A canonicidade em Star Trek

por João Paulo Cursino P. Santos
jpcursino(arroba)yahoo.com
Versão 2.1
30 de novembro de 1998

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           Conversando com outros trekkers, observo que, freqüentemente, existem fatos no universo de Jornada nas Estrelas que suscitam dúvidas em alguns, respondidas por outros conforme diferentes fontes, levando a conflitos sobre "o que seja o certo". A Enterprise possui um deque 78, conforme visto em Star Trek V? A Tenente Saavik é mesmo meio romulana? Esta discussão procura ajudar a definir quais fatos são "a verdade" ou "a versão oficial" em ST e quais não são. A isso chama-se decidir o que é ou não é canon (canônico).

           Esta temática é quase tão antiga quanto o movimento trekker, pois nasce da especulação em torno de todo tipo de inconsistência do universo de Jornada e da natural curiosidade e fantasia acerca de tudo que seja abordado mas não minuciosamente descrito. Na década de 70, Leslie Thompson já publicava artigos na revista Trek onde respondia a perguntas com base em um exame crítico dos episódios e uma boa dose de criatividade. Por vezes, na falta de uma fonte inquestionável, Thompson recorria à abundante ficção amadora de criação dos próprios trekkers, tão prolíficos e imaginativos, e analisava a respectiva credibilidade.

           Naquela época se davam os primeiros passos rumo ao estabelecimento das bases da canonicidade. Infelizmente, muito desse esforço foi inutilizado na década seguinte, pois uma série de visões então consideradas confiáveis pela maioria das pessoas acabou não sendo adotada pela Paramount. Isso alterou a convenção a que se havia chegado na completa ausência de qualquer fonte de referência. (E nisto, exatamente, reside uma grande virtude da criação amadora dos anos 70, que enriqueceu enormemente um terreno ainda inculto: audaciosamente escrever onde nenhum escritor se aventurara antes.)

           A necessidade de se escreverem as histórias e de se dar pano de fundo às vidas dos personagens, tornando-os mais próximos de pessoas reais, levou a muitas revelações de fatos que, antes, simplesmente não existiam. O universo de Jornada foi sendo gradualmente transformado, sem, com isso, perder seu conteúdo original: ele naturalmente se expandiu para acomodar o desenvolvimento, consolidação e atualização de seus elementos. Tornou-se necessária a revisão dos antigos conceitos.

           Com o passar dos anos, novos seriados e centenas de livros somaram-se à série original de Jornada nas Estrelas. Até o momento, não seria um exagero afirmar que haverá milhares de histórias diferentes (entre episódios, filmes, romances, contos, quadrinhos e arquivos da Internet) envolvendo as tripulações comandadas por Pike, Kirk, Picard, Sisko, Janeway e mesmo outros capitães. O que se segue é um apanhado dessa evolução sob a óptica da canonicidade, começando pelos primórdios do universo trekker.

           Quando Gene Roddenberry criou a série Clássica (TOS) e durante sua produção, era muito simples: tudo que ele dizia ser canônico era; afinal, partia da cabeça do próprio criador (ou ele aprovava) e quem senão ele para dizer como era a criação? Assim, tudo que ocorreu nos oitenta episódios de TOS (inclusive "The Cage") e tudo que ali se disse é canônico. Pela mesma razão, são canônicos os quatro primeiros filmes e os quatro primeiros anos da NG. Todos "realmente aconteceram".

           Isso originou uma regra geral muito simples: "se foi para a tela, então aconteceu; caso contrário, não aconteceu". Por exemplo, a cena em ST II onde se diz que Saavik é meio romulana foi de fato filmada, porém cortada da edição final do filme; portanto, nunca ocorreu (embora aquela declaração seja feita em livros) e, com isso, ela é puramente vulcana. Igualmente, a cena de ST IV com uma Saavik grávida foi excluída da edição final e jamais ocorreu. Mas Roddenberry declarou taxativamente que ST V e alguns elementos do VI eram apócrifos, ou seja, fugiam ao que teria sido ditado por ele. Como se tudo isso não bastasse, há mais de uma versão para ST VI, considerando-se que há a versão do cinema americano e a versão de vídeo, com cenas a mais (que foi a mesma exibida no cinema brasileiro). Qual delas é a canônica? As duas? Nenhuma?

