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A Filosofia e a Condição Humana - I

Newton Aquiles von Zuben

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Filosofia e admiração

O sentido primordial do ser foi a preocupação primeira daqueles que posteriormente foram denominados "filósofos". Estes pensadores viram diante de si algo "thaumaston", algo extraordinário que os surpreendia arrebatando-lhes o olhar. Aristóteles, no início de sua obra Metafísica afirma: " Na verdade, foi pela admiração que os homens começaram a filosofar tanto no princípio como agora" (982 b-l3/14) thaumazein é o verbo grego que de modo aproximativo tentamos traduzir (sem dúvida amparados nos latinos que primeiro o entenderam como admirari) como admirar-se. Trata-se de um estado que nos acomete quando nos defrontamos com algo estranho por ser "thaumaston" extraordinário, admirável. No diálogo Teeteto, Platão refere-se à esta admiração como um pathos um estado interior que sentimos quando algo nos arrebata. "Experimentar esta espécie de encantamento, afirma Jolif, constituído pelo fato mesmo de ver é, segundo Platão, a paixão que afeta, mais que aos outros homens, o filósofo". E, em nota, acrescenta o mesmo autor: "Só assim, pensa Platão, o filósofo é eminentemente humano; pois, o homem é feito de modo a viver no thaumazein, isto é, a filosofia; nisto se distingue dos animais e dos deuses (Banquete, 204)" (Jolif, 1970 p. 21). Este sentimento nos acomete bruscamente sem que o busquemos. No verbo thaumazein encontra-se a raiz thea que significa ver, olhar. Ver e olhar atentamente (como arrebatado em paralisia) os latinos entendiam como contemplatio, contemplação. Aí articularam-se admirar e contemplar. Se Platão e Aristóteles vincularam o thaumaston e o filosofar "é para os que se recusam a conhecer o momento ambíguo do encantamento, como um espantalho." (Jolif, 1970, p. 20). E cita Clemente de Alexandria que diz: "a maioria das pessoas teme a filosofia dos gregos como as crianças receiam a assombração; têm medo que ela os arrebate." (Stromata, IV, 80, apud Jolif, 1970, p. 20). Thaumazein foi entendido também como theoria (theorein). "0 ser-possuído pelo olhar, o dever-ser-inteiramente-olhar para o que se apresenta, define a essência da admiração". (Stein, 1975, p. 99). O ver se detém no objeto cujo surgimento causou o impacto sentido pelo olhar. Depois do "estado de admiração paralizante, o objeto se manifesta, provocando a vontade de saber. Com este querer saber pelo saber, nasce a filosofia." (Stein, 1975, p.99).

Continuando a mesma passagem da Metafísica, Aristóteles afirma que, perplexos (os homens) de início, ante às dificuldades mais óbvias, avançaram pouco a pouco e enunciaram problemas a respeito das maiores, como os fenômenos da lua, do sol e das estrelas, assim com a gênese do universo." O que arrebatava seu espanto admirado era, em primeiro lugar a natureza, a physis. Somente mais tarde, Sócrates voltou-se preocupado para o homem e as suas "dificuldades". "Na visão socrática, afirma Lima Vaz, o "humano" só tem sentido e explicação se referido a um princípio interior ou a uma dimensão de interioridade presente em cada homem e que ele designou justamente com o antigo termo de "alma" (psyché), mas dando-lhe uma significação essencialmente nova e propriamente socrática." (Lima Vaz, 1991, vol. 1. p. 34). E mais adiante esclarece que, para Sócrates, a alma é a sede de uma areté (excelência ou virtude) que permite medir o homem segundo a dimensão interior na qual reside a verdadeira grandeza humana". (Lima Vaz, 1991, vol. I, p.54). Aristóteles desejava assegurar as condições para o filosofar. "E o homem que é tomado de perplexidade e admiração julga-se ignorante ... ; portanto, como filosofavam para fugir à ignorância, é evidente que buscavam a ciência a fim de saber, e não com uma finalidade utilitária. E isto é confirmado pelos fatos, já que foi depois de atendidas quase todas as necessidades da vida e asseguradas as coisas que contribuem para o conforto e a recreação, que se começou a procurar esse conhecimento." (992-b/20-25).

