Visitações do Santo Ofício
Depois do Batismo Forçado em Portugal, no ano de 1497, foi
permitido aos cristãos-novos (os judeus recém-batizados)
permanecerem em Portugal, pois, oficialmente, já não eram mais
judeus, eram agora católicos. Muitos continuaram a praticar o judaísmo
secretamente, o que constituiu uma heresia. Em 1531, com a nomeação
do primeiro Inquisidor de Portugal, estabeleceu-se a Inquisição
Portuguesa. Essa instituição tinha por finalidade identificar e
punir os indivíduos que traziam a heresia para dentro da Igreja Católica
e contaminavam os seus correligionários. Nesse grupo de indivíduos
se enquadravam os praticantes de feitiçaria, de crimes de natureza
sexual (bigamia e sodomia), protestantes e, principalmente,
judaizantes.
Com
a descoberta do Brasil, uma grande leva de cristãos-novos
estabeleceu-se nas terras recém-descobertas. O historiador Egon
Wolf diz: “Não há dúvida que cristãos-novos – como foram
designados os recém-convertidos – começaram a chegar ao Brasil a
partir de 1507, quando a sua emigração do reino foi permitida”.
(WOLF, Egon e Frieda. Fatos Históricos e Mitos da História dos
Judeus no Brasil. p. 16) Esses imigrantes trouxeram consigo crenças
e costumes judaicos, os quais seriam transmitidos a seus
descendentes..
Assim,
preocupado com a disseminação de práticas judaicas e com o estado
espiritual dos habitantes da Colônia, o Santo Ofício, enviou em
1591 um Visitador, um oficial encarregado de recolher indícios,
depoimentos, acusações e até suspeitos de judaísmo.
Egon
Wolf, explica que “o fato de terem passado quase cem anos desde o
batismo forçado até a chegada do primeiro Visitador e a falta de
rabinos e conhecedores das leis judaicas – nem existiam mais
livros a respeito – explica que os conhecimentos de cerimônias e
práticas do judaísmo se tornavam bastante rudimentares. Sabia-se
algo sobre o shabat, sobre feriados, proibição de comer carne de
porco, peixes sem escamas, mas a maior parte dos preceitos já era
esquecida ou foi observada até erradamente”. (ob. cit. p. 16)
Como exemplo disso, o mesmo autor cita a celebração do Yom Kipur,
o Guijpur ou Dia Puro, que era comemorada por alguns no 11o.
dia após a lua nova de agosto e por outros no de setembro. Isso se
devia ao fato de desconhecerem um calendário judaico.
Entre
os costumes criptojudaicos denunciados estava o hábito de “fazer
esnoga”, isto é, de se reunirem para celebrações religiosas
judaicas. “Esnoga” é a palavra em português arcaico para
“sinagoga”, templo religioso judaico.
No
engenho de Camarajibe, em Pernambuco, a três léguas de Olinda, se
reunia para essas celebrações um grande número de cristãos-novos.
O sinal convocando os membros dessa comunidade secreta para o
ajuntamento era uma pessoa que passava pela vila com um pé descalço
e um pano amarrado ao dedão do pé. Essa pessoa era chamada de “o
campainha”. Foram denunciados como campainhas Tomás Lopes,
alfaiate; João Nunes, mercador; e Jorge Dias Caia, calceteiro. Este
último foi identificado pelos denunciantes como sendo o sacerdote
dos judeus.
Em
Salvador, um grupo de mais de dez pessoas – que formava um minian,
o número de homens adultos necessário para o início das rezas –
costumava se reunir nas noites de sextas-feiras na casa de Gonçalo
Nunes.
Uma
outra “esnoga secreta” se protegia bem: enquanto uns membros
rezavam em seu interior, outros vigiavam à porta para informar se
estranhos se aproximavam. Uma acusação revelou que nessa sinagoga
chegou-se inclusive a celebrar um casamento segundo a tradição
judaica.
Em
uma outra casa, criptojudeus se reuniam nas sextas-feiras à noite
teoricamente para jogos de cartas, mas de fato para rezas.
A
guarda do Shabat (ou Sábado) era um dos costumes mais comuns e fáceis
de observar. Entre os que o faziam estão: Bento Teixeira, o autor
da Prosopopéia,
cristão-novo, homem muito culto, que ensinava leitura e escrita,
foi acusado de que “em todos os sábados o dito mestre não fazia
escola”; Branca Dias, que além de não trabalhar aos sábados,
vestia nesses dias a melhor vestimenta que tinha, jantava mais cedo,
e comia um prato diferente do que comia nos demais dias da semana.
Muitos
dos costumes judaicos que se perpetuaram eram referentes ao
cotidiano das pessoas, aos usos domésticos, o que permitia que eles
passassem de uma geração a outra com tal naturalidade que sequer
os indivíduos se davam conta da origem deles. Foi esse o caso, por
exemplo, das irmãs Isabel, Luíza e Maria Casal, que não comiam
coelho nem enguia, o que constitui um preceito judaico que lhes fora
ensinado pela mãe, a meia cristã-nova Grácia Fernandes.
O
uso de azeite, ao invés da banha de porco, era considerado também
uma prática de judaísmo. Branca Dias e Beatriz Mendes foram
acusadas por usarem azeite no preparo de seus alimentos.
Eram
comuns as denúncias de que quando algumas pessoas houvessem jogado
fora toda a água dos potes de suas casas quando alguém havia
falecido nelas. Quando uma cristã-nova de nome Violante Dias
faleceu, sua enteada cortou-lhe as unhas das mãos e dos pés,
lavou-a e em seguida lhe amortalhou. Sua família, nos oito dias
seguintes, não comeu carne, somente peixe. Foram comuns as acusações
de amortalhamento e de pedido dos moribundos que fossem enterrados
em terra virgem.
A
esposa de Gaspar Dias da Vidigueira, residente em Porto Seguro, na
Bahia, foi acusada em 1591 de ter levado sua filha a uma ermida
abandonada e oferecido dois pombos, passados quarenta dias do
nascimento desta. A Lei de Moisés prescreve que a mulher, quarenta
dias depois de dar à luz, deve ir ao templo e mandar sacrificar
animais para se purificar.
Esses
são alguns casos de indivíduos do povo judeu e praticantes do
judaísmo no Brasil que foram delatados ao Santo Ofício. Citar
todos seria no mínimo uma tarefa extensa e desgastante, pois são
dezenas de milhares. Há ainda o problema de que muitos processos
inquisitoriais se extraviaram nas catástrofes naturais ocorridas em
Lisboa, o que impossibilita o levantamento de todos os denunciados.
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