           Ficaram estabelecidas exceções à regra. O desenho animado (TAS) já era uma delas, pois fora exibido com aprovação do Grande Pássaro mas, convencionadamente, "nunca ocorreu". Da mesma forma os romances. Que, aliás, se fossem somados aos episódios, totalizariam mais de onze anos (segundo estudo de uma trekker em 1994) em uma missão de cinco! Mesmo a adaptação do primeiro filme de cinema para livro, do próprio Gene Roddenberry, já era não canônica, fazendo com que o nome Tiberius para James T. Kirk (ali revelado pela primeira vez) também o fosse.

           A norma simplista onde a palavra de Roddenberry, a presença na tela e a canonicidade eram sinônimos era muito cômoda. Mas, quando a NG estava em sua quinta temporada, o criador faleceu e deixou Rick Berman como líder da equipe responsável pelo universo de ST. Sem desrespeitar os elementos enunciados por Roddenberry, Berman redirecionou as histórias da NG para um lado mais obscuro e psicológico. Em DS9, essa mesma tendência foi posta em prática com muito mais liberdade, pois se tratava de nova criação. Como decidir, então, o que é canônico, se o Grande Pássaro era contrário à realização de DS9 e os últimos roteiros da NG certamente não teriam sido aprovados por ele? De qualquer maneira, como saber qual seria "sua vontade"?

           Aqui se levanta uma questão menos definida, que é a da extensão dos poderes do criador sobre uma criação que deixou de ser inteiramente sua. Considerando-se que não era o próprio Roddenberry quem costumava escrever os roteiros, até que ponto teria ele o direito de cercear a liberdade criativa em nome da estrita obediência a sua concepção original? Teria ele poder para "anular" ST V, tornando o filme "apócrifo"? Não estaria havendo um abuso de autoridade quando impede alguma evolução por parte de um roteirista, sabendo-se que tal evolução não viola as regras primordiais do universo de ST? Vários elementos, entre eles Sybok, tornam ST V "apócrifo", mas talvez o maior motivo do tratamento seja a qualidade do filme. É muito conveniente renegá-lo por não se ter gostado dele, mas tanta subjetividade não configura um excesso?

           Star Trek cresceu um bocado para fora de seu núcleo original (TOS), motivando filmes, novas séries, livros, quadrinhos, jogos, audiolivros e CD-ROMs. É o que se chama de um universo compartilhado: um conjunto coerente e muito bem identificado de obras escritas por diferentes autores dentro de uma mesma cultura, publicadas segundo um mesmo supertítulo e seguindo elementos comuns. A profusão de autores por trás disso naturalmente multiplicou os aspectos enfocados, segundo a eternamente fértil imaginação humana e as preferências pessoais. Os livros analisam personagens que aparecem por poucos minutos em episódios, descrevendo-os e a seus planetas e sociedades. Tudo isso é rotulado como não canônico. Mas há histórias, como Kobayashi Maru, de Julia Ecklar, onde os personagens estão tão perfeitamente caracterizados, são de uma coerência tal que desejamos que "houvessem acontecido". É em livros como esses que aparecem personagens como Zar, o filho de Spock (Yesterday’s Son [Portal do tempo no Brasil], Time for Yesterday [O filho de Spock]), inexistentes segundo as telas. Ou Joanna, filha de McCoy. Ela teria sido tema do episódio "Joanna", da Clássica, mas essa história nunca foi filmada; conseqüentemente, a personagem, "oficialmente", não existe. Mas, de quando em vez, é mencionada nos livros.

           Os primeiros romances e contos, publicados de 1968 a 1979, eram bastante fantasiosos. Divulgados em caráter essencialmente amador, a maioria em fanzines e tendenciosamente apaixonados por personagens em particular (notadamente Kirk e Spock), os contos divergiam bastante entre si e de qualquer linha com um mínimo de severidade em relação à Jornada original. Apesar disso, essa era a mais autêntica ficção trekker, pois era escrita por pessoas com apreensão bem sintonizada dos personagens. Quando a Paramount percebeu o filão e encampou os direitos sobre livros, centralizando os julgamentos para o imprimatur sob a égide de sua subsidiária Pocket Books, bons autores foram contratados e, por um tempo, as histórias mantiveram o nível, atendo-se à filosofia da exploração de um espaço sideral e de um espaço humano, ambos desconhecidos e vastos. O conteúdo eminentemente amador adquiriu ares profissionais. Mais tarde, a série dos livros de Jornada (ao tempo desta edição, eram mais de noventa pela Pocket, contando-se somente os da Clássica) banalizou-se e muita produção de qualidade duvidosa passou a chegar às livrarias, ao mesmo tempo em que tem de obedecer a restrições impostas por um número crescente de filmes. Por exemplo: ao tempo de ST VI, podia-se especular bastante sobre os destinos da tripulação, particularmente de James Kirk, o que de fato ocorreu na Internet (veja adiante), mas, com Generations, fica-se sabendo a versão final. Generalize-se isso para uma miríade de pequenos fatos e percebe-se o quanto se perde com o controle promovido pela Paramount.

