O texto a seguir foi digitalizado do livro "Complexidade e Caos"
organizado por H. Moysés Nussenzveig, páginas 51 a 82
Rio de Janeiro: Editora UFRJ/COPEA, 1999

 

III - FRACTAIS

Ildeu de Castro Moreira

Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

O concreto é a parcela do abstrato que o uso tornou familiar.

Paul Langevin

 

Qual a geometria da natureza? Essa pergunta não parece ter uma resposta unívoca e precisa. Como Poincaré já chamava a atenção no início deste século, ao discutir o uso da geometria euclidiana ou de outras geometrias na descrição da estrutura do espaço-tempo, a resposta a ela não é absoluta. Não existe uma geometria intrínseca à natureza. Na tentativa de entender o seu entorno, o homem constrói e utiliza conceitos geométricos, escolhendo a geometria em função de sua comodidade e da maior adequação à descrição dos fenômenos. A chamada geometria fractal, da qual falaremos aqui e que trata dos conjuntos ou estruturas fractais, embora esteja em uma fase ainda incipiente, já ganhou, de alguns anos para cá, foros de um domínio científico reconhecido. Ela tem se mostrado uma interessante fonte de inspiração teórica e já encontrou aplicações variadas em muitas áreas das ciências físicas e matemáticas.

Com Galileu, no início do processo de matematização das 'leis da natureza' , que veio a se transformar em uma das características fundamentais da ciência moderna, vemos que são definidos, de início, os entes matemáticos apropriados para essa descrição. Para ele, embora a matemática seja "a língua na qual a natureza está escrita", não se trata de utilizar qualquer matemática, mas aquela que se expressa na linguagem das figuras geométricas descritas por ou compostas de retas e curvas (suaves, diríamos):

A filosofia está escrita nesse enorme livro que temos aberto diante dos olhos, o Universo. Mas não se pode entendê-lo antes de se aprender a entender a língua, de se conhecer os caracteres em que está escrito. Está escrito em língua matemática e seus caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem as quais é impossível entender uma palavra sequer (...).

Esse trecho de Il saggiatore (O ensaiador), escrito em 1623, é muito conhecido e citado. Abre, inclusive, o primeiro capítulo de A geometria fractal da natureza (1975), de Benoit Mandelbrot[1(a)], considerado o livro que consolidou as bases da geometria fractal. No entanto, uma outra passagem muito instrutiva de O ensaiador é raramente mencionada. Nela, Galileu precisará ainda mais o que entende pelos caracteres da língua necessária e útil para descrever a natureza e eliminará claramente a possibilidade de serem utilizadas 'linhas irregulares':

Chamamos linhas regulares aquelas que (...) se podem definir e demonstrar delas seus acidentes e propriedades. Assim, a espiral é regular e se define dizendo que nasce de dois movimentos uniformes, um reto e outro circular; assim, a elipse que nasce de secção do cone e do cilindro. Porém, as linhas irregulares são aquelas que, não tendo determinação alguma, são infinitas e (...) indefiníveis. Não se pode demonstrar delas propriedade alguma, nem definitivamente saber nada sobre elas. Dizer-se: "Tal acidente ocorre graças a uma linha irregular", é o mesmo que dizer: "Não sei por que ocorre". A introdução de tal linha não é melhor que a introdução das simpatias, antipatias, propriedades ocultas, influências e outros termos usados por alguns filósofos como máscara da verdadeira resposta que é "não sei". 

Newton, no início do Prefácio à primeira edição de seus Princípios matemáticos da filosofia natural (1686), uma das obras mais importantes de toda a história da ciência, faz considerações parecidas sobre as curvas nas quais a geometria se baseia:

(...) a descrição de linhas retas e círculos, sobre as quais a geometria se funda, pertence à mecânica. (...) é a glória da geometria que de poucos princípios, tirados do nada, ela é capaz de produzir tantas coisas.

Saltando mais de dois séculos, vamos reler trechos do grande experimentador francês Jean Perrin, em seu livro Les atomes, de 1913, no qual discute as evidências que levaram à comprovação da existência dos átomos e moléculas. Perrin analisa, em particular, seu trabalho experimental com o chamado movimento browniano, sobre o qual realizou uma série de experiências minuciosas, inspiradas em um trabalho teórico decisivo escrito por Einstein em 1905.

Perrin estava estudando o movimento de uma partícula muito pequena (um grão de pólen, por exemplo) dentro da água, quando observado em um microscópio. A trajetória que a partícula segue é extremamente irregular, no sentido de que muda de rumo a cada instante; essa mudança é ocasionada pelos choques com as moléculas do fluido que possuem um movimento de agitação térmica (Figura 24).

