estabelecida com base no objeto ou no instrumento de tal imitação.

 

A Metafísica

A metafísica aristotélica é "a ciência do ser como ser, ou dos princípios e das causas do ser e de seus atributos essenciais". Ela abrange ainda o ser imóvel e incorpóreo, princípio dos movimentos e das formas do mundo, bem como o mundo mutável e material, mas em seus aspectos universais e necessários. Exporemos portanto, antes de tudo, as questões gerais da metafísica, para depois chegarmos àquela que foi chamada, mais tarde, metafísica especial; tem esta como objeto o mundo que vem-a-ser - natureza e homem - e culmina no que não pode vir-a-ser, isto é, Deus. Podem-se reduzir fundamentalmente a quatro as questões gerais da metafísica

aristotélica: potência e ato, matéria e forma, particular e universal, movido e motor. A primeira e a última abraçam todo o ser, a segunda e a terceira todo o ser em que está presente a matéria.

I. A doutrina da potência e do ato é fundamental na metafísica aristotélica: potência significa possibilidade, capacidade de ser, não-ser atual; e ato significa realidade, perfeição, ser efetivo. Todo ser, que não seja o Ser perfeitíssimo, é portanto uma síntese - um sínolo - de potência e de ato, em diversas proporções, conforme o grau de perfeição, de realidade dos vários seres. Um ser desenvolve-se, aperfeiçoa-se, passando da potência ao ato; esta passagem da potência ao ato é atualização de uma possibilidade, de uma potencialidade anterior. Esta doutrina fundamental da potência e do ato é aplicada - e desenvolvida - por Aristóteles especialmente quando da doutrina da matéria e da forma, que representam a potência e o ato no mundo, na natureza em que vivemos. Desta doutrina da matéria e da forma, vamos logo falar.

II. Aristóteles não nega o vir-a-ser de Heráclito, nem o ser de Parmênides, mas une-os em uma síntese conclusiva, já iniciada pelos últimos pré-socráticos e grandemente aperfeiçoada por Demócrito e Platão. Segundo Aristóteles, a mudança, que é intuitiva, pressupõe uma realidade imutável, que é de duas espécies. Um substrato comum, elemento imutável da mudança, em que a mudança se realiza; e as determinações que se realizam neste substrato, a essência, a natureza que ele assume. O primeiro elemento é chamado matéria (prima), o segundo forma (substancial). O primeiro é potência, possibilidade de assumir várias formas, imperfeição; o segundo é atualidade - realizadora, especificadora da matéria, perfeição. A síntese - o sinolo - da matéria e da forma constitui a substância, e esta, por sua vez, é o substrato imutável, em que se sucedem

os acidentes, as qualidades acidentais. A mudança, portanto, consiste ou na sucessão de várias formas na mesma essência, forma concretizada da matéria, que constitui precisamente a substância.

A matéria sem forma, a pura matéria, chamada matéria-prima, é um mero possível, não existe por si, é um absolutamente interminado, em que a forma introduz as determinações. A matéria aristotélica, porém, não é o puro não-ser de Platão, mero princípio de decadência, pois ela é também condição indispensável para concretizar a forma, ingrediente necessário para a existência da realidade material, causa concomitante de todos os seres reais.

Então não existe, propriamente, a forma sem a matéria, ainda que a forma seja princípio de atuação e determinação da própria matéria. Com respeito à matéria, a forma é, portanto, princípio de ordem e finalidade, racional, inteligível. Diversamente da idéia platônica, a forma aristotélica não é separada da matéria, e sim imanente e operante nela. Ao contrário, as formas aristotélicas são universais, imutáveis, eternas, como as idéias platônicas.

Os elementos constitutivos da realidade são, portanto, a forma e a matéria. A realidade, porém, é composta de indivíduos, substâncias, que são uma síntese - um sínolo - de matéria e forma. Por conseqüência, estes dois princípios não são suficientes para explicar o surgir dos indivíduos e das substâncias que não podem ser atuados - bem como a matéria não pode ser atuada - a não ser por um outro indivíduo, isto é, por uma substância em ato. Daí a necessidade de um terceiro princípio, a causa eficiente, para poder explicar a realidade efetiva das coisas. A causa eficiente, por sua vez, deve operar para um fim, que é precisamente a síntese da forma e da matéria, produzindo esta síntese o indivíduo. Daí uma quarta causa, a causa final, que dirige a causa eficiente para a atualização da matéria mediante a forma.

III. Mediante a doutrina da matéria e da forma, Aristóteles explica o indivíduo, a substância física, a única realidade efetiva no mundo, que é precisamente síntese - sínolo - de matéria e de forma. A essência - igual em todos os indivíduos de uma mesma espécie - deriva da forma; a individualidade, pela qual toda substância é original e se diferencia de todas as demais, depende da matéria. O indivíduo é, portanto, potência realizada, matéria enformada, universal particularizado. Mediante esta doutrina é explicado o problema do universal e do particular, que tanto atormenta Platão; Aristóteles faz o primeiro - a idéia - imanente no segundo - a matéria, depois de ter eficazmente criticado o dualismo platônico, que fazia os dois elementos transcendentes e exteriores um ao outro.

