Kaballa Esotérica
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Há bilhões de anos atrás, nos desprendemos da Fonte
Original, que também é chamada de Criador, Alah, Iaveh,
Grande Arquiteto, Brahma ou simplesmente Deus. Éramos
ínfimas partículas de Luz, Princípios Inteligentes da Criação
mas, "não mais que poeira de estrelas" lançadas num
caminho evolutivo que precisa ser percorrido para nos levar
de volta para Casa. A Terra, e a condição de humanos, é
apenas um estágio temporário. Nosso destino, como nossa
origem, é etéreo, diáfano.
Ao percorrer esta longa estrada, aprendendo a adquirir
virtudes e corrigir erros, estagiamos em todos os reinos da
natureza neste planeta e, em outras formas de vida, aqui e
em outras "moradas".
Enquanto mineral, o Princípio Inteligente desenvolve as
forças de coesão e atração; enquanto vegetal, desenvolve a
sensibilidade; enquanto animal, desenvolve o instinto de
sobrevivência, os rudimentos de hierarquia e sociedade.
Quando este Princípio desenvolve a Individualidade e a
Consciência, torna-se Espírito e adentra o reino dos homens.
Neste estágio, ele passa a exercitar o Livre-Arbítrio, a
Inteligência e a Responsabilidade, utilizando toda a
bagagem que traz em sua memória celular. A nova meta a
ser alcançada é a angelitude!
Ramatís já dizia: "Todo anjo um dia foi homem, todo
homem um dia será anjo ..."
A essência do homem é a perfeição, mas ela ainda está
presente nele apenas em forma de energia, não em forma de
ATITUDE.
Como o intelecto humano está bastante desenvolvido e
somos capazes de elocubrações e construções mentais
inimagináveis, nos achamos muito distantes dos nossos
irmãos irracionais. As cenas de violência animal que
assistimos na televisão nos parecem horríveis. Não nos
passa pela cabeça que nossas atitudes matando, roubando,
desprezando nosso próximo, sendo machistas ou
preconceituosos, sejam repetições dos padrões armazenados
em nossa memória eterna e que estas atitudes são coerentes
com o estágio evolutivo dos animais, mas incompatíveis com
o raciocínio e a responsabilidade próprios do nosso nível de
evolução.
Aquela evolução que buscamos incessantemente nos
postulados esotéricos e religiões, achando sempre que ela
virá de fora, não existe, pois o Ser Divino, o EU SOU e todos
os outros corpos que a Teosofia trouxe aos olhos do
Ocidente no final do século XIX, estão inseridos no homem
físico, mas o componente de animalidade, herdado da
matéria terrestre da qual somos formados, também
prevalece e cobra o seu preço, fazendo com que a luta
travada pelo espírito para suplantá-lo, seja muito árdua.
Avisos para a vida espiritual
Capítulo I
Da imitação de Cristo e do desprezo de todas as vaidades do mundo
1. Quem me segue não anda em trevas (S. João, VIII, 12). Com estas palavras exorta-nos
Cristo a que lhe imitemos a vida e os costumes, se verdadeiramente queremos ser iluminados e
livres de toda a cegueira do coração. Meditar na vida de Jesus Cristo seja, pois, a nossa maior
solicitude.
2. A doutrina de Cristo sobreleva toda a doutrina dos santos, e quem tiver o Espírito encontrará
o maná que nela está escondido. Quem quer, porém, entender e saborear toda a plenitude das
palavras de Cristo deve esforçar-se por moldar nEle toda a própria vida.
3. Que te aproveita discorrer profundamente sobre a Santíssima Trindade, se não és humilde e,
por isso, à Trindade desagradas? Em verdade as palavras sublimes não fazem o homem santo e
justo; é a vida pura que o torna querido de Deus. Prefiro sentir compunção a saber-lhe a
definição. Se soubesses toda a Bíblia de cor e todas as máximas dos filósofos, que te
aproveitaria tudo isto sem o amor e a graça de Deus? Vaidade das vaidades é tudo vaidade,
(Ecles. I, 12), exceto amar a Deus e só a Ele servir. A suprema sabedoria consiste em tender
para o reino do Céu pelo desprezo do mundo.
4. Vaidade, pois, amontoar riquezas caducas e nelas pôr a sua confiança. Vaidade ainda,
ambicionar honras e guindar-se a altas posições. Vaidade, seguir os apetites da carne e desejar
o que mais tarde será gravemente punido. Vaidade, desejar viver muito e descuidar viver bem.
Vaidade, preocupar-se só da vida presente e não prever a futura. Vaidade, amar o que tão
vertiginosamente passa e não demandar pressuroso a alegria que sempre dura.
5. Lembra-te amiúde daquela sentença do Sábio: Não se fartam os olhos de ver nem os ouvidos
de ouvir (Ecles. I, 8). Aplica-te, pois, a desapegar o teu coração do amor das cousas visíveis
para transportá-lo às invisíveis, porque os que se deixam levar pela própria sensualidade
mancham a consciência e perdem a graça de Deus.
Capítulo II
Do humilde sentir de si mesmo
1. Todo homem tem o desejo natural de saber, mas que vale a ciência sem o temor de Deus? O
camponês humilde que serve a Deus está, sem dúvida, acima do filósofo soberbo, que,
descuidando a sua alma, observa o curso dos astros. Quem se conhece bem despreza-se a si
mesmo e não se compraz nos louvores dos homens. Se eu possuísse toda a ciência do mundo e
não tivesse caridade, que me aproveitaria aos olhos de Deus que me há de julgar segundo as
minhas obras?
2. Modera o desejo desordenado de saber que gera muita dissipação e muito desengano. Os que
têm muita ciência gostam de ser tidos e aplaudidos por sábios. Há muitas coisas que sabê-las,
pouco ou nenhum proveito traz para a alma, e muito insensato é quem se ocupa do que não
interessa à sua salvação. Muita palavra não sacia a alma; é a vida santa que consola o coração, é
a consciência pura que inspira grande confiança em Deus.
