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A Filosofia e a Condição Humana - III

Newton Aquiles von Zuben

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A antropologia tem dupla ambição: a de ser uma ciência e ao mesmo tempo a ambição de abranger a totalidade do humano, ou todas as manifestações do humano. Esta dupla ambição situa-se na mitologia científica do séc. XX. O prestígio das ciências aumenta sem cessar por entre os protestos do homem que as fez nascer e desenvolver. O homem sente-se atraído por esta nova manifestação do, sagrado". Como diante do sagrado, o homem tem um duplo sentimento diante da ciência: atração e terror. O cientista acometido pelo mal "filosofia" troca seus escrúpulos com o filósofo que sofre de ,,rigor científico". De um lado, um (pseudo) filósofo que sonha com uma filosofia tecnicista e, de outro, o cientista (pretensioso) que se atribui, sem qualquer sombra de vergonha, o poder de tudo explicar. Estamos diante de um duplo perigo fatal: o de o filósofo fazer má ciência e de o cientista fazer péssima filosofia.

Este clima atinge também a antropologia como estudo do humano. Ela se ressente desta má ambigüidade que provoca a dupla ambição refletida no paradoxo de que se falou há pouco: ambição de uma objetividade científica confundida com a ambição da perspectiva da totalidade do saber sobre o homem.

A temática da explicação e da compreensão encerra-se no âmbito da questão do subjetivo e do objetivo no esforço do conhecimento da condição humana. Ambas, explicação e compreensão não têm sucesso se cada um desses procedimentos tentar exaurir a totalidade do conhecimento humano. Devem, ao contrário, complementar-se. Posso, todos concordam, ser estudado pelo biólogo, ou pelo psicólogo, em meu organismo biológico ou em meu psiquismo. No entanto, tentar reduzir-me a mero "objeto" pela ciência ou pela técnica, significa para mim uma violência, quase uma profanação daquilo que ,em mim , rejeita qualquer redução a mero objeto, minha subjetividade, a plena consciência de meu eu corporal, volitivo, imaginativo, emotivo, moral. Assim, como afirma Barbotin, "ao mesmo tempo em que me ofereço à ciência como objeto, eu me furto às suas garras à título de sujeito e a proíbo, portanto -- cúmulo do paradoxo -- de ignorar como tal: o biólogo não tem o direito sobre meu corpo como ele faz com a planta ou com o animal. Em termos simples, pode-se dizer que a objetividade pretende opor-se ao imperialismo do sujeito, de seus desejos e fantasias, reduzido a um "eu" transcendental. O cientista esforça-se por submeter-se aos fatos, à realidade sem intervir nela ou modificá-la. Mas será isso possível? Parece que às vezes confunde-se esclarecer e interpretar com violentar.

A objetividade começa pela intenção do sujeito, do indivíduo em ser objetivo, sendo portanto uma qualidade do sujeito. A objetividade poderia então ser definida pela intenção de objetividade, vale dizer, de submeter-se aos fatos, a um método, ao controle dos outros e finalmente ao confronto dos outros cientistas, outras teorias, etc.. Tal intenção se verifica pela elaboração de um conjunto coerente e sistemático de procedimentos próprios à verificação, à crítica e à confrontação. O .controle pelos fatos e pelo outro representa os dois pólos da racionalidade científica, cuja preocupação se define por um apelo à razão, isto é, em "dar razão" de seus caminhos e perspectivas.

Compreendida como conjunto de manobras de aproximação antes de ser algo adquirido, esta objetividade aproximativa que caracteriza as ciências humanas levanta uma dificuldade responsável pela ambigüidade da antropologia. Trata-se de saber se a objetividade, definida em termos gerais como a intenção mais ou menos realizada (pois a implicação do observado faz parte dos coeficientes de incerteza), como perspectiva de confrontação com a realidade e com a perspectiva do outro, é possível e em que condições, em uma antropologia entendida como discurso voltado para o homem como sujeito e suas relações intersubjetivas, p.ex. É uma dificuldade real. Que sentido tem a objetividade científica para um discurso que toma como objeto o próprio sujeito que o elabora? Não parece contraditória esta idéia de objetividade aplicada à investigação do humano uma vez que sujeito e objeto se confundem de certo modo? Vejamos. A submissão ao real e ao confronto com o outro implica em uma colocação à distância, uma perspectivação que fazem deste dado real um objeto (objectum=posto diante de). O fato observado, o dado a ser observado encontra-se diante do observador. Agora pode-se perguntar: como pode o sujeito, em sua condição de existente (com toda a densidade ontológica e emocional que o acompanha) ser colocado "diante de", em face de, sem que se desvirtue sua natureza de sujeito. O sujeito humano como centro de interesse do saber, ou melhor, na qualidade de questionador não parece rebelde a uma objetividade, a um método científico? Em outros termos, pode-se ser objetivo em um sentido (submisso ao real, ao confronto, ao controle intersubjetivo) sem ser objetivo em outro sentido "objetificador"? Tornando-se "objeto" da ciência o homem não deixaria de ser sujeito? Não abandonamos, em nome da objetividade, aquilo mesmo que tentamos conquistar. A saber, o sentido do sujeito e de suas relações com o outro, com o mundo na história?

O empreendimento das ciências humanas em seu esforço de conhecer o homem unicamente pela explicação corre o risco de se tornar um pensamento operatório". "0 pensamento operatório, afirma Merleau-Ponty (l975), torna-se uma espécie de artificialismo absoluto, como se vê na ideologia cibernética, onde as criações humanas são derivadas de um processo natural de informação, porém concebido, por sua vez, segundo o modelo de máquinas humanas. Se este gênero de pensamento toma a seu cargo o Homem e a História, e se, fingindo ignorar o que deles sabemos por contato e por posição, empreende construí-los a partir de alguns indícios abstratos, como fizeram nos USA uma psicanálise e um culturalismo decadentes, visto que o homem se torna verdadeiramente o manipulandum que ele pensa ser, entra-se num regime de cultura onde já não há verdadeiro ou falso no tocante ao Homem e à História, num sono, num pesadelo do qual nada poderia acordá-lo. " (p. 276).

