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< Primeira Parte

Liberalismo Fora de Esquadro (continuação)

SERGIO D. MORRESSI

O homem, enquanto ser valioso, pode dar sentido à sua vida, contribuindo e originando valor, “merecendo” assim ser respeitado. Seus direitos, pois, não devem ser violados. Agora, quais seriam esses direitos? Nozick evita dar uma resposta taxativa a esta interrogação e ensaia um caminho que, ao final, se revelará problemático. Para ele, os direitos de outrem determinam as restrições de nossas ações. Isto é, o valor do outro impõe-se-me como uma restrição não ao meu valor (que não é comparável, por ser incomensurável), mas à minha liberdade de atuar.

As “restrições morais indiretas” (moral-side constraints) estabelecidas pelos merecimentos de cada indivíduo não nos dizem o que devemos fazer, senão aquilo que não devemos fazer (não matar, não violar a propriedade alheia); trata-se, então, mais propriamente de “deveres” que de “direitos”, e a diferença não é pequena (De Vita, 2000: 53-63).

O problema aqui é que se aceitarmos (como parece fazer Nozick) que os indivíduos são seres sociais, deveríamos aceitar também que a liberdade não pode ser entendida só em termos negativos (como ele também parece supor). Se nossa realização como seres humanos está assentada na premissa de que devemos ser valorizados por nossa unidade formar parte de uma diversidade que não nos negue, o outro não é só o limite à minha liberdade, mas também a condição de possibilidade da mesma. Nozick parece não só não ter isto em conta, como também chega a equiparar liberdade com o uso discricionário da propriedade.

Contudo, se tomarmos a sério a idéia de que a liberdade é ausência de coerção, então poderíamos considerar a possibilidade de “medir” nossa liberdade de acordo com aquilo que somos capazes de realizar (ou de nos abster de realizar) seguindo nossa própria vontade, que em Nozick aparece como um dado meramente subjetivo, afastado da sociedade. Deste modo, se outros homens e o que lhes pertence legitimamente são nossos limites morais, uma pessoa será mais livre quanto mais possua. Em outras palavras: a distribuição de bens é, ao cabo, uma distribuição de liberdade (Cohen, 1995: 58-59).

Considerando esta lógica, esperar-se-ia que, dado que todos os homens em princípio merecem sua liberdade, Nozick apoiasse algum tipo de redistribuição de bens, ao menos no estilo do Rawls. Entretanto, Nozick faz exatamente o contrário, rejeitando não só a posição do Rawls mas também o conceito mesmo de distribuição, por entendê-lo coercitivo, negador de nossa dignidade. Nenhuma pessoa ou grupo de pessoas pode dizer-nos o que devemos fazer, nem tampouco obrigar-nos a ser melhores ou a ajudar a nossos congêneres, afirma Nozick (1991: 7). Mas, no sentido de Nozick, acaso não é coercitiva toda situação social ou política? Não se trata tudo isto de uma “robinsonada”, como gostava de dizer o velho Marx?
Nozick trata de demonstrar que não.

O ESTADO NATURAL

A tese central de Nozick é a de que: “(...) um Estado mínimo, limitado às estreitas funções de proteção contra a violência, o roubo e a fraude, garantia do cumprimentos de contratos, etc., justifica-se (...) qualquer Estado mais extenso violaria o direito das pessoas de não ser obrigadas a fazer certas coisas e, portanto, não se justifica (...) O Estado mínimo é inspirador, assim como correto” (Nozick, 1991: 7). Para justificar sua hipótese de Estado “spenceriano”, Nozick inicia um percurso que tem início no Estado de Natureza lockeano (Cf.: Locke, 1990: §§ 4-6 e §§ 19-20).