3. Quanto mais e melhor souberes, tanto mais severamente hás de ser julgado se não viveres
mais santamente. Não te envaideças, pois, de qualquer arte ou ciência; teme antes pelas luzes
que recebeste. Se te parece que sabes e compreendes bem muitas coisas, tem por certo que
muito mais são as que ignoras. Não te ensoberbeças (Rom. XI, 20), antes confessa a tua
ignorância. Como te queres preferir a outros se tantos há mais doutos e mais versados que tu na
lei de Deus? Queres saber e aprender algo de útil? Folga em viver ignorado e ser tido por nada.
4. A ciência mais alta e mais proveitosa é o verdadeiro conhecimento e desprezo de si mesmo.
Ter-se por nada e pensar sempre bem dos outros é grande sabedoria e grande perfeição. Se
vires outrem pecar abertamente e ainda cometer faltas graves, nem por isto te deves ter por
melhor, porque não sabes por quanto tempo poderás perseverar no bem. Somos todos fracos,
mas a ninguém tenhas por mais fraco que tu.
Capítulo III
Da doutrina da verdade
1. Feliz aquele a quem a Verdade por si ensina, não por figuras ou palavras que passam, senão
por si mesma, mostrando-se tal qual é. Nossa razão e nossos sentidos vêem pouco e muitas
vezes nos enganam. Que aproveitam estas discussões sutis de coisas ocultas e obscuras de que
não seremos argüidos no juízo de Deus por as havermos ignorado? Grande insensatez
descuidarmos o que é útil e necessário para nos aplicarmos com gosto ao curioso e nocivo. Em
verdade, temos olhos e não vemos.
2. Que se nos dá dos gêneros e das espécies? De muitas opiniões se desembaraça aquele a quem
fala o Verbo eterno. Deste único verbo procedem todas as coisas, e todas O proclamam; e Ele é
o Princípio que também dentro de nós fala (João VIII, 25). Sem Ele, ninguém entende ou julga
retamente. Aquele que tudo encontra na Unidade soberana, a ela tudo refere e nela tudo vê por
ter o coração firme e descansar na paz de Deus. Oh! Verdade! Oh! Deus! uni-me a Vós em
caridade perpétua! Enfastia-me muitas vezes ler e ouvir tanta coisa; em Vós se acha quanto
quero e desejo. Calem-se todos os doutores; emudeçam em Vossa presença as criaturas todas;
falai-me Vós só!
3. Quanto maior progresso fizer cada um na unidade e simplificação interior, tanto mais
numerosas e mais sublimes coisas entenderá sem esforço, porque do alto receberá a luz da
inteligência. A alma pura, simples e constante não se dissipa ainda que entenda em muitas
ocupações; porque todas refere à glória de Deus e, tranqüila, em coisa alguma busca a si
própria. Que há que mais te embarace e perturbe do que os afetos imortificados de teu coração?
O homem bom temente a Deus dispõe primeiro no seu interior as obras que depois há de fazer
externamente; assim elas não o arrastam ao desejo de alguma inclinação viciosa mas ele as
submete ao arbítrio da reta razão. Quem peleja com mais vigor do que aquele que trabalha por
vencer a si mesmo? Este deverá ser o nosso maior empenho: vencermo-nos a nós mesmos,
tornarmo-nos cada dia mais fortes e fazermos algum progresso no bem.
4. Toda perfeição nesta vida anda mesclada de alguma imperfeição e na nossa inteligência não
há luz sem sombras. O humilde conhecimento de ti mesmo é caminho que leva a Deus com
mais segurança que as investigações profundas da ciência. Não é que a ciência ou o simples
conhecimento das coisas sejam condenáveis, porque em si são bons e ordenados por Deus;
sempre, porém, se lhes há de preferir a boa consciência e a vida virtuosa. Mas porque muitos se
empenham mais em adquirir ciência do que em bem viver, por isso erram a cada passo e pouco
ou nenhum fruto colhem do seu trabalho.
5. Oh! Se eles pusessem tanto ardor em extirpar vícios e plantar virtudes como põem em agitar
questões, não se veriam tantos males e escândalos entre o povo nem tanta desordem nos
mosteiros. Por certo, no dia do Juízo não se nos perguntará o que lemos mas o que fizemos;
nem se falamos com eloqüência senão se vivemos com piedade. Dize-me: onde estão agora
todos aqueles mestres e doutores que bem conheceste quando ainda viviam e floresciam nas
escolas? Já outros possuem as suas prebendas e talvez nem deles se lembrem; quando vivos
pareciam alguma coisa, hoje deles nem se fala.
6. Oh! Quão depressa passa a glória do mundo! Prouvera a Deus que a vida lhes concordasse
com a doutrina; teriam então lido e estudado com proveito. Quantos perecem no mundo,
entregues a uma ciência vã e descuidados do serviço de Deus! Esvaeceram em suas cogitações
(Ad Rom I, 21) porque antes quiseram ser grandes que humildes. Verdadeiramente grande é
quem tem grande caridade! Verdadeiramente grande, aquele, que, pequeno aos próprios olhos,
em nada estima as maiores honras. Verdadeiramente sábio, aquele que considera "todas as
coisas da terra como lodo para ganhar a Cristo"(Filip. III, 8). E verdadeiramente douto, aquele
que faz a vontade de Deus e renuncia à própria.
Capítulo IV
Da prudência nas ações
1. Não se deve dar crédito a qualquer palavra nem obedecer a todo impulso, mas pesar as coisas
na presença de Deus com prudência e vagar. Infelizmente, tanta é a nossa fraqueza que, muitas
vezes acreditamos e dizemos dos outros, com mais facilidade, o mal que o bem! Mas os
homens perfeitos não prestam facilmente fé a tudo o que se lhes conta porque conhecem a
natureza humana, inclinada ao mal e leviana no falar.
2. Grande sabedoria é não aferrar-se ao próprio parecer. E ainda, não crer sem discernimento
tudo o que dizem os homens, nem encher os ouvidos alheios do que ouvimos ou cremos.
Aconselha-te com varão sábio e consciencioso; e prefere ouvir outro melhor que tu a seguir as
tuas luzes. A vida virtuosa faz ao homem sábio diante de Deus e dá-lhe muita experiência.
