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Justiça Distributiva

Harry Gensler
John Carroll University, Cleveland, USA

Como devem ser distribuídos os bens numa sociedade? […] Serão consideradas aqui três perspectivas — primeiro o utilitarismo, e depois as perspectivas não consequencialistas de John Rawls e Robert Nozick.

O utilitarismo clássico diz que deves maximizar o prazer em detrimento da dor. Se a nossa acção maximiza o bem, não importa se a distribuição do bem é igual ou desigual. Logo, o utilitarismo justifica em princípio um grande fosso entre ricos e pobres.

Todavia, os utilitaristas afirmam que na prática a sua perspectiva prefere uma distribuição mais igual. Considera uma pequena sociedade de ilhéus constituída por duas famílias. A família rica ganha 100 000 euros por ano e tem bens em abundância; a família pobre ganha 5 000 e confronta-se com a possibilidade de passar fome. Supõe que 2 500 euros da família rica vão para a família pobre. A família pobre beneficiaria enormemente, e a família rica dificilmente sentiria a falta desse dinheiro. A razão para isto é a diminuição da utilidade marginal do dinheiro; à medida que enriquecemos, cada euro extra faz menos diferença no nosso bem-estar. Passar de 100 000 euros para 97 500 não faz diferença, mas passar de 5 000 para 7 500 euros faz uma grande diferença. Assim, argumentam os utilitaristas, uma certa quantidade de riqueza tende a produzir mais felicidade total se for repartida mais imparcialmente. A nossa sociedade de ilhéus provavelmente maximizaria a sua felicidade total se ambas as famílias partilhassem igualitariamente a riqueza.

Apesar de parecer sensato, os não consequencialistas têm dúvidas em relação a isto. Se uma família retira mais prazer do que outra de uma certa quantidade de dinheiro, deveria por isso ter mais dinheiro (uma vez que isto maximizaria o prazer total)? Será isso justo? E mesmo que o utilitarismo conduza a juízos correctos sobre a igualdade, será que o faz pelas razões certas? É a igualdade boa, não em si, mas meramente porque produz o maior total de felicidade?

John Rawls propôs uma influente abordagem não consequencialista à justiça. Como podemos decidir o que é justo? Rawls sugere que a pergunta a fazer é esta: que regras mereceriam o nosso acordo em certas condições hipotéticas (a posição original)? Imagina que somos livres, lúcidos e conhecemos todos os factos relevantes — mas não conhecemos o nosso lugar na sociedade (se somos ricos ou pobres, negros ou brancos, de sexo feminino ou masculino). A limitação do conhecimento tem o objectivo de assegurar a imparcialidade. Por exemplo, se não sabemos qual é a nossa raça, não podemos manipular as regras para favorecer uma raça e prejudicar outras. As regras de justiça são as regras que mereceriam o nosso acordo nestas condições de imparcialidade.

Que regras mereceriam o nosso acordo na posição original? Rawls argumenta que escolheríamos estes dois princípios básicos de justiça (e cuja formulação simplifiquei):

-Princípio da liberdade igual: A sociedade deve assegurar a maior liberdade para cada pessoa compatível com uma liberdade igual para todos os outros.

-Princípio da diferença: A sociedade deve promover uma distribuição igual de riqueza, excepto se as desigualdades servirem como incentivo para benefício de todos (incluindo os menos favorecidos) e estiverem abertas a todos numa base igual.

O princípio da liberdade igual assegura coisas como liberdade de religião e liberdade de expressão. Rawls diz que tais direitos não podem ser violados a favor da utilidade social. O princípio da diferença é acerca da distribuição de riqueza. Na posição original poderíamos sentir-nos atraídos pela perspectiva igualitária segundo a qual todos deveriam ter exactamente a mesma riqueza. Mas desse modo a sociedade estagnaria, uma vez que as pessoas teriam poucos incentivos para fazerem coisas difíceis (como tornarem-se médicos ou inventores) que acabam por beneficiar todas as pessoas. Por isso, preferiríamos uma regra que permite incentivos.

De uma maneira geral, todos teriam a mesma riqueza numa sociedade rawlsiana — excepto para desigualdades (como pagar mais a médicos) que são justificadas como incentivos que acabam por beneficiar todas as pessoas, e que estão abertas a todos numa base igual.

