Do Poder Criativo do Juiz

AZEVEDO, Plauto Faraco de. Aplicação do direito e contexto social. 2a ed., 2a tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. 174 p. 21 cm x 13,6 cm. R$ 23,00.

 Resenha crítica escrita por Cynthia Guimarães Tostes Malta

            Plauto Faraco de Azevedo, jusfilósofo, é professor na Pós-Graduação-Mestrado em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; pesquisador do CNPq; Doutor em Direito pela Universidade Católica de Louvain, além de assíduo colaborador em periódicos especializados, com temas da área de interesse abrangida por suas próprias pesquisas, sendo também o tradutor e prefaciador do livro O caso dos exploradores de cavernas, de Lon L. Fuller, Porto Alegre, Fabris, 1976, já tendo publicado as seguintes obras: Limites e justificação do poder do Estado, Petrópolis, Vozes, 1979; Justiça distributiva e aplicação do Direito, Porto Alegre, Fabris, 1983 e Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica, Porto Alegre, Fabris, 1989.

            O juiz não pode trabalhar engessado pela letra da lei.  Ele não é um mero autômato aplicador do direito positivo.  O magistrado, ao exercer a tarefa de fazer justiça, precisa buscar o melhor critério de razoabilidade para conciliar o texto legal, a intenção do legislador, a realidade de seu tempo e o caso concreto.

            Historicamente ficou-se com a idéia de que a separação dos poderes é uma criação de Montesquieu, embora uma análise mais profunda de sua obra indique que ele, na verdade, defendia a integração entre os poderes do Estado.  Esse mito da separação dos poderes foi cultivado por vários juristas no fim do século XIX e princípio do século XX, o que era um modelo puramente teórico e impraticável, que advogava contra o poder criativo do juiz.

            O Estado contemporâneo é incompatível com a separação estanque dos poderes, visto que muitas vezes necessita de decisões ágeis, impossíveis de serem tomadas pela via legislativa.  A Constituição de 1988, assim como a anterior, prevê formas de delegação da função legislativa para o Poder Executivo.

            A separação dos poderes não se identifica com o modelo inglês, pois no sistema do Common Law o judiciário tem, sem dúvida, função legislativa intensa, através da aplicação do direito jurisprudencial.

            A idéia, defendida por Montesquieu, de que os juízes haveriam de ser apenas “a boca que pronuncia as palavras da lei; seres inanimados que não lhe podem moderar nem a força nem o rigor” inspirou a criação do Tribunal de Cassação Francês, que originou a Corte de Cassação do mesmo país, o que é perfeitamente compreensível devido à prática jurídico-penal dos séculos XVII e XVIII, caracterizada pela extrema arbitrariedade dos juízes.

            O eminente publicista Beccaria é totalmente contra a interpretação das leis penais, argumentando que juízes não são legisladores e que, por essa razão, a lei deve ser cumprida literalmente.

            Antes da Revolução Francesa, o judiciário tinha enorme poder, fazendo resistência ao rei e à administração.  Os revolucionários, acreditando que o judiciário francês havia usurpado a autoridade do rei, não permitindo que o Estado se modernizasse dentro da legalidade, cuidaram de esvaziar as funções do Poder Judiciário, evitando que interferisse no novo governo.  O Judiciário perdeu sua condição independente e dois séculos depois ainda busca resgatá-la.

            Esses acontecimentos repercutiram no Brasil, na Constituição de 1824.  A primeira Constituição da República, de 1891, trouxe abertura ao judiciário, mas os juízes do Império não estavam preparados para exercer seu novo papel, razão do fracasso do Supremo Tribunal Federal no cumprimento de árbitro da legalidade para conter os excessos do Poder Executivo.

            O iluminismo procurou defender a segurança jurídica incondicional, por meio da criação de normas rigidamente preparadas, que garantiriam uniformidade nas sentenças judiciais.  O juiz estaria proibido de interpretar a lei e também não haveria graduação de penas.  Esse conceito, que se mostrou inviável, começou a perder força durante o século XIX, pois jamais seria possível existir uma legislação que previsse todo e qualquer caso que viesse a ocorrer no futuro.

            Paulatinamente tornou-se imperativo que os juízes desfrutassem de liberdade para adaptar a lei à realidade do caso concreto, assim como atualizar a interpretação, conforme o momento social a fim de evitar a obsolescência da norma.  O alvedrio é necessário para a aplicação do direito e não apenas da lei, cabendo ao jurista a árdua tarefa de especificar sua abrangência, que não pode, por seu turno, ameaçar a segurança do ordenamento jurídico.  Os positivistas se preocupam grandemente com esse assunto e afirmam que, se o poder criativo do juiz não puder ser delimitado, deve ser rejeitado.

            O livre-arbítrio do juiz encontra limites naturais dificilmente transponíveis, que são: o espírito da ordem jurídica de que decorrem diretrizes primordiais que modelam todas as entidades que a compõem; a atividade judicial atem-se ao caso concreto; das sentenças dos juízes de primeira instância cabem recursos a tribunais superiores; a atividade judicial é fiscalizada pelo advogado das partes, pelo Ministério Público e pelos juízes das instâncias superiores, sendo que a reforma da maioria das sentenças de um magistrado não seria benéfica à sua carreira; nos juízos colegiados, o pensamento de cada membro tende a ajustar-se ao do grupo.