Entretanto, em vez de limitar-se a enumerar os inconvenientes do estado natural, pelos quais Locke acredita que se faz necessário passar à sociedade civil, Nozick expõe a possível resolução dos problemas sem necessidade de originar um governo. Desta forma, oferece-nos o que ele chama uma explicação “de mão invisível” (Nozick, 1991: 121). De acordo com esta linha, seria factível que dentro do Estado de Natureza surgissem associações não-estatais de ajuda mútua, e que dentro de algum tempo uma delas se encontrasse em uma posição dominante, por meio das leis do mercado. A esta situação o autor dá o nome de Estado Ultramínimo, instância que se diferencia do Estado Policial por proteger só aqueles que se associaram e pagam voluntariamente pelo serviço. Quando uma agência de proteção alcança uma posição dominante (Estado ultramínimo), é lógico que impeça os independentes de fazer justiça por sua própria mão; então, é imaginável que a agência proíba os independentes de atuar, oferecendo-lhes como compensação amparo gratuito, estamos agora num Estado mínimo. Assim, a transição do Estado ultramínimo para o Estado mínimo ocorre “moralmente” (Nozick, 1991: 62) e “sem violar os direitos de ninguém”, pois o monopólio da força surge por um processo de mão invisível, de mercado, e “através de meios moralmente permitidos” (Nozick, 1991: 117-118).

Até aqui, Nozick mostra uma justificação possível do Estado mínimo, mas isso é algo que pode importar só ao libertarianismo ou ao anarquismo. Para o resto da teoria política, o que é realmente interessante é o passo seguinte: a idéia de que todo Estado que ultrapasse as fronteiras do Estado mínimo é imoral ou, em termos práticos, a afirmação de que redistribuir a riqueza é um ato imoral (Nozick, 1991: 153). Para tanto, apresenta-nos sua “teoria de titularidades” ou de “pertencimentos”, ou seja, sua noção da teoria da propriedade, que consta de três “princípios”: o de aquisição, o de transferência e o de compensação. Vejamo-los mais de perto.

TÍTULOS E TRANSAÇÕES

Para Nozick, ao apropriarmo-nos de algo que não era possuído por ninguém (sobre o que ninguém tinha um título de propriedade) e compensarmos a outros de maneira razoável pelas perdas que isto lhes ocasionará, estamos atuando legitimamente, e cumprimos com o “princípio de aquisição” (Nozick, 1991: 179-182; voltaremos a ele mais adiante). Esse princípio nada mais é senão uma versão enfraquecida da cláusula lockeana segundo a qual poderíamos apropriar-nos do que fora comum, “sempre que dessa coisa fique uma quantidade suficiente e da mesma qualidade” para o restante da humanidade (Locke, 1990: §§ 27 e 28). Uma vez em posse do bem, e como temos “direito” indiscutível ao mesmo, podemos fazer com ele o que nos convenha: vendê-lo, usá-lo, destruí-lo. Se decidirmos transferi-lo, e não incorrermos na violação dos direitos de nossos semelhantes, estaremos respeitando o segundo princípio da teoria das titularidades, que estipula que toda transação que se produza sem coerção é justa (Nozick, 1991: 54). Isto apresenta alguns inconvenientes, já que, contrariamente àquilo em que parece crer o autor, uma soma de atos “justos” pode resultar perfeitamente em uma situação injusta.

Em todo caso, o “princípio” de transferências é tão difuso que é duvidoso que exista como tal. Por outro lado, não há elementos para separar com a clareza necessária uma transferência ilegítima, como a chantagem ou o engano involuntário, de uma legítima (De Vita, 2000: 79-81).

Também terá que considerar a questão de que qualquer transferência voluntárialivre de coerção é justa, mas isso não contempla as implicações que uma transação voluntária possa ter para terceiros, que, embora não envolvidos diretamente, podem ser afetados pela mesma (Cohen, 1995: 43 e sg). Há ainda o problema de que o sistema de transferências (o mercado) não cimenta um sistema de titularidades (De Vita, 2000: 81). Porém, deixemos de lado estas (importantes) ressalvas e suponhamos um critério de transferência operacional e não problemático.

Ainda nos resta o inconveniente de que vivemos em uma sociedade em que nossos direitos/deveres foram violados muitas vezes, e é por isso que Nozick introduz um terceiro princípio, o de compensação, que consiste na obrigação de ressarcir aqueles cujos direitos não foram contemplados na apropriação original ou nas sucessivas transferências (Nozick, 1991: 180). Desde esta perspectiva, deveríamos “rastrear” as titularidades originais para devolver as coisas a seus legítimos donos. Não sendo isso possível, dever-se-ia pôr em funcionamento algum dispositivo de tipo rawlsiano (Nozick, 1991: 226-227) para que nos sirva de ponto de partida.

