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A Filosofia e a Condição Humana - II

Newton Aquiles von Zuben

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Diante disso, que sentido teria, hoje para nós, uma idéia unitária de Homem ,idéia essa proposta como solução a um determinado problema pela metafísica platônica? Esse problema foi essencial em determinado momento, para a reflexão filosófica. Ainda Merleau-Ponty (s/d) nos lembra que: "0 movimento das idéias só chega a descobrir verdades ao responder a alguma pulsação da vida interindividual, e toda mudança no conhecimento do homem tem nele relação com uma nova maneira de exercer sua existência (p. 342). Merleau-Ponty vê nas idéias uma volubilidade constante que as transforma "à medida que nascem". As idéias de homem transformam-se, pois, a situação humana se modifica. "Se o homem é o ser que não se contenta em coincidir consigo, como uma coisa, mas que se representa a si mesmo, se vê, se imagina, se dá de si mesmo símbolos, rigorosos ou fantásticos, é evidente que em contrapartida, toda mudança na representação do homem traduz uma mudança no próprio homem" (Merleau-Ponty, s/d, p. 342).

O homem, ser não coincidente consigo, tal uma coisa, ser inconcluso, viajante, situado mas transcendendo-se sem cessar; ser único capaz de se representar, ser simbólico. Merleau-Ponty vê como evidente a interelação entre autorepresentação e o próprio ser do homem como existente histórico e social. Idéia e situação concreta refletindo-se dialeticamente. Homem situado, eis sua situação originária, condição que o leva a questionar-se como existente. O que é existir? "A existência, afirma MerleauPonty (l966), é o movimento pelo qual o homem está no mundo engaja-se numa situação física e social que se transforma no seu ponto de vista sobre o mundo."(p-125). Situação física, vale dizer, o homem defronta-se com objetos – os pragmata -- frutos de sua póiesis , as coisas seladas com sentido pelo poder significante dessa poiesis, desse operar. Recupera importância, hoje, a questão da relação do homem com a natureza. Serge Moscovici (l975) já nos alertara, ao afirmar: "tudo nos leva a pôr fim à visão de uma natureza não humana e dum homem não natural." (p. 13). Situação social vale dizer, o homem encontra-se com o outro, no face a face, instaurando a trama social, encontro vazado pela sua praxis, por sua ação. Vida no diálogo dirá Martin Buber. Ser no mundo, "nossos pensamentos, nossas paixões, inquietações giram em torno de coisas percebidas" (Merleau-Ponty, 1966, p. 127). Nossa consciência intencional, voltada para o outro que ela mesma, o diferente; tal movimento lhe é essencial, e é através dele -- como intencionalidade -- que a consciência busca uma "estabilidade que lhe faz falta. " (idem).

Trata-se de elaborar um conceito de humano. Se tomarmos como ponto de partida o empírico, o caminho a seguir é destacar pela observação os traços que de certo modo especificam o ser humano. Poderíamos tomar, por ex., a linguagem, a fabricação de utensílios, a capacidade de significação, a afetividade. Enfrentamos, no entanto, um problema: como detectar um traço como peculiar exclusivamente ao humano? Em outros termos, como afirmar que tal traço só se revela no grupo humano e em cada indivíduo desse grupo? Impõe-se então, uma assinalação que permita assegurar que tal indivíduo responde à caracterização de humano, pertence ao grupo humano. Pode-se entrar num beco sem saída. Apela-se, então, a um aspecto não empírico, isto é, à via reflexiva. Construir um conceito de humano reflexivamente significa partir do fenômeno humano em sua auto-mostração e daí elaborar sua estrutura constitutiva. Outro problema surge; este esforço reflexivo é, por sua vez, uma atividade do humano. Isso implica, então, que se lhe reconheça a possibilidade de autocompreensão que viabiliza qualquer explicitação de conceitos articuladamente ordenados. Admite-se, assim, a possibilidade de uma pre-comprensão, tida como elemento constitutivo do ser humano que pode tornar-se patente no discurso através da reflexão. Em outros termos, o sujeito humano como possuidor da palavra -- logon echon -- expressa por esta palavra uma auto-apreensão considerada um dos elementos constitutivos de seu próprio existir. Tal auto-apreensão não é mera intuição, mas uma decifração, uma hermenêutica. Tal auto-apreensão interpretativa alia-se a uma auto-avaliação. Isso quer dizer que a compreensão implica um posicionar-se frente a si próprio. O que o sujeito "diz" ao auto-apreender-se relaciona-se dialeticamente, como o próprio existir, com aquilo no que ele se transforma ao existir. Temos assim um existir concreto, efetivo e a constituição de um conceito do humano -- e uma hermenêutica do existir humano. As condições do existir afetam a auto-apreensão -- pre-refiexiva -- desse existir e deverão igualmente afetar a reflexão, ou a auto-apreensão reflexiva do sujeito humano. Dentre estas condições originárias, a historicidade. Isso significa que a auto-apreensão não procede à maneira de uma posse imediata realizada uma vez por todas de uma "essência" homem, uma apreensão fora do tempo. O existir se mostra, em sua constituição, como fluxo significativo de eventos -- é a condição humana histórica --, do mesmo modo a reflexão é um processo de reapropriação e de reavaliação interpretativa contínuas abrindo sempre novas possibilidades de compreensão. Como enigma prático o existir vai, em sua dinâmica própria, revelando-se sob novos aspectos, buscando para si sempre novas conformações. A historicidade é, assim, constitutiva tanto do existir quanto da elucidação interpretativa desse existir.