Quanto mais o homem for humilde e submisso a Deus, tanto maior será a sua sabedoria e
serenidade.
Capítulo V
Da lição das Sagradas Escrituras
1. Nas Sagradas Escrituras há de procurar-se a verdade, não a eloqüência. Os livros santos
devem ser lidos com o mesmo espírito com que foram ditados. Neles demos buscar a edificação
mais que as sutilezas da linguagem. De tão boa vontade devemos ler os livros singelos e
devotos como os profundos e sublimes. Não te embaraces com a autoridade do escritor, se foi
homem de grandes ou de poucas letras; mova-te a ler o puro amor da verdade. Considera o que
te dizem sem indagar quem o diz.
2. Os homens passam mas "a verdade do Senhor permanece eternamente" (Ps. XXXVIII, 7).
Deus fala-nos de diferentes maneiras sem aceitação de pessoas. Na lição das Escrituras
prejudica-nos muitas vezes nossa curiosidade, porque pretendemos compreender e discutir
sobre o que se deveria passar com simplicidade. Se queres tirar proveito lê com humildade,
singeleza e fé, sem aspirares à reputação de grande ciência. Interroga de bom grado e ouve, em
silêncio, as palavras dos santos; nem te desagradem as sentenças dos velhos que, sem razão,
não as proferem.
Capítulo VI
Das afeições desordenadas
1. Todas as vezes que o homem deseja alguma coisa desordenadamente entra logo a sentir-se
inquieto. O soberbo e o avarento nunca têm descanso; o pobre e o humilde de espírito vivem
em muita paz. Quem ainda não morreu perfeitamente a si mesmo é bem depressa tentado e
vencido em coisas pequenas e insignificantes. O fraco de espírito, ainda um tanto carnal e
inclinado às coisas sensíveis, dificilmente pode desapegar-se de todos os desejos da terra; e por
isto sente-se muitas vezes triste quando deles se priva e com facilidade se irrita se alguém o
contraria.
2. Mas se alcança o que desejava, logo o oprime o remorso de consciência, por haver seguido
sua paixão que lhe não traz a paz que buscava. É com efeito resistindo e não obedecendo às
paixões que se encontra a verdadeira paz de coração. Paz não terá, pois, o homem carnal nem o
dissipado, mas o fervoroso e espiritual.
Capítulo VII
Que se há de fugir a vã esperança e o orgulho
1. Insensato quem coloca a sua esperança nos homens ou nas criaturas. Não te envergonhes de
servir aos outros por amor de Jesus Cristo nem de parecer pobre neste mundo. Não te apoies em
ti mas em Deus firma a tua esperança. Fazei o que está em tuas mãos e Deus ajudará tua boa
vontade. Não confies na tua ciência nem na indústria de nenhuma alma viva, mas na graça de
Deus que ajuda os humildes e humilha os presunçosos.
2. Não te glories nas riquezas se as tiveres, nem nos amigos por serem poderosos, mas em Deus
que tudo nos dá e acima de tudo deseja dar-se a si mesmo. Não te envaideças da robustez ou da
formosura do corpo que a menor enfermidade quebranta e desfigura. Não te comprazes nas tuas
habilidades e talentos, para não desagradares a Deus a quem pertencem todos os teus dons
naturais.
3. Não te julgues melhor que os outros para que não sejas tido talvez como pior aos olhos de
Deus que sabe o que há no homem. Não te ensoberbeças por tuas boas obras, porque bem
diversos dos homens são os juízos de Deus, a quem desagrada muitas vezes o que aos homens
agrada. Se em ti reconheceres algum bem, pensa que são melhores os outros e assim te
conservarás em humildade. Nenhum mal há em te colocares abaixo de todos; grande mal,
porém, se ainda a um só te preferires. No coração humilde, paz contínua; no soberbo, freqüente
o ciúme e a irritação.
Capítulo VIII
Que se há de evitar a nímia familiaridade
1. "Não abras o teu coração a qualquer pessoa" (Ecles. VIII, 22) mas trata das tuas coisas com
homem sábio e temente a Deus. Com os moços e pessoas de fora conversa pouco. Não bajules
os ricos nem gostes de aparecer na presença dos poderosos. Procura a companhia dos humildes
e simples, dos piedosos e de bons costumes e com eles entretém-te de coisas edificantes. Não
tenhas familiaridade com mulher alguma, mas, em geral, encomenda a Deus todas as mulheres
de virtude. Intimidade deseja só com Deus e os Anjos; e evita ser conhecido dos homens.
2. Caridade, com todos; mas familiaridade, não convém. Sucede, não raro, que uma pessoa, de
longe, brilha com o esplendor da fama, mas, de perto desmerece aos olhos dos que a vêem.
Cuidamos às vezes agradar aos outros com a nossa assiduidade, mas, com isto, lhes
desagradamos pelos defeitos que em nós vão descobrindo.
Capítulo IX
Da obediência e submissão
1. Grande coisa é viver em obediência, sob a direção de um superior e não ser senhor de si.
Muito mais seguro é obedecer que mandar. Muitos vivem em obediência mais por necessidade
que por amor; e por isto andam desgostosos e murmuram com facilidade; nunca chegarão à
liberdade de espírito se não se submeterem de todo coração por amor de Deus. Para onde quer
que vás não encontrarás descanso senão na humilde sujeição à autoridade superior. Muitos se
têm iludido imaginando que a mudança de lugar traz melhora.
2. É verdade que cada qual gosta de seguir o próprio parecer e mais se inclina para os que
pensam como ele. Mas se Deus está conosco é mister que algumas vezes renunciemos ao nosso
modo de ver por amor da paz. Quem é tão sábio que chegue a saber tudo perfeitamente? Não
confies, pois, demais na tua opinião mas de bom grado ouve também a dos outros. Se for bom o
teu parecer e o deixares por amor de Deus para seguir o de outrem, terás com isto maior
proveito.
3. Muitas vezes ouvi que mais seguro é tomar que dar conselho. Bem pode também suceder que
seja bom o parecer de cada um; mas não querer ceder aos outros quando a razão ou as
circunstâncias o pedem, sinal é de soberba teimosia.