Natureza humana e condição humana

O humano, em seu existir, sempre apresentou-se -- desde épocas remotas até nossos dias -- sob perspectivas diferentes. Desde Sócrates ele tornou-se um thaumaston. Correlativamente, diferentes e inúmeros modos de concebê-lo se sucederam no tempo e coexistiram no espaço nas mais diversificadas culturas.

Por mais variadas formas que tomaram as interrogações, estas podem resumir-se a uma questão básica com duas vertentes: o que é o homem?" e "quem é o homem?", tendo ambas em comum a certeza de o interrogador estar de um modo ou de outro implicado no âmago mesmo da questão. Assim sua forma torna-se "quem sou eu?". Neste círculo da compreensão, onde a relação sujeito-objeto deve receber tratamento peculiar, a expectativa da resposta face à questão se reveste da urgência e da força manifesta na fala da Esfinge: "responde ou morrerás". O enfrentamento da questão como compreensão do sentido passa a ser característica essencial do próprio homem. Vai de seu ser o questionar-se sobre o sentido de seu existir. Este passa a ser o thaumaston.

Reconhecendo-se parte integrante da tríade Eu-Natureza-Outro, a compreensão da natureza (mundo) e do outro articula-se dialeticamente com a compreensão de si. "Quem sou eu?" é a manifestação primeira do homem como questionador, como logon echon (o que tem a palavra). " O que admira quer dar a palavra ao seu objeto: logon didónai, afirma o prof. Stein (l975). E acrescenta, "esta possibilidade de dar palavras, logon didónai, se fundamenta no fato de que ela é primeiro possuída. O homem, no pathos da admiração, é posto em movimento em sua própria essência enquanto é: logon echon (o que tem palavra). " (Stein, 1975, pp. 100-101).

O arcabouço desta palavra originária, ou da linguagem como arché (princípio), onde estão vazadas as relações Eu-Mundo-Outro, definirá a "condição humana" como situação e transcendência. Sobre esta palavra originária que caracteriza o ser humano irá constituir-se, hoje, a linguagem como instrumento de conhecimento e como comunicação.

No início deste século, Max Scheler, tido como o sistematizador da disciplina Antropologia Filosófica no sentido que hoje se lhe dá, refere-se a uma situação de crise devida, de modo eminente, à falta de unidade nas concepções de homem em nossa cultura ocidental, e conseqüente diversidade dos discursos sobre o humano. Diversidade é o diagnóstico; diversidade na história que apresenta as mais variadas concepções de que se tem conhecimento na cultura; e diversidade dos discursos das múltiplas ciências que provocaram a pulverização do "objeto": homem. Mesmo entre as denominadas ciências humanas", por apresentarem facetas peculiares em seus pressupostos epistemológicos e em seus objetivos, parece difícil uma articulação conciliatória.

O que para muitos é uma riqueza --essa pluriversidade -- Max Scheler vê nesse fato uma situação de crise. De fato, inúmeras concepções e idéias de homem povoam nossa história. As filosofias, as ciências exatas e as ciências humanas (desde o séc. XIX) sempre se voltaram para esta questão. Muitas filosofias apresentaram mesmo a "teoria do homem" como a medula de seus sistemas. O prof. Lima Vaz refere-se em sua citada obra à proposta de A. Diemer de uma Antropoteoria "tendo como objeto as imagens do homem difusas na cultura e que se inspiram oras nas ciências hermenêuticas, ora nas ciências empírico-formais." (Lima Vaz, 199 1, vol. I, p. I I).

Na realidade, pelas ciências conhecemos diversas facetas dos "homines": homo sapiens, homo loquax, homo ludens, homo socialis, homo economicus, homo religiosus, homo cyberneticus e, recentemente, homo symbioticus! O que isso nos ensina? O que a história nos revela? Não será algo bem simples: que a idéia de homem é pluriversal? Por quê razão deve-se buscar uma dimensão que fundasse a unidade para além das concepções diversas? É possível a constituição de uma idéia universal de homem? Para resolver qual tipo de problema? Tais são questões que merecem nossa atenção. A busca de uma idéia unitária não se faz hoje sem dificuldades.