Robert Nozick é o crítico mais duro do princípio da diferença de Rawls. A perspectiva que propõe é a da titularidade das posses justas. Esta perspectiva diz que tudo o que ganhas honestamente através do teu esforço e de acordos justos é teu. Se alguém ganhou legitimamente o que tem, então a distribuição que daí resulta é justa — independentemente de poder ser desigual. Ainda que outros tenham muito menos, ninguém tem o direito de se apropriar das tuas posses. Esquemas (como taxas diferenciadas de impostos) que forçam a redistribuição de riqueza são errados porque violam o teu direito à propriedade. Roubam o que é teu para dar a outros.

Quanto devem ganhar os médicos? Segundo Nozick, devem ganhar seja o que for que ganhem legitimamente. Numa sociedade podem ganhar praticamente o mesmo que qualquer outra pessoa; noutra, podem ganhar grandes somas de dinheiro. Nos dois casos, são titulares do que ganham — e qualquer esquema que lhes retire os seus ganhos para ajudar outros é injusto.

Que perspectiva devemos preferir, a de Rawls ou a de Nozick? Se apelarmos a intuições morais, ficaremos num impasse; as intuições liberais estão de acordo com Rawls, enquanto as intuições libertárias estão de acordo com Nozick. Contudo, eu afirmaria que a consistência racional favorece algo de parecido com a perspectiva de Rawls. Imagina uma sociedade organizada segundo a concepção de mercado livre de Nozick e na qual, depois de várias gerações, há um grande fosso entre ricos e pobres. Aqueles que nasceram numa família rica são ricos, e aqueles que nasceram numa família pobre sujeitam-se a uma pobreza que não podem vencer. Imagina que tu e a tua família sofrem desta pobreza. Se estiveres nesta situação, poderás desejar que os princípios de Nozick sejam seguidos?

Harry Gensler

Tradução de Faustino Vaz
Extraído de http://www.amazon.co.uk/exec/obidos/ASIN/0415156254/desiderionet, de Harry Gensler (Routledge, 1998)

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Liberalismo Fora de Esquadro

SERGIO D. MORRESSI

É muito provável que Robert Nozick, falecido em 23 de janeiro último (a poucos dias da morte de Pierre Bourdieu, o grande representante do campo ideológico oposto, que acabou eclipsando seu nome nos obituários na imprensa) seja lembrado somente como o autor de um único e lamentável livro: Anarquia, Estado e Utopia. “Lamentável”, sim: ou acaso se poderia ser usado um adjetivo menos contundente para qualificar um texto que advoga contra a distribuição da riqueza em um mundo onde anualmente milhões de crianças e adultos morrem ou padecem enfermidades por causas que se poderiam evitar, em grande parte, por meio de mínimas medidas redistributivas? (Cf. Borón, 2000: 170-173) [Nota do Webmaster: Robert Nozick faleceu em janeiro de 2002]

Pouco importará que Nozick se tenha arrependido de algumas das posturas que o converteram em herói da nova direita (Nozick, 1993: 32) e que, para horror dos fanáticos do mercado, acabasse sustentando limites morais às liberdades pessoais e a obrigação dos indivíduos de contribuir materialmente para com a sociedade (Nozick, 1997: 227 e sg). Por injusto que possa ser, o nomadismo intelectual do professor Nozick, que o levou a estudar da revolução russa às religiões orientais, cairá certamente no esquecimento e restarão tão somente sua radicais teses “libertarianas” (nas quais, dito seja de passagem, nunca deixou de acreditar totalmente, Cf. Nozick: 2002).

Sobre algumas poucas dessas teses vale a pena retornar uma vez mais hoje, nem tanto pelo que elas mesmas sustentam, mas sim por um motivo mais político e mais urgente. E é que as idéias libertarianas (fundamentalistas, mas sem fundamentos, ao dizer do Nagel: 1995) permitem-nos colocar em tela, uma vez mais, o problema do Estado e a distribuição da renda, tema que tanto no Brasil como no resto da América Latina se reveste de uma importância premente.

A FÉ DOS CONVERTIDOS

Nascido no bairro novaiorquino do Brooklin em 1938, no seio de uma família de judeus russos emigrados, Robert Nozick, conforme gostava ele mesmo de relatar, chegou à filosofia por meio de cândidas perguntas sobre a existência de Deus ou a expansão do universo (Nozick,1997: 235 e sg.). De algum modo ele conseguiu processar essas questões na problemática da justificação dos princípios em geral e dos princípios morais em particular, um tema que, de forma explícita ou implícita seguiu presente em cada uma de suas obras publicadas.