           Da mesma forma, cometeram-se arbitrariedades: Richard Arnold ("revisor" para assuntos de canonicidade) exigiu sucessivas versões de A Flag Full of Stars, até transferi-lo do autor Brad Ferguson para ser reescrito por J.M. Dillard, e Probe sofreu profundas alterações, a ponto de a autora Margaret Wander Bonanno haver declarado não ser seu o livro. Em situações como essas, é justo que o leitor dê preferência a uma obra que, para se encaixar nos caprichos de um editor, chega adulterada a suas mãos?

           É preciso levar-se em conta, ainda, que, diante de tamanha produção, dificilmente um autor terá domínio sobre tudo que se passa fora de seu contato imediato. As contradições irremediavelmente aparecem e alguns livros ou revistas (ou outras formas de publicação) apresentam fatos incompatíveis com aqueles enunciados em outras obras. Isso já acontecia na própria série Clássica, mas sempre permanecia dentro de limites toleráveis, inevitáveis em qualquer seriado. Com o tempo, entretanto, o fenômeno foi crescendo e espalhando-se sobre o mundo trekker como um todo. As formas de justificar isso são muitas e curiosas. Geralmente, quando o observador procura ater-se à ficção procurando validá-la apesar das evidências, ele racionaliza, argumentando em cima de hipóteses que, por mais inverossímeis, possibilitariam a compatibilidade. Outras vezes, ele recorre ao escapismo puro e simples: Mark Andrew Golding, em seu artigo Alternate Universes in Star Trek, argumentava em cima de universos alternativos. Dessa forma, todas as vezes em que um episódio contradissesse outro anterior, Golding dizia que ele se passava em um universo alternativo diferente daquele do episódio precedente. Essa visão, extremamente conveniente, acaba por estabelecer praticamente um universo para cada episódio, tamanho o número de contradições por se analisar, sejam elas bastante óbvias ou menores. E isso em um tempo em que só havia a Clássica e o primeiro filme de cinema. Quantos não seriam os universos hoje, dezessete anos após?

           Simultaneamente, enquanto há manuais que claramente "forçam a barra", como os delirantes e atrativos manuais de naves da FASA, outros, como os recentes de Sternbach e Okuda, são escritos por quem faz as séries e considerados oficiais pela Paramount. Além de mais ponderados, estes últimos seguem as normas do que é canônico. Sua fonte é a mesma das séries e eles são estritos em não extrapolar, descrevendo somente o que já vemos na tela. Essa garantia é ainda maior porque a informação adicional que trazem (nomes de personagens, registros e classes de naves não declarados nos episódios) foi extraída dos próprios roteiros ou de detalhes das cenas tão minúsculos que se lêem somente nos estúdios. Aliás, o casal Okuda abre uma exceção no Star Trek Chronology, quando admite utilizar um episódio de TAS como base para uma referência: é "Yesteryear", que consideraram para determinar a data de nascimento do Sr. Spock. Observe-se que fizeram isso devido à falta de outra fonte mais confiável.