Capítulo X
Que se deve evitar as palavras inúteis
1. Evita quanto puderes o bulício do mundo; tratar de coisas seculares, ainda com intenção
pura, traz sempre grande detrimento. Bem depressa nos deixamos inquinar e prender pela
vaidade. Tomara eu tantas vezes haver-me calado e não ter estado entre os homens! Por que
razão gostamos tanto de falar e conversar quando raras vezes voltamos ao silêncio sem trazer a
consciência magoada? A razão por que tão de boa vontade falamos é porque nas nossas
conversas procuramos consolar-nos mutuamente e queremos aliviar o coração fatigado de
tantas preocupações. E é sempre agradável falar e pensar naquilo que muito amamos e
desejamos ou que nos contraria.
2. Mas, infelizmente, quase sempre em vão: esta consolação externa não é pequeno obstáculo às
consolações interiores e divinas. Importa vigiar e orar para que não passe inutilmente o tempo.
Quando for permitido ou conveniente falar, fala de coisas edificantes. O mau costume e o
descuido do nosso aproveitamento muito contribuem para o desmando da língua. Muito, porém,
aproveitam para o progresso da alma as conferências piedosas sobre assuntos espirituais
principalmente quando se reúnem no Senhor, pessoas animadas das mesmas intenções e do
mesmo espírito.
Capítulo XI
Da paz e do zelo da perfeição
1. De muita paz poderíamos gozar se não nos quiséramos meter com as palavras e ações dos
outros que não são de nossa conta. Como poderá permanecer muito tempo em paz aquele que se
intromete em negócios alheios, que procura dissipar-se nas coisas externas e dentro de si,
pouco ou raras vezes, se recolhe? Bem-aventurados os simples porque terão muita paz!
2. Por que razão foram alguns santos tão perfeitos e contemplativos? Porque aplicaram-se
seriamente a renunciar a todos os desejos terrenos e por isto puderam de todo o coração fixar-se em Deus e ocupar-se de si livremente. Nós, porém, deixamos levar-nos demasiadamente
pelas próprias paixões e pela solicitude das coisas que passam; raras vezes vencemos um vício
perfeitamente; não nos alentamos por fazer cada dia algum progresso: por isto, ficamos sempre
frouxos e tíbios.
3. Se estivéramos inteiramente mortos a nós mesmos e menos embaraçados no nosso interior,
poderíamos saborear as coisas divinas e ter alguma experiência da contemplação celestial. O
maior, o único obstáculo é que não nos desvencilhamos das paixões e concupiscências nem nos
decidimos a entrar no caminho perfeito dos santos. Mal surge uma pequena contrariedade,
deixamo-nos logo entrar de desânimo e voltamos às consolações humanas.
4. Se nos esforçáramos, como varões fortes, por perseverar na luta, sentiríamos por certo que do
céu desceria sobre nós o auxílio do Senhor; Ele está pronto a ajudar os que pelejam e confiam
na sua graça e não nos proporciona as ocasiões de combate senão para que alcancemos a vitória.
Se apenas nas observâncias exteriores ciframos o progresso da vida religiosa, em breve se
extinguirá a nossa piedade. Levemos o machado à raiz para que, purificados das paixões,
tenhamos a alma em paz.
5. Se cada ano extirpássemos um vício bem depressa seríamos perfeitos. Mas o que de fato
experimentamos é muitas vezes o contrário: fomos melhores e mais puros no princípio da nossa
conversão do que após muitos anos de professo. Todos os dias devera aumentar o fervor e o
aproveitamento; mas, infelizmente, hoje já se tem por muito se alguém conserva parte do zelo
primitivo. Se no começo nos fizéssemos um pouco de violência, tudo poderíamos fazer em
seguida com facilidade e alegria.
6. Custoso é deixar o costume antigo; mais custoso ainda, contrariar a vontade própria; mas se
não vences o pouco e o fácil como triunfarás do difícil? Resiste no princípio à tua inclinação e
desfaz-te do hábito mau para que, pouco a pouco, não te arraste talvez a maiores dificuldades.
Oh! Se considerasses quanta paz desfrutarias tu e quanto prazer darias aos outros levando vida
regrada, estou certo que serias mais solícito pelo teu progresso espiritual.
Capítulo XII
Das vantagens da adversidade
1. Bom é que, de quando em quando, passemos por sofrimentos e contrariedades, porque
muitas vezes fazem o homem entrar em si, lembrando-lhe que vive no desterro e em coisa
nenhuma do mundo deve por a sua esperança. Bom é que, por vezes, padeçamos contradições e
de nós se não tenha boa estima, ainda quando são boas as nossas ações e intenções. Isto muito
nos ajuda a ser humildes e preserva-nos da vanglória. Quando, fora, os homens nos desprezam
e se não fiam de nós, procuramos com mais cuidado ter a Deus por testemunha do nosso
interior.
2. Em Deus devera o homem de tal modo firmar-se que não precisasse mendigar tantas
consolações humanas. Quando o homem de boa vontade é atribulado, tentado ou molestado de
maus pensamentos, compreende melhor que Deus lhe é necessário e sem Ele nada pode de
bom. Então se entristece, geme e ora pelas suas misérias. Pesa-lhe, também, o viver por tanto
tempo e suspira pela morte para que possa, "livre dos laços do corpo estar com Cristo" (Filip.
I,23). Então ainda se persuade que segurança perfeita e paz completa não pode haver neste
mundo.
Capítulo XIII
Da resistência às tentações
1. Enquanto vivemos neste mundo não podemos estar sem trabalhos e tentações. Por isto está
escrito no livro de Jó: "É milícia a vida do homem na terra" (Jó VII,1). Deve, pois cada qual
estar sempre alerta sobre as tentações que o assaltam e vigiar e orar para que o não surpreenda o
demônio que não dorme "mas ronda sempre à procura de quem devorar" (S. Petr. V, 8). Não há
homem tão perfeito e santo que, de quando em quando, não tenha tentações; totalmente livres
delas não podemos viver.