A busca do sentido

A teoria dos gregos, traduzida pelos latinos por contemplatio (contemplação) denota uma separação. Contemplar significa separar alguma coisa em algum setor distinguindo-a.

A teoria do "homem" define um modo de o homem se mostrar. A teoria vai de encontro com o real porque este, por sua vez, deixa-se abordar em sua "mostração", em sua aparição. Há relação entre a contemplação (visada, atitude própria do sujeito) e o fenômeno visado que se deixa visar. Esta relação é uma relação de interdependência. E mais, é necessário uma série infinda de "visadas", de abordagens para se estabelecer o sentido (significado e direção) da existência humana. No transcurso de seu existir histórico, o homem manifesta-se sob a forma de "obras", realizações, feitos que são sinais. O homem é um "mostrador". Signo é aquilo que, em sua constituição, indica. Ele indica a si mesmo e aquilo do que ele é a "mostra". O que se refere aos homens, suas obras são os indicadores de sua ação no mundo. O que constitui o mundo? Como se instaura a mundanidade? É o resultado da interação do homem com tudo o que está à sua volta, o ambiente. Não é o homem que constitui o mundo mas ele tem sua parte nessa constituição. O mundo é constituído pela relação entre homem e as coisas, para empregar um termo simples. Tal relação é uma relação de sentido. Uma obra de arte mostra-se como uma obra de arte do homem ou como uma maneira (índice) de o homem significar e habitar o mundo (como artista, como artífice que deu forma a alguma coisa. Ele ordenou uma certa realidade: tintas, tela, sombra, espaço, transformando tudo isso em um quadro, uma obra de arte. O homem se mostra mas também pode esconder-se nas suas obras no momento em que estas se mostram à visão, à visada, à contemplação. Ao fazer "feitos", ao obrar ,,obras", o homem age sobre a realidade aparentemente "informe" e a transforma em mundo. Note-se porém, que ao se dizer que algo é uma realidade essa afirmação já está indicando certa forma. Eu posso transformar des-formando uma forma, uma ordem já existente. Por isso que certas formas, certos "mundos" para muitos tem um sentido e para outros não apresentam sentido algum ou outro sentido (são diferentes).

O homem habita o mundo basicamente de dois modos: pela ação (praxis) e pela compreensão. Habitar o mundo implica para o homem ter à sua disposição os utensílios necessários para produzir sua existência abrindo-se à sua circunstância. Estabelece-se uma homeostase entre o homem e a realidade. O meio ambiente oferece ao homem os meios para a obra, assim o homem humaniza a natureza e esta o naturaliza. O homem faz algo e surge o mundo. A praxis atua o mundo e este mundaniza a ação.