IV. Da relação entre a potência e o ato, entre a matéria e a forma, surge o movimento, a mudança, o vir-a-ser, a que é submetido tudo que tem matéria, potência. A mudança é, portanto, a realização do possível. Esta realização do possível, porém, pode ser levada a efeito unicamente por um ser que já está em ato, que possui já o que a coisa movida deve vir-a-ser, visto ser impossível que o menos produza o mais, o imperfeito o perfeito, a potência o ato, mas vice-versa. Mesmo que um ser se mova a si mesmo, aquilo que move deve ser diverso daquilo que é movido, deve ser composto de um motor e de uma coisa movida. Por exemplo, a alma é que move o corpo. O motor pode ser unicamente ato, forma; a coisa movida - enquanto tal - pode ser unicamente potência, matéria. Eis a grande doutrina aristotélica do motor e da coisa movida, doutrina que culmina no motor primeiro, absolutamente imóvel, ato puro, isto é, Deus.

 

A Psicologia

Objeto geral da psicologia aristotélica é o mundo animado, isto é, vivente, que tem por princípio a alma e se distingue essencialmente do mundo inorgânico, pois, o ser vivo diversamente do ser inorgânico possui internamente o princípio da sua atividade, que é precisamente a alma, forma do corpo. A característica essencial e diferencial da vida e da planta, que tem por princípio a alma vegetativa, é a nutrição e a reprodução. A característica da vida animal, que tem por princípio a alma sensitiva, é precisamente a sensibilidade e a locomoção. Enfim, a característica da vida do homem, que tem por princípio a alma racional, é o pensamento. Todas estas três almas são objeto da psicologia aristotélica. Aqui nos limitamos à psicologia racional, que tem por objeto específico o homem, visto que a alma racional cumpre no homem também as funções da vida sensitiva e vegetativa; e, em geral, o princípio superior cumpre as funções do princípio inferior. De sorte que, segundo Aristóteles diversamente de Platão todo ser vivo tem uma só alma, ainda que haja nele funções diversas faculdades diversas porquanto se dão atos diversos. E

assim, conforme Aristóteles, diversamente de Platão, o corpo humano não é obstáculo, mas instrumento da alma racional, que é a forma do corpo.

O homem é uma unidade substancial de alma e de corpo, em que a primeira cumpre as funções de forma em relação à matéria, que é constituída pelo segundo. O que caracteriza a alma humana é a racionalidade, a inteligência, o pensamento, pelo que ela é espírito. Mas a alma humana desempenha também as funções da alma sensitiva e vegetativa, sendo superior a estas. Assim, a alma humana, sendo embora uma e única, tem várias faculdades, funções, porquanto se manifesta efetivamente com atos diversos. As faculdades fundamentais do espírito humano são duas: teorética e prática, cognoscitiva e operativa, contemplativa e ativa. Cada uma destas, pois, se desdobra em dois graus, sensitivo e intelectivo, se tiver presente que o homem é um animal racional, quer dizer, não é um espírito puro, mas um espírito que anima um corpo animal.

O conhecimento sensível, a sensação, pressupões um fato físico, a saber, a ação do objeto sensível sobre o órgão que sente, imediata ou à distância, através do movimento de um meio. Mas o fato físico transforma-se num fato psíquico, isto é, na sensação propriamente dita, em virtude da específica faculdade e atividade sensitivas da alma. O sentido recebe as qualidades materiais sem a matéria delas, como a cera recebe a impressão do selo sem a sua matéria. A sensação embora limitada é objetiva, sempre verdadeira com respeito ao próprio objeto; a falsidade, ou a possibilidade da falsidade, começa com a síntese, com o juízo. O sensível próprio é percebido por um só sentido, isto é, as sensações específicas são percebidas, respectivamente, pelos vários sentidos; o sensível comum, as qualidades gerais das coisas tamanho, figura, repouso, movimento, etc. são percebidas por mais sentidos. O senso comum é uma faculdade interna, tendo a função de coordenar, unificar as várias sensações isoladas, que a ele confluem, e se tornam, por isso, representações, percepções. Acima do conhecimento sensível está o conhecimento inteligível, especificamente diverso do primeiro. Aristóteles aceita a essencial distinção platônica entre sensação e pensamento, ainda que rejeite o inatismo platônico, contrapondo-lhe a concepção do intelecto como tabula rasa, sem idéias inatas. Objeto do sentido é o particular, o contingente, o mutável, o material. Objeto do intelecto é o universal, o necessário, o imutável, o imaterial, as essências, as formas das coisas e os princípios primeiros do ser, o ser absoluto. Por conseqüência, a alma humana, conhecendo o imaterial, deve ser espiritual e, quanto a tal, deve ser imperecível.

Analogamente às atividades teoréticas, duas são as atividades práticas da alma: apetite e vontade. O apetite é a tendência guiada pelo conhecimento sensível, e é próprio da alma animal. Esse apetite é concebido precisamente como sendo um movimento finalista, dependente do sentimento, que, por sua vez depende do conhecimento sensível. A vontade é o impulso, o apetite guiado pela razão, e é própria da alma racional. Como se vê, segundo Aristóteles, a atividade fundamental da alma é teorética, cognoscitiva, e dessa depende a prática, ativa, no grau sensível bem como no grau inteligível.