Logo depois de estudar em uma escola pública Nozick ingressou na Universidade de Columbia, onde se destacou como um ativo militante de um pequeno partido político filo-socialista. De Columbia passou a Princeton, onde, orientado por Carl Hempel, obteve um mestrado e um doutorado com dissertações sobre o que anos mais tarde se converteria no non plus ultra da filosofia analítica e das ciências sociais: a teoria da escolha racional. Também foi em Princeton onde Nozick tomou contato com as idéias neoliberais em geral e as libertarianas em particular, absorvendo-as pouco a pouco, até o ponto de abandonar por completo sua relação com a esquerda.

Os libertarianos formam um conjunto pequeno, com um poder de lobby nada desprezível e idéias variadas, muitas vezes contraditórias entre si. Embora os libertarianos sejam defensores furiosos da primazia do livre mercado, uma instância que consideram categoricamente justa, suas propostas políticas não são sempre conservadoras. Assim, por exemplo, são favoráveis à legalização do aborto e aos direitos civis dos homossexuais, e são contra a proibição do consumo de drogas ou de qualquer tipo de censura (Boaz, 1997; Kymlicka, 1995: 109-113).

O coração da doutrina libertariana foi fruto das obras da novelista e roteirista de origem russa Ayn Rand. Essa autora, que teve o duvidoso privilégio de ser testemunha de acusação nos julgamentos do comitê do Senador Joseph McCarthy, assentou em suas histórias e ensaios (sobretudo em “O manancial” e em “A virtude do egoísmo”) as bases do pensamento libertariano: um individualismo ególatra, um exorbitante enaltecimento da propriedade privada ilimitada e o repúdio a toda forma de coletivismo.

Embora Rand tenha obtido um êxito nada desdenhável, o “objetivismo” que é o nome da escola por ela criada e que servia de substrato a suas asserções foi, em geral, amplamente rechaçado (Nozick: 2002).

A despeito da ressonância editorial dos livros de Rand e do fato de que reconhecidos economistas, como Friedman, Buchanan e von Mises (entre outros) já tinham dado ferramentas teóricas de peso ao neoliberalismo, não foi até a publicação de Anarquia, Estado e Utopiaem 1974 que o libertarianismo (que podemos identificar sem maiores problemas como uma das correntes centrais do neoliberalismo) foi reconhecido como um interlocutor dentro do mundo acadêmico. Atualmente, apesar de sua pequena relevância numérica, os libertarianos detêm um enorme poder político, econômico e acadêmico, que exercem através de poderosos think tanks ou em postoschave em governos e em instituições internacionais (Purdy, 1997).

No prólogo de seu primeiro livro Nozick reconhecia que, depois de ter aceito as premissas libertarianas, não se sentia em boa companhia e que, além disso, não gostava do fato de que os colegas por ele respeitados o olhassem com espanto e desconfiança (Nozick, 1991: 7-10). Entretanto, com a fé própria dos convertidos, não só avançou no sentido de defender o libertarianismo como uma postura plausível, mas chegou a propô-lo como uma teoria defensora da liberdade e da dignidade humanas e como um marco necessário e insuperável para quaisquer utopias.

DIREITOS E DEVERES

Nozick começa afirmando que os indivíduos têm direitos e que há coisas que nenhuma pessoa ou grupo pode fazer-lhes sem violar esses direitos. Esses direitos, que em Anarquia... (Nozick, 1991) são apenas sugeridos através de algumas menções ao imperativo categórico kantiano, são justificados em Explicações filosóficas (Nozick, 1981), onde se apresentam argumentos para mostrar que um ser humano é valioso e que por isso merece ser respeitado.
Para Nozick, “valioso” é aquilo que consegue conciliar a diversidade na totalidade, sem que, no entanto, cada um dos elementos seja descaracterizado. Assim, cada ser humano é um ente “sagrado”, cujo valor consiste não em cada um dos átomos que o compõem, mas sim na harmonização dos mesmos, que é única. Esta harmonização, em si mesmo valiosa, adquire “sentido” ao vincular-se, como uma contribuição, a uma entidade mais ampla. O homem, que é ele mesmo a unidade de uma diversidade, e que por isso “tem valor”, adquire “sentido” ao formar parte de uma sociedade que não eliminará sua unidade, mas sim o incorporará em uma nova diversidade harmoniosa (Grondona, 1994: 158-161).

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