2. As tentações, porém, ainda que molestas e graves, são muitas vezes de grande utilidade para
o homem; nelas se adquire humildade, pureza e experiência. Por muitas tentações e tribulações
passaram todos os santos e com isto aproveitaram; os que não puderam resistir-lhes,
sucumbiram e perderam-se. Não há Ordem religiosa tão santa nem lugar tão retirado onde não
haja tentações e adversidades.
3. Enquanto viver, nenhum homem será de todo ao abrigo das tentações; porque, nascidos na
concupiscência, em nós está a causa pela qual somos tentados. Quando se vai uma tentação ou
tribulação, sobrevém outra; e assim teremos sempre que sofrer, uma vez que perdemos o bem
da nossa primeira felicidade. Muitos procuram fugir às tentações e nelas caem mais
gravemente. Só com a fuga não as podemos vencer; é a paciência e a verdadeira humildade que
nos tornam mais fortes que todos os inimigos.
4. Quem evita somente as ocasiões exteriores e não extirpa o mal pela raiz, pouco aproveitará;
antes, mais depressa voltarão as tentações e se achará pior. Pouco a pouco, com a ajuda de
Deus, vencerás melhor, pela paciência e longanimidade, do que pela violência e azedume.
Toma conselho mais vezes na hora da tentação; e não trates com aspereza a quem é tentado;
mas consola-o como desejavas que fizessem contigo.
5. A causa de todas as tentações perigosas é a inconstância e a falta de confiança em Deus.
Como o navio sem leme é joguete das ondas, assim o homem remisso e pouco firme nos seus
propósitos é agitado por toda sorte de tentações. O fogo prova o ferro; a tentação, o justo.
Ignoramos muitas vezes o que valemos, a tentação faz-nos ver o que somos. Cumpre, porém,
vigiar, principalmente no princípio da tentação, mais fácil então é vencer o inimigo, se lhe
fechamos logo a porta da alma e lhe resistimos apenas se apresenta fora do limiar. Por isto disse
alguém: "Atalha no princípio; tarde chega o remédio se o mal, por longo tempo, fundas raízes
lançou" ("Principiis obsta; sero medicina paratur Quum mala per longas invaluere moras" -
Ovidio).
Primeiramente apresenta-se à alma um simples pensamento, a seguir uma imaginação viva,
depois a deleitação, o movimento desordenado e o consentimento. Assim, aos poucos, força de
todo a entrada o inimigo maligno a quem logo lhe não resistiu; e quanto por mais tempo for a
alma entorpecendo na resistência, tanto mais fraca ela vai ficando e mais poderoso o seu
adversário.
6. Uns padecem tentações mais violentas no início de sua conversão; outros, no fim; alguns
porém são atormentados quase toda a vida; há também os que são tentados com mais brandura;
assim o dispõe a sabedoria e justiça da divina Providência que pesa o estado e os merecimentos
dos homens e tudo ordena para a salvação de seus escolhidos.
7. Por isso, não devemos perder a confiança quando somos tentados, antes pedir a Deus com
mais fervor que se digne ajudar-nos na tribulação. Ele, que segundo a palavra de S. Paulo,
"com a tentação dará o auxílio para que possamos resistir-lhe" (I Cor. X, 13). Humilhemos,
pois, as nossas almas sob a mão de Deus na tentação e na tribulação, porque os humildes de
espírito, Ele os há de salvar e exaltar.
8. Nas tentações e tribulações vê-se quanto aproveitou a alma; nelas maior é o merecimento e
melhor se manifesta a virtude. Não é lá grande valor ser o homem devoto e fervoroso quando
nada lhe dá pena; esperança de muito aproveitamento haverá, porém, se suporta com paciência
o tempo da adversidade. Alguns guardam-se das grandes tentações e são vencidos muitas vezes
nas pequenas de cada dia, para que, humilhados, não presumam de si nas grandes ocasiões os
que nas tão insignificantes fraquejam.
Capítulo XIV
Que se há de evitar o juízo temerário
1. Põe os olhos em ti e guarda-te de julgar as ações alheias. Julgando os outros o homem
trabalha em vão, erra o mais das vezes e facilmente peca; julgando e examinando a si mesmo
trabalha sempre com proveito. Julgamos freqüentemente das coisas conforme nos falam ao
coração; porque o amor próprio turva facilmente a verdade dos nossos juízos. Se Deus fora
sempre o único objeto de nossos desejos não nos perturbaríamos tão depressa quando
contrariam a nossa vontade.
2. Há porém muitas vezes alguma razão oculta ou algum motivo externo que também em nós
influi. Muitos, no que fazem, buscam secretamente a si mesmos, sem o saber. Parecem também
estar em perfeita paz quando as coisas lhes correm à medida dos desejos; mal, porém, lhes não
sucedem à vontade logo se perturbam e entristecem. Por causa da diversidade de sentimentos e
opiniões, nascem freqüentes discórdias entre amigos e vizinhos, entre religiosos e pessoas
piedosas.
3. É coisa difícil deixar um costume antigo e ninguém de boa mente renuncia ao seu modo de
ver. Se confias mais em tua razão e habilidade do que na virtude que nos submete a Jesus
Cristo, tarde e raras vezes terá a alma iluminada; Deus quer que a Ele nos sujeitemos
perfeitamente, e, inflamados no seu amor, nos elevemos acima de toda a razão humana.
Capítulo XV
Das obras que procedem da caridade
1. Por coisa nenhuma deste mundo, nem por amor de quem quer que seja, se deve praticar o
mal. É livre, porém, interromper uma ação boa ou substituí-la por outra melhor para prestar
serviço a quem precisa; assim não se destrói a boa ação mas transforma-se em outra de maior
valor. Sem a caridade de nada vale nenhuma obra exterior. Tudo, porém, o que dela se inspira,
por pequeno e desprezível que seja, produz abundantes frutos: mais que a ação, Deus pesa a
intenção.
2. Muito faz quem muito ama. Muito faz quem faz bem. Bem faz quem serve ao interesse
comum mais que à vontade própria. O que muitas vezes parece caridade é concupiscência:
porque raras vezes, a inclinação natural, a vontade própria, a esperança de recompensa, o amor
às comodidades deixam de influir em nossas ações.