N  

A Cosmologia

Uma questão geral da física aristotélica, como filosofia da natureza, é a análise dos vários tipos de movimento, mudança, que já sabemos ser passagem da potência ao ato, realização de uma possibilidade. Aristóteles distingue quatro espécies de movimentos:

1. Movimento substancial - mudança de forma, nascimento e morte;

2. Movimento qualitativo - mudança de propriedade;

3. Movimento quantitativo - acrescimento e diminuição;

4. Movimento espacial - mudança de lugar, condicionando todas as demais espécies de mudança.

Outra especial e importantíssima questão da física aristotélica é a concernente ao espaço e ao tempo, em torno dos quais fez ele investigações profundas. O espaço é definido como sendo o limite do corpo, isto é, o limite imóvel do corpo "circundante" com respeito ao corpo circundado. O tempo é definido como sendo o número - isto é, a medida - do movimento segundo a razão, o aspecto, do "antes" e do "depois". Admitidas as precedentes concepções de espaço e de tempo - como sendo relações de substâncias, de fenômenos - é evidente que fora do mundo não há espaço nem tempo: espaço e tempo vazios são impensáveis.

Uma terceira questão fundamental da filosofia natural de Aristóteles é a concernente ao teleologismo - finalismo - por ele propugnado com base na finalidade, que ele descortina em a natureza.  "A natureza faz, enquanto possível, sempre o que é mais belo". Fim de todo devir é o desenvolvimento da potência ao ato, a realização da forma na matéria. Quanto às ciências químicas, físicas e especialmente astronômicas, as doutrinas aristotélicas têm apenas um valor histórico, e são logicamente separáveis da sua filosofia, que tem um valor teorético. Especialmente célebre é a sua doutrina astronômica geocêntrica, que prestará a estrutura física à Divina Comédia de Dante Alighieri.

 

Juízo sobre Aristóteles

É difícil aquilatar em sua justa medida o valor de Aristóteles. A influência intelectual por ele até hoje exercida sobre o pensamento humano e à qual se não pode comparar a de nenhum outro pensador dá-nos, porém, uma idéia da envergadura de seu gênio excepcional. Criador da lógica,

autor do primeiro tratado de psicologia científica, primeiro escritor da história da filosofia, patriarca das ciências naturais, metafísico, moralista, político, ele é o verdadeiro fundador da ciência moderna e "ainda hoje está presente com sua linguagem científica não somente às nossas cogitações, senão também à expressão dos sentimentos e das idéias na vida comum e habitual".

Nem por isso podemos deixar de apontar as lacunas do seu sistema. Sua moral, sem obrigação nem sanção, é defeituosa e mais gravemente defeituosa ainda que a teodicéia, sobretudo na parte que trata das relações de Deus com o mundo. O dualismo primitivo e irredutível entre Deus, ato puro, e a matéria, princípio potencial, é, na própria teoria aristotélica, uma verdadeira contradição e deixa subsistir, como enigma insolúvel e inexplicável, a existência dos seres fora de Deus.

 

Vista Retrospectiva

Com Sócrates entre a filosofia em seu caminho definitivo. O problema do objeto e da possibilidade da ciência é posto em seus verdadeiros termos e resolvido, nas suas linhas gerais, pela doutrina do conceito. Platão dá um passo além, procurando determinar a relação entre o conceito e a realidade, mas encalha, dum lado, nas dificuldades insolúveis de um realismo exagerado; de outro, nas extravagâncias dum idealismo extremo. Aristóteles, com o seu espírito positivo e observador, retoma o mesmo problema no pé em que o pusera Platão e dá-lhe, pela teoria da abstração e da inteligência ativa, uma solução satisfatória e definitiva nos grandes lineamentos. Em torno desta questão fundamental, que entende com a metafísica, a psicologia e a lógica, se vão desenvolvendo harmoniosamente as outras partes da filosofia até constituírem em Aristóteles esta grandiosa síntese do saber universal, o mais precioso legado da civilização grega que declinava à civilização ocidental que surgia.

 

6.             FILOSOFIA HELENÍSTICA

 

Cínicos

Antístenes (445 – 360 a.C)

Diógenes (404-323 a.C)

  

Epicurismo

 

Para Epicuro o bem soberano é o prazer (ausência de dor, de mal-estar, sentir-se bem consigo mesmo). Para isso é necessário banir os objetos de medo e controlar os objetos do desejo.Aquele que conseguir fazê-lo desfrutará de uma deliciosa ataraxia (ausência de perturbação).

O mundo é feito de átomos (partículas infinitamente pequenas, indivisíveis, indestrutíveis, que caem eternamente no vazio). Tudo é uma questão de algum fluxo de átomos.

A canônica epicurista decorre da física. Ela compreende 3 critérios: a sensação ( que proporciona o existente. Todos os corpos  emitem sem cessar partículas tênues à sua imagem – as eidôla – simulacros), a prolepse (ou antecipação) – espécie de coletânea, na alma, das sensações que a afetaram anteriormente; e a afeição ( o prazer e a dor  que nos informam sobre o que é conforme à natureza ou contra ela).

A vida deve ser convenientemente regrada. Este é o objetivo da ética.

Segundo Epicuro, temos 3 tipos de prazeres:

1° os naturais e necessários (comer quando se tem fome)

2° naturais, porém não necessários (comer excessivamente)

3° nem naturais, nem necessários (fumo, luxo)

Epicuro afirmava que a política é uma fonte de agitação, perda de tempo agradável. Afirmava que o homem não é nem sociável, nem afável. Para ele a amizade está entre as maiores felicidades de nossa vida.

O epicurismo admitia todos: homens, mulheres e até escravos.

O objetivo do epicurismo era libertar as pessoas do medo da vida. Ele ensinava as pessoas a buscar a felicidade e a realização em suas vidas privadas.

 

Arístipo (435-366 a.C)

Epicuro (341-270 a.C)

 

Estoicismo

Em seu conjunto, o estoicismo pode-se dividir em três períodos: um período antigo ou ético, um período médio ou eclético, um período recente ou religioso. Os dois últimos, bastante divergentes do estoicismo clássico.