Habitar o mundo pela ação denota a vasta e rica dimensão da experiência concreta, vivida nas relações com o mundo e os outros. Deve-se considerar uma distinção importante: de um lado, o mundo da ciência, o universo melhor dizendo, é um mundo pensado, destinado a uma operação intelectual, à explicação; de outro lado, o mundo para mim é um mundo vivido e, é este mundo que tenho que compreender. Merleau-Ponty (l975), em seu magnífico ensaio, O olho e o espírito, observa: "A ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las. Fabrica para si modelos internos, operando sobre esses índices ou variáveis as transformações permitidas por sua definição, só de quando em quando se defronta com o mundo atual. Ela é, sempre foi, esse pensamento admiravelmente ativo, engenhoso, desenvolvido, esse parti pris de tratar todo ser como "objeto em geral", isto é, a um tempo como se ele nada fosse para nós e, no entanto, se achasse predestinado aos nossos artifícios." (Merleau-Ponty, 1975, p.275).

E mais adiante acrescenta: "Dizer que o mundo é por definição nominal, o objetivo X de nossas operações é levar ao absoluto a situação de conhecimento do sábio, como se tudo o que foi ou é nunca houvesse sido senão para entrar no laboratório". (Merleau-Ponty, 1975, p.276). Nas palavras de E. Stein (l975), a ciência ignora o real, ela conhece apenas o objetivo.

Esta habitação do mundo pelo homem entendida sob a égide da categoria da ação refere-se como o seu solo primeiro de expressão daquilo que se entende por experiências vividas concretas. Estas experiências são eventos que, por serem vividos, posso apreende-los através de expressão, os gestos, palavras e atividades de todo gênero. Os eventos vivemos na experiência concreta, a expressão, a descoberta de sentido visam, no homem, em cada um de nós, o plano de realização de si, o esforço próprio do existir significante. O conhecimento não visa apenas uma dissecação ordenada, metódica, rigorosa, à qual submete-se facilmente um "objeto" de investigação, visa sobretudo num plano mais abrangente a orientação para uma realização pessoal. "A vida de acesso ao evento não deve ser percorrida sob o modo exclusivo da explicação mas também sob o modo da compreensão." (Barbotin, 1987, p. IO). É preciso, portanto, afirma E. Stein (l975), mostrar à ciência os seus limites. "Por si, ela jamais será humana. Nunca poderá, por si mesma, habitar o real, apenas o manipula." (p. 107).

As obras escondem, no seu sentido, a face do homem, sua marca, seu traço, sua fisionomia. Elas "exprimem", manifestando, o sentido da existência humana. O que significa, aqui, exprimir? Pode-se entender o termo expressão num duplo sentido. Por exemplo, uma iniciativa, uma viagem, um gesto (por vezes mecânico) votar neste ou naquele candidato, neste ou naquele partido, tantas manifestações que exprimem ao mesmo tempo o que nós somos e aquilo que aspiramos ser, ou as nossas realidades, virtualidades e potencialidades.

Nossos atos e os resultados destes atos, os feitos, nos revelam o que somos, fazem aparecer ao observador nossa "natureza", nossa maneira de ser. Tal expressão nos reduz àquilo que somos de fato. Há como a própria expressão revela uma redução.

Por outro lado, tais obras, exprimem aquilo que me falta, aquilo de que careço ou aquilo que aspiro. A carência revela-se então como uma das modalidades da plenitude. De novo vemos a ambigüidade presente, uma vez que nossas manifestações têm duas faces: uma retrospectiva e outra prospectiva. Enquanto a primeira diagnostica o que o homem é, a outra anuncia, como que em pontilhado, uma possibilidade virtual do caminho, do projeto ideal, utópico que será ou não preenchido pela manifestação de fato. De um lado, constata-se (aqui a antropologia se dá como tarefa interpretar as obras como sinais da ação do homem). De outro lado, vislumbram-se as exigências e aspirações do homem. A primeira visa a exatidão maximal, a outra a utopia como fator revolucionário voltado para o futuro.