O princípio de compensação, tanto quanto os outros dois, é bastante questionável. Para começar, Nozick justifica com ele uma atividade redistributiva do Estado, ainda que “por um lapso breve”. O problema é que, dado que os deveres/direitos libertarianos não criam uma sociedade bem ordenada (De Vita, 2000: 59), poderia requerer-se que este lapso “breve” se prolongasse no tempo, ou que fosse necessário repeti-lo periodicamente. Em segundo lugar, e isto nos parece mais importante, Nozick (1991: 180) reconhece que “o direito de cada proprietário a sua propriedade inclui a sombra histórica da estipulação lockeana”. Por exemplo, se cada um de nós é dono de um poço de água, mas todos menos um secam por uma catástrofe natural, a cláusula lockeana cobra com vigor que o proprietário desse único poço em funcionamento já não tenha uso discricionário dele: seu direito foi “superado”.

A pergunta pertinente é: se a apropriação ou a utilização de recursos, para ser legítima, teve que satisfazer essa condição uma vez, “por que não teria que satisfazê-la sempre?” (De Vita, 1993: 64). No fundo, somente se supusermos – como fazia Locke – que as vantagens da propriedade privada nos levarão ao reino da abundância a estipulação de Nozick faz algum sentido. Mas se vivemos no mundo da abundância, para que nos preocuparmos com os títulos de propriedade?

O ARGUMENTO “WILT CHAMBERLAIN”

Nozick define a sua teoria da propriedade como um sistema “retributivo”, no qual “uma distribuição é justa se surgir de outra distribuição justa através de meios legítimos” (Nozick, 1991: 154). Isto é: se na aquisição (t0, D0) não se viola a cláusula lockeana (na versão enfraquecida utilizada pelo Nozick) e as transferências que se efetuam em t0-1 não são injustas, chegamos a uma distribuição D1justa. O que faz “justo” o sistema retributivo é que os princípios que o regem “sustentam que as circunstâncias ou ações passadas das pessoas podem produzir direitos diferentes ou merecimentos diferentes sobre as coisas” (Nozick: 1991: 156-157).

Sistemas diferentes, de tipo redistributivo (ou seja, o socialismo, a social-democracia ou o liberalismo igualitário) seriam injustos porque não dariam “às pessoas o que os princípios retributivos dão: o direito a decidir o que fazer com o que se possui” (Nozick, 1991: 168 e 169). Para provar que a redistribuição é inaceitável como alternativa moral, Nozick introduz o célebre argumento “Wilt Chamberlain”, ao que vale a pena emprestar atenção.

Nozick convida-nos a propor um esquema D0 que consideremos justo (nosso padrão de justiça, por exemplo: a cada um segundo seu trabalho, ou a cada pessoa a mesma renda, a cada qual segundo suas necessidades). Neste mundo hipotético existe um excelente jogador de basquete, Wilt Chamberlain, que assina um contrato com seu clube, de acordo com o qual 25 centavos de cada ingresso vendido nas partidas locais vão parar diretamente em seu bolso. As pessoas podem escolher ver uma partida de basquete, comprar caramelos ou comprar uma revista... Suponhamos que voluntariamente um milhão de pessoas decidam assistir à primeira partida local onde Wilt Chamberlain exibirá seus dotes; então, Wilt Chamberlain é agora (D1) 250 mil dólares mais rico por vontade dos pagantes. Agora, se supúnhamos que D0 era justa e, consequentemente, aceitamos que as pessoas tinham direito a dispor de suas porções em D0,e não havendo engano, chantagem ou roubo em meio ao processo descrito, resulta que D1 também é justa. Assim, diz Nozick: “Nenhum princípio de redistribuição pautado por justiça pode ser realizado continuamente sem intervenção sistemática na vida das pessoas” (Nozick, 1991: 164-166), isto é, sem que o Estado se encarregue permanentemente de fiscalizar nossas ações.

A força persuasiva do argumento Wilt Chamberlain é bastante mais fraca do que pode parecer à primeira vista, pois Nozick parece esquecer a seguinte possibilidade: se D0 era justa em t0, ainda quando voluntariamente passarmos a D1 em t1, cabe a possibilidade de que imediatamente, em t2,decidamos retornar a D0 (de modo que em t2, D2 = D0), algo que fazemos habitualmente em uma comunidade política com governo representativo através do pagamento de impostos. Em realidade, o problema não é tanto um “esquecimento” quanto uma falácia. O que nos propõe Nozick não é que distribuamos bens de acordo com nosso padrão ideal de sociedade justa, mas sim que façamos uma distribuição inicial de direitos inquestionáveis de propriedade sobre todos os bens, algo que é próprio de seu padrão de sociedade ideal, mas não necessariamente do nosso (Nagel, 1995: 148 e Kymlicka, 1995: 116-118).