O fundador da antiga escola estóica é Zenão de Citium (334-262 a.C., mais ou menos). Seu pai, mercador, leva para ele, de Atenas, uns tratados socráticos, que lhe despertam o entusiasmo para com os estudos filosóficos. Aos vinte e dois anos vai para Atenas; aí - perdidos seus bens - dedica-se à filosofia, freqüentando por algum tempo várias escolas e mestres, entre os quais o cínico Crates. Finalmente, pelo ano 300, funda a sua escola, que se chamou estóica, do lugar onde ele costumava ensinar: pórtico em grego, stoá. Iniciou, juntamente com a atividade didática, a de escritor. Em seus escritos já se encontram a clássica divisão estóica da filosofia em lógica, física e ética, a primazia da ética e a união de filosofia e vida.

A escola estóica média ou eclética, surge pela influência de outras escolas e para responder às objeções dessas escolas. Podem-se, pois, agrupar na escola estóica nova ou religiosa os que entendiam absolutamente a filosofia, o estoicismo, não como ciência, metafísica, mas como uma missão e uma prática religiosa, sacerdotal.

Consideravam o mundo um Todo vivo, uno e pleno, sem lugar para indeterminação. Corporalismo - tudo é corpo, nesse conjunto de individualidades ligadas entre si por uma simpatia universal que faz dele um organismo. Difundida por toda parte, a alma do mundo anima-o até na mais ínfima das suas partes. A cada parte é  atribuída uma função com vista ao bem superior do Todo.

Só são ditos incorpóreos o espaço, o tempo, o vazio e certa categoria, o leketon, isto é, o aquilo-de-que-se-fala, não sendo considerados como existentes reais.

O conhecimento é uma operação imanente, corporal, como o é seu objeto.

Não há acaso, tudo é providencial.

O conceito é uma palavra vazia.

Da física estóica decorre um otimismo fundamental. Para ser feliz basta seguir a natureza (não se deixar levar sem refletir por todos os movimentos que me agitam). A prática da virtude permitirá o alcance da apatheia.

Comportar-se como estóico é compreender que, como as coisas não podem ser de outro modo, pois são organizadas divinamente, o melhor ainda é acomodar-se a elas e, por conseguinte, prevê-las na medida do possível, a fim de as suportar com mais boa vontade.

Deus não está fora do mundo e separado dele, mas totalmente impregnado no mundo – ele é a mente do mundo, a auto-consciência do mundo.

Já que somos um todo com a natureza, e não existe nenhum reino superior, está fora de questão nossa ‘ida’ para algum lugar quando morrermos.

Os estóicos acreditavam que as emoções são juízos e,portanto, cognitivas: são formas de conhecimento.

 

O Pensamento: Gnosiologia e Metafísica

O estoicismo não apresenta o fenômeno de um grande filósofo, seguido por uma série de discípulos mais ou menos originais, mas sim uma turma bastante uniforme de pensadores medíocres. No dizer dos estóicos, a tarefa essencial da filosofia é a solução do problema da vida; em outras palavras, a filosofia é cultivada exclusivamente em vista da moral, para firmar a virtude e, logo, para assegurar ao homem a felicidade. Entende-se, pois, como a filosofia estóica chega a ser substancialmente pragmatista e, por conseguinte, no fundo, acaba não sendo mais filosofia. E compreende-se o seu vasto êxito em todos os tempos, amiúde apresentando-se como a filosofia dos não filósofos que têm pretensões filosóficas, moralizadoras, rigoristas. Não obstante esse absorvente moralismo, os estóicos distinguem na filosofia uma lógica, uma física, uma ética. Na lógica trata-se da gnosiologia; a física iguala a metafísica; a ética é o fim último e único de toda a filosofia, inclusive da política e da religião.

Os estóicos dividem a lógica em dialética e retórica, em correspondência com o discurso interior e exterior. A mente humana é concebida como uma tabula rasa. Como em Aristóteles, o conhecimento parte dos dados imediatos do sentido; mas, diversamente de Aristóteles, o conhecimento é limitado ao âmbito dos sentidos, não obstante as repetidas e múltiplas declarações estóicas em louvor da razão. O conhecimento intelectual nada mais pode ser que uma combinação, uma complicação quantitativa de elementos sensíveis. O conceito, pois, é destruído, seguindo-se o aniquilamento da ciência, da metafísica e, logo, também da moral.

A metafísica estóica reduz-se à física, porquanto é radicalmente materialista: se tudo é material, toda atividade é movimento, devem-se conceber materialisticamente também Deus, a alma, as propriedades das coisas. Esta matéria está em perpétuo vir-a-ser, conforme a concepção de Heráclito; e a lei desse princípio material só pode ser, naturalmente, uma necessidade mecânica, à maneira de Demócrito.

Devendo os estóicos, todavia, fornecer alguma base à sua ética do dever, e dar uma explicação à razão, que se manifesta no mundo, em especial no homem, incoerentemente declaram racional o fogo - substância metafísica da realidade -, atribuem-lhe arbitrariamente os atributos divinos da sabedoria e da providência, imaginam-no como espírito ordenador, razão da vida, fazendo emergir todas as qualidades da matéria, como o Sol faz brotar da semente a planta, segundo uma ordem teológica. Deus, providência, espírito, ordem são afirmados ao lado dos conceitos opostos de fado, destino, necessidade, mecanicismo. Como se vê, a metafísica dos estóicos é uma metafísica elementar, decadente, contraditória, e os estóicos não são filósofos, metafísicos, mas pragmatistas, moralistas, inteiramente absorvidos na prática, na ética.