FIGURA 24 - Trajetória irregular do movimento browniano de uma pequena partícula
mergulhada na água (desenhada por J. Perrin).

Perrin vai procurar convencer o leitor de que estas 'curvas irregulares' - que não têm uma estrutura suave e para as quais não se pode definir derivadas ao longo delas - podem ser utilizadas para modelar várias situações que surgem na natureza e que, até então, não tinham sido consideradas dignas de observação e análise. Diz Perrin:

Aqueles que ouvem falar de curvas [irregulares] sem tangentes, ou de funções sem derivadas, pensam freqüentemente que a natureza não apresenta tais complicações, e nem mesmo as sugere. O contrário, contudo, é verdadeiro, e a lógica dos matemáticos manteve-os mais próximos da realidade do que as representações empregadas pelos físicos (...).

Quando Perrin fala dos matemáticos e de sua lógica, está se referindo aos trabalhos de Riemann, Weierstrass, Cantor e outros que, na segunda metade do século XIX, introduziram e analisaram alguns monstros matemáticos, como funções que não tinham derivada em nenhum ponto ou conjuntos particularmente estranhos e complicados. Com certa perspectiva premonitória, Perrin, depois de dar como exemplo de fenômeno natural irregular o crescimento multiforme e dendrítico de um floco de neve, acrescenta:

Poderíamos encontrar situações nas quais o uso de uma função sem derivada fosse mais simples do que o de uma função que pudesse ser diferencíável. Quando isto ocorrer, o estudo matemático dos contínuos irregulares provará seu valor prático... Contudo, essa esperança é nada mais que um sonho, ainda.

Uma frase de Mandelbrot, escrita logo no primeiro parágrafo do seu livro, ficou famosa por conter uma espécie de slogan da nova geometria que se propunha: "Nuvens não são esferas, montanhas não são cones, linhas costeiras não são círculos, cascas de árvores não são suaves nem o raio se propaga em linha reta". A contraposição proposital às colocações de Galileu fica clara. Para se introduzir idéias científicas novas e revolucionárias, o aspecto de convencimento dos leitores, propagandístico diríamos, é também importante. Isso pode ser visto, por exemplo, em várias afirmações de Galileu e nos escritos de Mandelbrot. Nessas ocasiões são feitas afirmações peremptórias, que posteriormente podem vir a ser consideradas como exageradas, mas que fazem parte do jogo da ciência, uma atividade humana e socialmente condicionada.

Nos modelos matemáticos construídos, ao longo dos últimos séculos, para a descrição de fenômenos físicos e no uso tecnológico, especialmente nas máquinas, predominaram sempre as formas regulares: a reta, o círculo (roda), a esfera, o cilindro, o triângulo, a elipse, a parábola e outras curvas similares. As funções diferenciáveis (redutíveis à reta na vizinhança do ponto) passaram a ser o ponto básico de partida para qualquer modelo dinâmico na física e na matemática aplicadas. Sua utilidade é inquestionável; mas seriam realmente as formas mais adequadas para melhor descrever todas as inúmeras formas naturais, inclusive as mais irregulares e multifacetadas? Com essa pergunta e essa visão, externada por Perrin e Mandelbrot, entre outros (ver o Apêndice para um sumário dos trabalhos pioneiros sobre estruturas fractais), a idéia dos fractais começa a surgir...

Neste texto discutiremos, de forma introdutória e não isenta de simplificações e omissões, os conceitos de fractal e de dimensão fractal e mencionaremos algumas das aplicações que essas idéias têm encontrado em diversos ramos do conhecimento. O leitor interessado em se aprofundar no assunto poderá consultar alguns dos livros listados nas referências (1 a 10) .

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FRACTAIS
O QUE SÃO FRACTAIS?
O QUE SÃO E COMO MEDIR AS DIMENSÕES FRACTAIS?
Um método de se medir a dimensão fractal de um conjunto: a contagem por caixa
Outras definições de dimensões fractais
MÉTODOS DE GERAÇÃO DE FRACTAIS
Geração de fractais por agregação
Modelo DLA (Diffusion-Limited Aggregation)
Modelo de junção de agregados
IFS (Iterated Function Systems)
APLICAÇÕES DOS FRACTAIS
LIGAÇÕES DOS FRACTAIS COM OS SISTEMAS CAÓTICOS E COMPLEXOS
Dimensão fractal de atratores
Bacias fractais
Conjuntos de Julia e de Mandelbrot
Outras questões significativas
APÊNDICE: ALGUNS PERSONAGENS E SUAS CONTRIBUIÇÕES PIONEIRAS NO ESTUDO DOS FRACTAIS
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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