Nas sendas de Max Scheler, alguns entendem que a tarefa de uma Antropologia Filosófica consistiria em elaborar uma idéia unitária de homem com a manifesta pretensão de se erigir como logos explicativo e fundante das diversas concepções sobre as manifestações do existir humano. O " objeto" homem desdobra-se em múltiplas direções. "A Antropologia Filosófica, afirma Lima Vaz, se propõe encontrar o centro conceptual que unifique as múltiplas linhas de explicação do fenômeno humano e no qual se inscrevam as categorias fundamentais que venham a constituir o discurso filosófico sobre o ser do homem ou constituam a Antropologia como antologia." (Lima Vaz, 1991, vol.l,

A história da filosofia nos mostra que a idéia unitária foi também constituída, elaborada por filósofos para fazer frente a determinados problemas, e tal posição coexistia com outras concepções divergentes que antecederam ou que se seguiram. Trata-se, então, de mais uma concepção ao lado de outras. Pode-se perguntar: por quê razão dar primazia a esta em vez de qualquer outra? A que problema se defronta a resposta que se apresenta como a busca da essência-universal e necessária -- de homem? Deve mesmo a Antropologia Filosófica defrontar-se com a questão da "natureza humana", da essência humana? Responder à questão: "quem sou eu?" estabelecendo a essência do homem, não pode parecer, hoje, uma pretensão desmesurada e até anacrônica face à "condição humana" (praxis) e diante da realidade das ciências humanas (teoria)? Quer me parecer que a Antropologia Filosófica deve voltar-se sobretudo para a questão: que vamos fazer do homem? De posse de uma idéia unitária de homem, isso nos garantiria a superação da crise à qual, segundo Max Scheler, deveria estar sensível a Antropologia filosófica face aos diversos discursos e saberes novos sobre o homem e que nossa história recente nos revela? Repito, que problema seria solucionado com a constituição de uma idéia unitária que subsumisse todas as diversas concepções através da história? E mais, como se constituiria tal idéia unitária? A constituição desse "universal" que representa todos os homens no Homem se daria em detrimento das condições históricas particulares? Que tipo de tipo de "ponto de junção" seria adequado e eficaz para efetivar tal articulação entre a idéia universal e as particularidades?

Ademais, uma crise é para ser superada? O que é crise? O que significa e implica uma superação? Ou a crise denota "dar razão de" (logon didonai), empreendimento singular da tarefa filosófica? Não seria a crise a situação normal e não-crise a exceção? No plano humano -- é o que nos interessa quando tentamos "pensar a condição humana", tal como nos sugere Hannah Arendt -- a própria concepção ontológica do homem, vale dizer, a compreensão do ser humano vazada em categorias universais não é ela própria uma criação da cultura humana, da cultura filosófica?

Pode-se objetar que o fato de se afirmar que o homem, na história justamente por reconhecer-se histórico constrói a cultura é uma posição reducionista (historicista). Como entender a concepção que pretende atribuir ao homem uma essência, ou constituir uma idéia unitária do homem?

Platão, em sua metafísica, tentou evitar a diversidade das aparências e o problema da mudança com a teoria das Idéias e com sua teoria dos modelos: cada ente do mundo sensível deve corresponder a uma idéia, no mundo ideal, garantia de verdade. O homem concreto deste mundo sensível deve corresponder ao modelo de homem no mundo das idéias. Assim à essência (eidos) de homem correspondem todos os homens como cópias que correspondem a seu modelo. Estaria garantida a unidade, a idéia seria garantia da unidade. Só a idéia é verdadeira. O problema foi solucionado. A metafísica de Platão, com seu mundo sensível e o mundo ideal não é uma criação (genial por sinal) no universo da cultura humana? Platão não tencionava, talvez, encontrar uma invariante, a natureza humana, que perdurasse na história não só como evento mas como narração?

Qual a razão de ser da "idéia unitária"? Exigência de sistema -- como arranjo ou arquitetônica de conceitos --, que torna imediatamente compatíveis e compossíveis todos os aspectos da experiência" (Merleau-Ponty, 1966, p. 166)? Ou uma exigência de se encontrar um fundamento absoluto? "Que haja ou não, afirma Merleau-Ponty, um pensamento absoluto e, em cada problema prático, uma avaliação absoluta, não disponho para julgar senão de opiniões minhas, que são passíveis de erro, por mais criteriosamente que eu as discuta". (Merleau-Ponty, 1966, p. 166). E, prossegue o filósofo, "quando não é inútil, o recurso a um fundamento absoluto destroi aquilo mesmo que deve fundar". (Merleau-Ponty, 1966, p. 166).