 

A Moral e a Política

No pensamento dos estóicos, o fim supremo, o único bem do homem, não é o prazer, a felicidade, mas a virtude; não é concebida como necessária condição para alcançar a felicidade, e sim como sendo ela própria um bem imediato. Com o desenvolvimento do estoicismo, todavia, a virtude acaba por se tornar meio para a felicidade da tranqüilidade, da serenidade, que nasce da virtude negativa da apatia, da indiferença universal. A felicidade do homem virtuoso é a libertação de toda perturbação, a tranqüilidade da alma, a independência interior, a autarquia.

Como o bem absoluto e único é a virtude, assim o mal único e absoluto é o vício. E não tanto pelo dano que pode acarretar ao vicioso, quanto pela sua irracionalidade e desordem intrínseca, ainda que se acabe por repudiá-lo como perturbador da indiferença, da serenidade, da autarquia do sábio. Tudo aquilo que não é virtude nem vício, não é nem bem nem mal, mas apenas indiferença; pode tornar-se bem se for unido com a virtude, mal se for ligado ao vício; há o vício quando à indiferença se ajunta a paixão, isto é, uma emoção, uma tendência irracional, como geralmente acontece.

A paixão, na filosofia estóica, é sempre e substancialmente má; pois é movimento irracional, morbo e vício da alma - quer se trate de ódio, quer se trate de piedade. De tal forma, a única atitude do sábio estóico deve ser o aniquilamento da paixão, até a apatia. O ideal ético estóico não é o domínio racional da paixão, mas a sua destruição total, para dar lugar unicamente à razão: maravilhoso ideal de homem sem paixão, que anda como um deus entre os homens. Daí a guerra justificada do estoicismo contra o sentimento, a emoção, a paixão, donde derivam o desejo, o vício, a dor, que devem ser aniquilados.

A virtude estóica é, no fundo, a indiferença e a renúncia a todos os bens do mundo que não dependem de nós, e cujo curso é fatalmente determinado. Por conseguinte, indiferença e renúncia a tudo, salvo e pensamento, a sabedoria, a virtude, que constituem os únicos bens verdadeiros: indiferença e renúncia à vida e à morte, à saúde e à doença, ao repouso e à fadiga, à riqueza e à pobreza, às honras e à obscuridade, numa palavra, ao prazer e ao sofrimento - pois o prazer é julgado insana vaidade da alma. Dada a indiferença estóica do suicídio como voluntário e moral afastamento do mundo; isto não se concilia, porém, com a virtude da fortaleza que o estoicismo reconhece e louva, e nem se pode explicar racionalmente o suicídio, se a ordem do universo é racional, como precisamente afirmam os estóicos.

O estóico pratica esta indiferença e renúncia para não ser perturbado, magoado pela possível e freqüente carência dos bens terrenos, e para não perder, de tal maneira, a serenidade, a paz, o sossego, que são o verdadeiro, supremo, único bem da alma. O sábio é beato, porque, inteiramente fechado na sua torre de marfim, nada lhe acontece que não seja por ele querido, e se conforma com o demais, sem saudades e sem esperanças; pois sabe que tudo é efeito de um determinismo universal. A serenidade, a apatia dos estóicos seria, sem dúvida, fruto de uma fatigosa conquista, de uma dura virtude. Mas é uma virtude absolutamente negativa. Com efeito, quando o homem se torna indiferente a tudo, e a tudo renuncia, salvo o seu pensamento - cujo conteúdo é, em definitivo, esta mesma renúncia -, não lhe resta efetivamente mais nada. Não Deus, pois no sistema estóico, é uma pura palavra; não a alma, destinada a resolver-se na matéria. A sabedoria estóica é ação negadora da expansão das forças espirituais, virtude corrosiva, morte moral.

Pelo que diz respeito à política, manifesta-se na filosofia estóica um racionalismo cosmopolita radical a propósito da sociedade estatal: o homem, político por natureza, torna-se cosmopolita por natureza. Diz o estóico Musônio: "O mundo é a pátria comum de todos os homens". Tal cosmopolitismo foi fecundo em progresso, em civilização humana e moral. Abre-se caminho a um sentimento de caridade, de perdão, até para os infelizes e os escravos, os estrangeiros e os inimigos, em virtude da doutrina que afirma a identidade da natureza humana, sentimento este inteiramente desconhecido ao mundo antigo, clássico, onde campeia solitária uma justiça, que existe, porém, apenas para os concidadãos, livres e íntegros. E até começam a nascer instituições caritativas para com os pobres e os doentes. Destarte, esse cosmopolitismo, a que os estóicos não podem fornecer uma base racional e metafísica, promove todavia os conceitos de sociedade universal, de direito natural, de lei racional, conceitos que deveriam ser deduzidos da natureza racional do homem.

 

Zenão de Eléia (334-262a.C)

Cícero (106-43a.C)

Seneca (04a.C-65d. C))

Marco Aurélio (121-180 d.C)

 

Pirronismo

Tudo é relativo. É a atitude cética ou efectícia (que consiste em suspender o juízo). Recusa-se a fazer uso de um entendimento cuja validade não lhe parece comprovada e cujos produtos não são garantidos. Contenta-se como o imediato e vive em paz.

