por João Paulo
Cursino P. Santos
jpcursino(arroba)yahoo.com
29 de maio de 2004
O núcleo de dobra de uma nave estelar é um lugar muito interessante de se estudar, mas não muito saudável de se estar dentro. Veremos o porquê nesta segunda parte de nossa peregrinação ao coração da Enterprise.
Comecemos com uma descrição que procede, em sua
maior parte, do Manual técnico de Jornada nas Estrelas: A Nova
Geração1. A Enterprise-D
possui um total de 42 deques. Na Seção de Engenharia, ocupando os deques 27 a
29, encontra-se um grande tanque de deutério ("hidrogênio pesado",
2H2), onde a substância é mantida a –259oC.
No deque 42, localiza-se o armazenamento de antideutério,
que é a contrapartida de antimatéria para o deutério. Conforme visto na parte I deste artigo, o contato entre matéria e antimatéria é
extremamente explosivo. Portanto, o antideutério é mantido em suspensão dentro de
"garrafas magnéticas", os módulos de armazenamento de antimatéria. Dentro
de cada módulo, um campo de contenção magnético impede o contato entre as
paredes e a arriscada carga que abrigam.
(Jornada nas Estrelas não respeita muito a lei
segundo a qual uma partícula somente se aniquila com a respectiva antipartícula.
Nesta ficção, uma porção de antimatéria de qualquer natureza sempre anula uma
porção de matéria, também de qualquer natureza, bastando que as massas sejam
iguais. Por essa razão, não se pode permitir jamais que a antimatéria entre
em contato com qualquer outra coisa, nem mesmo ar.2, 3, 4)
Do tanque de deutério e do conjunto de
módulos de armazenamento, partem dois tubulões verticais chamados
segmentos de constrição magnética, respectivamente para baixo e para cima.
Do tanque, desce um fluxo de deutério; dos módulos, sobe um fluxo de antideutério.
Ao longo do caminho, ambos os fluxos são contidos por bobinas de constrição
magnética que não permitem contato entre esses reagentes e as paredes dos
tubulões. Dessa forma, os segmentos de constrição conduzem os fluxos
peristalticamente, uma bobina após a outra. Cada bobina a conter seu fluxo emite
um brilho azulado, que é o que vemos convergindo em frente à Engenharia Principal
da Enterprise-D. Ali, os dois segmentos encontram-se no reator de
dobra, também dito núcleo de dobra, localizado à altura do deque 36 da
nave.
No interior da câmara do reator (mais precisamente,
Câmara de Reação de Matéria e Antimatéria, ou M/ARC), o gênio tenta sair
da lâmpada. Matéria e antimatéria confrontam-se na superfície de um cristal de
dilítio, o qual tem a propriedade de controlar a reação. A quantidade espantosa de
energia assim gerada é capturada pelo plasma resultante e levada até as naceles de
dobra, onde é despendida no processo que impele a nave além da velocidade da
luz.
O aumento da velocidade de dobra exige um aumento de
potência da reação entre matéria e antimatéria. Para tanto, o Manual prevê
um acréscimo na velocidade com que os reagentes chegam à câmara. Um
dramático exagero desse aumento pode ser testemunhado em "Where No One Has
Gone Before", quando a Enterprise atinge velocidades além da escala dos
instrumentos.
(Novamente, a ficção diverge da realidade. Em
Jornada nas Estrelas, a reação não ocorre "um-para-um". Para fatores de
dobra inferiores a 8, injeta-se mais matéria do que antimatéria; deduz-se que, após a
aniquilação, sobre um resíduo de matéria. É interpretação deste autor que, em
conseqüência da reação, grandes quantidades de energia sejam liberadas como
calor, aquecendo aquele resíduo aos absurdos
2 x 1012 K enunciados pelo Manual. Nessa temperatura, o resíduo
desintegra-se em uma "sopa gasosa" de prótons, elétrons, nêutrons e outras
partículas dançando, energizadas, à inacreditável melodia do mundo quântico. Esse
é o plasma canalizado pelos conduítes até as naceles, onde a estupenda quantidade
de energia assim portada propelirá a nave a velocidades de dobra. Como isso
acontece é assunto para outro artigo...