O INDIVIDUALISMO POSSESSIVO

Retornemos um momento ao primeiro princípio do sistema retributivo de Nozick, o princípio de aquisição apoiado em uma cláusula lockeana enfraquecida. Diz Nozick que a apropriação de um bem é aceitável se realizarmos alguma espécie de compensação às pessoas que vêem piorada sua situação com nosso ato. Poderíamos perguntar-nos: compensálas como? Materialmente? Quanto vale nossa falta de liberdade no uso da natureza? Quanto vale a falta de liberdade que herdarão nossos descendentes?Além disso, com o que nos vai pagar o apropriador, se não com o mesmo bem que não lhe pertence até que nos compense? A idéia parece bastante similar ao processo de privatizações das empresas públicas argentinas, onde grande parte dos pagamentos ao Estado se fizeram vendendo-se os ativos da empresa que se estava comprando.

Por outro lado, é manifestamente absurdo que a comparação de situações piorar/melhorar se estabeleça entre uma situação a-social e uma de apropriação ilimitada, sem que outras alternativas sejam consideradas. Nozick diz-nos que, se alguém vê restringido seu âmbito de ação pela falta de propriedades, ou mesmo morre de fome na sociedade libertariana, isto não quer dizer que sua situação tenha piorado, porque sua falta de talentos ou de vontade tê-lo-ia levado ao mesmo resultado em um mundo sem propriedades (Nozick, 1991: 178 e 210). Ainda que isto fosse verdadeiro (não nos ocorre meio de prová-lo), nada nos diz com respeito a uma comparação do que teria acontecido com essa pessoa se vivesse ela em um capitalismo de economia mista ou no socialismo.

Em todo caso, é necessário reforçar que em seu princípio de aquisição, Nozick supõe, como Locke, que as pessoas são proprietárias de si mesmas. Entretanto, ao contrário do filósofo inglês, que acreditava que o mundo era posse comum da humanidade (Locke, 1990: §25), o professor estadunidense parece pensar que o mundo não é de ninguém, e está ali, pronto para ser apropriado ao primeiro que o reclame. Esta diferença é fundamental, porque é graças a ela que Nozick evita a exigência do consentimento. Ao passar por cima do consentimento na aquisição de propriedade, Nozick está repetindo o esquema que utilizou para justificar o Estado mínimo, o qual não requeria que todos os súditos consentissem, mas apenas que fossem compensados por não permanecerem independentes dele.

Isto é notável, já que supõe que tanto o apropriador como a agência de segurança atuam, para dizê-lo utilizando o vocabulário da ciência política, de modo tutelar ou paternalista (fazendo por nós o que é mais conveniente, compensando-nos), algo que parece ir na contracorrente não só da tradição socialista mas também também da liberal.

Dito isto, poder-se-ia pensar no texto de Nozick como na caricatura do modelo do indivíduo possessivo delineado pelo C. B. Macpherson (1979: 275 e sg,), obcecado pela propriedade privada em sua forma capitalista mais do que pela autonomia, a dignidade, a liberdade ou o merecimento (Cohen, 1995: 37). Não obstante, Nozick declara-se a si mesmo como um defensor da liberdade; de fato, não perde oportunidade para sustentar que seu objetivo é defender, acima de tudo, a autonomia e a igualdade moral dos seres humanos e evitar o risco de que alguém lhes diga o que devem fazer, procurando desse modo que cada um se dedique a realizar seu ideal de boa vida.

O MUNDO FORA DE ESQUADRO

No marco do Estado mínimo, “qualquer grupo de pessoas pode desenhar uma pauta e tratar de persuadir aos outros para que participem da aventura de uma comunidade segundo esta pauta. Visionários e excêntricos, maníacos e santos, monges libertinos, capitalistas, comunistas e democratas participantes (...) todos podem fazer seu intento de construir uma visão...” (Nozick, 1991: 304). Esta amplitude pode parecer “estimulante”, mas em um mundo como o que Nozick propõe, em que os títulos de propriedade são indisputáveis e absolutos; em que os direitos aparecem como restrições e estão marcados pela mesma propriedade; em um mundo em que, finalmente, não somos cidadãos, mas súditos de uma “agência de proteção”, como evitar que este caminho hipoteticamente aberto a todas as possibilidades se transforme numa distopia digna de nossos piores pesadelos?