Para Pirro, tudo o que podemos fazer é tomar as coisas pelo que nos parecem, mas as aparências são notoriamente frustrantes, por isso nunca devemos assumir a verdade de uma.

Para ele, toda prova repousa em premissas não provadas; e isso é tão verdadeiro em lógica, matemática e ciência quanto na vida diária.

 

7.             NEOPLATONISMO

O neoplatonismo começa com Plotino (205-270). Para esse ir em direção ao Uno é voltar a si.

Porfírio de Tiro – para ele, o Uno tornava-se algo como um primeiro Ser antes do existente.

Proclo ou Proclus – enquanto em Plotino o real é dividido em ordens hierarquizadas – Uno, nôus ou inteligência, alma do mundo conforme seus dois níveis, matéria, em Proclo todas as ordens, mesmo as últimas, são como raios imediatamente saídos do centro universal. Em outras palavras, enquanto em Plotino a divisão é apenas ascendente, em Proclo é compensada por uma distribuição circular.

 

Características Gerais do Neoplatonismo

O neoplatonismo pode ser considerado como o último e supremo esforço do pensamento clássico para resolver o problema filosófico, que tinha encontrado um obstáculo intransponível no dualismo e racionalismo gregos - dualismo e racionalismo que nem sequer o gênio sintético e profundo de Aristóteles conseguiu superar. O neoplatonismo julga poder superar o dualismo, mediante o monismo estóico, na qual o aristotelismo fornece sobretudo os quadros lógicos; e julga poder superar, completar, integrar a filosofia mediante a religião, o racionalismo grego mediante o misticismo oriental, proporcionando o racionalismo grego especialmente a forma, e o misticismo oriental o conteúdo.

Será acentuado o dualismo platônico entre sensível e inteligível, entre matéria e espírito, entre finito e infinito, entre o mundo e Deus: primeiro, identificando, por um lado, a matéria com o mal, e elevando, por outro lado, o vértice da realidade inteligível ao suprainteligível e, em segundo lugar, elaborando uma moral ascética e mística, em relação com tal metafísica, a qual, todavia, se esforçará por unificar os pólos opostos da realidade, fazendo com que da substância do Absoluto seja gerado todo o universo até a matéria obscura.

A filosofia antiga, em seu último período, não tem mais sua capital tradicional em Atenas, cidade grega por excelência. O centro do pensamento então se estabelece em Alexandria, cidade cosmopolita na qual vivem egípcios, judeus, gregos e romanos. É o local privilegiado de todos os intercâmbios, particularmente os intelectuais. A cidade é povoada de pensadores que dispõem de uma admirável biblioteca.

Isto nos ajuda a compreender o caráter sincrético, ou sintético, da filosofia neoplatônica. O racionalismo lúcido dos gregos se une - numa síntese muito original - aos fervores do misticismo oriental. Apesar das denegações dos céticos e da propaganda materialista dos epicuristas, nunca os homens foram tão famintos de Deus quanto nessa época. As religiões de salvação, o culto de Mitra, de Ísis, então se desenvolvem. O cristianismo tomará impulso. Preocupações filosóficas e religiosas se unem estreitamente. Os filósofos, além da verdade suprema, buscam a salvação. Os homens piedosos querem fundamentar suas crenças filosoficamente. Tal é a atmosfera que vamos encontrar envolvendo tanto Filon de Alexandria, quanto Plutarco ou Plotino.

 

Filon de Alexandria

Filon de Alexandria (nascido por volta de 25 a.C.) é bem representativo dos meios judeus helenizados que só sabiam ler a Bíblia na versão grega denominada dos Setenta (segundo a tradição, a Bíblia hebraica teria sido traduzida para o grego por setenta sábios, em Alexandria). Seus correligionários tinham-no encarregado de uma missão junto ao imperador Calígula (para serem dispensados do culto ao imperador, incompatível com o monoteísmo judaico).

Filon pretende fazer uma síntese entre os ensinamentos de Moisés, de Platão e de Zenão de Citium. Para ele, a Bíblia diz a verdade, mas sob forma alegórica. Platão traz a mesma mensagem sob forma filosófica. Como dirá mais tarde um discípulo de Filon, "Platão é um Moisés que fala grego". A idéia de Filon de harmonizar a revelação e a razão, a Bíblia e Platão, estaria fadada a uma grande existência. Num sentido, o grande problema da escolástica medieval, o da concordância entre razão e fé, é uma herança legada por Filon (é nesse sentido que Wolfson dirá que a filosofia medieval é inteiramente filoniana).

Para Filon, o próprio Deus é inefável, inacessível às nossas abordagens. Todavia, podemos nos aproximar d'Ele por intermédio da renúncia ao mundo e do recolhimento da alma. Já Platão não houvera dito que é preciso morrer para o sensível, a fim de nascer para o inteligível? Se Deus é inacessível, o espírito humano, ao menos, pode participar do Inteligível - ao qual Filon denomina Logos, Verbo eterno de Deus, seu filho primogênito (protógonos). A concepção que São João faz do Verbo divino muito deve às fórmulas e às idéias de Filon de Alexandria.

 

Plutarco de Queronéia

O autor da Vida dos Homens Ilustres também é um pensador religioso. Colocou em particular o problema do mal e da Providência em seu ensaio sobre as Dilações da Justiça Divina, que levou Joseph de Maistre, que o admirou, a traduzi-lo.

