"Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!"
É provável que você já tenha ouvido alguém dizer que a vírgula e o
"e" são inimigos mortais. Não são. Em muitos casos, a vírgula
antes do "e" é fundamental para a clareza do texto.
Pois bem, para começarmos a nossa conversa, vejamos este título, publicado
pela Folha em fevereiro: "Corinthians perde atletas, jogo e racha
fora de campo". Não houve engano, não, caro leitor, nem erro de digitação
(por sinal, sou péssimo nisso). O título é exatamente o que você acaba de
ler.
Um dos problemas da frase está no mau uso da combinação "vírgula +
e". Explico: a vírgula depois de "atletas" cria a expectativa da
enumeração de termos de mesma função ("Leia Bandeira, Drummond e Jorge
de Lima"; "Ouça Chico César, Celso Viáfora e Lenine"). No título
do jornal, essa expectativa de enumeração de substantivos é quebrada pela súbita
presença de um verbo ("racha"), precedido da conjunção
"e", que encerra a "enumeração".
Moral da história: no título, misturam-se alhos com bugalhos, já que se
enumeram dois substantivos e um verbo. É exemplo clássico de falta de
paralelismo.
A mistura de alhos com bugalhos é particularmente agravada pelo fato de que, no
"futebolês", "racha" pode funcionar como substantivo (o
racha é uma pelada, um jogo sem compromisso, um jogo-treino mais leve etc.).
Posto isso, leia o título novamente e diga-me se, num primeiro momento, é difícil
resistir à tentação de achar que o Corinthians perdeu as três coisas
(atletas, jogo e racha). É difícil, não?
A esta altura, talvez seja bom dizer o que poderia tornar mais inteligível a
frase. Que tal um "e" antes de "jogo" e, talvez, uma vírgula
antes do "e" que já estava no título? Vejamos como fica:
"Corinthians perde atletas e jogo (,) e racha fora de campo". Já sei,
não é a oitava maravilha, mas a mensagem parece ficar mais clara, não? Bem, o
fato é que esse duplo emprego do "e" (um para encerrar a enumeração
de substantivos e outro para somar orações) nem sempre gera efeito agradável.
A repetição do "e" é comum na linguagem literária, como se vê
nestes versos de "A um Poeta", de Olavo Bilac: "Longe do estéril
turbilhão da rua, / Beneditino, escreve! No aconchego / Do claustro, no silêncio
e no sossego, / Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!". Um dos efeitos
desse processo (a que se chama "polissíndeto") é o da sensação de
que a oração iniciada pelo "e" encerrará o período, o que não
ocorre. Com isso, prolonga-se a expectativa do fim e, conseqüentemente, obtém-se
ênfase para cada uma das orações introduzidas pelo "e".
Note que a seqüência de Bilac é simétrica: o poeta usa o "e" para
somar orações (formadas -com exceção da primeira- apenas pelo "e"
e por uma forma verbal). Note também, caro leitor, que no texto de Bilac há vírgula
antes de todas as ocorrências do "e", o que é comum nesses casos.
Quer outro exemplo? Veja este, de Vinicius de Moraes ("Soneto de
Fidelidade"): "De tudo, ao meu amor serei atento / Antes, e com tal
zelo, e sempre, e tanto / Que mesmo em face do maior..." (não leia verso
por verso, por favor; leia de acordo com a estrutura sintática: "De tudo,
ao meu amor serei atento antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto que...").
Os casos em que se emprega a vírgula antes do "e" não se resumem aos
vistos neste texto. Os demais ficam para outro dia. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
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