           Em tempos mais recentes (na verdade, desde o falecimento de Gene Roddenberry), a confusão tem aumentado significativamente. Até o momento, tem prevalecido um consenso não muito rígido entre os fãs (pelo menos entre aqueles que contribuem para homepages e grupos e listas de discussão na Internet) segundo o qual canônico ainda é aquilo que se exibe na televisão e no cinema, apesar de haver aumentado a freqüência de falhas de continuidade. A segunda edição do Chronology parece concordar com isso ao incluir as séries Deep Space Nine e Voyager, bem como os filmes Generations e First Contact. Pessoalmente, chego a considerar que Deep Space Nine, em sua quarta temporada, esteja tão afastada das intenções do Grande Pássaro que não seja realmente um seriado de Jornada, embora continue sendo boa ficção científica. Enquanto isso, há cenas cortadas de Generations que, ao que me consta, só foram inseridas na versão em videolaser (o pára-quedismo orbital de Kirk). Esse é um problema menor. O forte mesmo, e na minha opinião o pior acontecimento em toda a história do universo trekker, cometendo sacrilégio contra um ícone de gerações, foi o assassinato do Capitão Kirk. Completamente injustificado, tal ato reforça a intenção da Paramount de se afastar progressivamente da Clássica, cuspindo no prato onde comeu. Com toda a credibilidade que o estúdio queira dar ao filme e mesmo tendo visto a cena n vezes, eu não admito que Kirk tenha morrido. Tal cena também indica a filosofia de fazer do universo compartilhado mais um do tipo das histórias em quadrinhos, com a morte ocasional de personagens significativos.

           Mesmo o cuidado que caracterizou a NG com respeito a não se ferirem declarações estabelecidas por episódios anteriores começa a falhar. Como encaixar o desaparecimento de Scott, conforme evidenciado em "Relics", com sua presença em Generations, presumivelmente após o primeiro?

           Para dar outro exemplo, a acumulação de evidências ao longo dessa série e das demais, apoiadas por uma ampla variedade de referências em livros, situam diversos anos para diversas ocorrências. Entretanto, as fontes nem sempre concordam entre si e o julgamento deixa de ser simples. Tome-se o excelente Star Trek Spaceflight Chronology, de Stan e Fred Goldstein. Esse livro espetacular foi publicado pela Pocket em 1979, simultaneamente ao primeiro filme de cinema. Naquele tempo, as únicas referências confiáveis eram os episódios da Clássica, TAS e o próprio filme, com o Starfleet Manual de Franz Joseph sendo o único manual disponível. Assim, esta cronologia atribui 2059 ao lançamento da primeira nave em velocidade de dobra (a Bonaventure, conforme TAS) em direção a Tau Ceti, com o físico centauriano Zefram Cochrane permanecendo em Alfa Centauri; o primeiro contato com os vulcanos a um acidente no espaço; o primeiro contato com os tellaritas a uma visita deles a nosso sistema; 2087 à fundação da Federação Unida de Planetas; e 2188 ao lançamento da Enterprise. Anos mais tarde, em 1993, o Chronology de Okuda atribuiu 2061 ao primeiro vôo em velocidade de dobra com uma nave diferente da Bonaventure (e, segundo o mesmo Okuda no ST: TNG Technical Manual, em direção a Alfa Centauri, com um Cochrane terráqueo a bordo), 2161 para a criação da Federação e 2245 para o lançamento da Enterprise, no que foi seguido pela maioria das fontes posteriores; e o livro Strangers from the Sky localizou o acidente dos vulcanos na própria Terra, enquanto outro romance da Pocket propôs o primeiro contato com os tellaritas ocorrendo em Tellar. Recentemente, o filme First Contact lançou a nave Phoenix, tripulada pelo terráqueo Cochrane, a partir da Terra, com um terceiro design e em 2063, trazendo os vulcanos para uma visita segura à Terra em seu primeiro contato com ela. Quer parecer-me que todas essas versões sejam igualmente válidas, incompatíveis entre si e sem uma primazia muito discernível, pois nenhuma delas é realmente canônica no sentido mais restritivo do termo. Dessa forma, a definição de qual seja a versão "correta" fica nebulosa, pois os precedentes são sucessivamente desmentidos por sucessores supostamente de maior autoridade. A segunda edição do Chronology, lançada em 1996, simplesmente "corrige" a anterior, comentando que a datação com 2061 era resultado de especulação, sendo substituída por uma datação definitiva para 2063 a partir de First Contact. O comentário é estendido à diferença de desenhos entre a versão da nave da primeira edição e a Phoenix, alegando que o desenhista de 1993 não sabia dos fatos que viriam em 1996.