Para Plutarco, não podemos, à maneira dos estóicos, identificar Deus com o universo. Isto porque, ao princípio transcendente do Bem se opõe um princípio do mal, que é a lei do nosso mundo. Essa filosofia dualista provém de Platão e a encontraremos em todos os sistemas denominados "gnósticos". A idéia essencial (já presente em Platão e Plutarco) é a de que somos formados de uma alma, divina por essência, envolvida por uma potência malfazeja num corpo radicalmente vicioso (a encarnação é uma encarceração) e de que a salvação provém do verdadeiro conhecimento (gnosis em grego), isto é, do conhecimento dos dois princípios rivais, das causas que fizeram triunfar o princípio do mal, dos meios que permitiriam a vitória do princípio do bem.

Plutarco encontra simbolização de sua doutrina nos mitos da salvação comuns em sua época. Ísis simboliza a matéria e Osíris o Logos. A união dos dois explica a criação no que ela tem de bom. Mas Tifon, o princípio do mal, introduz a desordem e a perturbação: dispersa os membros divinos de Osíris que Ísis tenta reunir.

Plutarco aceita tornar-se sacerdote de Apolo Pítico em Delfos; trabalha da melhor maneira possível para o renascimento do culto délfico. Leva a sério as profecias de Pítia, cuja exegese ele propõe: á Apolo que, diretamente, ilumina o espírito de Pítia, mas esta exprime a Revelação segundo sua mentalidade e sua cultura, com os seus hábitos de linguagem... Dezoito séculos antes do Pe. Lagrange, temos um primeiro esboço da teoria dos gêneros literários e das mentalidades! É com relação à inspiração sagrada da Pítia que Plutarco formulará sua célebre expressão: "O corpo é o instrumento da alma e a alma o instrumento de Deus, psyche organon theou!"

  

Plotino

Plotino nasceu em Licópolis, no Alto Egito, e, aos 28 anos, dirigiu-se para Alexandria onde seguiu as lições do platônico Amônio Sacas, que o "converteu" à filosofia (pois, na escola neoplatônica, assim como entre os estóicos, a filosofia não era simples disciplina teórica, mas escola de vida espiritual, destinada a transformar inteiramente a alma, e purificá-la, a voltá-la para as realidades sublimes). Em 243, a fim de conhecer a filosofia dos persas, Plotino engajou-se no exército do imperador Giordano; sobrevivendo aos seus desastres, estabeleceu-se definitivamente em Roma, onde abriu uma escola. Aí, uniu às práticas ascéticas ("Tinha vergonha de estar num corpo", dirá seu discípulo Porfírio a seu respeito) um ensino muito brilhante. Porfírio anotou e publicou seus cursos. O conjunto compreende cinqüenta e quatro tratados agrupados em seis Enéadas (isto é, grupos de nove).

A doutrina fundamental de Plotino é a das três hipóstases, isto é, das três substâncias, das três realidades eternas - embora elas derivem, em termos plotinianos, embora elas procedam uma das outras.

A. - A realidade suprema, o Deus de Plotino, é o Uno, o qual não é o conhecimento (uma vez que este supõe a dualidade do sujeito cognoscente e do objeto cognoscível - nem o Ser, mas antes a fonte inefável de todo ser e de todo pensamento. Ele é todas as coisas e nenhuma delas. É aquilo de que promana toda existência, toda vida e todo valor, mas ele próprio é de tal ordem que nada podemos afirmar a seu respeito, nem a vida, nem a essência; é superior a tudo e fonte absoluta de tudo.

B. - Por que existem outras hipóstases? Por que esse Deus plotiniano, por que o Uno não é único, por que se degrada na multiplicidade? É certo que não está submetido a qualquer necessidade, não pode desejar coisa alguma - pois, desejar é sentir falta de algo, e ele é plenitude. Mas o Uno é riqueza infinita, generosidade sublime. A perfeição suprema se difunde em si mesma, tende a engendrar outros seres que se lhe assemelham, ainda que menores. Assim como de um fogo ardente as chamas se irradiam, assim ocorre com os seres emanados do Uno. O primogênito de Deus é o Logos, a Inteligência. Essa Inteligência é o princípio de toda justiça, de toda virtude e, o que é capital para Plotino, de toda beleza. A Inteligência é que faz a realidade ter uma forma, na medida em que ela é coerente e harmoniosa, na medida em que ela é Beleza (nesta segunda hipóstase encontramos algo das Idéias de Platão e do pensamento que se pensa de Aristóteles).

C. - Da Inteligência procede a Alma, terceira hipóstase (que evoca o tema platônico da alma do mundo, assim como o deus cósmico dos estóicos). A Alma é a mediação entre a Inteligência, da qual ela procede, e o mundo sensível, cuja ordem é constituída por ela. As almas individuais emanam dessa alma universal. A alam humana também é uma parcela do próprio Deus presente em nós.

Abaixo das três hipóstases, o mundo material representa o último estágio dessa "difusão" divina, o ponto extremo onde morre a luz; é aqui que encontramos a opacidade da carne, o peso da matéria, as trevas do mal. Todavia, enquanto o Uno dispersou-se, obscureceu-se, abismou-se no múltiplo, este último aspira à reconquista da unidade, à luz e ao repouso na fonte sublime. Ao movimento de procedência corresponde o impulso de conversão pelo qual a alma, caída no corpo, obscurecida no mal, se assume e tenta se elevar até o Princípio original.