Como manifestações essenciais do homem - seus feitos, seus gestos, obras, realizações, a sua mundanização da natureza - exigem de nós que as consideremos como tais e como signos do homem. Para entende-los devemos nos dirigir a elas. Pode-se considerar isso como um "desvio", uma volta por elas para se chegar ao homem. Como chegar por essas ao homem? Por estas o homem se dispersa. Como encontrar uma unidade de sentido? Através do feito devemos chegar ao sentido do "fazer", das obras ao sentido do obrar, das realizações ao sentido do realizar. De que maneira? Aqui entra em cena a compreensão reflexiva. Esta não é pura volta da consciência sobre si mesma. A reflexão só pode operar a partir daquilo que se manifesta. Ela não consiste em retornar para a interioridade de um puro vivido mas em captar s sentido daquilo que se mostrou n exterioridade. A reflexão se esforça par ir dos efeitos de uma ação ao sentido mesmo desta ação. A reflexão tem então uma finalidade integrativa, vale dizer, após a necessária fragmentação no cotidiano das obras, das realizações, deve chegar a uma unidade. É o sentido que dá unidade a tudo. Ela é uma interpretação no sentido da unidade. Compreender significa tanto tomar posse de um processo (um teorema, uma reação psicológica, um evento social, etc.), como analisar a maneira da aparição do fenômeno, as causas, e sobretudo fazer sua a "causa" de alguém. A reflexão tenta recuperar o sentido do homem perfazendo um longo caminho que passa pelas obras, pelos feitos postos pelo homem (cultura). Podemos reconhecer nesta tarefa da reflexão, como busca de sentido, vínculo estreito entre conhecimento e a ação. Aqui a reflexão tem a ver intimamente com a concretude da praxis.

A introspecção como atividade da consciência que permanece fechada sobre si, voltada para si, revela a falsidade da consciência ou uma situação mórbida de autismo. Suspeitamos de sua autenticidade. Tal consciência simula, falsifica a realidade porque a reduz. Ela deve romper-se, projetar-se para fora de si indo de encontro com a realidade, com a concretude existencial das obras do homem. Há uma dificuldade porém. O homem não se defronta diretamente com a realidade, não a vê cara-a-cara. Ele vai ao seu encontro através de símbolos. E estes, de certo modo, ofuscam a visão clara da realidade uma vez que o homem só atinge, através destes símbolos, uma parte da realidade. E o homem orienta sua ação e sua prática social através destes. Convém esclarecer esses símbolos. Como? Através do exercício de reflexão que é um exercício de suspeita. Os símbolos tecem a região das significações complexas, de duplo sentido. Nesta região do simbólico o "outro" sentido se dá e se oculta em lugar do sentido imediato. Há sempre o invisível atrás do visível . Tal tarefa é um exercício de suspeita no sentido em que ela tenta reduzir às suas verdadeiras dimensões as ilusões das representações que impedem o acesso ao real. A reflexão elabora-se como uma abordagem crítica da realidade. A visão alienada cede lugar à consciência libertada. De que? Dos preconceitos que desvirtuam a visão. Conscientização significa recuperar nossa especificidade existencial, nossa identidade, nosso sentido como sujeito no vasto campo das objetivações, das realizações, dos atos e das obras, enfim dos símbolos. Trata-se de uma re-apropriação de nosso ser, resgatando-o de sua alienação "sócio-objetal". O homem se perde, se extravia entre os "objetos", os seus feitos, É separado do centro de sua existência, assim ele se separa do mundo e do outro, torna-se "estrangeiro" no mundo. Camus disse que o homem é estrangeiro porque o mundo é absurdo. Pode-se dizer que o mundo é absurdo porque eu me faço estrangeiro e estranho ao mundo e no mundo.

Urge ao homem deixar de ser objeto no mundo de objetos alheios para ser sujeito no mundo próprio. A passagem da consciência ingênua (falsa) à consciência lúcida (crítica) e transformadora do real, no mundo, significa reconhecer em nós a densidade cultural de nossos produtos, de nossas obras ao termo prospectiva. Afirma-se: o homem deve ser o que é. O que ele é defronta-se com o que ele aspira ser. Abre-se a fenda entre o ser e o querer-ser, origem geradora de angústia. Partindo do ser "perdido" nas obras a conscientização rompe com as falsas representações e comanda o curso da história mediante um compromisso transformador; o homem passa da alienação à liberdade. Esta liberação permite ao homem perceber o sentido de sua vontade de ser. A praxis reflexiva constitui a "apropriação de nosso esforço por existir e nosso desejo de ser, através das obras que testemunham este esforço e este desejo" (Ricoeur). A reflexão liberta o homem. Ela se desenvolve então como denúncia e como anúncio.

Antropologia: filosofia e ciência.

De modo geral "antropologia" designa o conjunto, das ciências humanas, procurando abranger o fenômeno humano o mais globalmente possível, no conjunto das manifestações. Toda ciência é de certo modo antropologia. Não há ciência pelo homem que não seja ciência do homem, reveladora do homem. Fazer ciência é um certo modo de ser homem.

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