3. Quem possui a verdadeira e perfeita caridade não busca a si em coisa alguma mas seu único
desejo é que em tudo se realize a glória de Deus. A ninguém inveja, porque não aprecia nenhum
prazer particular nem em si mesmo quer alegrar-se, mas, em Deus, acima de todos os bens,
coloca a sua felicidade. A nenhuma criatura atribui bem algum, mas tudo refere a Deus, fonte
perene, donde promanam todos os bens, fim beatífico, em que descansam todos os santos. Oh!
quem tivera uma centelha de verdadeira caridade! como lhe pareceriam vãs todas as coisas da
terra!
Capítulo XVI
Da paciência com os defeitos alheios
1. O que não pode o homem emendar em si ou nos outros deve suportar com paciência até que
Deus disponha de outra maneira. Considera que assim é talvez melhor para provar a tua
paciência, sem a qual não são de grande peso os nossos merecimentos. Nestas contrariedades,
porém, deves pedir a Deus que se digne ajudar-te para suportá-las serenamente.
2. Se alguém, advertido uma ou duas vezes, se não emendar, não porfies com ele, mas
encomenda tudo a Deus que sabe tirar o bem do mal, afim de que se faça a sua vontade e Ele
seja glorificado em todos os seus servos. Esforça-te por suportar com paciência os defeitos e
fraquezas alheias; também os outros terão muito que suportar de ti. Se não te podes fazer qual
quiseras, como poderás alcançar se conformem os demais aos teus desejos? Bem folgamos, não
tenham defeitos os outros; mas os nossos, não os emendamos.
3. Queremos se corrijam os outros com rigor, mas nós não queremos ser repreendidos; parece-nos mal a demasiada liberdade alheia mas nós não queremos se nos negue o que pedimos;
gostamos sejam os mais apertados com estatutos, mas nós não sofremos a menor proibição. Por
onde se vê, como é raro usarmos da mesma balança para nós e para os outros. Se foram todos
perfeitos que houvéramos de sofrer por amor de Deus?
4. Assim, porém, o dispôs Deus para que aprendêssemos "a levar a carga, uns dos outros" (Gal.
VI,2); porque todos têm a sua carga; ninguém há sem defeitos, ninguém basta a si mesmo; nem
é suficientemente sábio para guiar-se; mas, reciprocamente, devemos suportar-nos e consolar-nos; uns aos outros devemos prestar auxílio, instrução e conselho. Na adversidade melhor se
manifesta a virtude de cada um; a ocasião não faz o homem fraco, revela-o tal qual é.
Capítulo XVII
Da vida monástica
1. Importa que aprendas a dobrar-te em muitas coisas, se queres ter paz e concórdia com os
outros. Não é pouco morar em mosteiros ou comunidade, aí viver sem queixas e perseverar
fielmente até à morte. Feliz aquele que aí vive bem e acaba santamente. Se queres conservar-te
firme e crescer na virtude, considera-te como desterrado e peregrino sobre a terra. É mister que
te faças "louco por amor de Cristo" se queres seguir a vida religiosa.
2. De pouco valem o hábito e a tonsura; é a mudança dos costumes e a perfeita mortificação das
paixões que fazem o verdadeiro religioso. Quem procura outra coisa fora de Deus e da salvação
de sua alma só achará tribulação e dor. Não pode também viver muito tempo em paz quem não
se esforça por ser o menor e o mais submisso de todos.
3. Vieste para servir, não para mandar; persuade-te que foste chamado a trabalhar e sofrer e não
a descansar e palestrar. Aqui se provam os homens como o ouro no crisol; aqui ninguém pode
perseverar se de todo coração não quiser humilhar-se por amor de Deus.
Capítulo XVIII
Do amor da solidão e do silêncio
1. Procura tempo oportuno para estar contigo e pensa amiúde nos benefícios de Deus. Deixa-te
de curiosidades e entrega-te a leituras que antes excitem a compunção do que distraiam o
espírito. Aparta-te das conversas supérfluas e dos passeios ociosos, fecha os ouvidos às
novidades e às atoardas e acharás tempo suficiente e propício para te entregar às santas
meditações. Os maiores santos evitavam, quanto podiam, a companhia dos homens e preferiam
viver a sós com Deus.
2. Já disse um antigo (Sêneca, epíst. VII): "Quantas vezes estive entre homens, volvi menos
homem." É o que experimentamos tantas vezes quando nos entretemos em largas conversas.
Mais fácil é calar de todo do que se não exceder falando. Mais fácil é encerrar-se em casa que
guardar-se como convém fora. Quem aspira à vida interior e espiritual deve, com Jesus,
apartar-se das turbas. Só aparece em público com segurança quem gosta de viver oculto. Só
fala com acerto quem cala de boa vontade. Só ocupa sem risco os primeiros lugares quem de
bom brado se coloca nos últimos. Só não corre perigo em mandar quem se exercitou em
obedecer.
3. Não há alegria segura sem o testemunho de uma boa consciência. A segurança dos santos,
porém, é sempre cheia de temor de Deus; por mais que sobressaíssem em grandes virtudes e
graças não deixaram por isso de ser menos vigilantes e humildes. A confiança dos maus,
porém, nasce da soberba e presunção e por fim resolve-se em engano. Nunca te dês por seguro
nesta vida, por mais que pareças bom religioso ou devoto ermitão.
4. Muitas vezes os melhores na estima dos homens incorreram nos mais graves perigos por
confiarem demasiado em si mesmos. Por isso, para muitos é mais útil que lhes não faltem de
todo tentações e que sejam combatidos, para que não presumam de si, nem se exaltem em
soberba ou se entreguem com excesso às consolações exteriores. Oh! que pureza de consciência
conservaria quem nunca buscasse alegrias passageiras, e nunca se ocupasse do mundo! Oh!
quanta paz e sossego lograria quem cortasse pelos vãos cuidados para não se ocupar senão das
coisas do céu e da sua salvação, colocando em Deus toda a sua esperança!