Reservemo-nos, todavia, de ver no plotinismo um dualismo gnóstico. O próprio Plotino escreveu uma tratado contra as seitas gnósticas. Para ele, não existe um mundo do mal, rival do mundo do bem. O mal, para Plotino, nada tem de uma substância positiva: "O mal não é senão o apequenamento da sabedoria e uma diminuição progressiva e contínua do bem". A alma que dizem prisioneira do mal é apenas uma alma que se ignora, é, como diz Plotino, uma luz mergulhada na bruma. O mal não é uma substância original, é só o procurado pelo reflexo do bem que fracamente ainda brilha nele. Nesse sentido, livrar-se do mal, para Plotino, não é, como para os gnósticos, destruir um universo para dar nascimento a outro, mas antes encontrar a si mesmo em sua verdade. Não esqueçamos que é a leitura de Plotino que, um dia, arrancará o jovem Agostinho de suas crenças dualistas abeberadas no maniqueísmo.

Essa filosofia, no entanto, não é absolutamente nova. Já no Timeu de Platão está colocada a questão de uma gênese do mundo; por outro lado, a conversão plotiniana lembra a dialética ascendente de Platão. Em ambos os métodos de purificação, a idéia do Belo desempenha importante papel. Todavia, a obra de Plotino possui uma tônica de misticismo que é nova; sente-se aí, como até então não se sentira ainda, o desejo e o esforço de uma alma que quer se encontrar e ao mesmo tempo se perder no Uno universal e inefável. Esse arrebatamento da alma, esse êxtase foi que impressionou Bergson ao ler as Enéadas, o que explica o fato de o autor das Duas Fontes Ter colocado Plotino acima de todos os filósofos.

 

A Gnosiologia

A gnosiologia de Plotino é semelhante à de Platão, pela desvalorização da sensibilidade como aparência, opinião, com respeito ao pensamento. A sensação representa o primeiro grau de conhecimento humano, manifestando-se nela obscuros vestígios da verdade. Segue-se, superior à sensibilidade, a razão: conhecimento mediato, discursivo, dialético, demonstrativo, que atinge as idéias, as essências das coisas. A razão é a atividade do espírito, que conhece enquanto vem iluminado pelo pensamento propriamente dito, o qual é superior ao espírito.

À razão segue-se o pensamento imediato, que é autocontemplação do espírito pensante. Nesse grau de conhecimento o espírito compreende, ao mesmo tempo, a si e as coisas. É conhecimento intuitivo, imediato, não discursivo e sucessivo. Também o pensamento - o intelecto - representa uma atividade do espírito humano participada do pensamento absoluto, isto é, da Inteligência - noûs. O pensamento absoluto, a inteligência, o noûs, em si mesmo, está sempre em ato de conhecer, e nunca erra; mas, no espírito humano, o pensamento vem a ser intermitente e sujeito ao erro, precisamente pelo fato de ser, nele, o conhecimento participado. O conhecimento humano, finalmente, se completa e atinge a sua perfeição no êxtase, que é identificação do espírito humano com o espírito absoluto, o Uno, Deus, em que o espírito humano se torna passivo, inconsciente.

 

A Metafísica

Como os graus de conhecimento são quatro - sensibilidade, razão, intelecto, êxtase - assim quatro são os graus do ser: matéria, alma, noûs, Uno. O Uno, Deus - segundo Plotino - é a raiz de todo ser e de todo conhecer, tudo depende dele. No entanto, transcende toda essência e todo o conhecimento, de sorte que é inteiramente indeterminado e inefável, e em torno dele pode-se dizer apenas o que não é - teologia negativa. O universo deriva de Deus, não por criação consciente e livre, mas por emanação inconsciente e necessária, que procede de Deus degradando-se até à matéria. Deus certamente transcende o mundo, mas o mundo é da sua mesma natureza. A primeira emanação é representada pelo noûs, inteligência subsistente, intuitiva e imutável, que se conhece a si mesma e em si as coisas. A segunda emanação do Uno é a alma; ela procede do pensamento, como este procede do Uno. A alma contempla as idéias - que estão no noûs - e enforma a matéria, segundo o modelo delas. A alma universal, a alma do mundo, por sua vez se multiplica e especifica nas várias almas individuais, que estão em escala decrescente do céu até os homens. Também Plotino sustenta que as almas humanas caíram de uma vida pré-mundana para o cárcere corpóreo; também ensina a metempsicose e a conversão. Com a alma termina o mundo inteligível, divino, e começa o mundo sensível, material. A matéria plotiniana, pois, não é apenas potencialidade, indeterminação, mas também mal, irracionalidade.

 

A Moral

Depois da descida - a emanação das coisas do Uno - há a subida, a conversão do mundo para Deus. Efetua-se ela através do homem, microcosmo, compêndio do universo. Nisto consiste a moral plotiniana, radicalmente ascética: libertação, purificação da matéria, do corpo, do sentido. Os graus dessa libertação são representados, em linha ascendente, pelas virtudes éticas, dianoéticas - arte e filosofia - , culminando no êxtase.

 

A Religião

O neoplatonismo afirma certa transcendência de Deus, em que este é imaginado como o suprainteligível. Por isso, é inefável e pode ser atingido na sua plenitude unicamente mediante o êxtase, que é uma fulguração divina, superior à filosofia. Com esta doutrina do êxtase, em que é afirmada uma relação específica com a Divindade, parece abrir-se o caminho para uma nova filosofia religiosa, para a valorização da religião positiva. E outro caminho parece abrir-se na doutrina dos intermediários, que estão entre Deus e o homem, e por Plotino distintos em deuses invisíveis e visíveis, a que são assimiladas as divindades das religiões tradicionais.

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