           Todavia, já me sinto tentado a derrubar First Contact do pedestal que sua posição de filme lhe conferiria, pois ele segue a nova política de Rick Berman de uma Jornada que não seja roddenberriana, desrespeitando os elementos preestabelecidos e, em seu espírito e conteúdo isolado, deixando de ser Jornada (apesar de me parecer um excelente filme em seu mérito próprio, fruto de um roteiro atento e uma excelente direção e incluindo citações honrosas ao passado de Star Trek).

           Será que não começam a surgir múltiplas versões de Jornada incompatíveis entre si, sem que qualquer delas seja a preferencial? Isso poria a perder um esforço de anos com que se conseguia, bem ou mal e apesar de muitos escorregões, conferir unidade e coerência a um conjunto tão exposto a falhas. Uma evidência disso é o descaso que vem havendo em Voyager. O excelente episódio "The 37s", primeiro da segunda temporada, possui grande quantidade de pequenos furos e inverossimilhanças que não fazem sentido.

           Como se vê, os supostos "senhores absolutos" sobre o que é canônico têm demonstrado uma irresponsabilidade que bem lhes merece uma perda de credibilidade, ainda mais sabendo-se que a mentalidade trekker verdadeiramente criativa nunca foi de se prender muito rigidamente ao que ditam. Os autores lançam mão de possibilidades acesas em suas mentes pelos fatos que a história "oficial" apresenta, freqüentemente fazendo referências imersas em seus textos que enriquecem sua substância e estabelecem laços com a segurança de uma base de referência conhecida pelo leitor.

           O romance Imzadi revelou o significado do "T" de William T. Riker como Thelonius. Foi o primeiro a dar essa explicação e, na qualidade de única fonte, "deteve a verdade". Mas, algum tempo depois, o episódio "Second Chances" não deu margem a dúvidas: o "T" era de Thomas. Assim, fixou-se este último como o "verdadeiro". Casos semelhantes são os de Hikaru Sulu e James Tiberius Kirk, que só tiveram seus nomes completos "oficializados" pelo sexto filme, cujo roteiro segue as escolhas não canônicas feitas em livros uma década antes. Já o primeiro nome de Uhura, supostamente Nyota, ainda não pode ser considerado canônico.

           Outro caso diz respeito à nave Excelsior e à Enterprise-B. Uma referência disponível na Internet (Periodic List of "Frequently Asked Questions" in Rec.arts.startrek.tech, na página de Otto Heuer) afirma que Richard Arnold declarou ter a Excelsior explodido em razão da transdobra; afirma, ainda, que o livro ST VI valida isso. Entretanto, não apenas não vi qualquer outro comentário a respeito como a galante embarcação tem participado de diversos livros (The Ashes of Eden, The Captain’s Daughter, The Fearful Summons), audiolivros e mesmo episódio ("Flashback", da Voyager). Tecnicamente, a explosão, ao que eu saiba, ainda não foi negada, mas periga. Já no caso da Enterprise-B, a primeira evidência foi dada pela parede da sala de conferências da NG, tendo sido, desde então, corroborada pelos manuais, livros em geral e mesmo histórias amadoras: ela teria sido uma nave da classe Excelsior. Após sete anos de unanimidade em cima disso, com divergências apenas acerca de detalhes fantasiosos pertinentes à missão e comando da nave, Generations apresentou a Enterprise-B conforme todas as fontes não canônicas indicavam. Esse foi um caso de uma fonte posterior concordando com as versões anteriores.

           Situações assim e as dos filmes V e VI motivam-me a concordar com a tese de que, no meio da confusão toda, quem determina o que é ou deixa de ser válido, na verdade, é o próprio trekespectador. Nós mesmos é que dizemos em que devemos acreditar. Evidentemente, convém algum bom senso. Entre fontes conflitantes, escolha-se a mais confiável. E é curioso como os trekkers acabam, por conta própria, convencionando como canônicos fatos que nunca foram realmente declarados como tais: o sangue meio romulano de Saavik, o nome Tiberius antes do filme VI.

           Na Bitnet, levantava-se com freqüência a questão da canonicidade em ST. Rob Lent resumiu a questão da seguinte forma em 10/10/1994: "(...) podem-se utilizar fontes ‘não canônicas’ para suplementar especulação técnica ou histórica quando não houver nenhuma informação canônica definitiva disponível. Um dos problemas com o ‘canônico’ é que podemos ficar aqui sentados discutindo durante bilhões de anos, usando fontes várias".