5. Só é digno das consolações celestes quem se exercitou com diligência na santa compunção.
Se queres arrepender-te de coração recolhe-te em teu aposento e afasta-te do bulício do
mundo, segundo está escrito: "compungi-vos em vosso cubículo" (Salmos IV,5). Nele
encontrarás o que muitas vezes hás de perder fora. Continuamente habitada, a cela torna-se
agradável; mal guardada, gera fastio. Se no princípio de tua conversão te acostumares a ela e a
guardares bem, ser-te-á, depois amiga querida e gratíssima consolação.
6. No silêncio e no sossego aproveita a alma piedosa e penetra os segredos da Escritura. Aí é
que encontra as fontes de lágrimas com que todas as noites se lava e purifica para unir-se tanto
mais familiarmente a seu Criador quanto mais longe vive do tumulto do mundo. De quem se
aparta de conhecidos e amigos, aproxima-se Deus com os seus santos anjos. Mais vale viver
escondido e cuidar de sua alma, do que, descuidando-a, fazer milagres. É louvável no religioso
sair pouco e não gostar de ver os homens ou ser deles visto.
7. Para que queres ver o que não te é permitido possuir? "Passa o mundo com a sua
concupiscência!" (João II, 17). Os desejos dos sentidos arrastam-te aos divertimentos; mas,
passada aquela hora, que te fica senão o remorso da consciência e a dissipação do coração? A
uma saída alegre sucede muitas vezes uma volta triste; e a uma noite passada em prazeres, uma
manhã de tristezas. Assim todo prazer dos sentidos insinua-se brandamente mas no fim
resolve-se em sofrimentos e morte. Que podes ver em outro lugar que aqui não vejas? Aqui
tens o céu, a terra e todos os elementos; deles foram feitas todas as coisas.
8. Onde poderás ver o que seja estável debaixo do sol? Pensas talvez satisfazer-te plenamente
mas não o conseguirás. Se viras diante de ti todas as coisas que seria senão uma vã miragem?
Levanta teus olhos a Deus nas alturas e ora pelos teus pecados e negligências. Deixa as
vaidades aos vãos; e tu, aplica-te ao que Deus ordena. Encerra-te em teu aposento e chama por
Jesus, o Amigo dileto. Permanece com Ele em tua cela; em nenhum outro lugar encontrarás
tanta paz. Se não saíras nem ouviras novidades, melhor te conservaras em paz. Mas porque de
quando em quando gostas de ouvir novas terás depois que sofrer tribulações do coração.
Capítulo XIX
Da compunção do coração
1. Se queres fazer algum progresso conserva-te no temor de Deus; não vivas com demasiada
liberdade mas submete os teus sentidos a uma severa disciplina e não te entregues à vã alegria.
Dá-te à compunção do coração e acharás a piedade; a compunção traz consigo muitos bens que
a dissipação logo nos faz perder. É para maravilhar que nesta vida possa ter alegria perfeita o
homem que medita e considera o seu exílio e os muitos perigos a que está exposta a sua alma.
2. Por causa da leviandade do nosso coração e do esquecimento dos nossos defeitos não
sentimos os males de nossa alma e rimos muitas vezes sem motivo quando com razão
devêramos chorar. Verdadeira liberdade e alegria pura não há sem temor de Deus e boa
consciência. Ditoso aquele que pode desembaraçar-se do impedimento das distrações para
unir-se a Deus no recolhimento da santa compunção! Ditoso aquele que de si aparta tudo o que
lhe pode manchar ou agravar a consciência! Peleja varonilmente; hábito com hábito se vence.
Se souberes deixar os homens também eles te deixarão fazer o que quiseres.
3. Não te metas na vida alheia e não te enredes nos negócios dos grandes. Põe sempre os olhos
em ti primeiro; e repreende-te a ti mesmo de preferência a todos os teus amigos. Não te aflijas
por não ter o favor dos homens; só deve entristecer-te o não viver com a virtude e
circunspecção que convém a um servo de Deus e a um bom religioso. É muitas vezes mais útil
e seguro não ter nesta vida muitas consolações, sobretudo consolações sensíveis. Contudo, se
não temos as consolações divinas ou só raras vezes as experimentamos, a culpa é nossa porque
não nos damos à compunção do coração nem de todo rejeitamos as vãs consolações exteriores.
4. Reconhece-te por indigno das consolações de Deus e merecedor de muitas tribulações. Ao
homem que se deixa penetrar da compunção perfeita o mundo todo entra logo a parecer-lhe
fastidioso e amargo. O justo sempre acha motivo bastante para afligir-se e chorar; porque ou se
considere a si ou pense no próximo sabe que ninguém passa pela vida sem tribulações; e quanto
mais atentamente se considera tanto maior é a sua dor. Matéria de justa aflição e de compunção
interior são os nossos pecados e vícios em que estamos de tal maneira enterrados que raras
vezes podemos contemplar as coisas do céu.
5. Se mais amiúde pensaras na morte do que na duração da vida, sem dúvida te emendarias com
mais fervor. Se meditaras também seriamente nas penas futuras do Inferno ou do Purgatório
estou certo que suportaras de boa vontade o trabalho e o sofrimento e não temeras nenhuma
austeridade. Mas porque estas verdades nos não penetram o coração e amamos ainda tudo o que
nos afaga os sentidos, ficamos frios e preguiçosos.
6. É muitas vezes por fraqueza da alma que tão facilmente se lastima nosso miserável corpo.
Ora pois com humildade ao Senhor para que te conceda o espírito de compunção e dize com o
Profeta: "Dai-me Senhor a comer o pão das lágrimas e a beber a água abundante de meu
pranto. (Salmos LXXIX,6).
Capítulo XX
Da fervorosa emenda de toda a nossa vida
1. Sê vigilante e fervoroso no serviço de Deus; pensa muitas vezes a que vieste e porque
abandonaste o mundo; não foi porventura afim de viver para Deus e ser homem espiritual?
Afervora-te, pois, no desejo de progredir, porque em breve receberás a recompensa dos teus
trabalhos e não terás mais temores nem sofrimentos. Agora, pouco trabalho, mais tarde, grande
descanso, ou melhor, alegria perpétua. Se continuares a proceder com fidelidade e fervor, Deus,
por certo, será fiel e generoso em retribuir. Alimenta a santa esperança de alcançar a palma da
glória, mas não te entregues à segurança demasiada para que não caias na tibieza ou na
presunção.