A antropologia empreende a sua tarefa como busca de sentido. Enquanto as ciências descrevem a realidade humana, a filosofia do homem reflete (busca interpretativa, hermenêutica) sobre o que o homem pode fazer com essa realidade. As ciências desvelam, mostram os condicionamentos de ordem social, psicológica, econômica ou política, que atuam sobre o homem. A filosofia mostra como o homem assume - liberdade - estes condicionamentos e nesta assunção dá sentido à sua existência. (Canclini, 1987).

Após a configuração do homem pelas ciências humanas, em suas diversas perspectivas, resta ainda algo de irredutível? Há alguma especificidade no homem na condição humana após o olhar da ciência? As ciências ao fim de sua tarefa, ao explicar o homem, ao colocá-lo em perspectivas, ao objetivá-lo, provoca alguma desfiguração ou alguma deformação?

Por outro lado, o pensamento filosófico, objetivado em diversas concepções ou correntes teóricas, através da história, não se exime inteiramente das críticas de reducionismo que são endereçadas às ciências humanas. O idealismo, de todos os matizes, reduzindo o sujeito humano ao Cogito, o positivismo encerrando-o em condições empíricas de sua atividade prática, a psicanálise freudiana, restringindo-o a um nó de pulsões, o marxismo reduzindo-o a um conjunto de relações sociais e econômicas, o estruturalismo negando autonomia ao sujeito, transformando-o em mero elemento de um sistema opressor e despersonalizante: eis quantos reducionismos.

Estas duas tentativas - a ciência e a filosofia -- ambas antropologia - relacionam-se dialeticamente num processo de mútua fecundação. Limitar-se a uma análise científica significa contentar-se com uma visão estática do humano - o homem como ele é. A filosofia tem sua importância para a realização do homem na medida em que não aborda o homem somente naquilo que ele é, mas no que ele pode ser (projeto). De novo nos acolhe a questão: o que vamos fazer do homem? Ser e poder-ser se vinculam. O poder-ser não denota uma saída alienante, como se o homem se lançasse, se projetasse para algo que nada tem a ver com sua condição, algo transcendente de modo absoluto. A emergência do existir é uma tarefa pela qual identificamos a realização do homem: este se esforça em ser nada menos que homem ("qui fait l’ange fait la bête), em descobrir a cada instante o ponto de articulação entre os seus limites e suas potencialidades ou possibilidades. Ele está diante de um equilíbrio tenso.

Cabe à reflexão filosófica a tarefa de compreensão da condição humana. O esforço se remeterá ao solo primeiro de onde o pensamento emerge e busca seus marcos de orientação, a saber, os eventos da experiência concreta, vivida. Esta como evento, fluxo de eventos, e fonte de significação, é um acontecimento significante. Tais eventos são cheios de sentido que se manifesta, se expressa na linguagem do cotidiano, no nível dos gestos, no momento principal do específico humano -- corpo - consciência. Estas objetivações de linguagem estampam o homem "dizendo-se" nas suas relações com o mundo e com os outros.

Ter como mira de esforço compreensivo os eventos, as experiências da vida cotidiana, implica na necessidade de se encarar, em complexidade o próprio dado humano, a condição humana. Encarar em complexidade significa evitar as alternativas. Como disse acima, explicação e compreensão, ciências humanas e filosofia articulam-se dialeticamente em fertilização mútua no empreendimento comum de conhecimentos da condição humana.

Tal tarefa é infinda, não se esgota, já que, sendo o homem histórico este ponto de articulação está sempre se modificando. Pela perspectiva da totalidade a reflexão empreendida pelo filósofo supera ou tenta pelo menos, superar -- no sentido de recuperar unificando e mostrando um sentido (significação e orientação)) desta unidade ou totalidade -- os obstáculos e os desvios causados pela perspectiva da "alternativa" - Ciências Humanas ou Filosofia - e mostrar as chances de uma visão em complexidade onde ambas Ciências Humanas e Filosofia se dialetizam.

Referências Bibliográficas

Aristóteles (l969) Metafisica. Porto Alegre. Ed.Globo.

Barbotin, E. (I 987) L Humanité de l'homme. Paris: Aubier Montaigne.

Canclini, N. (l987) O sentido dialético do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Jolif, Y. (I 970) Compreender o homem. São Paulo: EPU.

Lima Vaz, H. (l991) Antropologia Filosófica. 2vols. São Paulo: Ed. Loyola.

Merleau-Ponty, M. (I 966) Sens et non-sens. Paris: Ed. Nagel, 5@ ed.

Merleau-Ponty, M. (l975) Escritos estéticos. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores).

Merleau-Ponty, M. (s/d) Sinais. Lisboa: Ed. Minotauro.

Moscovici, S. (l975) A sociedade contra a natureza. Petrópolis: Vozes.

Schaff, A. (l991) A sociedade informática. São Paulo: Ed. Brasiliense.

Stein, E. (l975) A Melancolia. Porto Alegre: Ed.Movimento.

(*) Publicado em Reflexões. Faculdade de Educação, UNICAMP. Vol.4, no.3(12). Nov. 1993

© Newton Aquiles von Zuben
Doutor em Filosofia - Université de Louvain
Professor Titular - Faculdade de Educação da UNICAMP
E-mail: [email protected]

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