A proporção entre os reagentes é mencionada em "Coming
of Age", onde Wesley Crusher se depara com a pergunta de qual seja a proporção
ótima entre matéria e antimatéria para a propulsão diante de determinadas
condições. Ele fornece a única resposta possível para todas as condições,
que é 1:1. Aparentemente, foi apenas no decorrer da Nova Geração que
surgiu a idéia do plasma de dobra e, no Manual técnico, a possível
justificativa para sua formação a partir de um excesso de matéria. O Manual
prevê a proporção 1:1 apenas para fatores de dobra iguais ou superiores a 8. Esta
proporção não deixa resíduo de matéria, nem o Manual elucida de onde sai o
plasma neste caso.
Outra discordância em relação à realidade é que uma
reação matéria-antimatéria conduzida na forma descrita produziria vastas
quantidades de radiação gama, igualmente avante e à retaguarda. Ora, na página
62 do Manual, vê-se que o fluxo de plasma e a radiação viajam somente para
trás da nave, sendo facilmente desviados no interior dos conduítes. Porém, até hoje,
não se conseguiu imaginar um material que pudesse refletir ou desviar raios gama
dessa maneira.
A discrepância final é denunciada pelo Dr. Lawrence
Krauss5: os campos de contenção, sendo
magnéticos, somente funcionam para partículas eletricamente carregadas. Não
importa se carregadas positiva ou negativamente (respectivamente, pósitrons ou
antiprótons, no caso da antimatéria), contanto que carregadas. Entretanto, nos
módulos de armazenamento da Enterprise, essas partículas estão
organizadas em átomos de antideutério. Esses átomos são eletricamente neutros,
tanto quanto um átomo de matéria comum é neutro; ou seja, um campo magnético é
inútil para contê-los.
Se colocarmos os sistemas da Enterprise debaixo de
uma lupa, muitos serão os outros pormenores que não resistirão a críticas por sua
impossibilidade. Todavia, o que Jornada pretende não é ser a vida real, mas
contar histórias acerca do espírito humano.)
O extremos de risco e dificuldade em transportar antimatéria
justificam-se pelo fato de que somente sua reação com matéria é capaz de gerar as
potências necessárias ao atingimento de velocidades de dobra. Algumas fontes de
consulta propõem que as naves da Federação de Planetas tivessem sido
anteriormente propelidas com base em fissão nuclear6 e que a descoberta do dilítio
para o controle da reação entre matéria e antimatéria tenha propiciado um salto
tecnológico para maiores rendimentos e maiores velocidades7. Essas fontes partem de uma
frase do episódio "Court Martial" a respeito de uma "pilha atômica" (sinônimo de
"reator de fissão nuclear") a bordo da USS Republic. Sob esse ponto de vista,
a classe Constitution teria sido a primeira equipada com uma M/ARC, tendo
algumas naves sido subseqüentemente modernizadas para esse padrão. Essa visão não se sustenta, porque a fissão nuclear
controlada não é suficientemente energética para sustentar a propulsão de
dobra8. Como quase sempre, esta é
uma questão de aceitar a canonicidade das diferentes fontes de pesquisa.
Na parte III desta (anti)matéria, a
conclusão aguarda o Leitor, apontando o sentido da Vida, do Universo e de Tudo.
Na verdade, nem tanto, mas seu assunto é interessante assim mesmo.
Notas
João Paulo Cursino é engenheiro mecânico
e ainda não descobriu por que a piscina do vizinho se evaporou, ladrilhos e tudo, mas suspeita que
isso tenha algo a ver com o torrão de antimatéria que havia deixado sobre a bancada do laboratório.
Este artigo foi registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional sob o número 320.480, livro 586, folha 140, está protegido pela lei
no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e foi publicado originalmente no Portal
Jornada nas Estrelas Brasil (http://www.jornadanasestrelas.net) em 28 de janeiro de 2002
sob específica permissão do autor e republicado em
http://www.geocities.com/jpcursino/antimat2.htm em 12 de maio de 2004. A reprodução só é
franqueada a quem obtiver minha
permissão expressa, específica e nas condições ditadas por mim. Eu costumava
autorizar a
reprodução, até que encontrei meu artigo Uma cronologia
de Jornada nas Estrelas na página
de uma organização com a qual nunca havia tido contato. O texto havia sido
adulterado, com
omissão
da autoria e meu nome apenas na "bibliografia". Sob minha insistência, concordaram
em tirar a obra
do ar, mas insinuaram que eu não podia provar ser o autor. Por isso, agora, tudo é
registrado.
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