           Um elemento importante na discussão é a Internet. Arquivos do newsgroup Alt.Startrek.Creative no Centro de Ciências da Informação da Universidade do Estado do Kansas (para os interessados: FTP para o diretório pub/alt.startrek.creative no domínio ftp.cis.ksu.edu) e em outros lugares armazenam um volume de dezenas de histórias saídas das imaginações de trekkers tão numerosos quanto elas. (Em julho de 1998, o site oficial de Alt.Startrek.Creative ficava em http://archive.nu). A Grande Teia permitiu uma explosão de liberdade criativa disponível para muitos usuários, que se sentem encorajados a exibir ao mundo com o que foram capazes de contribuir para o universo compartilhado de Jornada. Com toda a certeza, isso é o que há de mais não-canônico, pois não há qualquer forma de controle sobre o conteúdo das histórias (inclusive as eróticas, que existem há tanto tempo quanto os trekkers e discorrem sobre todo tipo de fantasia). Mesmo assim, algumas das melhores que já li vieram do diretório acima e são superiores a diversos livros, às vezes partindo de situações de episódios e extrapolando continuações. Este é o caso das histórias que continuam episódios da NG ou filmes de cinema e que, pouco tempo depois, tornam-se obsoletas devido a fatos "oficiais" com que não podem coincidir. Por exemplo, Star Trek: The Third Generation, excelente série em onze episódios, ocorre 25 anos depois da destruição da Enterprise-D por uma nave romulana e foi escrita quando a NG estava em seu quarto ano. Quando Generations foi lançado, invalidou aquele evento. Outras histórias enfocam naves diferentes das Enterprises, com tripulações de criação dos autores, em acontecimentos paralelos aos "oficiais", ou utilizam personagens de participações muito esparsas, como Saavik e Shelby, em papéis principais. Ainda outro gênero dessas histórias reescreve Generations ou promove encontros de Kirk e Picard diferentes do que ocorreu naquele filme.

           Não será que essas histórias, atiradas quase ao limbo de um tratamento como ficção barata, não mereceriam uma atenção mais séria? A ausência de um compromisso dá asas à inventividade e o resultado, muitas vezes, é um produto legítimo de talentos que poderiam ser melhor explorados. Ou talvez já estejam sendo explorados tanto quanto devem, pois a satisfação pessoal sem retorno financeiro é o que atribui verossimilhança a essas histórias. São elas a verdadeira ficção amadora, talvez não tão liberta em imaginação quanto sua equivalente da década de 70, mas isso, provavelmente, deve-se ao excesso de material de referência, à subjacente necessidade de não se ferir o que foi preestabelecido.

           Afinal, que diferença faz uma história ser canônica ou não se nos divertimos assistindo a ela? Se é bem feita, se agrada e representa um trabalho meticuloso no retrato da fantasia de uma mente criativa, que importa não ser a versão oficial? A "oficialidade" perde seu significado se você gosta da história, especialmente quando os personagens se comportam de maneira quase real e mais fiel a seus conceitos originais do que em trabalhos ditos "oficiais". Assim, como fica o julgamento? Pode-se dizer que "toda história escrita com o sincero propósito de contribuir para este universo seja uma autêntica história de Jornada"? Essa quer parecer-me uma afirmativa sensata, conquanto completamente fora das definições de canonicidade. O que se avalia, neste caso, é a dedicação, a paixão de quem escreve por Jornada. A qualidade intrínseca do trabalho, seu caráter inovador como deve ser o culto à Infinita Diversidade em Infinitas Combinações pregado pela série, mais do que seu ajuste a padrões preestabelecidos. Em Jornada, há espaço para tudo, tantas possibilidades a explorar.

           Todos os livros, de maneira geral, contêm elementos canônicos e não canônicos. Há aqueles moldados nos episódios e aqueles em que absolutamente não nos podemos fiar. Para facilitar o julgamento, relacionei abaixo uma escala descendente de credibilidade. Lembre-se, não é uma escala absoluta: cabe ao leitor julgar por si qual seja a ordem correta. Um item importante que levei em conta é o nível a que cada elemento é divulgado: observe que, do mais para o menos canônico, a ordem coincide aproximadamente com a da quantidade de pessoas que toma contato com cada um. A televisão e o cinema são os mais conhecidos, seguidos pelos livros que a Pocket derrama em profusão no mercado, pelas revistas das editoras poderosas e, ao final, pelos livros e revistas que saíram em pequenas tiragens no passado mais distante. Assim, uma obra será tanto mais aceita quanto mais pessoas a tiverem visto, contribuindo para que a canonicidade seja fruto de um consenso geral. Isso faz sentido, pois dificilmente se poderá tomar uma obra de divulgação restrita como base comum de discussão e, para que se fale a mesma linguagem, é preciso ordenar-se (um pouco) esta bagunça tão saudável.