Até certo ponto, podemos ver as teses nozickianas como uma perfeita descrição do que Hegel ou Marx chamavam a “sociedade burguesa (ou civil)”, esse mundo da eticidade “perdida em seus extremos” (Hegel: 1993, § 184), esse mundo em que ficam rotos os tradicionais laços solidários e no qual cada um corre por e para si mesmo.

O horizonte fora de esquadro de Nozick fica evidente com um exemplo de Sen (citado em De Vita, 2000: 68). Imagine-se um indivíduo “A” que assiste ao intento de “B” de assassinar uma terceira pessoa, a quem chamaremos de “C”. “A” não tem a obrigação de impedi-lo, mas apesar de tudo quer fazê-lo. O problema é que para chamar a polícia deve utilizar o telefone de “D”, violando dessa maneira os direitos de privacidade e propriedade deste. O que deve fazer “A”? Para Nozick a resposta parece estar clara: nada. Embora se possa traçar certo paralelismo com o célebre exemplo do assassino kantiano, aqui a essência da questão é que não há um dever político, mas tão somente uma restrição moral (recorde-se que no exemplo do Kant, se eu mentia com respeito ao paradeiro de meu amigo para tentar salvá-lo e, apesar de tudo, o assassino o encontrava, eu era responsável pelo assassinato). Quer dizer, o nó do problema é que o Estado não nos serve para nos guiar na prática, porque não se trata de um Estado que “torna positivos” direitos mas que “força” o cumprimento dos deveres.

O Estado mínimo não é “nosso Estado”: é uma agência que reforça nossas interdições morais. Não é necessário que sejamos “cidadãos” (nem no sentido do Rousseau nem no do Kant), mas tão somente súditos que obedecem às leis. Ocorrem-nos então algumas perguntas: quem nos guardará dos possíveis excessos, enganos ou omissões do Estado mínimo? Temos, como na teoria do Locke (1990: § 243), direito a resistir? E se a resposta é afirmativa, em razão do que teremos esse direito e com que armas o faremos valer? E ainda sem chegar a esses extremos, nos casos de conflitos entre direitos, dado que a maioria não tem o papel preponderante que possuía nas teses lockeanas (Locke, 1990: § 99), sob que regra se regerá o Estado mínimo e por quê?... Ao fim e ao cabo, os argumentos de Nozick não soam como uma forma estilizada das exigências de Reagan de acabar com o “problema do Estado”?

CODA

Como dissemos no princípio deste texto, provavelmente seja um ato de injustiça a sinédoque a que se submete (e a que submetemos) o pensamento do Nozick. Entretanto, em certa forma ao menos, é uma “injustiça justificada”. Em nossos dias, quando verificamos cotidianamente algumas das iniqüidades mais aberrantes e mais perigosas, nada mais justo que tentar extirpar a semente de um pensamento que serve de sustento à permanência e à expansão dessas iniqüidades.

Na América Latina, somente entre 1980 e 1995, o 1% mais pobre da população viu reduzidos seus ganhos em 14%, enquanto que o 1% mais rico incrementou sua renda em 52%. Na América Latina, milhões de pessoas morrem por causas evitáveis. Na América Latina, as reformas neoliberais estão convertendo o Estado em um ente raquítico, incapaz de enfrentar os interesses predominantes no mercado (Boron, 2000: 180-182).

Na América Latina, infelizmente, a distopia de Nozick vem-se realizando a passos largos. Se não queremos continuar nessa trilha, que se assemelha de um modo alarmante a esse mundo “fora de esquadro” onde os proprietários têm discricionariedade absoluta e os dispossuídos não têm sequer seus direitos humanos básicos, teremos que voltar a pensar no Estado e em seu papel redistributivo como um passo mínimo e urgente

SERGIO D. MORRESI
É licenciado em Ciência Política pela Universidade de Buenos Aires e doutorando em Ciência Política na USP.

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