2. Alguém que vivia ansioso, oscilando entre o medo e a esperança, certa vez, acabrunhado de
tristeza entrou numa igreja prostrando-se ante o altar, para fazer oração, dizia de si para si: Oh!
se eu soubera que haveria de perseverar! No mesmo instante, ouviu no íntimo d’alma esta
resposta divina: "Que farias se soubesses? Faze agora o que farias então e terás paz". E logo
consolado e reconfortado entregou-se à vontade divina e cessaram as suas ansiosas
perplexidades. Não quis mais perscrutar com curiosidade o que lhe haveria de acontecer no
futuro mas aplicou-se a conhecer o que era mais perfeito e agradável à vontade de Deus para
começar e levar a termo santamente todas as suas ações.
3. "Espera no Senhor e faze o bem", diz o profeta, "e habitarás a terra e te alimentarás de tuas
riquezas" (Salmos XXXVI,3). Uma coisa arrefece em muitos o fervor do progresso e da
emenda: o horror às dificuldades ou o trabalho da luta. Com efeito, aproveitam mais na virtude
os que se empenham com coragem em vencer-se no que mais lhes custa e contraria as
inclinações. Porque o homem tanto mais adianta e maiores graças merece quanto mais a si
mesmo se vence e mortifica espiritualmente.
4. Mas nem todos têm igualmente em que se vencer e mortificar. Aquele, porém, que for
diligente e zeloso, ainda que tenha mais paixões, fará maiores progressos que outro, de bom
natural, porém, menos fervoroso na aquisição das virtudes. Duas coisas, particularmente,
contribuem para uma boa emenda: resistir com violência às inclinações da natureza viciada e
trabalhar com ardor em adquirir a virtude de que mais carecemos. Procura também evitar e
vencer em ti o que nos outros mais te desagrada.
5. Aproveita de tudo para teu aproveitamento: se vires ou ouvires bons exemplos anima-te a
imitá-los; se perceberes, porém, alguma coisa repreensível, guarda-te de fazê-la, ou, se já a
fizeste, trata de corrigir-te quanto antes. Como observas os outros, assim também os outros te
observam a ti. Como é agradável e consolador ver irmãos fervorosos e devotos, bem
morigerados e observantes! Como, pelo contrário, é triste e penoso vê-los andar fora da regra,
esquecidos daquilo a que foram chamados! Como é nocivo descuidarem os deveres da própria
vocação e inclinarem o afeto ao que não lhes pertence!
6. Lembra-te do que prometeste e tem sempre diante dos olhos a imagem do Crucificado. Bem
te podes envergonhar ao considerares a vida de Jesus Cristo, por não haver feito mais esforço de
te conformar com ela apesar de trilhares há tanto tempo o caminho de Deus. O religioso que
devota e atentamente medita na santíssima vida e paixão do Senhor, nela encontra, com
abundância, tudo o que lhe é útil e necessário nem precisa procurar, fora de Jesus, coisa melhor.
Oh! se Jesus Crucificado entrara em nosso coração quão depressa seríamos instruídos em tudo!
7. O religioso fervoroso suporta e aceita bem tudo o que se lhe manda. O tíbio e o negligente
experimenta tribulação sobre tribulação e de todos os lados se vê angustiado porque lhe faltam
as consolações interiores e não lhe é permitido buscar as de fora. O que não observa a sua regra
expõe-se à grave ruína. O que procura uma vida fácil e relaxada estará sempre em angústias;
alguma coisa haverá sempre que lhe desagrade.
8. Como procedem tantos outros religiosos que vivem com austeridade na disciplina do
claustro? Saem raras vezes, vestem burel grosseiro, trabalham muito, falam pouco, velam até
alta noite, levantam-se de madrugada, prolongam a oração, entregam-se a leituras freqüentes e
em tudo observam exata disciplina. Considera os cartuxos, os cistercienses e tantos outros
monges e monjas de várias ordens como se levantam todas as noites para a salmodia do Senhor.
Bem vergonhoso seria que te deixasses vencer pela preguiça em exercício tão santo quando
tantos religiosos começam a entoar louvores da Deus.
9. Oh! quem te dera não ter outra coisa que fazer senão louvar com o coração e com os lábios
ao nosso Deus e Senhor! Oh! quem te dera não precisar de comer, nem beber, nem dormir para
poderes louvar a Deus sem interrupção e entregar-te unicamente aos exercícios espirituais!
Muito mais feliz serias do que agora que deves servir ao corpo e suas necessidades! Prouvera a
Deus fossemos isentos dessas necessidades e só tivéssemos que pensar no alimento da alma,
que, infelizmente, tão raras vezes saboreamos!
10. Quando o homem chega a não buscar consolação em criatura alguma começa então a gostar
perfeitamente de Deus, e vive sempre contente, aconteça o que acontecer. Então não se alegra
com grandezas nem se entristece com ninharias mas abandona-se inteiramente e com toda a
confiança nas mãos de Deus, que lhe é tudo em todas as coisas, para quem nada acaba nem
morre, mas para quem vivem todas as criaturas e a cujo aceno obedecem todas sem demora.
11. Lembra-te sempre do fim e de que o tempo perdido não volta. Sem cuidado e sem esforço
não hás de adquirir virtudes. Se principias a entibiar começarás a sentir-te mal. Se, porém, te
deres ao fervor terás muita paz; a graça de Deus e o amor da virtude far-te-ão mais leve o
trabalho. O homem fervoroso e diligente está preparado para tudo. Mais penoso é resistir aos
vícios e às paixões do que suportar as fadigas do corpo. Quem não evita as faltas pequenas
pouco a pouco cairá nas grandes. Alegrar-te-ás sempre à noite quando houveres empregado
bem o dia. Vela sobre ti mesmo; anima-te; admoesta-te e aconteça o que acontecer aos outros,
não te descuides de ti. Aproveitarás na medida da violência que te fizeres. Assim seja.
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