           De qualquer forma, independentemente de sua canonicidade, quase todos os livros e episódios merecem atenção e são excelente entretenimento.

           1. TOS, filmes de cinema até o IV, TNG até o quarto ano.

           2. TNG de quinto a sétimo anos, filmes VI, Generations, First Contact e posteriores, DS9, Voyager e séries posteriores.

           3. Filme V, manuais de Sternbach e Okuda (ST:TNG Technical Manual, ST Chronology e Encyclopedia).

           4. Tapam buracos e não têm qualquer coisa que os torne "oficiais": The Klingon Dictionary; Manual da Enterprise (Mr. Scott’s Guide to the Enterprise); Mundos da Federação; todos os romances da Pocket Books (inclusive versões dos filmes e episódios); livros de referência da Pocket (Travel Guide e outros escritos na forma de ficção, como aqueles sobre os klingons e sua língua); quadrinhos da DC Comics (Clássica e NG), da Malibu (DS9 e Voyager) e Marvel (a partir de 1996), inclusive as versões de filmes; TAS; Star Trek Logs de Alan Dean Foster; adaptações de James Blish; revistas oficiais da NG, DS9 e Voyager (do grupo Starlog); Star Trek Communicator (ex-Star Trek Official Fan Club Magazine); CD-ROMs, como Star Trek: Klingon, Star Trek: Borg e os de jogos; todos os audiolivros, como aqueles com as aventuras do Capitão Sulu e as versões narradas de romances impressos. Da mesma forma, todos os livros de referência no estilo não ficção, incluindo os da Pocket.

           5. Romances e manuais antigos; quadrinhos da Marvel até 1982 (versões de filmes inclusive); Starfleet Manual; Spaceflight Chronology.

           6. Exageros que não merecem crédito, apesar de muito interessantes: manuais para RPG de TOS, dos filmes e de TNG (incluindo os da FASA); manuais para os diversos anos da NG (que não sejam da Paramount); os próprios RPGs, mesmo não sendo da FASA, como GURPS para Star Trek; quadrinhos da Gold Key; material disponível através da Internet (histórias, material técnico, guias, FAQs etc.). Uma parte do material disponível na Internet chega a equiparar-se aos níveis 2 a 4 em sua fidelidade aos episódios, mas não creio que sirva como fonte de referência acima deste nível 6.

          Referências:

  • The Best of Trek #3: From the Magazine for Star Trek Fans. New York: Signet, 1981. 212 p. p. 3-11, 32-43, 106-133, 186-196. Nota: as páginas destacadas são artigos de Colleen Arima, Mark Andrew Golding, Leslie Thompson e Van James.

  • NASTASI, Cristina. Os romances de Star Trek: A série Clássica. JETCOM, Rio de Janeiro, v. 2, n. 7, p. 4-6, maio/jun. 1992.


  • João Paulo Cursino é engenheiro mecânico e o consultor para termos militares e técnicos nas traduções das séries Jornada nas Estrelas: A Nova Geração, Deep Space Nine e Voyager para a televisão brasileira.

    Este artigo foi registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional sob o número 320.480, livro 586, folha 140, está protegido pela lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e foi publicado originalmente em http://aquarius.ime.eb.br/~jpcursino/canon.html em 1996 e republicado em http://www.geocities.com/jpcursino/canon.htm em 12 de maio de 2004. A reprodução só é franqueada a quem obtiver minha permissão expressa, específica e nas condições ditadas por mim. Eu costumava autorizar a reprodução, até que encontrei meu artigo Uma cronologia de Jornada nas Estrelas na página de uma organização com a qual nunca havia tido contato. O texto havia sido adulterado, com omissão da autoria e meu nome apenas na "bibliografia". Sob minha insistência, concordaram em tirar a obra do ar, mas insinuaram que eu não podia provar ser o autor. Por isso, agora, tudo é registrado.

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