            A formação jurídica brasileira é basicamente positivista, contrária, portanto, à recriação ou reelaboração do direito pelos juízes e tribunais, o que tem lesado notoriamente o potencial inventivo da aplicação do direito, atrapalhando a cooperação do poder judiciário no aprimoramento do nosso ordenamento jurídico e entenebrecendo o atendimento aos verdadeiros interesses em conflito.  O processo não se apresenta como meio eficaz de solucionar problemas oriundos das relações entre pessoas, mas como um fim em si mesmo, o que tem contribuído para a obstrução do judiciário, com graves resultados para a sociedade.

            O modelo positivista, adotado nas escolas de direito de nosso país, enfatizando o respeito à lei, visa assegurar a estabilidade jurídica.  O resultado, entretanto é duvidoso, visto que impede que a justiça seja eficaz, na medida em que não permite conciliar a lei com o caso concreto.

            Superando-se o arquétipo positivista, afiguram-se algumas hipóteses em que seria necessária a atividade criativa e interpretativa do magistrado, como, por exemplo, quando ele entende ser preciso reduzir ou amplificar a abrangência da lei para aplicá-la convenientemente à resolução de determinado pleito; nas demandas em que mais de uma lei poderia ser aplicada; quando o caso não está previsto no ordenamento jurídico; nas circunstâncias em que a aplicação da lei ocasionaria em uma flagrante injustiça.

            Um ordenamento jurídico perfeito e acabado, estático, sem lacunas e sem contradições é mera figura teórica, na prática totalmente utópico.  A ordem jurídica, por refletir as incoerências da sociedade que representa, é assistemática.  A legislação tradicional, que goza de prestígio entre os doutrinadores, freqüentemente conflita com a mais moderna, criada, muitas vezes, como paliativo durante crises políticas.  Muitas dessas leis são mal elaboradas e carregam um conteúdo ambíguo, de difícil compreensão.  Por outro lado, as novas regras, embora dúbias, tendem a suplantar a aplicação das antigas, em decorrência do alcance e conteúdo social, que interessa ao cidadão médio.  Com tantas normas contraditórias e lacunosas, é mister que o magistrado aplique seu poder criativo.

            A lei não pode ser visualizada como a expressão do anseio do povo, como pretendia Rousseau.  Muitas das vezes, traduz apenas o interesse egocêntrico e inconfessável de uns poucos.  Numerosos parlamentares nem sabem o assunto da pauta e votam de acordo com seus líderes partidários.  Diversas manobras permitem a aprovação de leis contrárias aos interesses dos eleitores.

            Por outro lado, o juiz precisa atualizar a idéia da lei para acompanhar a realidade de seu tempo, não podendo ignorar as exigências mutáveis e sucessivas da vida prática.  O conteúdo da norma pode se alterar sem que se modifique sua forma – o texto legal.

            O ordenamento jurídico precisa ser entendido e interpretado como um todo, para que suas regras não conflitem umas com as outras.  O julgador precisa compreender o espírito geral do direito positivo.

            Segundo a teoria objetiva de interpretação das leis, que ocupa uma posição dominante na doutrina, a norma, após sua elaboração, adquire vida própria.  Seu sentido vai além da intenção do legislador; sua compreensão se modifica com o tempo e com as circunstâncias de sua aplicação.  Sentido contrário tem a teoria subjetiva que advoga a interpretação da lei segundo a intenção do legislador que a criou.  Como nenhum dos métodos poderia ser considerado uma panacéia para a concretização da justiça, o magistrado deverá decidir, de cada vez, qual a melhor solução.

            O autor utiliza o método dialético, fazendo uma abordagem histórica e analisando, de forma crítica, cada teoria sob o ponto de vista de diversos doutrinadores.

            Plauto Faraco de Azevedo adota a teoria de que o juiz não pode ficar atrelado ao texto legal, como pretende a escola positivista, sendo absolutamente necessário usar seu poder criativo para que se efetive a verdadeira aplicação da justiça.

            O Resenhista, embora de formação positivista, compreende que é necessária uma certa liberdade na interpretação do texto legal, a fim de suprir as lacunas e evitar que se cometam injustiças.

            Concluindo, trata-se de empreitada de apurado rigor metodológico, que disseca e colige sobre as questões que intenta analisar, sem descaminhos ou aberrações.  É uma obra fundamental, posto que aborda assunto atual e polêmico, de grande utilidade na área da filosofia jurídica.

            Esse trabalho tem particular importância para acadêmicos e profissionais da área de direito e outros estudiosos de filosofia jurídica.  Sua linguagem acessível abrange a compreensão dos estudantes de graduação, sendo, entretanto, leitura indispensável na pós-graduação.

Página inicial Poder Criativo do Juiz Direitos Fundamentais OIT R. da Globalização Capit. e Globalização T. da Argumentação Direitos da mulher Flexibilização Evolução D. Trab. Recursos Jurisdição C.Julg.Incost. V. Redib. e Evicção

Esta página foi imaginada e desenvolvida por
Cynthia Guimarães Tostes Malta,
com a colaboração de inúmeras pessoas

que me enviam sugestões.
Meus sinceros agradecimentos a todos
os que me mandam mensagens,
possibilitando que eu atualize e
melhore minhas páginas.
Última revisão: fevereiro 24, 2002.

Hosted by www.Geocities.ws

1