A "condição humana" hoje impõe-se, como questão, à nossa reflexão filosófica, assim como no passado se impôs a ,,natureza humana" ou a questão "idéia" de homem. A própria historicidade do humano reconhecida de modo marcante desde Hegel até nossos dias, não se estende também às concepções científicas nos dando a entender que a própria concepção essencialista do homem deva passar pelo escrutínio crítico da reflexão? Aí reside para a filosofia a autêntica "crise" (krinein). Diante das mais diversas ciências que tomam o homem como " objeto" de investigação, a tarefa de uma Antropologia filosófica seria a de apresentar uma idéia unitária de homem? Ou, ao contrário, não se trataria, diante da fertilidade do poder criador do homem (cultura) de uma situação de diversidade essencial, de uma "pluriversidade" gerando um campo de debate onde inúmeras interpretações se fertilizam reciprocamente? O que uma ou mais concepções revelam? O que uma antropoteoria apresenta numa determinada época? Não são a própria condição humana, as experiências vivas, concretas, de seres históricos, sempre diversas? Ou uma ficção científica? No passado, falava-se de utopia e não de ficção científica. A utopia "desempenhava o papel de modelo social cuja finalidade e irrealidade era freqüentemente aceita." (Schaff, 1991, p. 154). E na "condição humana" é o homem (são os homens) que se mostram como ser situado no mundo. E "é diante de nós, afirma Merleau-Ponty, na coisa onde nos coloca nossa percepção, no diálogo onde nossa experiência do outro nos lança por um movimento do qual não conhecemos ainda toda a elasticidade e toda força, que se encontra o germe da universalidade ou a 'luz natural' sem os quais não haveria conhecimento. (Merleau-Ponty, 1966, p. 163).

Qual, então, a tarefa da Antropologia filosófica numa época de exuberante diversidade e plasticidade das ciências humanas? Reapresentar uma concepção metafísica que resgate a idéia unitária? Como conciliar um tal discurso com os discursos científicos das ciências tanto as exatas ou empírico-formais, quanto as hermenêuticas? Como poderíamos pensá-las, em sua articulação, as diversas concepções e perspectivas sob as quais se revela o humano através da história? Como articular as ciências e a filosofia em seus discursos sobre o humano? MerleauPonty refere-se a uma lei da cultura segundo a qual esta só progride obliquamente, isto é, "cada idéia nova tornando-se após aquele que a instituiu outra coisa do que nele era." (MerleauPonty, s/d, p. 341). E, afirma o filósofo nesse seu ensaio "0 homem e a adversidade", "um homem não pode receber uma herança de idéias sem a transformar pelo próprio fato de que dela toma conhecimento, sem lhe injetar a sua própria maneira de ser, e sempre outra." (Merleau-Ponty, s.d, p. 341). Deve-se reconhecer um avanço nas ciências humanas na ordem da especialização e do alargamento de novas questões. A sociedade informática (Adam Schaff) lança, hoje, contundentes desafios à nossa capacidade de reflexão. Diante das velozes e profundas mudanças de ordem econômica, social, cultural e política, o indivíduo vê transfigurar-se a sua "condição". como "homo autocreator" na expressão de Adam Schaff, ele busca para si novo sentido da vida e novos valores para orientar sua ação. Merleau-Ponty (s/d), em seu ensaio citado acima, quase nostálgico, afirma: " Pomo-nos, por vezes, a ponderar o que poderiam ter sido a cultura, a vida literária, o ensino se todos aqueles que nisso participam, tendo rejeitado os ídolos uma vez por todas, se entregassem ao prazer de refletir em conjunto..." (p. 369). O que me incômoda nesse texto de Merleau-Ponty são as reticências!

A frase truncada por uma força desconhecida e poderosa, tal como um sonho que se desfaz ao se despertar bruscamente. De fato, o próprio MerleauPonty (s/d), nos desperta, ao afirmar em seguida, numa expressão tão seca quanto enigmática, sem explicações posteriores, quase um lamento: "Mas esse sonho não é razoável." (p. 369).

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